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Estilo de vida em Georg Simmel:

noções e reflexões sobre os efeitos do dinheiro na vida moderna

Clarissa dos Santos Veloso

O termo estilo de vida foi utilizado por Simmel na Filosofia do Dinheiro para captar os
efeitos da economia monetária sobre a vida moderna. Ainda que ele não apresente uma definição
precisa da categoria estilo de vida, oferece alguns elementos para síntese e foi um dos primeiros a
utilizar a expressão. Antes de tratar especificamente da noção de estilo de vida, é necessário
esclarecer as concepções do autor sobre o moderno e o dinheiro.
O moderno existe onde formos capazes de perceber a propagação da economia monetária,
independente de sequências cronológicas contínuas habituais. O moderno em Simmel pode ser
rastreado em diversos períodos da história, sendo que não se encontra limitado aos períodos
posteriores a Idade Média ou em momentos anteriores à contemporaneidade. Nesse sentido, o
moderno pode ser pensando a partir de sua oposição: o não-moderno se refere às situações nas
quais a economia monetária não se desenvolveu ou não se desenvolve.
O dinheiro é um objeto cuja finalidade fundamental é não possuir qualidades, equalizando
tudo e todos. Isto é, o dinheiro possibilita converter as mais variadas qualidades das coisas pelas
quais ele é trocado por meras quantidades. Segundo Simmel (1991),
O dinheiro permanece como ponto de indiferença e equilíbrio entre todos
os seus conteúdos e seu sentido ideal é, como o da lei, dar a sua medida a
todas as coisas, sem se medir a si mesmo em relação a elas. (...) Ele exprime
a relação que há entre os bens econômicos e permanece estável face à
corrente desses bens (pp. 714-715).

A natureza do dinheiro é ambígua. A criação da indiferença, de relações abstratas e


impessoais é uma das suas propriedades. Os mais diferentes objetos encontram nele algo em
comum. Por outro lado, o dinheiro possibilita a construção de momentos de introspecção, nos quais
o individualismo e a subjetividade individuais são desenvolvidos.
Assim, a sociedade moderna, marcada pela economia monetária, é caracterizada pela
natureza ambígua do dinheiro e seu poder de circulação. Nela, indivíduos são expostos a
indiferenciação e a reserva nas relações entre si e, simultaneamente, à possibilidade de construir a
diferença e a individualização. Nesse sentido, um dos objetos de análise de Simmel na Filosofia do
Dinheiro são os desdobramentos da economia monetária da sociedade moderna nas condutas e
comportamentos cotidianos dos indivíduos.
O estilo de vida em Simmel é uma categoria que expressa a relação entre a cultura subjetiva
do indivíduo e a cultura objetiva da sociedade na qual ele vive. É uma noção que retrata como as
pessoas, dotadas de suas subjetividades, se comportam no contexto das estruturas sociais onde se
encontram fisicamente. Na sociedade moderna, regida pela economia monetária, Simmel identifica
relações entre o dinheiro e as condutas e comportamentos dos sujeitos. Apresentarei aqui quatro
dessas repercussões interconectadas do uso do dinheiro no estilo de vida que tem lugar nas grandes
cidades.
Primeiro, Simmel associa dinheiro e racionalismo. A economia monetária está diretamente
ligada a preponderância das funções intelectuais e teleológicas sobre as sentimentais. O papel das
emoções, afetos e impulsividades é minimizado, subordinando-se ao intelecto e a séries
teleológicas de papéis claros e orientadores para as ações individuais. Como resultado disso, têm-
se a desorientação do indivíduo que lida com valores confusos para orientação da ação, com a falta
de pontos de apoio, a não ser o dinheiro. Isso torna a vida, para Simmel, cada vez mais um cálculo
prático, frio e burguês. O intelecto é mobilizado progressivamente para assumir papéis que
anteriormente cabiam aos sentimentos, levando a seu aplainamento.
Impessoalidade e apagamento do caráter individual despontam como a segunda
característica do moderno estilo de vida em Simmel. A partir da economia monetária, com seu
intelectualismo, surge os princípios da indiferença e da ausência de caráter – aqui entendido como
algo que marca a individualidade na existência, relacionando-se com a experiência individual. Pelo
princípio da indiferença, são apagados os traços pessoais, a individualidade das pessoas envolvidas
nas situações onde prepondera a lógica do dinheiro. Enquanto denominador comum, ele varia em
termos de quantidades, mas não de qualidades. O dinheiro, portanto, cria e opera na dimensão da
objetividade, onde a subjetividade não tem lugar.
Apesar da economia monetária induzir a objetividade e a pessoalidade, o dinheiro está
ligado a individualidade e ao princípio do individualismo. Essa consiste na terceira relação entre
ele e as condutas do moderno estilo de vida e daí Simmel desenvolve a noção de duplo papel do
dinheiro. Ao promover o nivelamento por meio da indiferença, o dinheiro permite que floresçam e
se expressem as diferenças.
Por fim, destaco a análise de Simmel sobre a divisão social do trabalho na sociedade
moderna. Antes da sociedade moderna (ou da economia monetária), as necessidades materiais e
subjetivas das pessoas ditavam a produção material de bens. Sobrevivência e produção mantinham
uma relação diretamente proporcional. O trabalho do indivíduo no processo de produzir a partir de
elementos da natureza enriquecia sua subjetividade, bem como a cultura material e objetiva do
mundo que o envolvia, de modo que todo o processo de produção era conhecido pelo seu
responsável. Ademais, consumidor e mercadoria possuíam uma relação. O cliente era
personalizado e o produto produzido para ele era individualizado.
Com a divisão do trabalho e a especialização, produto e produtor se separam. O processo
de produção deixa de ser controlado pelo trabalhador, que se torna apenas um dos elos da produção
e perde a capacidade de enriquecer-se subjetivamente. Os objetos criados, produtos da cultura
moderna, se separam de seus criadores. A obra criada é dotada de autonomia objetiva. O
consumidor, por sua vez, precisa se adaptar aos produtos, já que eles não mais se adaptam aos seus
usuários.
Assim, como resultado desse modelo de divisão do trabalho, ocorre o que Simmel
denomina tragédia da cultura: a separação discrepante das duas dimensões que compõem o mundo
social: a subjetividade individual e a cultura objetiva. O mundo vivido encontra-se repleto de
objetos que a subjetividade não alcança, de modo que há um distanciamento cada vez maior entre
o mundo material e subjetivo. O moderno estilo de vida, para Simmel, sintetiza esse
distanciamento. Além das relações já destacadas entre dinheiro e vida moderna, Simmel elenca
outras, baseando-se em condutas que revelam calculabilidade numérica, exatidão, organização e
domínio do tempo, pontualidade, normatividade, padronização, praticidade, a reserva e o blasé,
entre outros. Esses comportamentos, em suas associações com o dinheiro, expressam o estilo de
vida moderno enquanto uma configuração histórica, um retrato da realidade das relações entre
sujeito e sociedade, entre subjetivo e objetivo.

Referências

SETTON, Maria da Graça Jacintho. A categoria estilo de vida nas obras de Simmel e Bourdieu:
uma aproximação Sociológica. Revista Idéias, Campinas, n. 7, vol. 2, p. 9-46, 2001.
SIMMEL, Georg. (1991). O estilo de vida. In: SIMMEL, Georg. Filosofia do dinheiro. Instituto de
estudos políticos, Madri, 1977.

WAIZBORT, Leopoldo. As Aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.

WAIZBORT, Leopoldo. Georg Simmel: Sociabilidade e moderno estilo de vida. Sociabilidades,


vol. 2, n.1, p. 65-69, dez. 2002.

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