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Rodrigo Castelo - A Questao Social Nas Obras de Marx e Engels PDF
Rodrigo Castelo - A Questao Social Nas Obras de Marx e Engels PDF
ARTIGO
Rodrigo Castelo*
Resumo: A “questão social” surgiu por volta de 1830. Muitos pesquisadores associam-na à pobreza das massas popu-
lares e às desigualdades sociais geradas pelo capitalismo. Defini-la desta forma é, todavia, defini-la por meio das suas
expressões, e não do seu núcleo central. A teoria social de Marx e Engels nos fornece um instrumental teórico-meto-
dológico capaz de dar precisão conceitual à expressão “questão social”, definindo-a como a exploração do trabalho
assalariado pelo capital e a luta política do movimento operário contra esta exploração e suas múltiplas expressões.
Palavras-chaves: Exploração; Movimento operário; “Questão social”; Karl Marx; Friedrich Engels.
Abstract: The “social issue” emerged around 1830. Many researchers associate such fact to the poverty of the masses
and the social inequalities engendered by capitalism. Nevertheless, this is a way to define the issue by its expressions
and not by its core problematic. Marx and Engel’s social theory offers theoretical and methodological tools that unable
us to give more conceptual accuracy to the “social issue” idea, defining it as the Capital exploitation of the working
force and the political struggle of the working movement against such exploitation and its multiple expressions.
Keywords: Exploitation; Labour movement; “Social issue”; Karl Marx; Friedrich Engels.
seus elementos básicos: capital, trabalho assalaria- cipalmente, das terras comunais dos camponeses
do e lutas operárias. Na segunda parte destacamos medievais. Tal processo levou a um maciço êxodo
os principais textos de Marx e Engels nos quais fi- rural, aumentando a população urbana e a oferta de
guram a expressão “questão social”, visando não mão-de-obra para a manufatura.
uma exegese destas fontes clássicas, mas sim a Os trabalhadores rurais viram-se no meio de
problematização do uso da expressão segundo a um turbilhão de mudanças que mal podiam com-
teoria dos revolucionários alemães. preender. Expulsos violentamente da sua terra,
alijados dos seus meios de produção e de repro-
Raízes da “questão social” dução sociais, eram, naquele momento, obrigados
a subsistir nas cidades em péssimas condições
As ideologias dominantes, em versões laicas e de vida. Haviam-se tornado mercadorias para a
religiosas, proferiam o caráter eterno e a-histórico manufatura a partir dos processos históricos cha-
das desigualdades sociais visando garantir e legiti- mados de acumulação primitiva, e passaram a ser
mar a ordem estabelecida pelas classes explorado- consumidos dentro e fora do processo de produ-
ras. Pouco ou nada se falava sobre as origens so- ção fabril (MARX, 2003 [1867]). A natureza ha-
ciais e históricas da desigualdade humana; quando via sido reduzida à terra privatizada, o homem à
muito, dissertava-se sobre as diferenças biológi- mercadoria “força de trabalho”. Entretanto, a des-
cas, físicas e capacidades mentais e habilidades peito das previsões mais pessimistas, uma nova
manuais dos indivíduos. Desde o Renascimento, costura deu unidade aos retalhos remanescentes
autores humanistas como o diplomata inglês Tho- do sistema feudal: a economia de mercado autor-
mas Morus e o sacerdote alemão Thomas Mün- regulável, que teve como símbolo máximo a in-
zer, já denunciavam, respectivamente, por meio dústria moderna (POLANYI, 2000 [1942]).
dos seus livros e pregações, as mazelas sociais da As ruas, os espaços públicos e, principalmente,
dissolução do modo de produção feudal e o conse- a população urbana, proletária, passaram a freqüen-
quente nascimento do capitalismo. Foi, contudo, tar não só as páginas de livros, folhetins e panfletos
no período da Revolução Industrial, que a ideia da revolucionários, como também o imaginário das
desigualdade social ser vista como um fato natu- classes dominantes. Os fenômenos da sociedade
ral, aceitável e até mesmo inalterável, foi descons- industrial e sua classe trabalhadora foram a maté-
truída. Quanto a isto, muito se deve às teorias de ria-prima de escritores do porte de Victor Hugo,
Karl Marx e Friedrich Engels. Charles Dickens, Charles Baudelaire e Émile Zola,
Em modos de produção pré-capitalistas, a po- que representaram a multidão operária do século
breza e as desigualdades sociais eram intimamente XIX a partir de padrões estéticos realista e natu-
ligadas à escassez, consoante o baixo grau de de- ralista. O admirável mundo novo do capitalismo
senvolvimento das forças produtivas e das relações despertou fascínio e deslumbramento nos literatos,
de produção associadas àquelas. Já no capitalismo, então acostumados a retratar o mundo privado dos
adquiriram uma nova lógica e dinâmica, estando salões da aristocracia feudal e da burguesia.
associadas à produção de riqueza, ou seja, a escas- Diante da nova realidade social, expressa coti-
sez passa a ser uma produção social, e não mais dianamente na multidão solitária das grandes cida-
resultado da ordem natural. Mas, em ambos os ca- des europeias, a literatura respirou novos ares, ain-
sos, a pobreza e as desigualdades sociais podem da que assustada e preocupada com a formação do
ser relacionadas à divisão da sociedade em classes mundo do trabalho, um mundo capaz de contestar
sociais e à existência da propriedade privada. a ordem do capital. Por trás da representação esté-
A emergência do modo de produção capitalista tica dos espaços urbanos, tomados pelas hordas das
fez-se sentir em todas as esferas da vida humana. A classes subalternas, está o trabalho – sob a subsun-
agricultura britânica viveu momentos de profundas ção formal e real do capital – como organizador da
rupturas e transformações. A posse da terra pas- vida cotidiana. A precisão dos relógios e dos cronô-
sou por um processo de concentração nas mãos de metros regula o tempo útil do trabalho, da máquina
grandes proprietários, com a expropriação dos pe- e seus autômatos humanos; a lógica ordenadora do
quenos lotes familiares, das terras da Igreja e, prin- trabalho cronometrado e parcializado das fábricas,
regidas pela disciplina imposta pelos contrames- autonomia de consciência e ação. Desta forma, não
tres, expande-se por toda a sociedade, abarcando a se apresentam aptos a participar civilizadamente
tudo e a todos, cidade e campo, operários e campo- dos processos eleitorais, franqueados somente a
neses, trabalhadores e desempregados. seres humanos letrados, instruídos e donos do seu
Os trabalhadores, a partir da inserção no pro- próprio destino. Animais e semi-humanos deveriam
cesso de produção capitalista, dispunham da facul- ser interditados ao cumprimento de deveres políti-
dade de partilhar da sociedade mercantil, mas não cos; e, quem não é capacitado a cumprir deveres,
gozavam do direito de participar da comunidade não deveria gozar dos respectivos direitos políti-
política, atividade esta garantida aos homens ra- cos. Como escreve Domenico Losurdo (2004: 50),
cionais e que possuíam renda e riqueza. De acordo
com a visão da filosofia política liberal da época, os os operários e as classes populares em luta
trabalhadores eram seres incapazes de atuar racio- pelo reconhecimento do direito de coalizão
nalmente no campo da política, pois possuíam um ou dos direitos políticos percebem, de todo
nível intelectual baixo devido às duras condições modo, que a discriminação contra eles se
sociais de uma vida de trabalho pesado e manual. entrelaça estreitamente com uma antropolo-
gia que, considerando-os estrangeiros não
Objeto de solicitude, de piedade e de es- só em relação à comunidade em que vivem
cárnio, às vezes até de temor, os pobres mas também, em última instância, à civiliza-
não estão em condições de pertencer como ção, relega-os à condição de raça inferior,
membros de pleno direito de uma comuni- negando-lhes a dignidade plena de homens.
dade moral, o que, vale a pena lembrar,
não os livra de estarem submetidos a ela Este quadro de isolamento e esquecimento
e às suas leis. Estão na sociedade moral, da situação da classe operária vai ser modifica-
civil, mas dela só participam com o traba- do a partir das pressões dos trabalhadores, que
lho (BRESCIANI, 1984: 88). passam a se organizar coletivamente para atuar
de forma consciente e racional na comunidade
Temos, assim, a liberdade à exploração do tra- política em favor dos seus próprios interesses,
balho pelo capital e o nascimento da democracia arrancando e conquistando importantes avanços
burguesa liberal, excludente dos interesses dos democráticos e sociais.
trabalhadores. A sociedade capitalista, tendo o tra-
balho como uma atividade central e reguladora, Foram as lutas sociais que romperam o do-
produtora da riqueza dos burgueses, incluía for- mínio privado nas relações entre capital e
çosamente os agentes do mundo da produção no trabalho, extrapolando a questão social
plano econômico e, contraditoriamente, os excluía para a esfera pública, exigindo a interferên-
da vida política. cia do Estado para o reconhecimento e a le-
Enquanto o capitalismo expandia-se por todo galização de direitos e deveres dos sujeitos
o globo terrestre e conhecia novas terras, povos e sociais envolvidos (IAMAMOTO, 2003: 66,
culturas, exterminando-os na maior parte das ve- grifos da autora).
zes, ignorava por completo a periferia das suas ci-
dades: os bairros proletários eram descritos como A formação da classe trabalhadora inglesa, en-
uma terra estranha, repleta de mistérios e desafios, quanto formação social e cultural, foi um longo
e seus habitantes, os trabalhadores, eram tidos processo que teve, segundo E.P. Thompson, seu
como seres selvagens e bárbaros, membros de uma início no final do século XVIII. Desde a Socieda-
“classe perigosa”. de Londrina de Correspondência (SLC), fundada
Os trabalhadores manuais, seres alienados de em 1792, os trabalhadores colocaram-se a seguinte
parte da sua humanidade, presos nos grilhões dos questão: “nós, que somos artesãos, lojistas e artífi-
trabalhos assalariado e semi-servil, são retratados ces mecânicos, temos algum direito a obter uma re-
pelos liberais como “bestas de carga”, “bípedes da forma parlamentar?” (THOMPSON, 2004 [1963]:
floresta”, “escravos por natureza”, “crianças” sem 16). Todos os membros da SLC decidiram que
tinham tal direito e que tinham também, o que é mais preciso, a maioria dos homens e mulheres de
mais importante, capacidade de intervenção direta posses sentiu a necessidade de pôr em ordem as ca-
e autônoma sobre o desafio posto. sas dos pobres” (THOMPSON, 2004 [1963]: 58).
Os embriões da organização, propaganda e A tradição política liberal, ao longo de toda a sua
agitação da classe trabalhadora estavam sendo história, sempre teve uma atitude hostil em relação
germinados nestas pequenas agremiações de cor- à plenitude dos direitos políticos dos trabalhado-
respondência, embora seus principais membros res, pois a considera uma ingerência intolerável
não tivessem a noção exata da magnitude dos seus aos interesses econômicos privados. Os programas
atos. O lema da SLC – “que o número de nossos populares de intervenção política na economia,
membros seja ilimitado” – foi emblemático da centrados em torno de projetos redistributivos e
nova etapa das lutas populares na Inglaterra, pois igualitários, deveriam ser restringidos e neutraliza-
“significa[va] o término de qualquer noção de ex- dos sob a forma que for necessária: esforços não se-
clusividade, de política como reserva de uma elite riam medidos, muito menos poupados, para limitar
hereditária ou de um grupo proprietário” (THOMP- a soberania popular e sufocar seus levantes, revol-
SON, 2004 [1963]: 20). tas e revoluções, tudo em nome da defesa intran-
A classe média vitoriana e as classes dominan- sigente da propriedade privada burguesa. “Ainda
tes inglesas passaram a cultivar uma espécie de que mediada pela intervenção do poder legislativo,
sensibilidade social por volta da década de 1790, a intrusão ou a “invasão” dos não-proprietários na
logo após a eclosão da Revolução Francesa. Estas esfera da propriedade é sempre um ato de arbítrio
preocupações humanistas, realçadas com uma re- ou de saque, de violência, um ato, pois, que pode
tórica de solidariedade e fraternidade, não foram ser legitimamente combatido pela violência do
um impulso interno da boa alma dos proprietá- agredido” (LOSURDO, 2004: 39).
rios, sensibilizados com a miséria dos trabalhado- A tentativa de associação política dos traba-
res, então causada pela Revolução Industrial; elas lhadores foi combatida por pensadores burgueses,
são, antes de tudo, uma reação conservadora ao temerosos com a organização das “classes peri-
despertar político da classe trabalhadora inglesa, gosas”. “Tanto os representantes dos direitos na-
inflamada pelos acontecimentos revolucionários turais racionais, como os da economia fisiocrata
no continente, pela leitura de Direitos do Homem, e liberal-clássica partilhavam a opinião de que
de Thomas Paine e, principalmente, pela situação a liberdade e a igualdade na sociedade estariam
material das suas vidas, marcadas pelo pauperis- melhor asseguradas, garantindo a propriedade, a
mo absoluto e relativo. coatuação e a concorrência privada a muitos pro-
O dito humanismo das classes dominantes surge dutores pequenos, proibindo a reunião de ‘inte-
como uma constante na história da luta de classes resses especiais’, cuja força – como se acreditava
no capitalismo, sempre que aquelas vêem ameaça- – só poderia prejudicar a liberdade dos demais”
dos os seus interesses. Diante da ebulição social (ABENDROTH, 1977: 16). Até mesmo socia-
provocada pelo movimento cartista e pelas reações listas burgueses, como Proudhon, e anarquistas,
populares contra a nova lei dos pobres (1834), as como Bakunin, viam as organizações de classe
classes dominantes inglesas viram seus temores como uma tentativa inócua dos trabalhadores em
ganharem as ruas das principais cidades do país, aumentar seus salários e, conseqüentemente, me-
com milhares de trabalhadores reivindicando direi- lhorar suas condições materiais de vida.
tos políticos, como o sufrágio universal masculino A despeito desta dupla condenação das coali-
e direito à organização, e conquistas sociais, como zões trabalhistas vinda de espectros ideo-políticos
a redução da jornada de trabalho. tão distintos entre si, as organizações do movimen-
Tão rápido quanto o agitamento da classe traba- to operário não pararam de crescer junto com a
lhadora, foi a reação burguesa, oferecendo, de um grande indústria. “Apesar de uns e outros, apesar
lado, um assistencialismo paroquial e a repressão dos manuais e das utopias, as coalizões não dei-
estatal, e, de outro, boas doses de sermões sobre xaram nunca de progredir e crescer com o desen-
“paciência, trabalho, sobriedade, frugalidade e re- volvimento e o crescimento da indústria moderna”
ligião”, nos dizeres de Edmund Burke. “Para ser (MARX, 1985 [1847]: 158).
Das sombras das periferias às luzes da ribalta, condições de habitação, degradação do espaço ur-
os trabalhadores passaram celeremente a ser moti- bano, dentre outras tantas. Estamos diante de ne-
vo de preocupação das classes dominantes, dada a cessidades sociais prementes sendo transformadas
nova conjuntura política de protestos e reivindica- em demanda política coletiva, organizada e cons-
ções populares. O esquecimento e desprezo deram ciente dos seus meios e objetivos.
lugar ao repentino interesse da classe burguesa pe- As múltiplas expressões da “questão social” tor-
las condições de vida e de trabalho dos operários. nam-se um problema a ser enfrentado pelas classes
Entre 1830 e 1840, surgiram diversos estudos pa- dominantes quando sua antípoda – a classe traba-
trocinados pelo Estado britânico sobre a “questão lhadora –, organiza-se em torno de sujeitos coleti-
social”. A partir de 1845, as autoridades públicas vos que dão voz, expressão e ação aos interesses
fizeram inspeções rotineiras às fábricas. Segundo proletários, demandando e exigindo reformas no
tais estudos, a “questão social” era estritamente re- sistema capitalista, ganhos econômicos parciais,
lacionada à concentração populacional, imigração plenos direitos de cidadania e, num sentido mais
do campo para a cidade, urbanização, industriali- radical, a supressão do capitalismo por uma nova
zação e baixa eficiência do Estado na área social a ordem social, o socialismo (COUTINHO, 2000).
partir das leis dos pobres. Ora, diante das pressões advindas da mobili-
As péssimas condições de vida da classe traba- zação dos trabalhadores em torno de questões po-
lhadora só passaram a ser percebidas pela burgue- líticas com um viés classista – o que poderíamos
sia e seu comitê executivo quando a luta operária chamar de questão operária –, a burguesia ingle-
ganhou força e expressão na arena política, com sa, conjuntamente com outras classes dominan-
os sindicatos e partidos políticos proletários. An- tes, articularam, através da máquina estatal, uma
tes, pauperismo e fome – expressões da “questão intervenção mais eficaz sobre a “questão social”,
social” – eram um problema exclusivo dos pobres até então tratada por uma legislação herdada do
operários escondidos nas periferias dos grandes reinado de Henrique VIII. Com a real ameaça de
centros urbanos. sofrerem não somente perdas ocasionais, as clas-
É, portanto, a partir das lutas sociais e políticas ses dominantes aboliram as antigas leis oficiais do
do proletariado, que surge a “questão social”. pauperismo e adotaram novas medidas (paliativas)
contra a “questão social”.
A ‘questão social’ não é senão as expressões O Estado e a economia política burgueses in-
do processo de formação e desenvolvimento sistiram em tratar a miséria dos trabalhadores ora
da classe operária e de seu ingresso no ce- como algo criminoso – um delito passível de prisão
nário político da sociedade, exigindo seu re- e internação forçada em casas de abrigo –ora como
conhecimento como classe por parte do em- natural – uma condição humana presente desde a
presariado e do Estado. É a manifestação, Antigüidade. Mas o problema concreto persistia,
no cotidiano da vida social, da contradição ainda segundo o ponto de vista burguês, primeiro
entre o proletariado e a burguesia, a qual como uma chaga social, depois como uma chaga
passa a exigir outros tipos de intervenção, política.
mais além da caridade e da repressão (IA- A expressão “questão social” surgiu na tercei-
MAMOTO e CARVALHO, 2000: 77). ra década do século XIX (CASTEL, 1998: 30),
justamente quando, não por acaso, apareceu a
II. A trajetória da expressão ‘questão social’ na palavra socialismo. Diversos críticos sociais, dos
teoria social de Marx e Engels mais diferentes campos de atuação política e ide-
ológica, utilizaram-se do termo para descrever
A “questão social” emergiu no cenário europeu as condições de vida miseráveis de uma enorme
em meados do século XIX, quando o proletariado, massa de trabalhadores, submetida à exploração
então liderada pelas suas franjas operárias, impôs- capitalista no início da era burguesa. O uso indis-
se como um sujeito histórico independente e autô- criminado da expressão “questão social” acabou
nomo, lutando e reivindicando soluções para suas por fornecer-lhe diversos conteúdos e atribuições
mazelas, tais como pauperismo, fome, péssimas muito diferentes, mas uma coisa é certa: todos
eles se referiam ao pauperismo absoluto dos tra- do e da burguesia frente às mazelas sociais. Daí a
balhadores assalariados (NETTO, 2001). seguinte conclusão de Engels (1975 [1845]: 276)
Após a Primavera dos Povos, um levante revolu- a respeito das soluções oficiais para os problemas
cionário que varreu toda a Europa no ano de 1848, dos trabalhadores: “(...) Se a burguesia tem o inte-
a expressão “questão social” deixou de freqüentar o resse em dirigir esta guerra hipocritamente, sob a
léxico das mais variadas dimensões da política e da aparência da paz e sob a da filantropia, não pode
teoria e passou a viver uma fase monogâmica com senão favorecer ao operário desnudar suas verda-
o conservadorismo burguês, ávido por reformar o deiras condições de vida, atacando violentamente
sistema capitalista para conservar suas estruturas esta hipocrisia”.
mais fortes, dentre elas, a propriedade privada dos Marx, por sua vez, debruçou-se sobre a
meios de produção (NETTO, 2001). O tratamento “questão social” quando explodiu a revolta dos
teórico da “questão social” foi progressivamente se tecelões na Silésia. O revolucionário alemão, em
deslocando de uma análise sócio-histórico, capaz compasso com a avaliação engelsiana sobre a
de circunscrevê-la dentro de uma totalidade pro- “questão social”, criticou as propostas da classe
cessual e contraditória movida pela luta de classes, burguesa para sanar os problemas decorrentes do
para uma análise naturalizada, fora das relações pauperismo, sempre ressaltando seus estreitos
espaço-temporais próprias do capitalismo. limites. No centro do mercado mundial, a bur-
De todas as maneiras, os intelectuais burgueses guesia inglesa esboçou uma consciência tímida
tentaram mascarar a existência da luta operária e e limitada dos problemas do pauperismo. Ela
a possibilidade concreta de revolução socialista, o reconheceu a gravidade de algumas expressões
que levaria ao fim do modo de produção capitalista. da “questão social”, mas apresentou propostas
No plano ideológico, tomaram para si a expressão “infantis” e paliativas de pouco impacto nas es-
“questão social”, que passou a ter uma conotação truturas do capitalismo. A ação política da bur-
aparentemente neutra pela qual o pensamento con- guesia contra o pauperismo absoluto e relativo
servador vai se referir à questão operária (NET- da classe proletária calcava-se numa assistência
TO, 2004 [1998]: 61). No plano político, reformas social das paróquias locais, obrigadas pelo regi-
sociais e políticas foram postas em prática para me de lei a prestar socorro aos pobres.
abrandar os efeitos deletérios da acumulação e da O combate à pobreza das massas populares era,
exploração capitalistas, sendo que, muitas vezes, assim, reduzido a questões assistencialistas e ad-
tais reformas eram conquistas dos trabalhadores, e ministrativas, passando ao largo da raiz do proble-
não meramente concessões da classe burguesa. ma – a propriedade privada e a produção da mais-
Até 1844, como nos comprovam os textos A valia. Como dizem Mário Duayer e João Leonardo
situação da classe operária na Inglaterra, de En- Medeiros (2003: 242),
gels, e Glosas críticas marginais ao artigo O rei
da Prússia e a reforma social, de Marx, os autores (...), na Inglaterra, assim como na Alema-
alemães usavam a expressão “questão social” para nha, o pauperismo, julgado resultante ora
descrever o pauperismo da classe trabalhadora. O da falta de beneficência, ora do excesso
termo, como vimos no início do artigo, era comum de beneficência, foi sempre manejado com
no linguajar da época, e Marx e Engels utilizaram- medidas filantrópico-administrativas. Por-
no para retratar a vida cotidiana dos trabalhadores tanto, em ambos os casos, jamais foi consi-
europeus e as formas de intervenção do Estado derado consequência necessária das rela-
guarda-noturno contra o pauperismo. ções sociais de produção, em particular da
Engels, em uma ampla investigação sobre as indústria moderna.
condições de vida dos operários ingleses, foi o pri-
meiro cientista social e militante comunista a rela- Marx (1995 [1844]: 81) satirizou tais formu-
cionar as diversas expressões da “questão social” lações reformistas da burguesia, e argumentou
com suas causas profundas, a saber, a exploração sobre o caráter conservador e mistificador das
e a alienação capitalista da grande indústria, e a propostas burguesas e do Estado para contornar a
denunciar com vigor o descaso político do Esta- “questão social”.
vro no qual ele desenvolveu as bases teóricas das DUAYER, M. e MEDEIROS, J. L. Miséria bra-
principais leis de tendência do modo de produ- sileira e macrofilantropia: psicografando Marx.
ção capitalista, utilizando-se de categorias como In: Revista de Economia Contemporânea, v. 7, n.
valor, trabalho, exploração, mais-valia, pauperis- 2. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Economia,
mo e acumulação para explicar cientificamente a 2003. p. 237-262.
“questão social”. O estudo mais sistemático da
economia política e a formulação da sua crítica ENGELS, F. La situación de la clase obrera en In-
com base no método dialético e na perspectiva glaterra. Habana: Editorial de Ciencias Sociales,
socialista da classe trabalhadora, elevou a teoria 1974 [1845].
marxiana a um novo patamar, que agora prescin-
de de termos vagos e indefinidos como a “ques- GRANEMANN, S. Processos de trabalho e serviço
tão social”; ela, portanto, que nunca gozou de social I. In: Curso de capacitação em serviço social
status de categoria teórica em qualquer tradição e política social. Brasília: CEAD; UnB, 1999
do pensamento moderno, tornou-se desneces-
sária, pois um conjunto amplo de categorias da IAMAMOTO, M. A questão social no capitalismo. In:
crítica da economia política expressam, a partir Praia Vermelha, n. 8, primeiro semestre. Rio de Janei-
do uso da razão dialética, o movimento contradi- ro: UFRJ, Escola de Serviço Social, 2003. p.56-83.
tório do capitalismo.
Este abandono do tema, todavia, não signifi- ______.; CARVALHO, R. de. Relações sociais e
cou, é preciso frisarmos, a abdicação da proble- serviço social no Brasil: esboço de uma interpreta-
mática da “questão social”, que pode ser enten- ção histórico-metodológica. 13ª edição. São Paulo:
dida, de forma mais precisa, como a exploração Cortez; Lima (Peru): Celats, 2000
do trabalho assalariado pelo capital e as lutas dos
trabalhadores contra as relações sociais de produ- LOSURDO, D. Democracia ou bonapartismo:
ção capitalista e todas suas formas de exploração, triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio
opressão e dominação. Esta foi, ao longo da obra de Janeiro: Editora da UFRJ; São Paulo: Editora
dos pensadores revolucionários alemães, uma Unesp, 2004.
constante que nunca saiu de cena, em particular
durante os anos nos quais foram gestadas as obras LUKÁCS, G. Marx e o problema da decadência
da crítica da economia política. ideológica. In: _____. Marxismo e Teoria da Li-
teratura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
Referências bibliográficas 1968 [1938]. p.49-111.
ABENDROTH, W. A história social do movi- _____. Ontologia do ser social: os princípios onto-
mento trabalhista europeu. Rio de Janeiro: Paz lógicos fundamentais de Marx. São Paulo: Editora
e Terra, 1977. Ciências Humanas, 1979
COUTINHO, C. N. Notas sobre cidadania e mo- _____. Introdução [à Crítica da Economia Políti-
dernidade. In: _____. Contra a corrente: ensaios ca]. In:_____. Para a crítica da economia política;
sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes.
2000. p.49-69. São Paulo: Abril Cultural, 1982 [1857].
Notas