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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Caro Estudante.
Este é o seu livro texto para cursar a disciplina PRÁTICA PEDAGÓGICA EM
QUÍMICA II , constante do segundo bloco do seu curso de Graduação.
Tem o objetivo de contribuir para sua formação apresentando um conjunto de roteiros
de atividades a serem desenvolvidas bem como a maior parte da bibliografia a ser utilizada ao longo
de toda a disciplina com o intuito de construir com você uma base teórica mínima necessária para a
compreensão da chamada “ciência dos que não tem Ciência”.
Nesse sentido, pretende-se com este livro guiá-lo na descoberta das formas de
manifestação da ciência em sua realidade, visando com isso ampliar as sua concepções de ciência a
partir de uma perspectiva mais cultural, compreendendo a sua difusão a partir da Europa e as
manifestações de práticas culturais tradicionais dos “povos periféricos”, geralmente consideradas
menores diante do saber oficial acadêmico. Pretende-se, ainda, que você seja capaz de elaborar um
projeto de pesquisa, desenvolvê-lo e apresentá-lo na forma de relatório escrito como componente
final avaliativo desta disciplina.
Para isso, como na Prática Pedagógica I, o livro consta essencialmente de quatro partes:
A primeira parte é uma apresentação da disciplina, com seu programa oficial e
informações a respeito de sua importância e pertinência no curso de Licenciatura em Química.
A segunda parte contém os roteiros de atividades a serem desenvolvidas por você, sob
orientação, de modo a haver aprendizagem de conceitos importantes, fundamentais para a
construção de uma base teórica mínima necessária à compreensão da Ciência a partir dessa
perspectiva cultural/difusionista. Além disso, também pretende ensinar-lhe a elaborar um projeto de
pesquisa e seu relatório.
Na terceira parte estão indicações bibliográficas utilizadas na elaboração deste texto
didático, além daquelas que originaram os textos anexos, recomendadas como leitura adicional e
alguns endereços eletrônicos úteis para serem acessados como forma de pesquisa na web.
A última parte contém os textos básicos para leitura e referência visando a construção da
base teórica essencial à disciplina ora em curso.
Espero que este material lhe seja útil e que você possa tirar dele o proveito necessário
para sua formação profissional. Ao mesmo tempo, coloco-me à disposição para receber de você
críticas e comentários visando sua melhoria.
Prof. Jorge Machado
(jmachado@ufpa.br)
8
1. APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA
PROGRAMA
Descrição da disciplina:
Nesta disciplina os alunos buscarão relações entre as demais disciplinas do
bloco e as formas tradicionais de relação do homem com a natureza
amazônica como oportunidade para a construção de aulas de Química. Farão
pesquisas a respeito do processo de difusão e recepção das ciências ditas
“européias” na Amazônia, bem como sobre a maneira da ciência local e os
povos amazônicos abordarem certos temas de cunho científico ou
tecnológico, por exemplo, captação e tratamento de água, produção e
conservação de alimentos ou processos terapêuticos. Esta prática visa
oportunizar a construção de um "olhar amazônico" sobre a ciência. Nela serão
usadas noções de etnografia na abordagem cultural do conhecimento químico.
9
Justificativa:
A inclusão em um curso de formação de professores de química de uma uma
disciplina de prática que aborde questões locais relativas a ciência e
tecnologia justifica-se na medida em que os professores em formação deverão
ter, como um de seus componentes curriculares formativos, a percepção clara
da interferência que o conhecimento local e as práticas comunitárias
tradicionais vem realizando sobre a difusão e a recepção do conhecimento.
Essa é uma forma de serem preparados para o fato de, se realmente houver um
paralelo entre a ontogênese e a filogênese, compreenderem que haverá fatores
interferentes na forma como seus futuros alunos recebem e interpretam as
teorias científicas, sendo esses fatores essencialmente de natureza cultural. A
constatação dessa realidade permitirá, no mínimo, que o professor reconheça-
se como construtor de conhecimento em parceria com seus alunos, dessa
forma, perdendo a pretensão de ser dono ou transmissor de um conhecimento
estático absoluto e "correto".
Objetivos:
Espera-se que com estes estudos os licenciandos em química sejam capazes
de:
1 - Vivenciar a pesquisa qualitativa em sua modalidade etnográfica
2 - Compreender o mecanismo de difusão e recepção da ciência européia na
América
3 - Definir cultura
4 - Identificar e documentar formas tradicionais de relação do homem
amazônico com o meio natural através do processamento de materiais ou de
tecnologias nativa
Ementa:
- Difusão e recepção do conhecimento científico: metrópole x periferia
- Cultura: seu conceito antropológico
- Resgatando a ciência nos saberes populares: conhecimento Químico e
tradição
- Pesquisa qualitativa: a Pesquisa Etnográfica
- Elaboração de projetos de pesquisa
- Execução de uma pesquisa
- Relatórios de pesquisa de campo
Metodologia de ensino:
A disciplina será ministrada mediante estudo de textos, debates em grupos de
estudo e desenvolvimento de pesquisa de campo com apresentação de
relatório escrito.
Recursos necessários:
Os recursos necessários serão:
● Livro texto da disciplina
Metodologia de Avaliação:
A avaliação será realizada através dos resultados obtidos nas seguintes
atividades:
● Apresentação de trabalho escrito sobre temas relativos à base teórica
da disciplina (1º CPC)
● Elaboração de projeto de pesquisa etnográfica (2º CPC)
● Entrega de relatório escrito de pesquisa de campo. (CEF)
Bibliografia:
ALMEIDA, Maria da Conceição Xavier de. Previsões do tempo:
ecossistema e tradição. Galante, nº 14, vol. 2, Ago. 2002. Fundação Hélio
Galvão, Natal, RN.
CHASSOT, Attico. Alquimiando a quimica. Química nova na escola, nº 1,
maio de 1995.
CHASSOT, Attico. Alfabetização científica: questões e desafios para a
educação. Ijuí, UNIJUÍ, 2000.
DANTES, Maria Amélia M. A implantação das ciências no Brasil - um
debate historiográfico. In Alves, José Jerônimo A. Múltiplas faces da
história das ciências na Amazônia. Belém, UFPA, 2005
D'AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo, Ática, 1993.
KNELLER, George F. A ciência como atividade humana. Rio de
Janeiro/São Paulo, ZAHAR/EDUSP, 1980.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de
Janeiro, Zahar, 1994.
LUDKE, Menga e André, Marli. Pesquisa em educação: abordagens
qualitativas. São Paulo, EPU, 1986.
Uma análise desse plano permite que compreendamos mais a cerca da concepção da
disciplina e de seus objetivos.
Primeiro, tem um tema: Vivências amazônicas. O que vem a ser isso? Vejamos:
É indiscutível que o ensino de química vem se dando, já desde muito tempo, de forma
autoritária (na medida em que apresenta conhecimentos verdadeiros e inquestionáveis), baseado na
transmissão de conhecimentos de um ser que sabe (o professor) para outro que não sabe (o aluno),
centrado nas ações do professor e desconsiderado completamente a realidade mais imediata que
cerca a sala de aula onde o processo acontece. Para essa forma de ensino, a ciência a ser ensinada é
européia, cristã, branca e masculina, nos dizeres de Chassot, desconsiderando completamente a
periferia (em nosso caso, a América Latina) onde muita ciência se praticou e ainda se pratica à
revelia da ciência “oficial”. Ora, tendências mais recente na abordagem do ensino de química a
11
partir de uma perspectiva de EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA vêm chamando a atenção para a
necessidade do professor conhecer de forma mais íntima a realidade que cerca sua sala de aula para
que possa considerar os saberes diversos que circulam entre seus alunos, buscado utilizar esses
saberes em auxílio ao seu trabalho docente. E que saberes seriam esses? Chassot (2000) no texto
reproduzido neste livro apresenta uma lista de práticas populares de base científica que são fontes
de um saber em extinção e que podem ser estimulantes repositórios de temas a pesquisar e ricas
possibilidades de contextualização em aulas de química.
No sentido de possibilitar a construção desse novo olhar sobre aulas de química,
impregnadas pela realidade mais imediata de professores e estudantes, foi elaborada esta disciplina
de caráter prático do curso de Licenciatura em Química da UFPA, que a exemplo da disciplina
prática que a antecedeu, não é propriamente constituída de conteúdos estanques e pré-definidos e
ensinar, mas formada por um conjunto de questionamentos cuja finalidade é conduzir os
licenciandos até a construção de uma concepção solidamente fundamentada, mas muito pessoal e
interativa sobre a realidade cultural que o cerca, reconhecendo a ciência como um saber cultural
histórico, complexo e multifacetado.
Espera-se que ao final da disciplina os licenciandos tenham sido capazes de perceber a
importância do resgate dos saberes populares de caráter científico e tecnológico por professores e
estudantes de química na educação básica como elemento relevante para a elaboração de propostas
de ensino inovadoras visando a ruptura com o autoritarismo do saber científico e a incorporação aos
planos de ensino de atividades capazes de renovar um ensino já ultrapassado e fadado à
infertilidade.
Discutir nesta disciplina as VIVÊNCIAS AMAZÔNICAS, portanto, significa refletir
sobre a difusão da ciência européia, sua recepção pela periferia, seu confronto com os saberes
locais, o necessário resgate dos saberes locais e sua incorporação a aulas de química como forma de
praticar uma educação mais dialética. Para isso, serão desenvolvidas as atividades relacionadas a
seguir.
12
2. ROTEIROS DE ATIVIDADES
Esta disciplina está dividida em três momentos.
Num primeiro momento será construída uma base teórica mínima que permita a
compreensão de alguns conceitos básicos essenciais para uma visão articulada e sofisticada a
respeito das relações entre ciência, cultura e conhecimento popular. No segundo momento será
elaborado um projeto de pesquisa etnográfica sobre manifestações locais de saberes científicos e
tecnológicos tradicionais ou em extinção. A apresentação desse projeto de pesquisa constituirá a
segunda avaliação da disciplina. O terceiro e último momento das atividades constará da elaboração
de relatório da pesquisa realizada e seu entrega escrita ao professor da disciplina. Feita esta
descrição geral das atividades, vamos detalhá-las a seguir:
1 Aqui foi escolhido este tema apenas como exemplo, não significando que existam carvoeiros tradicionais no rio Iriri.
Nem que existe esse rio.
14
de uma breve revisão bibliográfica que irá situar a base teórica sobre a qual se apóia a pesquisa.
5. Metodologia: Aqui será apresentado como será feita a pesquisa, que métodos e
técnicas serão utilizados, qual será o universo (número de pessoas, faixa etária, etc.), enfim qual
será o procedimento para coleta de dados. Para a pesquisa sobre os carvoeiros deve-se informar que
será usada, como metodologia, a pesquisa etnográfica e como instrumentos de pesquisa serão
utilizados observação participante, entrevistas e questionários, sendo que essas técnicas serão
aplicadas com um número x de carvoeiros escolhidos aleatoriamente (ou não).
6. Recursos: Onde serão apresentados com que, com quem e com quanto será
realizada a pesquisa. É uma lista dos recursos materiais, humanos e financeiros necessários para a
realização da pesquisa. Deve ser detalhada e clara, para que, por exemplo, conste o número exato de
passagens de barco que serão necessárias para o deslocamento dos pesquisadores até o rio Iriri; ou
quantos CD-ROMs serão consumidos durante a pesquisa. Vale destacar que no relatório da pesquisa
constará a realidade dos recursos efetivamente consumidos e utilizados, sendo flexível (embora
exata) a lista de recursos apresentada no projeto.
7. Cronograma: Pode ser apresentado mediante uma tabela como o exemplo abaixo:
2 Lembre-se sempre que toda pesquisa científica é uma diálogo entre a teoria e os dados coletados em campo. Apenas
um relato de informações, sem confronto com a teoria, é trabalho jornalístico (informativo) e não científico. Lembre-
se da Prática Pedagógica I, quando ficou claro que uma cozinheira, embora realize operações químicas, não tem o
status de químico por não ter uma base teórica amparando suas operações.
15
3 Transcrever dados é ouvir as gravações das entrevistas e passá-las para uma forma escrita
16
4 Estas obras não estão referenciadas segundo os padrões da ABNT pois pretendeu-se dar mais ênfase ao título, para
facilitar pesquisa em bibliotecas, internet ou livrarias virtuais. Mas todas as informações necessárias a sua
normalização, localização e consulta estão presentes.
19
ensino de química e à formação de professores de ciências. Tem textos para download, bibliografias e uma
grande seção de links que remete a outros sítios com informações sobre história da química e ensino.
TEXTO 1
Foi somente a partir dos anos 1960 que a difusão da ciência moderna e a implantação de
tradições científicas em diferentes contextos passaram a ser temas para os historiadores da ciência. Um
marco nesta linha de estudos foi a publicação, pela revista de divulgação científica Science, do texto
do historiador norte-americano George Basalla, 'The Spread of Western Science", em 19675.
5George Basalla, "The Spread of Western Science", Science, 156, 1967, pp. 611-622;
21
Este texto teve grande influência e trouxe uma perspectiva mundial para a História da
Ciência, até então voltada para o desenvolvimento das ciências em países que tiveram a liderança na
produção de conhecimentos científicos modernos6.
Foi editado no contexto dos debates sobre a questão do desenvolvimento, nos anos que
seguiram a Segunda Guerra Mundial e, a partir de estudos históricos, procurou apresentar propostas
que orientassem países dependentes cientificamente a se tornarem lideranças científicas.
No texto, Basalla utiliza estudos históricos existentes sobre o processo de difusão da ciência
moderna - produzida em alguns países europeus e paradigma científico por excelência - para outras
regiões do globo: América, África e Ásia, desde os primeiros períodos da expansão européia. A partir
destes estudos, constrói um modelo geral para a difusão da ciência moderna, constituído por três fases.
Uma primeira, caracterizada pela inexistência de comunidades cientificas locais e pelo levantamento
feito por europeus das regiões contaiadus; uma segunda, denominada colonial, de existência de uma
comunidade científica local, no entanto, dependente de padrões científicos externos e sem contribuições
relevantes para a produção científica mundial; uma terceira, dos países independentes cientificamente.
É importante destacar que o texto de Basalla está inserido no quadro tradicional da História
da Ciência, pelo qual a ciência moderna é vista como conhecimento universal e cujo desenvolvimento
conceituai é movido por determinantes internos e orientado para a busca de um conhecimento
correio do universo físico. Influências sociais só se dariam em aspectos mais externos da prática
científica, como papéis a ela atribuídos, ou sua utilização7.
Assim, a difusão da ciência ocidental é vista como um processo pelo qual um
conhecimento epistemologicamente superior - a ciência moderna - se instala em outros contextos
sociais. Para o autor, em alguns casos - como na China e na Índia, com grandes civilizações antigas
-, a ciência se impôs aos saberes locais por sua superioridade cognitiva. O exemplo dado é dos sistemas
de classificação, considerados superiores aos locais. Em outros casos - como nas Américas -, a não
existência de civilizações avançadas teria facilitado o processo.
Como, para o autor, o objetivo dos vários países deveria ser tornar-se cientificamente
independente, crenças filosóficas e religiosas que criassem resistências à implantação da ciência moderna
deveriam ser erradicadas pelas elites locais. O exemplo dado pelo autor é do confucionismo, na
China, que fazia críticas às práticas científicas. Finalizando, quero sublinhar que o texto de Basalla
considerava, também, a difusão como um processo unidirecional, pelo qual um conjunto já
estabelecido de conhecimentos se difundia para outros contextos.
Note-se que, analisando a implantação da ciência moderna nos vários continentes, o autor
não considera fundamental a ação de fatores políticos. E, em nenhum momento, registra alguma
interação positiva da ciência moderna com saberes locais.
Quanto às críticas a este modelo, lembremos que elas se inserem no conjunto mais amplo
das críticas às propostas desenvolvimentistas tão em voga no pós-guerra, e que se desmontaram com
sua própria ineficácia na resolução de problemas dos países sub-desenvolvidos.
No entanto, como já dito, o texto teve grande influência, estimulando estudos sobre o
processo de implantação das ciências nos mais variados contextos. O que, entretanto, já ocorreu em um
outro quadro conceituai da História da Ciência.
Nas últimas décadas, a História da Ciência passou por grandes transformações e um número
crescente de historiadores passou a definir ciência como atividade social cujo desenvolvimento resulta
da ação de variáveis internas e externas.
6António Lafuente, Alberto Elena e M. Luiza Ortega, na introdução ao livro por eles organizado, Mundial'ización de Ia ciência
y cultura nacional, Madrid, Ed. Doce Calles, 1992, declaram que os historiadores da ciência têm uma dívida com Basalla que,
em primeiro lugar, chamou a atenção para a importância do processo de expansão mundial da ciência.
7Neste sentido, aproxima-se do sociólogo Joseph Ben-David, autor de O papel do cientista na sociedade, S. Paulo, Ed.
Pioneira, 1972;
22
José Luis Peset, em seu artigo "Ciência y independencia en la America espanõla"12, publicado
em 1992, trata da forte resistência do padre criollo José António Alzate ao projeto ilustrado da Coroa
espanhola de introduzir em Nova Espanha, atual México, o sistema de classificação lineana e outros
conhecimentos científicos modernos e realizar levantamentos de recursos naturais de interesse econômico.
Para tal, foi montada a Real Expedição Botânica de Nova Espanha, que atuou de 1788 a
1803, realizando excursões e levantamentos da flora da colônia. Também foi responsável pela
8Um texto que trabalha desta forma a implantação da física newtoniana no contexto europeu e no colombiano é o artigo de Luiz
Carlos Arboleda "Acerca de la difusión cientifica en la periferia" In. QUIPU, 4 (1), 7-32, 1987.
9A nova historiografia vem trabalhando com a ideia de que a ciência é uma atividade local, contextuai, que circula. Sobre esta
produção v. Dominique Pestre "Por uma Nova História Social e Cultural das Ciências: Novas Definições, Novos Objetos,
Novas Abordagens", Cadernos IG-UNICAMP, Campinas, Vol. 6, n° l, 1996, 3-56 (trad. de artigo publicado nos Annales ESC,
vol. 50, n° 3, mai-juin 1995);
10 Autores com propostas inovadoras neste sentido, como Lewis Pyenson e Roy MacLeod, têm artigos no livro de
Patrick Petitjean; Catherine Jami; Anne-Marie Moulin (eds.), Science and Empires, Historical Studies about
Scientific development and european expansion, Dordrecht/Boston/London, Kluwer Academic Publishers, 1992
11 Trata-se do XXI International Congress of History of Science, realizado na cidade do México, em julho de 2001.
12 José Luis Peset, "Ciência e independência en Ia America Espanola", In, António Lafuente, Alberto Elena e M.Luiza
Ortega (eds.), Mundialización de Ia ciência y cultura nacional, Madrid, Ed.Doce Calles, 1992, 195-218;
23
Outro estudo, bastante elucidativo, foi publicado em 1992 pelo historiador Roshdi
Rashed , e trata da introdução, no século XIX, de elementos da tradição matemática europeia no Ira e
13
Finalizando este item, chamo a atenção para algumas características da nova historiografia.
Primeiro, a tendência a trabalhar de forma diferenciada os vários contextos, considerando suas
especificidades. Também, são estudos que procuram enfatizar que o processo de implantação de
práticas científicas não foi resultante simplesmente da ação de centros difusores, sendo
determinante a atuação de grupos locais. Por fim, a consideração de que o contexto cultural local, com
a presença de outros saberes, também atuou neste processo, gerando apropriações diferenciadas das
ciências modernas.
13Roshdi Rashed. "Science classique et science moderne à 1'époque de 1'expansion de la science européenne" In Petitjean,
Patrick. Jami, Catherine; Moulin. Anne-Marie(eds.), Science and Empires. Histórical studies about scientific development
and european expansion, Dordrecht/Boston/London, Kluwer Academic Publishers, 1992, pp. 19-30;
24
14 Expressão usada por Simon Schwartzmann em seu livro Formação da comunidade científica no Brasil, de 1979, para
descrever as condições existentes no país no século XIX.
15 V. entre outros, Silvia Figueirôa, As cências geológicas no Brasil: uma história Social e Institucional, 1875-1934, S.
Paulo, Ed. Hucitec, 1997; Clarete P. Da Silva, O Desvendar do grande livro da natureza. Um estudo da obra do
mineralogista José Vieira Couto, 1798-1805. S. Paulo, Fapesp/AnnaBlume/Unicamp, 2002; M. Margaret Lopes, O
Brasil Descobre a Pesquisa Científica. Os Museus e as Ciências Naturais no Século XIX, S. Paulo, Hucitec, 1997;
Alda Heizer e Antônio A. P. Videira: Ciência , Civilização e Império nos Trópicos, Rio de Janeiro, Ed. Acess, 2001.
25
Já o estudo de Lilia Schwarcz17 ilustra bem como, no final do século XIX, a difusão de
teorias evolucionistas no Brasil embasou a disseminação de teorias racistas. A autora vê esta
utilização como própria ao caso brasileiro, em um momento em que o destino do "país mestiço" era
pensado por seus intelectuais.
Da mesma forma que no estudo anterior, aqui são lembradas as várias leituras que teorias
evolucionistas tiveram na Europa, e que também seriam referências para os cientistas brasileiros.
Desde 1 concepções monogenistas, que trabalhavam a humanidade como uma unidade, mesmo com
diferentes raças, a poligenistas, que defendiam diferentes origens para os vários povos, com a ideia de
uma humanidade cindida. Estas vertentes embasaram teorias raciais diferentes, que no segundo caso
incluía o conceito de raças superiores e inferiores. Como a autora sublinha, eram concepções científicas na
época..
16Regina C. Ellero Gualtieri. "O evolucionismo na produção científica do Museu Nacional do Rio de Janeiro (1876-
1915)" In, Heloísa M. B. Domingues. Magalí Romero Sá e Thomas Glick (eds.). A recepção do darwinismo no Brasil,
Rio de Janeiro. Ed.Fiocruz, 2003, 45-96;
17Lilia Schwarcz, O Espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930), S. Paulo,
Companhia das Letras, 1993.
26
Para o caso brasileiro, a autora faz um amplo levantamento da presença de temas raciais em
publicações de instituições científicas brasileiras: museus de história natural, institutos históricos, faculdades de
medicina e de direito. Acaba detectando diferenças significativas no tratamento dado ao tema pêlos
diferentes profissionais. Por exemplo, entre médicos baianos e da Corte ou entre advogados do Recife e
São Paulo.
A autora chama a atenção para como as teorias raciais foram incorporadas pêlos cientistas
brasileiros, ganhando novos significados, ou seja, construindo interpretações originais que vinham de encontro
aos temas candentes no país. São encontradas, assim, diferenciadas concepções - sempre apoiadas em
argumentos científicos - da melhor política de imigração a ser implantada.
Vemos, assim, estes estudos ilustrando bem o que queremos sublinhar na nova historiografia: a
implantação de teorias científicas sempre implica - com maior ou menor grau - adaptações, traduções,
recriações.
Medicina científica e práticas de cura no Brasil
É muito recente o interesse dos historiadores brasileiros pelo estudo do encontro de práticas
científicas com outras tradições culturais.
No entanto, nos últimos anos, vêm sendo editados vários textos sobre a presença de práticas
de cura no Brasil, desde tempos coloniais, e que têm pontos de contato com a área da história da
medicina, sem dúvida a de maior desenvolvimento na História das ciências no Brasil.
procurados por parcela significativa da população do que os médicos. Vemos assim, no Brasil do século
XIX, um meio social que contava com um sistema complexo de práticas de cura, em que tradições
mais modernas, européias, dividiam espaço com tradições vindas do período colonial.
Para o século XIX, há estudos tratando da ação de pajés na Amazônia e de curandeiros e
outros práticos no Rio de Janeiro e em Minas Gerais21. Ou o estudo de Sidney Chalhoub sobre a
resistência da população de cortiços cariocas às medidas da junta de higiene do governo imperial, em
especial à vacinação antivariólica. O autor, após análise cuidadosa, conclui que as raízes destas ações
estavam em crenças religiosas africanas e suas concepções de doença e cura, que levavam a uma
oposição a práticas médicas oficiais22.
Já outros estudos mostram como práticas de cura populares continuavam sendo bastante
difundidas no Brasil nas primeiras décadas do século XX. No Rio Grande do Sul, sendo mesmo
oficializadas pela liberdade profissional estabelecida pela constituição estadual de caráter positivista23. Ou
mesmo em 1918, durante a gripe espanhola, quando foram largamente acionadas em um contexto de
falência da medicina oficial24.
3 À guisa de conclusão
21 Aldrin M. Figueiredo, "Pajelança e medicina na Amazônia no limiar do século XX" In, Sidney Chalhoub et allii, Op. Cit., pp.
273-304; Tânia P. Salgado, Op.Cit; e Betânia G. Figueiredo, Artes de Curar. Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros
no século XIX em Minas Gerais, Rio de Janeiro. Ed. Vicio de Leitura, 2002.
22 Sidney Chalhoub, Cidade febril. Cortiços e epidemias na corte imperial, S. Paulo, Companhia das Letras, 1996.
23 Beatriz Teixeira Weber, As artes de curar. Medicina, religião, magia e positivismo na república rio-grandense. 1889-1928.
Santa Maria/Bauru, Ed. Univ. Fed. Santa Maria/ Ed. Univ. Sagrado Coração, 1999.
24 Liane Maria Bertucci. Influen:a, a medicina enferma. Ciência e práticas de cura na época da.jripe espanhola em São
Paulo. Campinas, Ed. UNICAMP. 2004.
25 V. Arnaldo D. Contier. Brasil Sovo. Música, nação e modernidade: os anos 20 e 30. Tese de livre-docência. São Paulo,
FFLCH-USP. 1988.
28
O depoimento nos faz pensar, assim, que a memória nacional é, muito frequentemente,
seletiva e exclui a ação de setores significativos da sociedade brasileira.
No entanto, como vimos, alguns estudos recentes começam a registrar a ação de
indivíduos até então sem história. Um caminho que se inicia, mas que pode ter muitos
desdobramentos.
Referencias
Arboleda, Luis C., "Acerca de la difusion cientifica en la periferia" In, QUIPU, 4(1), 7-32, 1987 (ed. da SLHCT, Mexico, DF).
Basalla, George, "The Spread of Western Science" In, Science, 156, 1967, pp.611-622.
Bertucci, Liane Maria, Influenza, a medicina enferma. Ciência e práticas de cura na época da gripe espanhola em
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Contier, Arnaldo D., Brasil Novo. Musica, nação e modernidade: os anos 20 e 30, Tese de livre-docencia, São Paulo, FFLCH-
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Ferreira, L. Otavio, "Ciência medica e medicina popular nas paginas dos periódicos científicos (1830-1840)", In, Chalhoub,
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29
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Santa Maria/Bauru, Ed. Univ. Fed. Santa Maria/ Ed. Univ. Sagrado Coração. 1999.
30
TEXTO 2
O que é cultura?
Prof. Jorge Machado
(adaptado da Enciclopédia Barsa)
“As meninas-lobo
Na Índia, onde os casos de meninos-lobo foram relativamente
numerosos, descobriram-se, em 1920, duas crianças, Amala e Kamala,
vivendo no meio de uma família de lobos. A primeira tinha um ano e meio e
veio a morrer um ao mais tarde. Kamala, de oito aos de idade, viveu até
1929. Não tinham nada de humano e seu comportamento era exatamente
semelhante àquele de seus irmãos lobos.
Elas caminhavam de quatro patas apoiando-se sobre os joelhos
e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os
trajetos longos e rápidos.
Eram incapazes de permanecer de pé. Só se alimentavam de
carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, lançando a
cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram
recolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra; eram
ativas e ruidosas durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos.
Nunca coraram ou riram.
Kamala viveu durante oito anos na instituição que a acolheu,
humanizando-se lentamente. Ela necessitou de seis anos para aprender a
andar e pouco antes de morrer só tinha um vocabulário de 50 palavras.
Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos.
Ela chorou pela primeira vez por ocasião da morte de Amala e
se apegou lentamente às pessoas que cuidaram dela e às outras crianças
com as quais conviveu.
A sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se com outros por
gestos, inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário rudimentar,
aprendendo a executar ordens simples.”
(B. REYMOND. Le dévelopment social de l'enfant et
de l'adolescent. Bruxelas, Dessart, 1965, p.12-14)
O fato verídico narrado acima nos faz questionar afinal o que é realmente um ser
humano. O que nos assemelha e o que nos diferencia dos animais. Claro está que as crianças eram,
de fato, lobos, no sentido de que agiam como eles. Embora organicamente pertencessem à espécie
humana, “culturalmente” eram lobos, pois haviam se integrado perfeitamente a uma alcatéia e,
mesmo quando retiradas dela, as crianças continuaram a comportar-se como lobos.
Crianças com desenvolvimento neurológico limitado por alguma doença grave têm em
geral sérias dificuldades para se desenvolverem plenamente como pessoas. Da mesma forma, como
na história citada, crianças neurologicamente perfeitas podem “não chegar à humanidade” se não
compartilharem do convívio com outros de sua espécie, aprendendo como viver em sociedade, o
que é e o que não é uma conduta humana, etc.
Esse patrimônio imaterial passado de geração em geração e que nos faz diferentes dos
animais tem sido chamado de CULTURA e tem sido igualmente objeto de estudo para uma
importante ciência humana, a ANTROPOLOGIA, que vem se debruçando sobre problemas
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ensejados por fatos como o das meninas-lobo e outras situações. Mas, então, o que é cultura?
Todos os povos, mesmo os mais primitivos, tiveram e têm uma cultura, transmitida no
tempo, de geração a geração. Mitos, lendas, costumes, crenças religiosas, sistemas jurídicos e
valores éticos refletem formas de agir, sentir e pensar de um povo e compõem seu patrimônio
cultural.
Em antropologia, a palavra cultura tem muitas definições. Coube ao antropólogo inglês
Edward Burnett Tylor, oferecer pela primeira vez uma definição formal e explícita do conceito:
"Cultura ... é o complexo no qual estão incluídos conhecimentos, crenças, artes, moral, leis,
costumes e quaisquer outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da
sociedade."
Já o antropólogo americano Melville Jean Herskovits descreveu a cultura como a parte
do ambiente feita pelo homem; Ralph Linton, como a herança cultural, e Robert Harry Lowie,
como o conjunto da tradição social. No século XX, o antropólogo e biólogo social inglês Ashley
Montagu a definiu como o modo particular como as pessoas se adaptam a seu ambiente. Nesse
sentido, cultura é o modo de vida de um povo, o ambiente que um grupo de seres humanos,
ocupando um território comum, criou na forma de idéias, instituições, linguagem,
instrumentos, serviços e sentimentos.
hábitos, costumes, a língua, as idéias, modos de agir da sociedade carioca, em que se cria e vive.
Além desses hábitos e costumes que recebe de seu grupo, o homem vai ampliando seus
horizontes, e passa a ter novos contatos: contatos com grupos diferentes em hábitos, costumes ou
língua, os quais farão com que adquira alguns desses hábitos, ou costumes, ou modos de agir. Trata-
se da aquisição pelo contato. Foi o que se verificou no Brasil do século XIX com hábitos
introduzidos pelos imigrantes alemães ou italianos; o mesmo sucedeu em séculos anteriores, com
costumes introduzidos pelos negros escravos trazidos da África. Tais costumes vão-se incorporando
à sociedade e, com o tempo, são transmitidos como herança do próprio grupo.
É certo que essa transmissão pelo contato não abrange toda a cultura do outro grupo.
Somente alguns traços se transmitem e se incorporam à cultura receptora. Esta, por sua vez, se torna
também doadora em relação à cultura introduzida, que incorpora a seus padrões hábitos ou
costumes que até então lhe eram estranhos. É o processo de transculturação, ou seja, a troca
recíproca de valores culturais, pois em todo contato de cultura as sociedades são ao mesmo tempo
doadoras e receptoras. Dessa forma, o homem adquire novos elementos culturais, e enriquece seu
tipo cultural.
Esses elementos, que compõem o conceito de cultura, permitem mostrar que ela está
ligada à vida do homem, de um lado, e, de outro, se encontra em estado dinâmico, não sendo
estática sua permanência no grupo. A cultura se aperfeiçoa, se desenvolve, se modifica,
continuamente, nem sempre de maneira perceptível pelos membros do próprio grupo. É justamente
isso que contribui para seu enriquecimento constante, por meio de novas criações da própria
sociedade e ainda do que é adquirido de outros grupos.
Graças às pesquisas em jazidas arqueológicas, tem sido possível recompor ou
reconstruir as culturas, o que permite conhecer o desenvolvimento cultural do homem, sobretudo no
campo material. É mais difícil, porém, conhecer o desenvolvimento da cultura espiritual, embora
muita coisa já se tenha podido esclarecer. De qualquer forma o que se sabe é que, nascida com o
homem, a cultura, sofreu modificações ao longo dos tempos, enriquecendo-se de novos elementos e
adquirindo novos valores. A cultura acompanha, pois, a marcha da humanidade; está ligada à vida
do homem, desde o ser mais antigo. Com a expansão do homem pela Terra, ocupando os grupos
humanos novos meios ambientes, a cultura se ampliou e se diversificou em face das influências
impostas pelo meio, cujas relações com o homem condicionaram o aparecimento de novos valores
culturais ou o desaparecimento de outros.
A cultura é derivada de componentes da existência humana, ou seja, origina-se de
fatores ligados ao homem. São fatores ambientais, psicológicos, sociológicos e históricos, que
contribuem para compor a cultura dentro de uma sociedade estudada. Ela é também aprendida,
porque se verifica um processo de transmissão dos mais velhos - pessoas ou instituições - aos mais
novos, à proporção que estes se vão incorporando a sua sociedade. São as chamadas linhas de
transmissão, isto é, aqueles meios pelos quais se verifica a aprendizagem da cultura. A família, os
companheiros de trabalho, os professores, o esporte, a igreja, a escola, são linhas de transmissão, ou
seja, transmitem a cultura, que se torna assim aprendida pelos que se incorporam à sociedade.
Do mesmo modo, a cultura é estruturada, pois tem uma forma ou estrutura que lhe dá
estabilidade no respectivo grupo humano, sem prejuízo das possibilidades de mudança, que são
imensas. É estruturada no sentido de que, compondo-se de diversos valores, mantém entre eles uma
estruturação orgânica.
Constituída de diferentes valores, a cultura forma os complexos que, unidos e inter-
relacionados, dão o padrão cultural. A organização social, a língua usada, a organização política, a
estética, as idéias religiosas, as técnicas, o sistema de ensino são alguns dos elementos existentes em
uma sociedade. Esses elementos dão forma à cultura e a representam, em conjunto, de maneira a
caracterizar a sociedade em que se manifestam. Não são iguais, porém, em todas as sociedades; daí
a cultura ser variável. A cultura é também cumulativa; vão-se acumulando nela, em face da
respectiva sociedade, os elementos vindos de gerações anteriores, sem prejuízo das mudanças que se
podem verificar no decorrer do tempo.
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modernas línguas faladas na Europa contemporânea. Da mesma forma é um engano falar-se de raça
judaica, pois o que existe são elementos humanos, que se aglutinam pela cultura, em particular
pelos mesmos ideais ou sentimentos religiosos, e nunca pelas mesmas características físicas.
Convém salientar que as três variáveis -- cultura, raça e língua -- são independentes e
não seguem a mesma direção. Encontram-se casos em que persistem as características raciais e se
modificam as lingüísticas e culturais, como se verificou com os negros da África na América do
Norte ou com os vedas do Ceilão (hoje Sri Lanka). Em outras ocasiões, persistem as características
lingüísticas e modificam-se as raciais; foi o que sucedeu com os magiares na Europa, vindos de um
mesmo tronco lingüístico, mas de variada formação racial. Pode também suceder a persistência de
características culturais e a modificação das características físicas ou lingüísticas. É o exemplo
encontrado nos povos chamados latinos. Com tais exemplos, conclui-se que cultura não se confunde
com raça ou língua.
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TEXTO 3
Para uma certa tendência epistemológica, dizer que a química é uma ciência eqüivale a
afirmar que ela é o resultado de uma evolução que representa o caminho do senso comum até uma
forma muito elaborada e especializada de se estudar e perceber o mundo. Ciência pode ser, portanto,
o senso comum refinado e aperfeiçoado26.
Mas, o que vem a ser senso comum?
Para entender o alcance dessa questão, vejamos o que acontece com os caboclos
amazônicos quando fabricam os artefatos que eles chamam de “cuias”.
Cuias são tigelas feitas com produtos da floresta, fabricadas de acordo com uma
tecnologia muito peculiar e muito específica, de domínio público entre os povos da floresta. Cuias
são muito comuns em Belém do Pará, nas barracas para venda de tacacá, onde são utilizadas para
servir essa iguaria típica da culinária paraense. Vejamos uma breve descrição do processo de
fabricação das cuias:
Essas cuias são feitas a partir da casca grossa dos frutos de uma árvore nativa
(Crescentia cujete), globos que podem atingir o tamanho de uma melancia grande.
Os globos são cortados em dois hemisférios, limpos e secados ao sol. Enquanto isso está
sendo feito, o artesão prepara um extrato aquoso do caule de uma planta chamada cumatê (árvore da
família das melastomáceas cujas cascas são ricas em tanino), com o qual pintará a cuia, cobrindo-a
com esse corante natural. Nesse trabalho de pintura ele dará vazão à sua arte, decorando as cuias
com motivos variados.
Após a pintura, as cuias serão colocadas sobre um recipiente contendo urina em
decomposição, a cujos vapores elas ficarão expostas. Não entrarão em contato direto com a urina,
mas apenas com as suas emanações amoniacais.
O corante endurecerá e escurecerá, adquirindo as propriedades de uma laca negra e
brilhante, que protegerá a cuia do apodrecimento e facilitará seu manuseio e higiene. Ao final, a
26 Para uma outra corrente epistemológica, cujo maior expoente é Gaston Bachelard, a passagem do senso-comum para
a ciência representa antes uma RUPTURA. Para essa corrente, não há uma evolução natural do senso comum, pois a
ciência (seu modo de abordar os fenômenos, seu formalismo, o racionalismo indutivista, a necessidade de uma teria
dando suporte ao trabalho do cientista) difere radicalmente da forma como o homem comum aborda a natureza e
seus fenômenos. A questão está em aberto.
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cuia receberá polimento para ter seu brilho realçado, sendo usada nesse processo final uma resina
vegetal brilhante.
É curioso como esse processo de preparo das cuias teria igual sucesso se elas fosse
expostas aos vapores do amoníaco, mas a tradição manda utilizar a urina até hoje. Os espíritos
filosóficos podem meditar sobre as estranhas propriedades da matéria, porém a técnica continua
naturalmente a seguir o seu caminho...
Os detalhes “ritualísticos” do processo de produção das cuias ainda não foram
devidamente estabelecidos, mas de imediato poderíamos criar uma lista contendo um certo número
de conhecimentos com origem nas ciências naturais e formais que são indispensáveis para que o
caboclo tenha sucesso nesse empreendimento.
1. O caboclo precisa ter conhecimentos de botânica, no sentido de localizar os vegetais
segundo sua aparência e habitat e, ainda, para determinar o momento certo de coletar o material
vegetal (frutos da cuia e caules do cumatê) necessário para o empreendimento.
2. O caboclo precisa saber, de alguma forma, dividir uma esfera em dois hemisférios
iguais (ou quase iguais, ou ainda, deliberadamente diferentes) utilizando técnicas e instrumentos
adequados. Isso envolve conhecimentos matemáticos.
3. O caboclo precisa conhecer sobre o comportamento de certos materiais quando
expostos ao calor do sol, sobre resistência dos materiais, sobre construção de utensílios e
equipamentos, em outras palavras, sobre física.
4. Finalmente, o caboclo precisa dominar um conhecimento químico empírico, na
medida em que irá selecionar materiais, submeter esses materiais a reações químicas e avaliar
os resultados da manipulação desses materiais quando submetidos a processos químicos.
A partir dessas considerações muitas questões se apresentam a nós:
Qual a origem desse conhecimento?
Será possível estabelecermos algum diálogo entre saberes populares como esse (de
cunho científico e técnico) e a ciência química formal?
Principalmente, em que esse saber difere ou assemelha-se ao conhecimento químico
sistematizado?
Percebemos, então, a necessidade de estabelecermos um discussão sobre as infinitas
possibilidades criativas do homem inserido na sua cultura e as (restritas?) possibilidades do saber
científico sistematizado.
Iniciemos nossas considerações discutindo brevemente o que vem a ser senso comum.
Pelo exemplo das cuias apresentado acima, podemos afirmar que o senso-comum é todo um
conjunto de conhecimentos de domínio público que são utilizados pelo homem para a sobrevivência
e a resolução de problemas, muitos destes de natureza comprovadamente científica. Quando o senso
comum evolui e passa por um processo de sofisticação e sistematização, temos o que se chama
ciência. Assim, (para Alves, Kneller, e outros, mas não para todos) ciência é o senso comum
aperfeiçoado27.
No caso das cuias, um químico poderia concluir que a exposição do extrato aquoso do
cumatê aos vapores de amoníaco (ou de qualquer substância que desprenda esses vapores) poderia
resultar no mesmo fenômeno. Generalizaria, dessa forma, dizendo que a reação entre “alguma
coisa” no extrato do cumatê e a amônia (NH3) resultaria na formação de uma “laca”. Poderia isolar
a “coisa” que reage com a amônia e determinar sua estrutura e fórmula molecular. Poderia, a partir
de um modelo atômico e de modelos para mecanismos de reação química, propor uma equação que
descreveria a reação química observada. Poderia testar esse mecanismo e, eventualmente,
comprová-lo ou modificá-lo. Poderia, até mesmo, propor uma forma de produção comercial para
27 Alguns autores fazem distinção entre “senso-comum” e “conhecimento popular”. Este seria constituído de práticas e
saberes comuns a populações de reduzidas posses materiais e pequeno repertório cultural. Já o senso-comum estaria
presente de forma disseminada em todas as classes sociais. A fabricação de cuias, pelo processo descrito, seria uma
manifestação do “conhecimento popular”. Colocar cebolas na geladeira antes de cortar ou cortá-las sob uma corrente
de água (para reduzir o lacrimejar da cozinheira) seria conhecimento de “senso-comum”.
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essa “laca”, capaz de revestir móveis sem o uso de substâncias derivadas do petróleo. E por aí vai.
Mas, por que o caboclo da Amazônia não pode realizar todos esses prodígios?
Justamente, porque lhe falta toda a trajetória de referenciais e de repertório cultural que
foi percorrida pelo químico. Comparemos, para usar uma metáfora oriunda da filosofia oriental,
com o arqueiro Zen. A flecha é o homem. O arco é o conhecimento de senso comum. O alvo é a
ciência. Para ir do arco até o alvo há toda uma trajetória a ser percorrida. E durante esse percurso,
muitas coisas acontecem, muita coisa muda, de forma que a flecha que chega ao alvo nunca é a
mesma que partiu do arco... Será essa trajetória, processo de aculturação no qual o indivíduo vai aos
poucos sendo “iniciado” nos procedimentos, abordagens, métodos, linguagens, isto é, no “ser” um
químico, que vai transformar alguém que pensa como um homem comum em alguém que aprende a
pensar como químico.
Da mesma forma que as cuias, muitos saberes de domínio público tem conexão direta
com a atividade do químico. Como exemplo mais corriqueiro, vejamos o caso da cozinha.
Na cozinha acontecem inúmeros fenômenos químicos, diversas substâncias são
manipuladas e a cozinheira (ou cozinheiro) é, em última análise, um químico em ação, embora
jamais possa desfrutar desse status28. Começando pelo fogo, que é quase indispensável no preparo
dos alimentos, trata-se obviamente de uma reação química. O gás que serve de combustível é um
hidrocarboneto, obtido por destilação fracionada do petróleo. O vinagre é uma solução ácida. Fazer
um bolo, por exemplo, é promover uma série de reações químicas desde o desprendimento de gases
do fermento até o cozimento do trigo. Podemos parar por aí, pois os exemplo se seguiriam ao
infinito. Os utensílios plásticos, as panelas de alumínio, os pratos de porcelana...
Saindo da cozinha e partindo para a farmácia, podemos perceber os antibióticos, os
antiácidos efervescentes (e por que eles reagem dessa forma com água?), os antissépticos, a água
oxigenada...
Facilmente poderíamos concluir que para todo lado que olharmos, para todos os
sistemas possíveis, para o muito distante, o muito perto, o infinitamente grande e o infinitamente
pequeno, para todo lado temos substâncias e reações químicas. Naturalmente, o homem vem
convivendo com essas coisas há milênios e aprendendo a lidar com elas mediante a aplicação de
conhecimentos espontâneos de senso-comum, fruto da experiência, da curiosidade e da abordagem
sistematizada (mediante um “método científico popular”?) dos fenômenos e materiais da natureza.
Acredita-se, por exemplo, que o homem descobriu como fazer sabão por acaso, ao observar que as
cinzas de fogueira quando misturadas com gordura animal derretida ajudavam a retirar a sujeira dos
utensílios mais facilmente do que usando apenas água. Da mesma forma acredita-se que o homem
aprendeu a cozer alimentos, tingir tecidos e extrair metais de seus minérios.
Como estabelecer pontes entre esse conhecimento e o saber químico sistematizado?
Durante o processo ensino-aprendizagem em química, constantemente o professor
depara-se com situações evocadas pelos alunos que demonstram claramente a permanência de
concepções de senso comum, mesmo depois que eles passaram por um processo básico de educação
científica. Alunos do final do nível médio, por exemplo, ainda manifestam-se, em alguns casos,
favoráveis à concepção de que o gás de cozinha tem “aquele cheiro desagradável” que eles
percebem quando há vazamento de gás, mesmo já tendo estudado química orgânica e tendo
recebido a informação de que aquele odor é da mercaptana adicionada ao gás, que é inodoro,
justamente para acusar vazamentos perigosos. Evidencia-se, nesses casos, completa desarticulação
entre sala de aula e realidade.
Se recordarmos que o conhecimento científico pode ser entendido como o senso comum
sofisticado e que o cientista é aquele homem que tem um (e apenas um) de seus sentidos
hipertrofiado, em detrimento dos demais, estando dessa forma capacitado para perceber em
profundidade um tipo de fenômeno, mas com sérias limitações para elaborar outras abordagens para
os fenômenos, percebemos o quanto o senso comum pode ser um poderoso aliado do professor de
28 Porque não teoriza sobre a causa dos fenômenos que estão acontecendo na sua cozinha, explicando-os à luz, por
exemplo, de um modelo microscópico, nem elabora mecanismos sofisticados para modelar os fenômenos.
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química29.
Todo conhecimento químico precisa ser construído, a partir do conhecimento de senso
comum que, certamente, todos os alunos trazem de casa. A máxima construtivista “descubra o que
seus alunos sabem e ensine a partir disso” aplica-se maravilhosamente nestes casos.
Se o professor vai ensinar algo sobre indicadores ácido-base, pode partir de um fato que
qualquer pessoa já observou quando foi lavar a tigela em que acabou de tomar um porção de açaí.
Ao colocar o sabão na tigela os resíduos de açaí imediatamente mudam de cor. Por que isso
acontece? Esta pergunta tem, no mínimo, o poder de despertar o interesse dos alunos para a
explicação. A repetição desse fenômeno em sala de aula, usando ácidos e bases, é fácil de ser
realizada e ajuda a estabelecer as necessárias pontes entre o conhecimento científico (ácidos, bases,
indicadores, pH, viragem, neutralização, etc.) e o saber popular que certamente já havia observado a
mudança de coloração durante a lavagem da tigela suja de açaí. Da mesma forma, outros fenômenos
estão aí, na plenitude de sua visibilidade.
Quando as bombinhas acabavam, na noite de São João, os meninos acendiam pedaços
de bombril e os giravam sobre a cabeça, produzindo um círculo incandescente. Ora, mas por que o
bombril, que é uma palhinha de aço queima e um prego de aço não queima?
Quando alguém está com azia dissolve um comprimido antiácido efervescente em água
para aliviar a queimação no estômago. Um dia, dissolvendo o comprimido em água gelada essa
pessoa percebe que assim ele demora mais a dissolver do que em água natural retirada do filtro. Por
que isso ocorre? É correto dizer que se trata de uma dissolução?
Fenômenos que estão aí30, à espera de serem percebidos pelos professores de química,
muitos deles tomados por uma certa miopia, presos a esquemas rígidos de pensamento, habituados e
pensar fazendo recortes tão específicos da natureza, fruto de uma formação muito especializada, que
impedem a percepção dessa realidade tão vasta, tão inserida na cultura humana, tão presente no dia-
a-dia das pessoas, que negá-la é promover um ensino alienado e alienante, incapaz de lançar pontes
entre a sala de aula e o vasto mundo. Incapaz, lamentavelmente, de migrar de um ensino de química
para a educação química.
29 Um rato, por exemplo, pode ser estudado a partir de várias abordagens científicas. Um físico pode determinar, por
exemplo, sua força muscular. Um psicólogo pode estudar seu comportamento sob stress, em um labirinto, na solidão
ou em meio à multidão. Um biólogo pode determinar seu parentesco genético com o lêmure da Oceania. Um
químico pode moê-lo e determinar sua composição protéica. Nenhum desses cientistas, porém, captará o que é um
rato na sua totalidade...
30 Como severa ADVERTÊNCIA, é importante lembrar que os fenômenos naturais não devem ser vistos apenas como
ilustrativos da presença da química no universo, como se sem ela eles não pudesses existir. A química, com suas leis,
é uma linguagem humana, inventada para descrição e compreensão do mundo natural, este que existe à revelia da
humanidade. Se a química, os átomos, os mecanismos de reações químicas não tivessem sido inventados, o mundo
continuaria sendo o que é. Ao “descobrir” uma lei da natureza, o cientista não está revelando o oculto. Ele está
realizando um ato criativo, inventando uma forma para a compreensão do mundo natural. Assim, o professor de
Química deve partir dos fenômenos e usar a química para entendê-los. Não deve, em hipótese alguma, servir-se da
natureza apenas para ilustrar na sala de aula a verdade teórica que ele acredita possuir e que ensina antecipadamente
a seus alunos, tagarelando exaustivamente diante deles.
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TEXTO 4
PREVISÕES DO TEMPO
Ecossistema e tradição
Maria da Conceição Xavier de Almeida
in Galante, nº 14, vol. 02, Agosto de 2002.
Fundação Hélio Galvão, Natal, RN.
(Notas por Jorge R. C. Machado)
Todas as épocas têm seus sábios, mas nem todas as pessoas que produziram
conhecimentos relevantes nas diversas culturas tiveram seus nomes divulgados, conhecidos. Na
época de Isaac Newton, de Galileu Galilei e de Nicolau Copérnico, certamente outros saberes
estavam sendo construídos sobre os mesmos temas por eles estudados, mesmo que não saibamos
onde e quem se dedicava a responder as mesmas perguntas. A ciência é uma maneira de explicar o
mundo, mas existem outras produções de conhecimento, outras formas de saber e de conhecer que
se perdem no tempo e no anonimato porque não encontram espaços e oportunidades de expressão. É
isso que acontece, em grande parte, com numerosos conjuntos de saberes construídos pelos
intelectuais da tradição.
Em diversos lugares espalhados pelo Brasil, mulheres dispõem de grande sabedoria para
tratar de doenças. Elas conhecem os segredos e as qualidades das plantas para curar enfermidades as
mais diversas; sabem assistir os nascimentos, fazer partos, cuidar da alimentação da mãe, tratar do
recém-nascido, dizer o que se pode ou não se deve comer. Os homens, mais afeitos às longas
caminhadas para o trabalho, sabem ler a natureza, a linguagem dos bichos, os segredos da mata. O
mundo rural, distante das grandes cidades, tem também seus sábios.
Na região do semi-árido nordestino, caracterizada por uma instabilidade climática
denominada de seca, a escassez das chuvas por períodos prolongados se constitui num fenômeno
que atravessa os séculos. Para responder ao desafio de viver num ambiente tão inóspito, parte dessa
população tem sistematizado técnicas de observação da natureza que constituem um conjunto de
saberes sobre "previsão do tempo".
Desenvolvidos às margens do conhecimento escolar e da ciência, esses saberes da
tradição são, ao longo da história, repassados de pai para filho de forma oral e experimental. Eles se
constituem numa "ciência primeira" ou uma "ciência neolítica", conforme expressões do
antropólogo francês Claude Lévi-Strauss.
A OBSERVAÇÃO DO ECOSSISTEMA
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Entre 1982 e 1989, podemos ter acesso, no âmbito de uma grande pesquisa sobre "A
problemática da seca no Rio Grande do Norte", coordenada por Terezinha de Queiroz Aranha, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, às experiências e saberes acumulados pelos irmãos
Chico Lucas e José Lucas.
Agricultores-pescadores que residem na lagos do Piató, no município de Assu, no Rio
Grande do Norte, esses dois homens expressam uma sabedoria extraordinária. Eles compreendem o
comportamento dos animais e das plantas e também a dinâmica dos fenômenos físicos como sinais
que permitem prever inverno ou seca. Chico Lucas e Seu José descrevem assim suas experiências
relativas à observação de três domínios de referência: a fauna, a flora e os fenômenos físicos.
O comportamento dos animais:
A curimatá (peixe) - "A experiência do pescador, para saber se vai chover, é a curimatá
ovar. No ano que é maus, ela só ova, aqui acolá, uma. E só de um lado. No ano que ela está
esperando uma enchente grande, então ela ova os dois lados. As duas laterais dela ficam bem
ovadinhas. A mesma coisa acontece com o peixe coró."
O gado - " Na época do inverno, quando começam as chuvas, mas pára de chover dois
ou três dias, observamos o gado. Pela manhã, vamos buscar o gado no cercado. O gado 'tá' malhado,
com a frente para o poente quer dizer, dando os quartos para a chuva. Quando ele se levanta, ele tem
um modo de dá com os quartos, ficar patinando. Aí a gente diz: Hoje vai chover! - e é certo. Pode
esperar que duas, três horas da tarde a chuva 'tá' caindo."
O três coco (pássaro) - "Três coco é uma espécie de codornazinha. Quando eles pegam
um bom inverno eles ficam só no baixio. Quando é de manhãzinha ele empurra o grito: 'três coco,
três coco'. Aí a gente fica logo animado, quando ele começa a cantar. Isso é sinal de que já 'tá' bem
pertinho de chover."
A gata - "Se no mês de janeiro a gata 'der cria' (parir) e comer os gatos, seus filhos, é
uma seca de fazer medo."
O tatu (um tipo de dasipodídeos) - "Essa observação é feita no mês de dezembro: se a
gente for caçar para pegar tatu e a fêmea tiver apenas com dois ou três tatus, o inverno vai ser um
invernozinho (fraco, ruim). Se a gente pega ela com quatro tatus, aí é um inverno forte."
O aruá da serra (um tipo de molusco) - "Quando ele está prevendo um bom inverno
ele se trepa (sobe) naqueles matos, naquele velame, para desovar (expelir ovos). Ele trepa tanto que
arreia (caem) os galos do velame. Quando o ano não é bom, ele não faz isso: você chega num pé de
velame, você vê um aruá por acaso."
Os sinais da vegetação natural:
A catingueira (árvore de porte mediano) - "Quando a catingueira tá esperando um bom
inverno ela chora (expele) uma resina do caule dela mesmo."
O juazeiro (árvore de grande porte e copa frondosa) - "Quando ele está bem enramado,
pra cima de (por volta de) dezembro e a gente chega na sombra dele de doze horas do dia, a gente
sente que ele está garoando. É sinal de bom inverno."
A palmatória (cactácea) - "Quando o ano é mau, você chega num partido (área limitada
de plantio) de palmatória, dificilmente vê uma fruta."
A leitura dos fenômenos físicos:
O vento norte (1) - "Se o vento norte 'cai' (ocorrer) dia primeiro de setembro e 'encarriá'
(continuar) o mês todinho, é bom sinal de inverno."
O vento norte (2) (experiência que tem por referência a "fogueira" de São João: queima
de madeira empilhada durante as festas tradicionais, em homenagem a São João e São Pedro, no
mês de junho) - "Na hora de acender a fogueira você presta atenção ao vento. Se o vento for norte
ou poente, pode considerar um bom inverno pro outro ano. Se o vento for sul, será um ano de seca."
O vento (3) na lamparina (chama-se também a experiência do tamborete, pequeno
banco de madeira) - "Meu tio tinha uma experiência a do tamborete. Ele disse que de quatro horas
da manhã, ele bota um tamborete lá no fim do terreiro. Aí ele traz um farol - uma lamparina acesa, e
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bota (coloca) lá. Aí ele pastora (observar, ficar olhando). Se não tiver ventania, ele espera. Só sai de
lá quando sair qualquer raia de vento pra açoitar a fumaça. Se a fumaça for do nascente, quer dizer
que 'tá' ventando poente. Nesse caso, ele 'tá' esperando inverno, se for sul, nada de inverno."
O calendário da chuva - "Se chove dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, é experiência
boa. Aí chove dia 14 de janeiro, 15 de fevereiro, 16 de março, 17 de abril, 18 de maio, 19 de junho.
Isso quer dizer que a gente pode contar com seis meses de inverno."
As pedras de sal (a experiência é feita na véspera do dia de Santa Luzia) - "Enroladas
uma a uma em pedaços de papel se bota (coloca) em cima (no telhado) da casa. Quando é de manhã,
antes do sol sair, aí se tira aquelas pedras. Se as pedras derreterem e emendar uma com a outra quer
dizer que 'tá partindo cacimba grande' - que chove todos os seis meses. Mas se derrete uma, depois
de um mês outra, aí quer dizer que se considera um inverno variado (instável)."
Esse procedimento de religação e analogia é consagrado como prática de pensar nos redutos de uma
"ciência primeira", que encontrando-se mais próxima de uma "lógica do sensível", distingue mas
não separa nem opõe: relaciona, procura semelhança, observa as relações de repetição dos "sinais".
O uso eficaz das analogias entre os pensadores da tradição é conseqüência de uma forma de viver
que se caracteriza por um estado de espírito atento a tudo que vê. "Fomos instruídos para prestar
atenção a tudo que vemos", são as palavras de um "pensador indígena" confessadas a A. C. Fletcher
e referidas por Lévi-Strauss no livro "O pensamento selvagem". É a partir de um estado de espírito
"atento" que são alimentadas as construções do conhecimento da tradição.
A originalidade do conhecimento da tradição se enraíza em modelos mais holísticos de
pensar, não sendo esses modelos inferiores ou superiores aos da ciência. Não há diferença de graus,
mas de estilos ou estratégias de pensar. Os pensadores da tradição resolvem mais harmonicamente
os antagonismos presentes na natureza. Daí, por exemplo, a presença explícita de elementos míticos
nos enunciados interpretativos dos processos ecológicos. É por isso que a maioria das "previsões do
tempo" incluem aspectos mágicos ou religiosos e as festas populares religiosas selam contratos
sociais mediados por elementos físicos ricos em significações. Essa combinação de elementos
mágicos, míticos e simbólicos com elementos da natureza dá a dimensão da relação de troca e
complementaridade entre o cérebro que pensa e o mundo exterior, o que permite entender porque a
"religiosidade" como um artifício cultural da transcendência humana se pauta por códigos que
diferem radicalmente dos das religiões oficiais, caracterizadas por uma natureza dual e de oposição
frente ao real vivido.
Do ponto de vista da função social e política do conhecimento, cabem algumas
interrogações: A que serve o paralelismo entre a produção do conhecimento científico e os saberes
da tradição? A população que por interdição é destituída do saber científico, estaria em atraso em
relação às questões enunciadas pela ciência num determinado momento? Seriam elas um empecilho
à produção coletiva do conhecimento? Se é verdade que só a ciência sintoniza adequadamente as
questões postas e as resolve, como entender que as populações que não dispõem daquele
conhecimento elaboram suas matrizes de referência explicativas?
Essas questões permitem repensar o processo educativo em nossos dias, no que diz
respeito a transmissão da história da ciência e da técnica. A transmissão do conhecimento tem sido
redutora e mutilante. De um lado, o saber científico fracionado, não comunicante; de outro, o saber
tradicional entendido como "popular", tratado como filho bastardo da aventura do conhecimento e
excluído do âmbito da socialização e transmissão oficial. Tal exclusão acaba por fundar espaços,
linguagens e atitudes mentais que se excluem mutuamente.
Os conteúdos hoje transmitidos pela ciência correspondem a uma história domesticada
das descobertas do homem. Está fora de circulação a diversidade de explicações, especulações e
métodos de olhar, classificar e hierarquizar os fenômenos do mundo, pelos intelectuais da tradição.
São os métodos científicos de previsão climática que são comunicados nas escolas, e nunca as
formas tradicionais de leitura do ecossistema pelos peritos da tradição. O exercício do pensamento
analógico, ferramenta mental tão fecunda não saberes não-científicos, é entendido como um atributo
mental ingênuo, isto quando não é ostensivamente desclassificado. Se, nos conteúdos escolares, há
alusão a outras interpretações do mundo, a elas são imputadas as qualidades de um saber sem rigor,
sem método, sem função, um saber menor.
Essa forma de interdito na circulação da cultura, consolida uma sociedade de múltiplas
exclusões, condena as populações não letradas a redutos cada vez mais fechados. Dotadas,
entretanto de uma criatividade não domesticada, essas populações têm respondido a desafios que
talvez a ciência fosse incapaz de enfrentar, se não tivesse a seu dispor tantas ferramentas, artifícios e
próteses.
43
TEXTO 5
1. A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o
pesquisador como seu principal instrumento. Assim, a pesquisa qualitativa supõe o contato direto
e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, via de regra
através do trabalho intensivo de campo. Por exemplo, se a questão que está sendo estudada é a da
indisciplina escolar, o pesquisador procurará presenciar o maior número de situações em que esta se
manifeste, o que vai exigir um contato , direto e constante com o dia-a-dia escolar.
Como os problemas são estudados no ambiente em que eles ocorrem naturalmente, sem
qualquer manipulação intencional do pesquisador, esse tipo de estudo é também chamado de
"naturalístico". Portanto, todo estudo qualitativo é também naturalístico.
A justificativa para que o pesquisador mantenha um contato estreito e direto com a
situação onde os fenômenos ocorrem naturalmente é a de que estes são muito influenciados pelo seu
contexto. Sendo assim, as circunstâncias particulares em que um determinado objeto se insere são
essenciais para que se possa entendê-lo. Da mesma maneira as pessoas, os gestos, as palavras
estudadas devem ser sempre referenciadas ao contexto onde aparecem.
supostamente trivial pode ser essencial para a melhor compreensão do problema que está sendo
estudado. Questões aparentemente simples, como: por que as carteiras nesta escola estão dispostas
em grupos nas primeiras séries e em fileiras nas terceiras e quartas séries?, e outras desse mesmo
tipo, precisam ser sempre colocadas e sistematicamente investigadas.
4. O "significado" que as pessoas dão às coisas e à sua vida são focos de atenção
especial pelo pesquisador. Nesses estudos há sempre uma tentativa de capturar a "perspectiva dos
participantes", isto é, a maneira como os informantes encaram as questões que estão sendo
focalizadas. Ao considerar os diferentes pontos de vista dos participantes, os estudos qualitativos
permitem iluminar o dinamismo interno das situações, geralmente inacessível ao observador
externo.
O cuidado que o pesquisador precisa ter ao revelar os pontos de vista dos participantes é
com a acuidade de suas percepções. Deve, por isso, encontrar meios de checá-las, discutido-as
abertamente com os participantes ou confrontando-as com outros pesquisadores para que elas
possam ser ou não confirmadas."
auxiliares como forma de se tornar as atividades escolares mais ricas e dinâmicas, o que deu origem
a uma nova linha de pesquisas, que tem recebido o nome de "antropológica" ou "etnográfica".
A utilização desses termos, no entanto, deve ser feita de forma cuidadosa, já que no
processo de transplante para a área de educação eles sofreram uma série de adaptações, afastando-se
mais ou menos do seu sentido original. Assim, por exemplo, denominar de etnográfica uma
pesquisa apenas porque utiliza observação participante nem sempre será apropriado, já que
etnografia tem um sentido próprio: é a descrição de um sistema de significados culturais de um
determinado grupo (Spradley, 1979). Um teste bastante simples para determinar se um estudo
pode ser chamado de etnográfico, é verificar se a pessoa que lê esse estudo consegue interpretar
aquilo que ocorre no grupo estudado tão apropriadamente como se fosse um membro desse grupo.
Os vários critérios para a utilização da abordagem etnográfica nas pesquisas podem ser
assim resumidos:
1. O problema é redescoberto no campo. Isto significa que o etnógrafo evita a definição
rígida e apriorística de hipóteses. Em lugar disso, ele procura mergulhar na situação e a partir daí vai
rever e aprimorar o problema inicial da pesquisa. Com isso não se estaria sugerindo a inexistência
de planejamento ou de teoria, mas apenas a inconveniência de uma atitude inflexível em relação ao
problema investigado.
2. O pesquisador deve realizar a maior parte do trabalho de campo pessoalmente. Isso
enfatiza a importância de que a pessoa que escreve a etnografia deve ter tido ela mesma uma
experiência direta com a situação em estudo. A existência de auxiliares de pesquisa pode ser
extremamente útil, diz ele, mas jamais substituirá a riqueza do contato íntimo e pessoal com a
realidade estudada.
3. O trabalho de campo deve durar o máximo de tempo possível e necessário. Há a
necessidade de uma longa e intensa imersão na realidade para entender as regras, os costumes e as
convenções que governam a vida do grupo social estudado.
4. O pesquisador deve ter tido uma experiência com outros povos de outras culturas.
A justificativa para esse critério é que o contraste com outras culturas ajuda a entender melhor o
sentido que o grupo estudado atribui às suas experiências.
5. A abordagem etnográfica combina vários métodos de coleta. Há dois métodos
básicos utilizados pêlos etnógrafos: a observação direta das atividades do grupo estudado e
entrevistas com os informantes para captar suas explicações e interpretações do que ocorre nesse
grupo. Mas esses métodos são geralmente conjugados com outros, como levantamentos, histórias de
vida, análise de documentos, testes psicológicos, videoteipes, fotografias e outros, os quais podem
fornecer um quadro mais vivo e completo da situação estudada.
6. O relatório etnográfico apresenta uma grande quantidade de dados primários.
Além de descrições acuradas da situação estudada, o estudo etnográfico apresenta muito material
produzido pêlos informantes, ou seja, histórias, canções, frases tiradas de entrevistas ou
documentos, desenhos e outros produtos que possam vir a ilustrar a perspectiva dos participantes,
isto é, a sua maneira de ver o mundo e as suas próprias ações.
A partir desses critérios é fácil concluir que nem todos os estudos qualitativos podem ser
chamados de etnográficos. A etnografia como "ciência da descrição cultural" envolve
pressupostos específicos sobre a realidade e formas particulares de coleta e apresentação de dados.
Pressupostos
De acordo com Wilson (1977), a pesquisa etnográfica fundamenta-se em dois conjuntos
de hipóteses sobre o comportamento humano:
— A hipótese naturalista-ecológica, que afirma ser o comportamento humano
significativamente influenciado pelo contexto em que se situa. Nessa perspectiva, qualquer tipo de
pesquisa que desloca o indivíduo do seu ambiente natural está negando a influência dessas forças
46
É uma estratégia que envolve, pois, não só a observação direta mas todo um conjunto de
técnicas metodológicas pressupondo um grande envolvimento do pesquisador na situação estudada.
Decidir qual o grau de envolvimento no trabalho de pesquisa não significa decidir
simplesmente que a observação será ou não participante. A escolha é feita geralmente em termos de
um continuum que vai desde uma imersão total na realidade até um completo distanciamento. As
variações dentro desse continuum são muitas e podem inclusive mudar conforme o desenrolar do
estudo. Pode acontecer que o pesquisador comece o trabalho como um espectador e vá
gradualmente se tornando um participante. Pode também ocorrer o contrário, isto é, pode haver uma
imersão total na fase inicial do estudo e um distanciamento gradativo na fases subseqüentes.
Evidentemente, o pesquisador pode decidir desde o início do estudo que atuará como
um participante total do grupo, assumindo inclusive um compromisso político de ação conjunta nos
moldes da pesquisa participante.
Outro tipo de decisão que o pesquisador deve enfrentar é em que medida tornará
explícito o seu papel e os propósitos de estudo. Aqui também pode haver variações dentro de um
continuum que vai desde a total explicitação até a não-revelação. Buford Junker (1971) situa quatro
pontos dentro desse continuum: 1) participante total; 2) participante como observador; 3)
observador como participante; e 4) observador total.
No papel de "participante total", o observador não revela ao grupo sua verdadeira
identidade de pesquisador nem o propósito do estudo. O que ele busca com isso é tornar-se um
membro do grupo para se aproximar o mais possível da "perspectiva dos participantes". Nesse
papel, o pesquisador fica com acesso limitado às relações estabelecidas fora do grupo ou às ligações
do grupo com o sistema social mais amplo. Por exemplo, se um pequisador quer conhecer o sistema
de ensino supletivo "por dentro", ele pode desenvolver seu trabalho como um participante total,
matriculando-se num curso supletivo como se fosse um aluno. Com isso ele pode avaliar o curso
por dentro, mas deixará de ter a visão do sistema como um todo, além, evidentemente, dos
problemas éticos implícitos no papel de "fingir" algo que não é.
O "participante como observador", segundo Junker (1971), não oculta totalmente suas
atividades, mas revela apenas parte do que pretende. Por exemplo, ao explicar os objetivos do seu
trabalho para o pessoal de uma escola, o pesquisador pode enfatizar que centrará a observação nos
comportamentos dos alunos, embora pretenda também focalizar o grupo de técnicos ou os próprios
professores. A preocupação é não deixar totalmente claro o que pretende, para não provocar muitas
alterações no comportamento do grupo observado. Esta posição também envolve questões éticas
óbvias.
O "observador como participante" é um papel em que a identidade do pesquisador e os
objetivos do estudo são revelados ao grupo pesquisado desde o início. Nessa posição, o pesquisador
pode ter acesso a uma gama variada de informações, até mesmo confidenciais, pedindo cooperação
ao grupo. Contudo, terá em geral que aceitar o controle do grupo sobre o que será ou não tornado
público pela pesquisa.
O papel de "observador total" é aquele em que o pesquisador não interage com o grupo
observado. Nesse papel ele pode desenvolver a sua atividade de observação sem ser visto, ficando
por detrás de uma parede espelhada, ou pode estar na presença do grupo sem estabelecer relações
interpessoais. Mais uma vez há questões éticas envolvidas na obtenção de informações sem a
concordância do grupo.
Outra dimensão em que a observação pode variar é quanto à duração do período de
permanência do observador em campo. Contrariamente aos estudos antropológicos e sociológicos,
em que o investigador permanece no mínimo seis meses e freqüentemente vários anos convivendo
com um grupo, os estudos da área de educação têm sido muito mais curtos.
Ao rever 51 estudos qualitativos da área de educação desenvolvidos nos Estados Unidos
de 1977 a 1980, Ross e Kyle (1982) concluíram que o período de observação nesses estudos variava
entre seis semanas e três anos, com ampla variedade dentro desse intervalo.
Em algumas pesquisas pode ser interessante haver diversos períodos curtos de
50
observações intensivas para verificar, por exemplo, mudanças havidas num determinado programa
ao longo do tempo. Em outros estudos pode ser mais adequado concentrar as observações em
determinados momentos, digamos no final de cada bimestre escolar.
A decisão sobre a extensão do período de observação deve depender, acima de tudo, do
tipo de problema que está sendo estudado e do propósito do estudo. Um aspecto que deve ser levado
em conta nessa decisão é que, quanto mais curto o período de observação, maior a probabilidade de
conclusões apressadas, o que compromete a validade do estudo. Por outro lado. um longo período
de permanência em campo por si só não garante validade. É preciso levar em conta outros fatores,
como a habilidade e experiência do observador, a possibilidade de acesso aos dados, a receptividade
do trabalho pelo grupo, a finalidade dos resultados etc.
O conteúdo das observações
Os focos de observação nas abordagens qualitativas de pesquisa são determinados
basicamente pelos propósitos específicos do estudo, que por sua vez derivam de um quadro teórico
geral, traçado pelo pesquisador. Com esses propósitos em mente, o observador inicia a coleta de
dados buscando sempre manter uma perspectiva de totalidade, sem se desviar demasiado de seus
focos de interesse. Para isso, é particularmente útil que ele oriente a sua observação em torno de
alguns aspectos, de modo que ele nem termine com um amontoado de informações irrelevantes nem
deixe de obter certos dados que vão possibilitar uma análise mais completa do problema.
Baseados em sua experiência de trabalho de campo, alguns autores, como Patton (1980)
e Bogdan e Biklen (1982) apresentam várias sugestões sobre o que deve ser incluído nas anotações
de campo. Segundo Bogdan e Biklen, o conteúdo das observações deve envolver uma parte
descritiva e uma parte mais reflexiva. A parte descritiva compreende um registro detalhado do que
ocorre "no campo", ou seja:
1. Descrição dos sujeitos. Sua aparência física, seus maneirismos, seu modo de vestir,
de falar e de agir. Os aspectos que os distinguem dos outros devem ser também enfatizados.
2. Reconstrução de diálogos. As palavras, os gestos, os depoimentos, as observações
feitas entre os sujeitos ou entre estes e o pesquisador devem ser registrados. Na medida do possível
devem-se utilizar as suas próprias palavras. As citações são extremamente úteis para analisar,
interpretar e apresentar os dados.
3. Descrição de locais. O ambiente onde é feita a observação deve ser descrito. O uso de
desenhos ilustrando a disposição dos móveis, o espaço físico, a apresentação visual do quadro de
giz, dos cartazes, dos materiais de classe podem também ser elementos importantes a ser
registrados.
4. Descrição de eventos especiais. As anotações devem incluir o que ocorreu, quem
estava envolvido e como se deu esse envolvimento.
5. Descrição das atividades. Devem ser descritas as atividades gerais e os
comportamentos das pessoas observadas, sem deixar de registrar a seqüência em que ambos
ocorrem.
6. Os comportamentos do observador. Sendo o principal instrumento da pesquisa, é
importante que o observador inclua nas suas anotações as suas atitudes, ações e conversas com os
participantes durante o estudo.
A parte reflexiva das anotações inclui as observações pessoais do pesquisador, feitas
durante a fase de coleta: suas especulações, sentimentos, problemas, idéias, impressões, pré-
concepções, dúvidas, incertezas, surpresas e decepções. As reflexões podem ser de vários tipos:
1. Reflexões analíticas. Referem-se ao que está sendo "aprendido" no estudo, isto é,
temas que estão emergindo, associações e relações entre partes, novas idéias surgidas.
2. Reflexões metodológicas. Nestas estão envolvidos os procedimentos e estratégias
metodológicas utilizados, as decisões sobre o delineamento (design) do estudo, os problemas
encontrados na obtenção dos dados e a forma de resolvê-los.
3. Dilemas éticos e conflitos. Aqui entram as questões surgidas no relacionamento com
os informantes, quando podem surgir conflitos entre a responsabilidade profissional do pesquisador
51
A entrevista
52
uma entrevista padronizada, que permita reunir em curto espaço de tempo a opinião de um grupo
numeroso de pessoas. Mas, quando se quer conhecer, por exemplo, a visão de uma professora sobre
p processo de alfabetização em uma escola de periferia ou a opinião de uma mãe sobre um problema
de indisciplina ocorrido com seu filho, então é melhor nos prepararmos para uma entrevista mais
longa, mais cuidada, feita provavelmente com base em um roteiro, mas com grande flexibilidade.
Há uma série de exigências e de cuidados requeridos por qualquer tipo de entrevista. Em
primeiro lugar, um respeito muito grande pelo entrevistado. Esse respeito envolve desde um local e
horário marcados e cumpridos de acordo com sua conveniência até a perfeita garantia do sigilo e
anonimato em relação ao informante, se for o caso. Igualmente respeitado deve ser o universo
próprio de quem fornece as informações, as opiniões, as impressões, enfim, o material em que a
pesquisa está interessada. Uma das principais distorções que invalidam freqüentemente as
informações recolhidas por uma entrevista é justamente o que se pode chamar de imposição de uma
problemática. Muitas vezes, apesar de se utilizar de vocabulário cuidadosamente adequado ao nível
de instrução do informante, o entrevistador introduz um questionamento que nada tem a ver com
seu universo de valores e preocupações. E a tendência do entrevistado, em ocasiões como essas, é a
de apresentar respostas que confirmem as expectativas do questionador, resolvendo assim da
maneira mais fácil uma problemática que não é a sua
Ao lado do respeito pela cultura e pêlos/valores do entrevistado, o entrevistador tem que
desenvolver uma grande capacidade de ouvir atentamente e de estimular o fluxo natural de
informações por parte do entrevistado. Essa estimulação não deve, entretanto, forçar o rumo das
respostas, para determinada direção. Deve apenas garantir um clima de confiança, para que o
informante se sinta à vontade para se expressar livremente.
Tratando-se de pesquisa sobre o ensino, a escola e seus problemas, o currículo, a
legislação educacional, a administração escolar, a supervisão, a avaliação, a formação de
professores, o planejamento do ensino, as relações entre a escola e a comunidade, enfim, toda essa
vasta rede de assuntos que entram no dia-a-dia do sistema escolar, podemos estar seguros de que, ao
entrevistarmos professores, diretores, orientadores, supervisores e mesmo pais de alunos não lhes
estaremos certamente impondo uma problemática estranha, mas, ao contrário, tratando com eles de
assuntos que lhes são muito familiares sobre os quais discorrerão com facilidade.
Será preferível e mesmo aconselhável o uso de um roteiro que guie a entrevista através
dos tópicos principais a serem cobertos. Esse roteiro seguirá naturalmente uma certa ordem lógica e
também psicológica, isto é, cuidará para que haja uma seqüência lógica entre os assuntos, dos mais
simples aos mais complexos, respeitando o sentido do seu encadeamento. Mas atentará também
para as exigências psicológicas do processo, evitando saltos bruscos entre as questões, permitindo
que elas se aprofundem no assunto gradativamente e impedindo que questões complexas e de maior
envolvimento pessoal, colocadas prematuramente, acabem por bloquear as respostas às questões
seguintes.
Quase todos os autores, ao tratar da, entrevista, acabam por reconhecer que ela
ultrapassa os limites da técnica, dependendo em grande parte das qualidades e habilidades do
entrevistador. É inegável, que há qualidades específicas que denotam o entrevistador competente,
tais como uma boa capacidade de comunicação verbal, aliada a uma boa dose de paciência para
ouvir atentamente. Mas é inegável também que essas e outras qualificações do bom entrevistador
podem ser desenvolvidas através do estudo e da prática, principalmente se esta partir da observação
de outro entrevistador, mais experiente, que possa inclusive funcionar como supervisor da prática
do iniciante. Não há receitas infalíveis a serem seguidas, mas sim cuidados a serem observados e
que, aliados à inventiva honesta e atenta do condutor, levarão a uma boa entrevista.
Um desses cuidados é o que alguns autores chamam de "atenção flutuante". O
entrevistador precisa estar atento não apenas (e não rigidamente, sobretudo) ao roteiro
preestabelecido e às respostas verbais que vai obtendo ao longo da interação. Há toda uma gama de
gestos, expressões, entonações, sinais não-verbais, hesitações, alterações de ritmo, enfim, toda uma
comunicação não verbal cuja captação é muito importante para a compreensão e a validação do que
54
foi efetivamente dito. Não é possível aceitar plena e simplesmente o discurso verbalizado como
expressão da verdade ou mesmo do que pensa ou sente o entrevistado. É preciso analisar e
interpretar esse discurso à luz de toda aquela linguagem mais geral e depois confrontá-lo com outras
informações da pesquisa e dados sobre o informante.
Um outro aspecto importante da entrevista merece ser abordado aqui, nesta visão geral
desse instrumento. Como registrar os dados obtidos? As duas grandes formas de registros suscitam
grandes discussões entre os especialistas e carregam consigo seus defeitos e virtudes. São elas a
gravação direta e a anotação durante a entrevista. A gravação tem a vantagem de registrar todas
as expressões orais, imediatamente, deixando o entrevistador livre para prestar toda a sua atenção ao
entrevistado. Por outro lado, ela só registra as expressões orais, deixando de lado as expressões
faciais, os gestos, as mudanças de postura e pode representar para alguns entrevistados um fator
constrangedor. Nem todos se mantêm inteiramente à vontade e naturais ao ter sua fala gravada.
Outra dificuldade grande em relação à entrevista gravada é a sua transcrição para o papel. Essa
operação é bem mais trabalhosa do que geralmente se imagina, consumindo muitas horas e
produzindo um resultado ainda bastante cru, isto é, onde as informações aparecem num todo mais
ou menos indiferenciado, sendo difícil distinguir as menos importantes daquelas realmente centrais.
Será necessária uma comparação desse material com a gravação para se estabelecerem as
prioridades, com o auxílio, é claro, da memória do entrevistador.
O registro feito através de notas durante a entrevista certamente deixará de cobrir muitas
das coisas ditas e vai solicitar a atenção e o esforço do entrevistador além do tempo necessário para
escrever. Mas, em compensação, as notas já representam um trabalho inicial de seleção e
interpretação das informações emitidas. O entrevistador já vai percebendo o que é suficientemente
importante para ser tomado nota e vai assinalando de alguma forma o que vem acompanhado com
ênfases, seja do lado positivo ou do negativo. Aqui se percebe bem a importância da prática, da
habilidade desenvolvida pelo entrevistador para conseguir ao mesmo tempo manter um clima de
atenção e interesse pela fala do entrevistado, enquanto arranja uma maneira de ir anotando o que é
importante. Essa maneira é específica de cada um, mas não representa nada de mágico ou
misterioso, podendo perfeitamente ser encontrada a partir de um acordo com o próprio entrevistado.
É muito importante que o entrevistado esteja bem informado sobre os objetivos da entrevista e de
que as informações fornecidas serão utilizadas exclusivamente para fins de pesquisa, respeitando-se
sempre o sigilo em relação aos informantes. É preciso que ele concorde, a partir dessa confiança, em
responder as questões, sabendo, portanto, que algumas notas têm que ser tomadas e até aceitando
um ritmo com pausas destinadas a isso.
É indispensável que o entrevistador disponha de tempo, logo depois de finda a
entrevista, para preencher os claros deixados nas anotações, enquanto a memória ainda está quente.
Se deixar passar muito tempo, certamente será traído por ela, perdendo aspectos importantes da
entrevista que lhe custou tanto esforço.
A escolha de uma ou outra forma de registro será feita em função de vários fatores,
como vimos, e também da preferência, do estilo de cada entrevistador. Em alguns casos é possível
até utilizar as duas formas concomitantemente. De qualquer maneira, é importante lembrar que, ao
nos decidirmos pela entrevista, estamos assumindo uma das técnicas de coleta de dados mais
dispendiosas, especialmente pelo tempo e qualificação exigidos do entrevistador. Quanto mais
preparado estiver ele, quanto mais informado sobre o tema em estudo e o tipo de informante que irá
abordar, maior será, certamente, o proveito obtido com a entrevista. Como em qualquer outra
técnica, é necessário verificar cuidadosamente se as informações pretendidas exigem mesmo essa
técnica ou se poderiam ser conseguidas por outros meios de aplicação mais fácil e menos cara.
55
TEXTO 6
PROCURANDO RESGATAR A CIÊNCIA
NOS SABERES POPULARES
Attico Chassot
in Alfabetização científica: questões e desafios para a educação.
Ijuí, UNIJUÍ, 2000
A Universidade
Quando se comenta a Universidade, mesmo vendo-a viver plenamente a pós-
modernidade, não se pode deixar de considerar (e isso não é feito apenas para falar na sua origem) o
seu surgimento simbiôntico à Igreja. A Universidade de Bolonha (tida como a primeira e também
nisso uma exceção, pois tinha a sua gestão inicial feita por estudantes) surgiu cm 1088 e a de Paris
entre 1150 e l170. Quando recordamos Pedro Abelardo (1079-1142)40 ensinando, podemos
imaginara Universidade de Paris em estado seminal. Como ela, depois surgiram à sombra das
catedrais a de Cambridge e a de Oxford. Isto numa visão ocidental, pois se considerarmos o mundo
islâmico, a universidade mais antiga é a de Al Qarawivin, na cidade de Fez, em Marrocos, fundada
em 859.
Para quem desejar conhecer mais da história da Universidade no mundo ocidental cristão
para visualizar, inclusive, as implicações das origens da Universidade junto à Igreja, com posturas
38 Atualmente o Professor Bazin dirige o Exploratorium um moderno Museu de Ciências em São Francisco, nos
Estados Unidos.
39 Excertos desta caracterização escrevi e foram publicados no verbete Saber acadêmico/ saber escolar/saber popular
do Dicionário Crítico da Educação da revista Presença Pedagógica v. 2, n. I I , p. 81-8-4. set/out. 1996.
40 ' O filme “Em nome de Deus", disponível em vídeo, conta a dramática história de Pedro Abelardo e Heloísa e
ilustra aspectos da nascente Universidade.
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medievais ainda hoje presentes, recomendo o livro As Universidades na Idade Média (Jacques Verger,
1990). Outro texto que traça um minucioso histórico das origens da Universidade é A Universidade:
das origens à Renascença (Reinholdo Ullmann & Aloysio Bohnen, 1994). Também recomendo para
uma visão geral da Universidade no mundo ocidental o texto de Ricardo Rossato (1998)
Universidade: nove séculos de história. Para uma análise da importância histórica da
Universidade há duas conferências reunidas no livro Um mundo sem Universidades? (Gerhard
Casper & Wilhelm von Humboldt, 1997). Para entender como diferentes universidades brasileiras
compreenderam sua tarefa, vale aproveitar-se da lucidez de um dos maiores educadores brasileiros
no livro A Universidade de ontem e de hoje, que reúne duas palestras de Anísio Teixeira (1998),
com uma introdução de Clarice Nunes.
Wilhelm von Humboldt, fundador da Universidade de Berlim, em um texto
considerado lapidar (escrito em 1810, embora só publicado a primeira vez em l899), em que
d ef i n i a, no século 19, como deveriam ser as instituições científicas em Berlim e que tem
importância para a própria estrutura da universidade moderna, iniciava assim:
deveria trazer no ataque à Astrologia, a frase de Lord Kelvin para ajudar na defesa do exclusivo
método cartesiano.
Ao contemplarmos como foi/é/será estruturado o conhecimento, é importante considerar
aquela que foi uma das mais fantásticas mudanças de paradigmas que vivemos: quando
migramos, no século l6, do geocentrismo para o heliocentrismo, começa ser construído um novo
entendimen to do Universo. A Matemática e a Física passam a ser as linguagens para as grandes
explicações. As certezas que vão se firmando, em mais de dois séculos, determinaram linguagens e
maneiras de ler o mundo, muitas das quais usamos ainda hoje, impondo-as quase
dogmaticamente43.
A produção de uma Ciência matematizada, asséptica, esotérica parece continuar a ser
objeto (talvez não intencional) das preocupações da Universidade. A escrita cifrada dos alquimistas
está ainda presente na linguagem científica. Parece que neste limiar do século 21 ainda precisamos
repetir o "Sapere aude!" kantiano numa luta igual contra as "trevas" da ignorância e pelo acesso ao
conhecimento. Onde, num quase paradoxo, se considerarmos o Século das Luzes, o despotismo se
exerce muito através da Ciência, que é tão ou mais esotérica do que aquela que era inacessível à
maioria de então.
Conta-se, por exemplo, que quando Newton publicou, cm 1867, Pliilosophiae Naturalis
Principia Mathematica - um dos livros mais célebres da história da humanidade - este talvez tenha
sido o livro lido por menos pessoas, por ter sido escrito em um latim abstruso e técnico. Um dos
seus biógrafos, citado por Downs (1977, p. 181), provavelmente exagere ao afirmar que não havia,
no último quartel do século 17, mais que três ou quatro homens vivos, capazes de compreender os
Príncipia. Hoje, quantos entendem a Ciência, mesma se escrita em vernáculo?
Mais de 100 anos depois que Newton publicou seu revolucionário livro é que ocorre
na Química a chamada revolução lavoisierana, com novas concepções de combustão e com a
associação desta à respiração animal: mais uma vez houve mudanças de postulados que eram
universalmente aceitos. Setenta anos depois de Lavoisier publicar o Tratado elementar de Química (l789),
é a vez de ocorrer uma grande revolução na Biologia, com a publicação por Darwin de sua famosa obra A
origem das espécies (1859), que determina modificações de paradigmas, abalando posturas seculares.
A história poderia prosseguir, com a lembrança de muitos acertos e desacertos. Se
quiséssemos, por exemplo, comparar a Ciência no entorno da última virada de século, há cem
anos, com esta dos dias atuais, a síntese que melhor descreveria um momento e outro é uma
situação aparentemente paradoxal: o abandono das certezas do final do século l 9 para viver as
incertezas deste final de milênio. Vivemos constantemente tendo muitas de nossas convicções
a bal ad as , por exemplo, com o surgimento de novas teorias sobre a criação do Universo ou com
a hipótese de vidas em outros planetas.
Ao olharmos a Ciência, não podemos deixar de reconhecer o quanto há de
possibilidades novas representadas pela Matemática - que hoje realiza em frações de segundo,
cálculos nos quais nossos ancestrais consumiam muitas horas ou dias; pela Física - com as cada
vez mais fantásticas conquistas que determinam que vivamos a era digital, onde não
transportamos mais átomos e sim bits; pela Química - que, se não realizou o sonho dos alquimistas
na conquista do elixir da longa vida, colabora cada vez mais na busca da saúde e já desenvolve um
mundo maravilhoso de novos materiais que são mais valiosos que o cobiçado ouro alquímico; e
pela Biologia - e nesta mais acentuadamente pela (genética, que já vimos em outras referências
tão poderosa - onde parece ser ficção científica a já realização de exames em óvulos e
espermatozóides antes da fecundação. Assim, ao olharmos a Ciência vivemos o paradoxo do
encantamento e da impotência. Mas estes múltiplos olhares não podem deixar de nos chamar a
atenção para o fato de que esta Ciência ainda está em construção. Em nossos dias, por exemplo, ainda se
43 Antecipo que no capítulo 18, quando comentar o caso Sokal. este será um tema revisitado.
60
Os saberes populares
Assim como resumi meus comentários sobre a Ciência da Academia, também não vou
fazer aqui, uma ampla discussão do saber popular, ou, se nos despirmos de alguns preconceitos, talvez
ousássemos dizer: ciência popular. Primeiro gostaria de distingui-lo do chamado senso comum.
Também aqui não farei comentários sobre a teoria da mudança de perfis conceituais, lema que hoje
na Academia merece estudos muito significativos.
Marcados pelo senso comum é que nós referimos que o sol nasce e que o sol se põe. Aliás
é muito bom, já disse alguém, que não sejamos sempre cientistas. É até mais poético divagar usando o
senso comum para olhar, às vezes, a natureza do que querer sempre lê-la com o racionalismo
cartesiano ou buscar concluir sobre qualquer fenômeno com empirismo baconiano. Continuemos a
admirar as crianças colocando cobertores nas bonecas para que não passem frio ou até nós mesmos
nos agasalhando para nos protegermos do frio.
61
Alice Lopes tem publicado vários textos44 onde, iluminada na epistemologia de Bachelard,45-
46
mostra como o conhecimento científico se dá contra, e não (o destaque é da autora), a partir do senso
comum cotidiano.
Os saberes populares são os muitos conhecimentos produzidos solidariamente e, às vezes,
com muita empiria. Aqui já temos um preconceito: porque o empirismo é, também, sinônimo de
charlatanismo. Os conhecimentos de meteorologia que os homens e mulheres possuem são resultados
de uma experimentação baseada na observação, na formulação de hipóteses e na generalização. O
caboclo que sabe explicar melhor do que o acadêmico por que uma desfilada de correição47 é sinal de
chuva tem um conhecimento científico resultante de observações e transmissões construídas solidariamente,
às vezes, por gerações. Exemplos iguais se podem apontar na chamada medicina popular, onde se
encontram especialistas em traumatologia (os tão populares consertadores de ossos de nosso meio rural), nas
práticas agrícolas, que incluem conhecimentos que a Academia colocaria no ramo da genética. Lopes, no texto
antes referido (p. 9), afirma que “os saberes populares são os saberes associados às práticas cotidianas das classes
destituídas de capital cultural e econômico, enquanto o senso comum abrange saberes quie se difundem por todo
tecido social.” Isto é, os ricos são tão geocêntricos quanto os pobres e até se agasalham mais contra o
frio. Talvez por não terem as mesmas necessidades que os desprovidos do capital econômico e cultural,
são menos produtores de saberes - que levam um rótulo preconceituoso de “populares”.
Incluo-me entre os preconceituosos quando falo em resgate de saberes populares. Nós, os
bons, vamos aos desvalidos e resgatamos - com todas as conotações que tem esse verbo - os saberes e
em troca oferecemos nossa Ciência asséptica e imaculada, onde incluímos um cuidadoso modo de usá-
la a fim de que não a desvirtuem com um uso inadequado.
O saber popular- é aquele que detém, socialmente, o menor prestígio, isto é, o que resiste a
menos códigos. Aliás, popular pode significar vulgar, trivial, plebeu. Talvez devêssemos recordar que
este saber popular, em algum tempo, foi/é/será um saber científico.
Resta-nos questionarmos por que a validação de saberes populares pela Academia é
acompanhada da transferência dos mesmos para classes de mais poder econômico, com a usurpação
daqueles que os produziram e detinham. No Brasil temos este aspecto muito presente com a recente
polemica das patentes do patrimônio genético de plantas medicinais.
A Escola
Aqui, também, não vou comentar a Escola, e sim os chamados saberes escolares. Todavia,
como fiz quando comentei a Universidade, é fácil ver na Escola atrelamentos e posturas que muito têm
a ver com sua história. Paradoxalmente, no mundo ocidental, o surgimento da Escola é bem posterior
à Universidade. Esta vimos ser do século 11, a Escola, na sua concepção como a temos hoje, é uma
das mais salutares consequências da Reforma Protestante do século 16. Somente a partir de então se
fala, pela primeira vez, cm educação universal com a implantação da escola primária para todos.
Martinho Lutero (1483-1546) dirige-se em 1524, quando a Reforma não tinha sete anos, por carta,
aos conselheiros de todas as cidades da nação alemã para que instituam e mantenham escolas, pois
indicava que a educação para todos era dever do Estado. Um exemplo da reação à pratica
protestante de fazer Educarão, no mundo católico, foi a fundação da Companhia de Jesus, em 1534,
44 Em um texto mais recente [Alice Ribeiro Casimiro Lopes, Ensino de Química e conhecimento cotidiano, 20ª Reunião da
Sociedade Brasileira de Química. Poços de Caldas, 24 a 27 de maio de 1997; os artigos desta reunião estão disponíveis em
CD produzido pela SBQ] a autora faz uma referência a publicações sobre esse tema.
45 Gaston Bachelard (1884-1962). filósofo francês, que teve na Química sua formação acadêmica inicial, é considerado um
dos fundadores da moderna epistemologia.
46 Quando se refere o uso da cpistcmologia bachclardiana, é preciso recordar uma das pioneiras na busca de espaços para a
Educação Química brasileira: Letícia Tarquínio de Souza Parente (1921 -1991), que escreveu entre outras obras, Bachelard e
a Química (Edições Universidade Federal do Ceará, 1990, 144 p).
47 Correição ou formiga-correição é designação comum dos insetos himenópteros da família dos dorilídeos, gênero
Eciton Latreille, capazes de realizar grandes migrações, em que milhares de obreiras percorrem vastas extensões de
território durante algumas horas. ou mesmo dias.
62
por Inácio de Loyola (1491-1556). Os jesuítas, antes de completar meio século, já tinham quase
duas centenas de colégios espalhados pelo mundo.
Também aqui refiro algumas obras que poderão trazer mais esclarecimentos para quem
quiser conhecer um pouco da história da Escola e de quanto o Renascimento foi momento
importante para que se definissem concepções que ainda hoje marcam as nossas salas de aulas. Um
livro que tem uma excelente descrição que se inicia com a educação no Egito e na Grécia antiga é a
História da Educação, de Mário Manacorda (1992). Para uma análise sócio-histórica de alguns
momentos decisivos da evolução escolar do Ocidente vale ler A produção da Escola: produção da
sociedade, de André Petitat (1994). Um texto mais didático, indicado inclusive para o ensino médio,
é História da Educação, de Maria Lúcia Aranha (1992).
O saber escolar é o saber que a Escola transmite, e a ação de transmitir já descaracteriza
este saber, pois se estabelece a diferença entre o produzir e o transmitir. A escola defronta-se com
duro questionamento (que ela geralmente desconhece) quando se diz que a mesma não é produtora
do conhecimento e sim reprodutora ou apenas transmissora do saber. A Escola não se diminui por
transmitir o saber, se buscar fazê-lo dentro de uma maneira (re)contextualizada.
Usualmente a Escola costuma t r a n s m i t i r um saber que ela não produziu (e, às vezes,
nem o entende), mas o corteja, principalmente, porque traz o rótulo da validação acadêmica. Por
outro lado, também não entende - não sabe explicar - os saberes que são próprios da comunidade
onde está inserida e por isso os rejeita, até porque estes não são reconhecidos pela Academia,
pois esta, em muitas situações, também não os sabe explicar.
Há interrogações que são decisivas: como, historicamente, os atuais conteúdos
ensinados na Escola - hoje ensinados quase universalmente - foram se constituindo e passaram a
ser considerados como os necessários para integrar a formação científica do cidadão? Como o
privilegiamento, nos currículos escolares, de determinados conteúdos se relaciona com os princípios
de uma educação crítica? As respostas podem mostrar a seleção privilegiada de determinados
conteúdos, que foram assim definidos como importantes para a manutenção de um grupo dominante.
Verifica-se, que usualmente professoras e professores não sabem quem selecionou determinados
conteúdos nem por que estes fazem parte do currículo. Transmitem o que os outros selccionaram,
com propósitos que às vezes desconhecem. Assim, o saber escolar é também, e acima de tudo, um
saber político.
Precisamos estar continuadamente atentos, para o quanto os saberes escolares sejam
caracterizados como produzidos pela e para a escola e não, como transmitidos pela escola. As
discussões sobre saberes escolares, como as feitas por Alice Casimiro Lopes, em estudos antes
referidos, têm procurado ressaltar seu caráter de produção, ainda que seja uma produção que não se
inicia na escola, não serve aos interesses da maioria da população e é condicionada pelos fatores
excludentes como os de alguns exemplos que antes se referiu.
Ao observar certos saberes escolares, verifica-se como determinados conteúdos transitam no
tempo sem ser questionada sua validade. Ao olhar-se como foi construída a história social do currículo
dos diferentes saberes que a Escola ensina, verifica-se o quanto esses não têm um enraizamento na
realidade local e temporal da Escola, sendo usualmente conteúdos que se prestam para manter a
dominação. Repito uma recomendação que acho muito válida: conhecermos a história (social) de
nossas disciplinas. Muitos desse conteúdos, com o falso rótulo de necessários para a formação do
espírito científico dos estudantes, organizam-se cm uma determinada disciplina escolar, que muitas
vezes se caracteriza como uma disciplina esotérica e que, por seu hermetismo, se torna
(propositalmete) inacessível.
Assim a Escola, muito mais que ser vista como reprodutora do conhecimento, deve ser
pensada nas suas amplas possibilidades de fazer uma Educação crítica. Essa é a nossa responsabilidade
como professoras e professores.
63
Buscando os sabeáes
Após ser feita uma análise crítica dos diferentes saberes e das posturas diante dos mesmos
os alunos procuram ampliar estas fontes e definem o local que merecerá a sua atenção. Definido o local,
procuram verificar "o saber" no local de sua ocorrência através de observações que devem ser
acompanhadas de muito respeito pelo que está sendo observado. Sobre isso há bons textos de antropologia que
mereceriam ser previamente estudados. Observado o saber, há um retorno às fontes do saber institucionalizado
para procurar explicá-lo e tentar modelá-lo, segundo as explicações que são consagradas. Há nesta etapa um
constante ir e vir, pois muitas vezes não são fáceis as explicações
Para este estudo são propostas algumas indicações metodológicas, tendo presente os
pressupostos teóricos de Thiollent, inicialmente referidos. A interação entre o pesquisador e as pessoas implicadas
na investigação é muito discutida em sala de aula, principalmente no resguardo que se deve tomar buscando uma
"proteção mútua". Há uma preocupação de que ocorra um despir-se de preconceitos. Aqui, também, existe uma ação
recíproca, pois os preconceitos estão na escola e nas comunidades onde se buscam os saberes. Deve-se estar atento,
pois há a possibilidade de conflitos entre uma e outra postura.
Nesta etapa cabe ainda uma outra discussão, que deve acontecer em classe: por que se vai
resgatar determinado saber? Thiollent fala nas soluções a serem encaminhadas, sob forma de ações
concretas, Á partir das interações com a comunidade pesquisada. Os estudantes, usualmente, tendem a
enxergar no processo a busca de uma nova alternativa para ensinar determinado conteúdo que até oferece
um estímulo para a tarefa. Mas não é isso. Deve ser muito mais. Deve haver a busca de solução de
problemas concretos, mas não como um bom samaritano que vai levar o seu saber ou sua tecnologia aos mais
desvalidos culturalmente. Esta talvez deva ser a maior reconversão que devemos fazer em nossa
prática de pesquisa. Qual o retorno que estamos dando à Comunidade daquilo que pesquisamos?
Quanto fazemos as Comunidades pesquisadas apenas sujeitos de nossas investigações? Qual a
valorização que têm os homens e as mulheres que não informam sobre os riscos de um desabamento?
Realizado o trabalho de campo, onde há observações, entrevistas, documentação com
recursos audiovisuais, segue-se uma análise que pode conduzir o pesquisador a voltar à realidade para
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investigar aspectos que só adquirem importância quando se faz o estudo comparativo entre o saber
institucionalizado e o saber popular. Então, na análise da decodificação do que foi feito, elabora-se um
modelo usando a Ciência Química, surgindo geralmente o confronto entre como a comunidade resolve o
problema e como a ciência institucionalizada explica ou não a referida prática.
A partir desta etapa podem decorrer duas situações: uma para a escola e outra para a
comunidade.
Na Escola - Qual a contribuição que a modelagem dos saberes resgatados pode oferecer para o
ensino fundamental e médio e mesmo para o ensino superior? É preciso verificar se os saberes
resgatados podem ser ensinados apenas através dos conteúdos usuais ou se a pesquisa realizada oferece
novos conteúdos a serem trabalhados. Deve-se estar atento para como os alunos do ensino fundamental e
médio, que pertencem à comunidade onde o saber foi resgatado, podem ter uma visão mais depurada
de mitos e falsos conceitos. Como a Universidade pode deixar de voltar as costas para o saber
popular estudando a modelagem proposta?
mercado carvão para churrasco com utilização de uma tecnologia nada semelhante àquelas usadas
pelos carvoeiros. Foi trazida para a sala de aula toda uma descrição de uma carvoaria, adequadamente
documentada. Houve surpresas: por que a lenha não queima até reduzir-se à cinza? Por que o processo
leva vários dias? Como controlar a entrada de ar? Como "secar" o carvão? Por que há diferenças entre
os carvões de diferentes árvores? Por que há madeiras que "não queimam"? Verificou-se, mais uma
vez, como se dá pouco crédito às tecnologias alternativas. Havia inúmeros processos químicos para os
quais não se encontrou, imediatamente, uma solução adequada com os conhecimentos químicos de que
se dispunha. Foram levantadas várias hipóteses e construíram-se diferentes modelos para explicar os
processos. Houve problemas para os quais os carvoeiros queriam explicações, ou melhor, queriam ver
resolvidos. Houve também uma preocupação de ver o quanto a Química estava presente nos
conceitos da comunidade, onde se estudava o fabrico de carvão.
Parece que não duvidamos de uma Ciência que se constrói fora da Academia. Não há,
também, necessidade de trazê-la para a Universidade para fazer sua validação. No capítulo seguinte -
Procurando um ensino de Ciências fora da sala de aula -, admitindo que se ensina e se aprende fora da
Escola, vamos buscar encontrar mais saberes populares e com eles discutir possibilidades de
aumentarmos a alfabetização científica.
66
TEXTO 7
Quando meu pai era ainda menino, ganhou uma caixa de isopor.
Na época eles moravam no sítio, no interior de Santa Rosa,
no Rio Grande do Sul.
Aquela caixa era uma novidade. Meu pai fora sempre muito caprichoso.
Ele guardava e cuidava daquela caixa com muito carinho. Usava-a para
guardar injeções para vacinar o gado. Com o passar do tempo a caixa foi
sujando. Por mais que ele lavasse a caixa não limpava.
Certo dia, alguém disse-lhe que se ele lavasse com gasolina a caixa ficaria
como nova. Como no sítio não havia gasolina, ele pegou o cavalo e
algumas economias que guardava
e foi até a vila, a uma distância
de 15 km, comprar gasolina.
Quando retornou foi lavar a caixa;
à medida que ia lavando a caixa ia se desmanchando.
Resultado: a caixa derreteu toda e ele chorou por três dias.
Quando meu pai contou essa história em minha casa,
fiquei surpresa, porque não entendia o que havia acontecido.
Descobri que o isopor é um derivado do petróleo
e a gasolina tem um efeito de dissolver os derivados
do petróleo como graxas, tintas, óleos...
Preciso confessar que não consigo imaginar bem qual seja a expectativa do leitor diante
do título que dei a este capítulo. Confesso que estou com uma página quase em branco, apenas
seduzido por uma idéia que se fez título. Em geral temos um texto e depois fazemo-lo deixar de ser
pagão. Aqui o batizado ocorreu num quase embrião. Preciso afirmar que apenas se avolumam
algumas idéias, bastantes desordenadas, sobre o que eu gostaria de escrever aqui. Elas se fazem
fortes em função do capítulo anterior. Mas só são idéias. É preciso materializá-las na escrita.
O texto epigrafado vem quase em meu socorro. Ele é uma transcrição, ipsis verbis, de
relato de Joseli A. Nunes, que foi minha aluna em quatro das etapas em que estive na Sexta Turma
de Magistério do ITERRA48, que assim fala de seus fazeres: "Quanto à minha atividade, faço parte
do setor de educação do MST no estado do Paraná, e contribuo com as atividades relacionadas à
educação no assentamento Ireno Alves dos Santos e no assentamento Marcos Freire em Rio Bonito
do Iguaçu - PR. Nas dois assentamentos temos 1.604 famílias assentadas, dez escolas de Iª a 4ª
série, duas escolas de 5ª a 8ª e com projetos para mais três escolas de 5a a 8a e uma escola de 2º
grau, ainda para 1999." Quando se lê o relato de um bom exemplo de um ensino de Ciências fora
da sala de aula e se contempla a dimensão das ações da Joseli, parece que devamos valorizar estes
aprenderes que ocorrem, tão significativamente, fora da sala de aula.
Este capítulo, assim, quer concorrer na discussão da importância desse ensino e de
quanto o mesmo merece ser aproveitado. Não há, necessariamente, que trazê-lo para a sala de aula.
Mas é preciso que concorra para a desejada alfabetização científica.
No capítulo anterior se comentou, o quanto há saberes que, muitas vezes, não são
48 Nos capítulos 15 e 16 expando minhas considerações sobre ações que ocorrem ITERRA
67
legitimados pela Universidade. Como há os vetados pela Academia, criando-se novos índices49.
Logo este texto pode ser considerado decorrência do capítulo anterior. Não apenas uma decorrência,
uma ampliação. Isso é a maior exemplificação sobre onde e como esses saberes se fazem ensino.
Esse deverá ser o condutor das incursões ao mundo externo da sala de aula a partir de agora.
Quando, em diferentes momentos, se referiu à inversão das fontes de informação, com a
perda do lugar privilegiado de detenção do conhecimento que tinha a Escola, se desconheceram,
entretanto, os múltiplos ensinamentos que ocorrem fora da sala de aula. A consideração desses
ensinamentos desaparece também por aquilo que se mostrou ser a marca da globalização da sala de
aula, quando, no capítulo 7, se alertou para os chamados currículos ilegais. Aqui, a sufocação
(permito-me enfatizar a ação que vejo ocorrer com algumas produções de conhecimentos:
sufocação) deste ensinar fora da sala de aula ocorre por outras razões.
Esse valioso aprender na chamada Escola da Vida corre o risco de desaparecer ou
porque modernas tecnologias suplantam (ou incorporam ou se adonam de) conhecimentos ditos
populares ou porque, como já se viu, estes não validados pela Academia, passam a merecer
descrédito. Uma e outra das situações são ameaças à extinção destes saberes. Há áreas em que a
primeira das situações é mais evidente (medicina caseira, controle genético de sementes...). Outras
há que, pelo fato de a Academia não as saber explicar (meteorologia, astrologia, por exemplo), são
simplesmente ridicularizadas ou até vetadas.
Pessoas detentoras de riquezas contidas nos saberes populares, estão disponíveis para
que conheçamos o que elas sabem. Usualmente não oferecem dificuldades para a disseminação, pois
consideram que seus conhecimentos; por terem sido produção coletiva, são da Comunidade. Em
geral, são pessoas de larga experiência construída numa continuada empiria. Estes mestres,
detentores de uma diplomação outorgada pela prática sempre continuada superam, muitas vezes, a
Escola na capacidade de ensinar. Lembro sempre de uma passagem muito conhecida de José
Hernandez no Martim Fierro, o épico gauchesco, onde o velho Vizcacha, ladino corno animal que
lhe empresta o nome, que ao dar conselhos ao filho de Fierro diz algo que sempre cito, para
justificar porque me arvoro no direito de dizer certa coisas. "El primer cuidao del hombre es
defender el pellejo; lleváte de mi consejo, fijáte bien en lo que hablo: el diablo sabe por diablo,
pêro más sabe por viejo. "50 ou simplesmente "O diabo tem mais de diabo por ser velho do que por
ser diabo.” Chamamos isso de a voz da experiência.
Os amautas - a comparação é com os sábios incas que amealhavam os conhecimentos
das gerações e com o seu ensino os perpetuavam - são muitas vezes os nossos vizinhos, desejosos
de uma prosa. Ficam orgulhosos quando podem contar para alguém, mais letrados que eles, seus
saberes. As vezes, é preciso procurá-los. Um lugar onde ainda estão muito presentes é nas feiras,
onde trazem o resultado de seu lavor, às vezes, secular, em outras situações, recém-descoberto. Aí
se comprazem, muitas vezes, no descrever as técnicas que usam nas suas produções. O pescador
solitário, que encontramos em silenciosas meditações, sabendo onde e quando deve jogar a tarrafa,
também tem saberes importantes. A lavadeira, que sabe escolher á água para os lavados, tem os
segredos para remover manchas mais renitentes ou conhece as melhores horas de sol para o coaro.
A parteira, que os anos tornaram doutora, conhece a influência da lua nos nascimentos e também o
chá que acalmará as cólicas do recém-nascido. A benzedeira não apenas faz rezas mágicas que
afastam o mau-olhado, ela conhece chás para curar o cobreiro, que o dermatologista diagnostica
como herpes-zoster. O explorador de águas, que indica o local propício para se abrir um poço ante o
vergar de sua forquilha de pessegueiro, tem conhecimentos de hidrologia que não podem ser
simplesmente rejeitados.
Quando essas pessoas passarem, há conhecimentos que passarão. E passarão
49 Aqui a metáfora é com o Index librorum prohibitorum ou catálogo dos livros proibidos pela Igreja, pois os saberes
não-avalizados pela Academia tem sua circulação desaconselhada
50 Neste texto há palavras em "argentino" e em "criollo" e não somente em espanhol de Espanha. Uma tradução livre
para o mesmo pode ser: O primeiro cuidado de um homem é defender a pele: usa de meu conselho. Presta bem
atenção no que falo: o diabo sabe por diabo, porém mais sabe por velho.
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51 Cario GINZBURG. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ISBN 85-85095-22-9
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-Artesanato em couro: um dos Iocus de muitos saberes que se inicia com a seleção e
depois com a etapa altamente rica em conhecimentos do curtimento do couro. A escolha de
tanantes54 naturais tem muita ciência. Hobsbawm (1998) tem um excelente capítulo sobre o ofício
de sapateiro, nos encantando com a descrição de algumas práticas que também estão em extinção.
Uma das cenas mais impactantes a que assisti foi quando assisti o trabalho dos curtidores de couro
em Marrocos. Há técnicas ainda em uso, especialmente aquelas de curtir e de colorir o couro, que
nos remetem a pelo menos dois mil anos antes do presente.
- Prevenção de insetos: há pesquisas que desenvolvem um altamente recomendável
controle biológico de insetos com predadores ou com o uso de certas flores de cheiro que repila
insetos. Aqui, como exemplificação, poderia se recordar o costume, aparentemente apenas com fins
estéticos, de plantar os medicinais gerânios nas floreiras junto a janelas. Muito provavelmente
emanações de gerânio55 repilam mosquitos e moscas. Há também o conhecimento da existência de
algumas variedades de flores com odores desagradáveis, como, por exemplo, os tagetes,56 que, ao
exalarem certos cheiros, afastam as mesquinhas que colocam larvas, e certos frutos, como o
pêssego, a ameixa; daí a recomendação de plantá-las junto aos pomares.
- Melhoramento genético animal e vegetal: esta é, muito provavelmente, uma das áreas
nas quais o saber popular foi mais dizimado, pois havia/há interesses econômicos para que os
mesmos desapareçam. Poderia elencar muitos exemplos, como a implantação das chamadas
sementes híbridas ou a situação similar das matrizes genéticas de aves domesticas ou de diferentes
variedades de gado. Quanta aprendizagem havia entre os colonos quando faziam, por exemplo, a
seleção e o cruzamento de sementes de milho: tudo isso foi perdido com a imposição do chamado
milho híbrido. Quantos estudos empíricos se fazia para determinar de qual galo se escolheria para
reprodutor e' que ovos se selecionariam para o choco; a dominação das chamadas galinhas de
aviário terminou com isso. O mesmo se poderia dizer de muitas outras espécies animais e vegetais.
Aqui também se podem adicionar os conhecimentos envolvidos, por exemplo, na área da zootecnia,
com a inseminação artificial.
- Polinização e enxertia: nestas duas áreas da produção, especialmente no campo da
fruticultura, há muitos conhecimentos envolvidos. Por exemplo, o uso de abelhas (há a prática de
apiários móveis para tal) para a polinização implica o conhecimento da fertilização e reprodução.
Na enxertia, um assunto que pode ser aproveitado é a produção de clones (ou a chamada clonagem
de vegetais), numa reprodução assexuada. Isso ocorre, por exemplo, na produção de mudas a partir
de folhas ou estacas, por exemplo na obtenção de novas mudas de violetas ou na plantação do
aipim.
- Floricultura e jardinagem: no item anterior se fez referência aos conhecimentos
genético de produção de variedades de flores. Aqui se poderiam acrescentar algumas observações
sobre práticas de largo uso destinadas à conservação de flores cortadas. Há ainda saberes
acumulados na busca de modificações de cores pela variação do pH do solo (no cultivo de
hortências que exigem solos leves, silicosos, desprovidos de calcário, e, onde em função do pH
destes, as várias espécies cultivadas produzem flores azuis, brancas ou rosadas) ou pela adição de
anilinas à água após o corte.
- Maturação e conservação de frutas: há saberes para a definição do grau de maturação
da fruta para decisões relativas à colheita, como também de avaliações das modificações dos teores
de açúcares em função das chuvas. A previsibilidade de uma boa safra de vinho, por exemplo, tem
muitos saberes envolvidos. Há inclusive conhecimentos de sustação temporária do processo de
54 Substâncias que possuem tanino: classe de substâncias adstringentes encontradas em certos vegetais por exemplo a
acácia negra, muito cultivada no Rio Grande do Sul, que dão coloração azul com sais de ferro, usadas no curtimento
de couros, e também como mordentes.
55 Geraniol é um álcool terpênico [fórmula: C10H18O.] encontrado em diversos óleos essenciais, com odor de rosas,
líquido, incolor.
56 Tagetes são ervas da família das compostas (Tagetes patula), originária do México, de folhas subdivididas em vários
segmentos, capítulos grandes e maciços, de cor amarela imensa, e odor forte e desagradável; cravo-de-defunto.
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57 Maricá ou espinho-de-maricá é um arbusto de caule tortuoso, da família das leguminosas (Mimosa sepiaria), dotado
de propriedades melíferas, cujas flores são alvas, numerosas, dispostas em capítulos, e cujos frutos são vagens:
espinheira, espinho-de-cerca, espinho-roxo, maricá.
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5 - BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Maria da Conceição Xavier de. Previsões do tempo: ecossistema e tradição. Galante,
nº 14, vol. 2, Ago. 2002. Fundação Hélio Galvão, Natal, RN.
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DANTES, Maria Amélia M. A implantação das ciências no Brasil - um debate historiográfico.
In Alves, José Jerônimo A. Múltiplas faces da história das ciências na Amazônia. Belém, UFPA,
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KNELLER, George F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro/São Paulo,
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Zahar, 1994.
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