Você está na página 1de 10

Pertinência enunciativa e sustentação

referencial: nos limites do


sintático e do semântico
Luiz Francisco Dias*

Resumo
Introdução
O texto aborda o papel da articu-
lação sintática e do referencial enun- No decorrer dos últimos dez anos,
ciativo nas traduções para o Portu-
o Grupo de Estudos da Enunciação da
guês da primeira estrofe do poema
“Jabberwocky”, presente na obra Alice Faculdade de Letras da UFMG tem de-
através do espelho, de Lewis Carroll. senvolvido uma abordagem semântica
Para isso, introduziu-se os conceitos ancorada em análises das formas de
de formação nominal e formação ver- articulação sintática da língua portugue-
bal, desenvolvidos no Grupo de Estu-
dos da Enunciação da UFMG, a par- sa. O presente texto apresenta aspectos
tir de uma semântica da enunciação. desse trabalho, delineando formas de
Esses conceitos permitiram constituir observação de enunciados de um poe-
dispositivos de abordagem do poema, ma. Para isso, mobilizamos conceitos
que são produtivos para o aprimora-
mento de uma análise enunciativa,
como pertinência enunciativa, formação
em que a significação é concebida de nominal e referencial enunciativo, que
forma dinâmica. Além disso, discute- surgiram no âmbito dos estudos do re-
-se o papel do léxico na constituição ferido Grupo.
das sentenças da língua portuguesa
O exercício de análise incidiu sobre
em contexto de elaboração literária.
translações1 do poema Jabberwocky,
Palavras-chave: Enunciação. Referen-
cial enunciativo. Semântica e sintaxe.
*
Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos.
Universidade Federal de Minas Gerais. CNPq. E-mail:
ldias@ufmg.br

Data de submissão: abr. 2013 – Data de aceite: ago. 2013


http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v9i1.3532

389

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
reconhecido como um dos textos que o poema, Leite incorporou o trabalho rea­
mais apresentaram desafios para os lizado por Augusto de Campos em 1971,
tradutores de obras literárias, pela difi- com o título Jaguadarte (em anexo), que
culdade de apreensão dos vocábulos que assim concebeu os quatro versos:
constituem os seus versos. Esse poema Era briluz. As lesmolisas touvas
aparece na obra Alice através do espelho2, Roldavam e relviam nos gramilvos
do escritor inglês Lewis Carroll, escrita Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.
no século XIX (CARROLL, 1872, p. 22).
Na narrativa de Carroll, a personagem O nosso interesse na abordagem da
Alice encontra um livro, denominado recriação dos versos em português não
Livro do espelho, e é no interior desse, se prende a uma análise crítica do tra-
ao abrir uma de suas páginas, que Alice balho dos tradutores, e muito menos a
depara-se com o poema. um estudo do poema do ponto de vista
Jabberwocky é o nome de um mons- artístico, ou literário, propriamente dito.
tro alado que, no episódio apresentado no Além disso, não tivemos a pretensão de
poema, é derrotado por um homem numa analisá-lo exaustivamente em todos os
batalha. Os quatro primeiros versos do fenômenos gramaticais e semânticos do
poema precedem as ações dessa batalha, texto. Ao contrário, tomamos como foco
e repetem-se no final, após o desenlace aqueles aspectos sintáticos e semânticos
do combate. Nesses versos, descreve-se pelos quais pudéssemos exercitar os con-
um cenário, por meio de um vocabulário ceitos da teoria da enunciação apontados
estranho, redundando em algo próximo acima, e ao mesmo tempo apontar cami-
ao nonsense: nhos de entrada do poema, tendo em vis-
Twas brillig, and the slithy toves ta o caráter hermético dos seus termos,
Did gyre and gimble in the wade; por meio de uma abordagem semântica
All mimsy were the borogoves, ancorada numa teoria da enunciação.
  And the mome raths outgrabe.
Em suma, vamos abordar esses versos
Um dos desafios de quem se dispõe na visão de quem pergunta pela cons-
a realizar o trabalho de translação do tituição da significação em enunciados
poema para a língua portuguesa está em que apresentam marcante rarefação de
se preservar o ritmo, a sonoridade, e de- fontes diretas de referência lexical.
terminados vieses sugestivos de sentido Para isso, estruturamos este artigo
para a cena descrita no poema. em duas seções, concebidas a partir de
No Brasil, o trabalho mais citado de dois dispositivos de entrada no poema,
recriação do poema através de transla- considerados no artigo como extrato de
ção está publicado na tradução do livro pertinência enunciativa da ordem
de Carroll empreendida por Sebastião sintática e extrato de sustentação
Uchoa Leite (CARROL, 1980: 146). Na referencial, o qual será desmembrado
verdade, no trecho do livro que apresenta nos aspectos da composicionalidade le-

390

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
xical e da perspectivação no interior de de apreender o enunciável se ela se assenta
uma formação sintática. Tendo em vista em formas regulares, combinadas segundo
padrões relativamente estáveis.
a análise empreendida, apresentaremos
as considerações que sintetizam a refle- Assim, as formas da língua são cons-
xão desenvolvida nas duas seções. titutivas da relação estabelecida entre
uma instância de presente do enunciar
Pertinência enunciativa da e uma instância de anterioridade (da
memória). Essa relação foi formulada de
ordem sintática maneira mais específica em Dias (2009,
p. 10):
Trabalhamos com a tese de que a
significação constitui-se na relação en- para que as formas linguísticas possam
dar suporte à significação, elas devem
tre memória e atualidade. Essa relação
confrontar-se com a memória discursiva e o
tem lugar na enunciação, definida como presente do acontecimento. Nessa direção,
o acontecimento de produção do senti- a memória da língua comporta uma latên-
do. Sendo assim, uma pergunta básica cia, uma condição para o confronto entre a
instância do dizível histórico e a instância
adquire relevância, frente ao quadro
de um presente. Nos termos de Guimarães
de desafios que se apresentam na aná- (1996, p. 32), por ser latente, a memória da
lise dos versos acima: como conceber o língua “pode ser sempre outra coisa, para
acontecimento da relação entre memó- isso bastando que outras enunciações a
façam derivar, mesmo que imperceptivel-
ria e atualidade se, à primeira vista, as
mente. Deste modo, uma forma na língua
unidades lexicais são herméticas quanto não é nem soma de seus diversos passados,
às possibilidades de acesso à memória nem deriva de um étimo, nem algo em si: se-
daquilo que significou antes e em demais não uma latência à espera do acontecimento
enunciativo, onde o presente e o interdiscur-
lugares em outros discursos?
so a fazem significar.”
Antes de responder a essa pergunta, é
preciso refletirmos sobre a relação entre Tendo em vista esse quadro teórico,
língua e enunciação. é legítimo que perguntemos: as regula-
Uma língua adquire sua identidade ridades linguísticas dos enunciados do
na relação entre a dimensão do enun- poema produzem o suporte à significa-
ciável e a dimensão da materialidade ção? Ou seja, é possível que captemos
morfossintática, e é concebida como um as articulações formais constituídas
sistema de regularidades (GUIMARÃES, segundo padrões estáveis, capazes de
2007, p. 96) que norteia essa relação. dar suporte à apreensão do enunciável?
Nessa direção, em Dias (2013a: 230), Em suma, com essas questões, retoma-
afirmamos: mos e desdobramos a pergunta básica
aquilo que é enunciável só é apreendido apresentada acima e, nesse quadro,
como tal em caso de unidades que se arti- apresentamos, em seguida, uma breve
culam de maneira a construir formulações
análise na direção da resposta a essas
socialmente pertinentes3. Por sua vez, a ar-
ticulação de unidades só cumpre o seu papel interrogações.

391

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
O poema apresenta várias palavras tam qualquer enunciado do português
não pertencentes ao léxico do português. formulado com palavras dicionarizadas.
Entretanto, suas unidades articulam-se Em Dias (2013a, p. 236), sustenta-
em formas que qualificam uma sintaxe mos a tese segundo a qual os lugares
de pertinências enunciativas. Nessa di- sintáticos permitem o contato entre uma
reção, “as lesmolisas touvas” (primeiro memória de ditos e a atualidade do dizer.
verso do poema) constituem uma unida- E ainda: enquanto unidades formais,
de denominada formação nominal (FN), os lugares sintáticos qualificam-se na
que abriga uma articulação em formas medida em que funcionam como portos
regulares da nossa língua, por meio dos de passagem em rotas de circulação de
sufixos de plural, constituindo-se concor- sentidos, de discursos para o enunciado,
dância, que por sua vez transfere essa e desse para os espaços futuros da dis-
informação de número para a unidade cursividade, que por sua vez serão bases
seguinte “roldavam”. para novos enunciados. Dessa maneira,
A constituição da cena em que mais “as categorias de sentença e enunciado
de uma “lesmolisa” age no movimento encontram-se na análise enunciativa:
de “roldagem” adquire pertinência na base de materialidade, pelo lado da sen-
composição de um cenário de seres in- tença, constituindo-se em materialidade
comuns, em ações aparentemente inusi- qualificada, pelo lado do enunciado”
tadas, mas em equilíbrio, em estado de (DIAS, 2013a, p. 236).
normalidade, o qual será quebrado com o Sendo assim, a identidade sintática
conflito entre o homem e o monstro. Em de uma língua assenta-se nesse padrão
outros termos, a falta de um referente regular, aliado à pertinência enunciativa
historicamente delineado pelo léxico do das formações consubstanciadas nesse
português para lesmolisa, touvo e roldar sistema de regularidades. A materiali-
não se constitui em barreira intranspo- dade linguística pode prescindir da pre-
nível para que tenhamos acessibilidade sença de unidades lexicais, justamente
ao texto, tendo em vista que as condições porque ela é qualificada no plano enun-
de constituição de unidades da língua ciativo. Por isso, falamos em sintaxe de
portuguesa encontram-se preservadas pertinências enunciativas. Esses versos,
no texto. desse ponto de vista, compõem um texto
Em parâmetros sintáticos, a FN em em língua portuguesa.
causa constitui-se como ocupação do lu-
gar de sujeito gramatical para a formação Sustentação referencial
verbal (FV) “roldavam” e “relviam”, que
em gramática tradicional constitui-se Em Dias (2013b) situamos os espaços
como predicado. Esses padrões estáveis sintáticos como campos de pertenci-
são exatamente os mesmos que susten- mento os quais nos permitem aliar a

392

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
atualidade da formulação e o memorável enunciativa. Com efeito, a noção de re-
de outras enunciações que comparecem ferência, nos termos em que é abordada
no acontecimento enunciativo. Uma FN em boa parte dos estudos em semântica,
como “as lesmolisas touvas” é uma forma apresentaria dificuldades para uma aná-
qualificada em teoria da enunciação na lise rigorosa dos termos que compõem
medida em que participa de um domí- os versos em causa. No mesmo autor
nio referencial, constituído em espaços (2013b), desenvolvemos a noção de do-
regulares na língua (lugar de sujeito na mínio referencial com base no conceito
sentença em que se encontra), e contrai de “referencial”, de Foucault no qual,
pertinência com esse memorável de ... um “referencial” que não é constituído
enunciações. de “coisas”, de “fatos”, de “realidades”, ou
Tendo em vista isso, retomamos a per- de “seres”, mas de leis de possibilidade, de
regras de existência para os objetos que
gunta inicial, qual seja: como conceber a aí se encontram nomeados, designados ou
constituição dos sentidos tendo em vista descritos, para as relações que aí se encon-
o caráter relativamente hermético das tram afirmadas ou negadas. O referencial
do enunciado forma o lugar, a condição, o
unidades lexicais do poema. No primeiro campo de emergência, a instância de di-
desdobramento dessa questão básica, ferenciação dos indivíduos ou dos objetos,
avaliamos o suporte material do poema dos estados de coisas e das relações que
são postas em jogo pelo próprio enunciado;
quanto às regularidades gramaticais, e
define as possibilidades de aparecimento e
pudemos afirmar que a primeira entrada de delimitação do que dá à frase seu sentido,
no caminho de compreensão do poema à proposição seu valor de verdade. É esse
passa pelas articulações regulares da conjunto que caracteriza o nível enunciati-
vo da formulação, por oposição ao seu nível
língua portuguesa. Agora, passaremos gramatical e seu nível lógico... (FOUCAULT,
pelo caminho dos extratos de pertinência 1986, p. 104).
de um memorável de enunciações.
Nessa direção, mais importante do
Nesse viés, vamos buscar um parâ-
que a relação entre a palavra e uma
metro de compreensão dos vocábulos
entidade do extrato real ou virtual,
que constituem as formações sintáticas
encontra-se a pertinência daquilo que
(FNs e FVs). Conforme referido acima,
se formula como evocação de realidades.
os vocábulos do poema apresentam um
O nível enunciativo da formulação na
caráter relativamente hermético. Uma
nossa perspectiva encontra nas FNs,
das implicações desse “fechamento” dos
principalmente, um lugar privilegiado
vocábulos lexicais à referência reforça a
de constituição do campo de emergên-
nossa concepção apresentada em Dias
cia daquilo que se evoca. Denominamos
(2013b), relativa à adoção do termo
domínio de referência a esse campo de
“domínio referencial”, em detrimento
emergência proposto por Foucault. Dessa
do termo “referência”, na abordagem
maneira, as formações nominais e ver-
da significação no âmbito da semântica
bais constituem-se como formulações de

393

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
referencial, vale dizer, formulações de sua vez, os polos constituem-se em torno
pertinência para o enunciado. dos verbos revolver ou revirar e do subs-
Tomemos agora os movimentos de tantivo relva. No caso de “gramilvos”,
acessibilidade ao poema, como leitores aparecem grama e algo que traz à mente
de língua portuguesa, no tocante à com- sons emitidos à forma de silvos ou sibi-
posicionalidade lexical. Para isso, los. Com os substantivos “pintalouvas”
vamos observar os lugares de pertinência e “momirratos”, nós somos convocados a
nas formações nominais e verbais, bases encaminhar para dois animais bem co-
formais da enunciação. nhecidos: pintassilgos e ratos; no entan-
Constitui-se no poema um domínio de to, não são exatamente esses referentes,
referência para a configuração da perti- uma vez que a referencialidade poderia
nência enunciativa a partir da criação se instalar na relação entre pintassilgo
lexical sustentada em verdadeiros “po- e louva-a-deus, em “pintalouvas”, e en-
los de referencialidade”. Vejamos como tre momice, ou modo de comportar-se, e
as formações nominais do poema são rato em “momirratos”. Já em “grilvos”,
constituídas frente a essa perspectiva teríamos algo mais óbvio: gritos e silvos
de abordagem. constituindo os polos de referencialidade.
Em “briluz”, os polos de referen- Por fim, o adjetivo “mimsicais” situa-se
cialidade que sustentam o domínio de num plano parametrizado por musicais
referência são luz e brilho. Eles evocam e mímicas.
pertinência na construção do cenário de Como se percebe, a acessibilidade
estabilidade e de normalidade em que se para a construção das cenas descritas
encontra o lugar descrito. Por sua vez, na no poema, isso é, o caminho de entrada
FN “as lesmolisas touvas”, os polos de re- do poema na perspectiva da materia-
ferencialidade para “lesmolisas” podem lidade da memória, constitui-se numa
ser animais que apresentariam traços composicionalidade lexical, que toma
de lesmas, mostram-se lisos e ainda, palavras do léxico da língua portuguesa
na condição de “touvas”, apresentariam e produz combinações inusitadas, mas
traços de toupeiras, com olhos muito enunciativamente consistentes no plano
pequenos, e seriam estouvadas, agindo de concepção do texto, especificamente,
sem cuidado. A pertinência dessas carac- do cenário de normalidade que antecede
terísticas coaduna-se com o movimento a batalha.
desses animais, expresso na formação Dissemos que é possível postular
verbal (FV) “roldavam”, que por sua vez dois aspectos de pertinência de um
trazem rolar, de um lado, e roldão (di- memorável de enunciações no poema.
cionarizado no português como falta de O segundo aspecto será abordado agora
ordem), de outro, na constituição de polos como perspectivação no interior da
de referencialidade. Em “relviam”, por formação sintática.

394

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
Outros tradutores brasileiros dedi- formações nominais e verbais, mostrar
caram-se às translações do poema em como as palavras da frase “...the slithy
análise, como se pode observar na nota toves did gyre and gimble in the wabe…”
3, relativa ao quadro abaixo. Vamos, a (segundo e terceiro verso do poema)
partir disso, em uma análise mais de- foram percebidas por alguns desses
talhada da pertinência enunciativa das tradutores.

Quadro: Translações4 do inglês para o português de uma frase do poema Jabberwocky, de L.


Carroll
Jabberwocky the slithy toves did gyre and gimble in the wabe
1 Jaguadarte as lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos
2 Blablasauro colescosos touvos se giroscavam no capimtanal
3 Jararacorvo as glabras babalesmas rodam-moinham no astromante
4 O Jararroca as toupas lubrisensólias revolvem piruetando no guano
5 O Jaguaboque as larvas-trovas rodopiavam e brilgavam na relva
6 O Tagarelão os sacalarxugos elasticojentos giravam no eirado
7 Pargarávio Os lubriciosos touvos persondavam as verdentes em vertigiros
8 Javaligátor as lindalvas malassandras giravoltam ao redor do bussolar
9 O Babatrote assidão de torvos revólver-revés na revolta relva
10 Algaravia as rutilas rolinhas girando afuroavam o taboleiro -
11 Algaravia as rolas brilhantes giravam, giravam pelo ar
Fonte: http://brasillewiscarroll.blogspot.com.br/2009/09/jabberwocky-in-portuguese.html

Em algumas FNs, a composicionali- nhas” (10) e “rolas” (11) apresentam-se


dade lexical, apresentada na descrição no texto produzem o efeito do incomum
do primeiro extrato, aparece de forma que perpassa o cenário descrito nessa
marcante, como em (6): “os sacalarxugos primeira estrofe do poema. Tanto “ruti-
elasticojentos”. Nesse caso, o substantivo las” quanto “brilhantes” produzem uma
apresenta como polos de referencialidade forma de apresentação de rolas como
“lagartos” e “texugos”, e o adjetivo traz seres que emitem luz. Essa perspectiva-
“elásticos” e “nojentos” na condição de ção sugestiva do incomum na FN produz
polos. Da mesma forma, as FVs também o engate da pertinência enunciativa ao
participam dessa constituição composi- texto. Nesse caso, o caminho de entrada
cional, como em “giroscavam” (2) e “gira- do poema na perspectiva da materiali-
voltam” (8), em que o verbo do português dade da memória passa por uma palavra
“girar” entra em combinação com “rosca” núcleo (rola, rolinha) já lexicalizada,
e “volta”, respectivamente. constituída como índice de memória, e
Há FNs em que o inusitado não se as- que recebe uma perspectiva que a situa
senta na composição dos nomes, mas na no campo da pertinência, da atualidade,
perspectivação do núcleo da FN. Nesse do novo, produzindo-se assim as condi-
contexto, a perspectiva com que “roli- ções para o acontecimento enunciativo.

395

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
Algo semelhante ocorre em “na re- gar de entrada das imagens evocadas na
volta relva” (9), em que o substantivo FN, simulando a “existência” dos seres
“relva” é dicionarizado, resguardando estranhos, na medida em que projeta
uma peça do memorável, e recebendo uma descrição do cenário em que eles
de “revolta” o traço de atualidade, no estão em atividade. Esses seres são con-
movimento de perspectivação que evoca substanciados em substantivo, mesmo
a imagem de relva e a situa no cenário aqueles não dicionarizados, a partir da
lúgubre e misterioso instalado antes da imaginação historicamente compartilha-
batalha. Por sua vez, temos uma varia- da no meio social do século XIX. Por isso,
ção da ocorrência da perspectivação em a personagem Alice, em referência ao
“as glabras babalesmas” (3), em que o poema, afirma: “parece encher a minha
adjetivo “glabras” (sem pelos) produz a cabeça de ideias, só não sei que ideias
perspectivação incidente sobre a imagem são” (CARROLL, 2002, p. 145).
evocada de uma entidade sem pelos,
convocando, pela sua composicionalida- Considerações finais
de, a unidade “lesmas”. Já em “assidão
de torvos” (9), a construção “de torvos” Ao adotarmos a perspectiva de uma
atua como perspectivador (torvo: que sintaxe de pertinências enunciativas, as
causa terror) para uma imagem evocada formas qualificam-se no domínio referen-
por “assidão”, resultando em algo como cial, tendo em vista uma referencialida-
uma reunião de criaturas assustadoras, de. A abordagem das formas da língua
sombrias. do ponto de vista de uma qualificação
Em Dias (2011) abordamos a perspec- enunciativa permitiu-nos desenvolver
tivação como um conceito paralelo à de- o conceito de formação sintática, des-
terminação no âmbito da FN, mormente dobrado em formação nominal (FN) e
aquela em que o adjetivo articula-se com formação verbal (FV), o qual, muito mais
o substantivo. Na semântica enuncia- do que uma contraparte enunciativa do
tiva, o conceito de perspectivação está conceito de sintagma, ampara toda a
centrado na tese de que os determina- dinamicidade da relação entre memória
dores da FN exercem o papel de evocar e atualidade que a perspectivação opera
o caráter memorável do substantivo e no interior de tais formações.
situá-lo no presente da enunciação. Na Assim, mostramos como a armadura
análise que acabamos de empreender, sintática ampara a relação entre os me-
a configuração dos referenciais das for- moráveis, enquanto evocações de signi-
mações nominais e verbais abordadas ficação cristalizadas historicamente, e a
deu-se a partir da incidência de termos demanda de atualidade da enunciação.
perspectivadores identificáveis no léxico Essa armadura sintática sustenta o poe-
do português, os quais evocaram um lu- ma enquanto texto da língua portuguesa.

396

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
Por mais que tenhamos a deflagração Enunciative Relevance and
do incomum, em casos de rarefação de Referential Sustainability:
entrada pelo composicional e pela pers-
Within the Limits of the
pectivação, as formações sintáticas são
Syntactic and the Semantic
constituídas a partir de uma recorrência
de sustentação articulatória, em que Abstract
artigos, preposições e sufixos guardam
The text approaches the role of
a memória da língua portuguesa.
syntactic articulation and enunciati-
Na maioria dos enunciados, o léxico do ve referentiality in the translations to
português participa do poema enquanto Portuguese in the first stanza of the
processo, mas não se consubstancia poem “Jabberwocky”, present in the
como produto, ou seja, não proporciona book Alice through the Looking Glass
by Lewis Carroll. For this, we intro-
unidades dicionarizadas. Nesses casos, duced the concepts of nominal forma-
vimos que esse léxico significa a partir tion and verbal formation, developed
dos seus parâmetros de referencial, a in the Study Group on Enunciation
partir dos polos de referencialidade. at UFMG, based on the semantics
of enunciation. These concepts have
Essa parametrização pelos polos e pelos
allowed us to constitute devices to ap-
perspectivadores é determinante na in- proach the poem, which we believe to
junção ao cenário de mistério e estranha- be productive for the enhancement of
mento projetado pelos versos do poema an enunciative analysis, in which the
analisados. Por sua vez, a memória, o meaning is conceived as a dynamic
form. Furthermore, we have discussed
interdiscurso, aparecem pela historici- the role of the lexicon in the consti-
dade dos animais e atos provindos dos tution of the sentences in Portuguese
polos e também das bases receptoras da in the context of literary elaboration.
perspectivização.
Keywords: Enunciation. Enunciative
Em suma, uma análise enunciati- referentiality. Semantics and syntax.
va das translações dos versos iniciais
do poema Jabberwocky tornou-se um
produtivo exercício de observação do
Notas
estatuto de textos em língua portuguesa 1
O termo “translação” é mais adequado do que
construídos nas trilhas de referenciais, o de “tradução” no caso em pauta, tendo em
vista que se trata de uma verdadeira recria-
e não de referentes, deslizando sobre ção do poema da língua inglesa para a língua
dimensões de realidade imaginada, ar- portuguesa.
2
Título original: Through the Looking-Glass, and
madas na sintaxe da língua, fundadas What Alice Found There.
não no recorrer da referência, mas nos 3
Utilizamos o termo “pertinente”, para se refe-
limiares da referencialidade. rir a uma relação de pertença às situações de
interação social, isto é, para se referir a algo
concernente às relações sociais, e não a algo
apropriado à finalidade a que se destina (sen-
tido valorativo). Alguém pode dizer algo pouco

397

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013
ou nada apropriado em determinado contexto FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio
de diálogo, mas essa fala teve uma repercussão de Janeiro: Forence Universitária, 1986.
no diálogo, mesmo que mínima, a ponto de ser
captada pelos participantes e concebida como GUIMARÃES, E. Enunciação, língua, memó-
inapropriada ou impertinente. ria. Revista da ANPOLL. n. 2, p. 27-33, 1996.
4
Autores das translações: _______. Domínio semântico de determi-
1) Augusto de Campos
nação. In: E. J. Guimarães; M. C. Mollica
2) Ricardo Gouveia
(Orgs.). A palavra: forma e sentido. Campi-
3) Bráulio Tavares
4) Bráulio Tavares nas: Pontes/RG Editores, 2007.
5) Yara Azevedo Cardoso
6) William Lagos
7) Maria Luiza de X. Borges Anexo
8) Bráulio Tavares
9) Yara Azevedo Cardoso
10) Pepita de Leão JAGUADARTE
11) Oliveira Ribeiro Netto
Era briluz. As lesmolisas touvas
roldavam e relviam nos gramilvos.
Referências bibliográficas Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.
CARROL, L. Through the looking-glass, and
what Alice found there. London: Macmillan "Foge do Jaguadarte, o que não morre!
and co., 1872. Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Fefel, meu filho, e corre
_______. Jaguadarte. In: Aventuras de Alice Do frumioso Babassura!"
no país das maravilhas; Através do espelho e
o que Alice encontrou lá. Tradução do poema: Ele arrancou sua espada vorpal
Augusto de Campos; tradução e organização e foi atras do inimigo do Homundo.
do livro: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Na árvore Tamtam ele afinal
Summus Editorial, 1980. Parou, um dia, sonilundo.
_______. Alice; edição comentada. Trad. de
Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: E enquanto estava em sussustada sesta,
Jorge Zahar Editor, 2002. Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando atraves da floresta,
DIAS, L. F. Enunciação e regularidade sin- E borbulia um riso louco!
tática. Cadernos de Estudos Linguísticos
(UNICAMP), Campinas, v. 51, p. 7-30, 2009. Um dois! Um, dois! Sua espada mavorta
_______. Os sentidos da liberdade no mundo Vai-vem, vem-vai, para tras, para diante!
wiki. In: SCHONS, C. R.; CAZARIN, E. A. Cabeca fere, corta e, fera morta,
(Orgs.). Língua, escola e mídia: entrelaçan- Ei-lo que volta galunfante.
do teorias, conceitos e metodologias. Passo
Fundo: Ed. da UPF, 2011. "Pois entao tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
_______. Enunciação e forma linguística. Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!"
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Hori- Ele se ria jubileu.
zonte, v. 21, n. 1, p. 223-238, jan./jun. 2013a.
Era briluz.As lesmolisas touvas
_______. Formações nominais designativas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
da língua do Brasil: uma abordagem enun-
Estavam mimsicais as pintalouvas,
ciativa. Letras, Santa Maria, n. 46, p. 11-22,
E os momirratos davam grilvos.
jan./jun. 2013b.

398

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 9 - n. 2 - p. 389-398 - jul./dez. 2013

Você também pode gostar