Bernardo Soares é o menos autonomizado dos principais heterónimos, e por isso
é considerado por Pessoa um semi-heterónimo (“O meu semi-heterónimo Bernardo Soares (…) aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas sim uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade.”). O Livro do Desassossego, caracterizado por uma organização fragmentária, reúne um conjunto de textos de natureza essencialmente subjetiva. Neles, o narrador, frequentemente apresentado na situação de observador acidental durante a deambulação pelo espaço urbano, regista as impressões que a realidade lhe provoca e, por vezes, dedica-se à sua transfiguração poética. Bernardo Soares parte do mundo exterior, do quotidiano e do imaginário urbano de Lisboa para refletir, de forma desassossegada, sobre a realidade. Tal ocorre em fragmentos que fazem do Livro do Desassossego uma espécie de diário. Neles, na posição de observador acidental, o narrador conjuga deambulação e sonho. O vaguear e o contemplar a cidade levam-no frequentemente a transformá-la através da imaginação, apresentando, nos seus textos, a transfiguração poética do real. A natureza fragmentária da obra é uma das suas marcas da modernidade e advém da intencional descontinuidade dos textos que o integram; “Não tendo sido composto nem acabado, o Livro do Desassossego é, para todo o sempre, um work in progress. (…) Começado como uma recolha de ensaios e de textos poéticos em prosa, (…) o livro torna-se em seguida um jornal íntimo. (…) O desassossego, que é o fio condutor do seu livro, é esta “fermentação” mental que provoca o apodrecimento do tempo vivido. (…) É a impossibilidade de encontrar o repouso, a paz de alma, o conforto intelectual ou espiritual.”
O imaginário urbano e o quotidiano
Os fragmentos, maioritariamente configurados com prosa diarística, prosa poética e narrativa, revelam o sujeito no seu banal quotidiano de ajudante de guarda-livros. Do espaço em que se movimenta ele transmite a descrição do quotidiano das ruas de Lisboa, construindo um imaginário urbano confinado às ruas da Baixa, num perímetro de extensão exígua, em torno da Rua dos Douradores, rotineiramente frequentada. Bernardo Soares reconhece que o fracasso que marca o seu quotidiano decorre, em parte, da inaptidão para lidar com estas questões pragmáticas da existência («Nunca aprendi a existir»). Consciente desta sua característica, acredita que todos os seus sonhos estão à partida condenados ao malogro- motivo pelo qual se refugia numa atitude de inércia. Considera que a condição de ser pensante o torna superior aos indivíduos que o rodeiam- seres marcados pela inconsciência que se contentam com uma existência marcada pela mediocridade. É por este motivo que se refugia numa solidão voluntária.
Deambulação e sonho: o observador acidental
O cerne mais significativo do Livro do Desassossego é o deambular pela cidade de Lisboa, uma fina deambulação do seu real e dos seus cambiantes. Além disso, é a ideação constante de uma consciência lúcida, roída pela angústia do tempo e do tédio, brilhante, às vezes paradoxal. O único meio para escapar a esse “sentimento de a vida não ser nada” é sonhá- la. Sonhá-la deliberadamente, visto que, de todas as maneiras, mesmo sem o querer e sem o saber, é o que nós fazemos. Quando Soares fala do sonho ou do devaneio, não se trata da atividade onírica, estranhamente ausente desse universo mental, mas da imaginação, do devaneio do sonho acordado. Em vários fragmentos do livro, o enunciador percorre as ruas de lisboa e regista as perceções que tem da cidade recordando o que Cesário Verde tinha feito em «um sentimento do ocidental». A deambulação permite observar e fazer registos sobre diferentes lugares e elementos do real que se cruzam com o sujeito. A relação desta personagem com a realidade em que vive e o lugar em que se inscreve que o conduzem ao desassossego, que tem origem na insatisfação, no tédio, no seu temperamento sonhador, nas circunstâncias adversas da sociedade em que vive. Os momentos descritivos e os narrativos são frequentemente o ponto de partida para reflexões ou abrem portas para a imaginação e para o mundo do sonho: o «eu» imagina-se «outro» noutro lugar que ele próprio cria atrás da imaginação. No fundo, é no mundo onírico que se procura por termo ao seu desassossego. Em permanente deambulação, o sujeito é o observador acidental da realidade. Ele observa as pequenas movimentações e gestos quotidianos, sem relevância aparente e, permanecendo à margem daquilo que observa, parte mentalmente para digressões para o mundo real. Dessas digressões para o sonho é um pequeno passo. Assim, a deambulação pelas ruas da baixa lisboeta percorridas pelo sujeito é, simultaneamente um mergulho dos sentidos, sobretudo da visão e da audição e um ponto de fuga para a imaginação e sonho. Perceção e transfiguração poética do real A perceção que o «eu» tem e regista do real é a que podemos apelidar de objetiva. É a imaginação que serve de ponte entre as paisagens exteriores e o mundo interior e a realidade interior suplanta a exterior. Assim, substitui o real exterior pelo interior. Há também as paisagens e as experiências que foram interiorizadas pelo «eu» e que são caracterizadas como suas: “certos quadros, sem sombra de relevo artísticos, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas- passa a realidade dentro de mim”. Nestes casos, o enunciador seleciona aspetos do mundo exterior que transforma interiormente, de forma artística e imaginativa. O «eu» transfigura assim o real, torna-o seu e/ou muda-lhe a forma pelas palavras usadas na transfiguração poética: “os bancos do elétrico, de um entretecido da palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários…” As ruas da cidade e os seus transeuntes, o escritório, o quarto alugado, ou qualquer outro que lhe proporcione imagens do real, captam a atenção do sujeito e, frequentemente, o seu olhar, assemelhando-se a uma objetiva em zoom, que se vai aproximando, fixando-se num pormenor. Contudo, o pormenor fixado provoca no sujeito uma associação, uma lembrança que o transporta para um pensamento do que não está ali. Mais do que a perceção realista da cidade, o que os textos transmitem é a transfiguração poética do real. A sua deambulação pela realidade chega a modos de análise subjetiva. De facto, Bernardo Soares expõe no Livro do Desassossego viagens interiores que conduzem a uma transmutação subjetiva.