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Josquin Des Prez

A Escola franco-flamenga se desenvolveu no desenrolar dos anos de 1420 a 1520. No


decurso deste período podemos identificar três gerações de compositores, em três parcelas
de tempo de aproximadamente 40 anos cada uma, nos quais se destacam nomes de
marcantes artistas:
A primeira geração (1420-1450), caracterizada pela Escola de Borgonha, dominada pelos
nomes de Guillaume Dufay, Gilles Binchois e Antoine Busnois. Esta geração está
caracterizada pela ruptura com a música medieval, devido às inovações no tratamento
harmônico aplicado ao contraponto; privilegiando o uso de terças e sextas sobre o antigo
uso das quintas, quartas e oitavas; considerando um desenvolvimento de tendência mais
vertical na música polifônica.
A segunda geração (1450-1485), na qual Johannes Ockeghem foi o nome principal, e
onde o desenvolvimento do moteto destacou este gênero como um laboratório para as
experimentações de contraponto por parte dos compositores.
A terceira geração (1480-1520), com os nomes de Jacob Obrecht, Pierre de La Rue,
Heinrich Isaac e especialmente Josquin Des Prez, considerado o maior de sua época.
Exagerar a importância e gênio de Josquin des Prés (1450-1521) na História da Música
seria redundante, pois que inúmeros são os testemunhos disso, advindos do seu tempo e
evidenciados pela sua obra. Sendo o mais celebrado compositor entre Dufay (1397-1474)
e Palestrina (1525-1594) e considerado o mais destacado na Escola Franco-Flamenga, foi
discípulo de Ockeghem (1420-1497) e contemporâneo de Obrecht (1452-1505). Seu
estilo incorpora técnicas das Escola Franco-Flamenga e da música italiana. O seu
trabalho, que compreende 18 missas, 100 motetos e 70 chansons, foi determinante; entre
outros fatores, na evolução da técnica do contraponto e na consolidação do estilo
imitativo.
A quantidade de motetos na obra de Josquin é digna de nota. O gênero Missa, no seu
tempo, era o meio pelo qual tradicionalmente se esperava do artista a demonstração de
suas capacidades, todavia, o rigor formal e litúrgico, mais a invariabilidade do texto e
ainda as convenções estabelecidas, davam menor margem a experiências novas. Já os
motetes permitiam tais exercícios de engenho e fantasia. A variedade dos textos permitia
infinita gama de possibilidades criativas na relação entre letra e música. O imenso talento
de Josquin para ilustrar em sons o sentido dos textos também teve papel relevante nos
primórdios da chamada Musica Reservata: a adequação do tratamento musical ao texto,
de maneira a ressaltar e ilustrar o seu sentido; exprimindo através de artifícios as emoções
e mensagens textuais, tão vividamente como se fosse possível senti-las ou vê-las. Através
de cromatismos, contrastes modais e de ritmo, ornamentos. Criou-se então a ideia que
que tal música estaria ‘reservada’ aos propósitos e espaço restrito dos mecenas.
A técnica de imitação de Josquin:
Josquin estabelece pontos de imitação onde as entradas vão se sucedendo em cada voz.
Seus antecessores, como Ockeghem, por exemplo, não se utilizavam deste procedimento.
Uso rigoroso do cânon.
O desenvolvimento da própria técnica do contraponto lhe permitiu tal combinação de
vozes, mesmo sem o uso de imitação.

Tomou o gênero moteto como seu trabalho mais progressivo, elegendo-o um laboratório
no qual desenvolveu as suas experiências em textura canônica.
Frases compostas de um motivo próprio, apresentadas em cada voz, sucessivamente por
imitação, seguindo-se uma cadência e a repetição do processo.

Podemos observar no moteto Ave Maria virgo serena como Josquin organiza a abertura
numa sucessão de entradas em cânon estrito à oitava e como no desenvolvimento da peça
recorre ao rigor desse sistema, numa sucessão de entradas sobre motivos variados e
imitação, também à quinta. Intercala momentos de homofonia, alteração de compasso e
recorre à técnica do fauxboudon. Arrematando a peça numa cadência V – I perfeita.

Uma de suas missas mais famosas e das mais engenhosas em sua construção é a Missa
Lá Sol Fá Ré Mi, publicada em 1502. Nela Josquin usa uma técnica chamada soggeto
scavato para confeccionar seu tema – o motivo Lá Sol Fá Ré Mi. Esta técnica consiste
em se obter notas musicais a partir de uma frase. Nesse caso, “Lascia fare mi”, em italiano
algo como “Deixa comigo”; um criptograma musical. Mas também estas notas
representam na solmização medieval o material do hexarcorde natural que se inicia em
C: AGFDE. O tema insinua o modo Frígio, embora ao longo da obra se insinuem também
os modos Dórico e Eólio. Josquin satura a trama polifônica com este motivo, que se repete
pelo menos 200 vezes ao longo da missa; reaparecendo em todas as vozes e sob diversas
permutações, como em figuração retrógrada, representado o que mais tarde se chamaria
de ‘palíndromo’, a aparição de um motivo em forma invertida, antes ou após sua
apresentação original. As missas de Josquin, ao inspirar-se em missas gregorianas, e em
antífonas, responsórios, hinos e afins; em obras polifônicas tanto populares como sacras,
também em material formado por silabas relacionadas a palavras, são um compêndio das
versões polifônicas do gênero em sua época.
Uma das mais eloquentes amostras do talento de Josquin no sentido da Música Reservada
é o motete Absalon Fili mi – “Absalão, meu filho”. O lamento de Davi presente nas
Escrituras. Possivelmente Josquin estivesse aludindo ao Papa Alexandre VI, o Borgia,
quando da perda do seu filho Juan, morto em 1497. Ao final da peça há uma extraordinária
passagem sonora descritiva sobre o texto: “Mas desça chorando à sepultura”. As vozes
descendem, não apenas melodicamente, mas também em sentido harmônico, em um ciclo
de quatro quintas – de Si a Sol b. Isto revela a ousadia de Josquin como experimentador,
pois que no século XVI tal procedimento era totalmente inusitado.
Também nas chansons encontramos exemplos do inovador engenho de Josquin, como em
Plus nuls regrets, onde a peça é construída sobre um duplo cânon entre pares de vozes.
Na versão a 6 vozes de Baisez-moi – “Beije-me”, Josquin atinge um ápice do seu engenho
polifônico, equilibrando três pares de vozes em um triplo cânone; preservando a leveza e
espírito do sugestivo título.
Uma das maiores proezas de Josquin é o moteto canônico Qui habitat in adjutorio
altissimi a 24 vozes, publicado em 1568 na coletânea de peças sacras Cantiones Triginta
Selectissimae, por Clemens Stephani. Inspirada na também portentosa obra de seu mestre
Ockeghem, Deo Gratias para 36 vozes. Obviamente que a manipulação em textura
imitativa de tantas vozes visava um especial efeito. O sentimento de um espaço celeste
ao qual nos sentimos alçados, em meio a um turbilhão de anjos. Uma peça como essa não
teria apenas um propósito devocional, pois que, sendo executada em suntuosas naves de
catedrais, intentava também servir à exaltação de poderes religiosos e seculares, no
sentido de causar uma forte impressão, não somente mística como secular.
Referências
ATLAS. Allan W. La música del Renacimiento. Madrid, Akal, 2002.
BUKOFZER, Manfred. La Música en la época Barroca – De Monteverdi a Bach. Madrid,
Alianza Música, 1986.
GROUT & PALISCA, Donald J. e Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa,
Gradiva, 2007.
MASSIN, Jean & Brigitte. História da Música Ocidental. RJ, Nova Fronteira, 1997.
RAYNOR, Henry. História social da música. RJ, Zahar, 1988.
REESE, Gustave. La Música en el Renacimiento. Madrid, Alianza Música, 1988.

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