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Fenomenologia e Literatura:

O “pensamento em imagens” de Albert Camus

Pedro Gabriel de Pinho Araújo

Universidade de Brasília

Resumo: Nesta apresentação será traçado um percurso da Fenomenologia à Literatura


através da obra de Albert Camus. Partindo do reconhecimento de parentesco entre as
correntes de pensamento fenomenológica e existencialista, buscamos aqui os pontos de
contato entre esses dois projetos na obra O mito de Sísifo de Albert Camus. Nesse
sentido, acreditamos que o “pensamento em imagens”, apresentado nesse livro e que
designa um aspecto do “raciocínio absurdo” camusiano se encontra nessa intersecção.
Descrevendo-o através da crítica ao projeto de conhecimento de uma realidade objetiva,
a ênfase nas experiências subjetivas, o primado da consciência e outros, pretendemos
explorá-lo e situá-lo nessa relação de parentesco. Como conclusão, buscamos
estabelecer como e porque a Literatura seria lugar privilegiado desse pensamento.

Palavras-chave: Camus, existencialismo, subjetividade, imagem, literatura.

“Pensar já não é mais unificar, tornar familiar a aparência sob o rosto de


um grande princípio. Pensar é reaprender a ver, a ser atento, é dirigir a
própria consciência, é fazer de cada ideia e de cada imagem, à maneira
de Proust, um lugar privilegiado.”

Camus, O Mito de Sísifo


Fenomenologia e Existencialismo

A presente comunicação foi elaborada a partir da parte de um projeto mais


amplo e ainda em andamento de uma dissertação em torno da ideia do “papel do
escritor” em Camus, que buscava a definição de uma ética de criação na obra desse
autor. Antes de tudo, também é importante frisar que Camus, por uma série de razões
que não cabem aqui, recusa o rótulo de existencialista. Portanto, devemos esclarecer que
o uso desse termo é feito aqui em um sentido mais amplo, na direção do que Jaspers
chamou de filosofia da existência.

Justificamos a aproximação aqui feita ao projeto fenomenológico husserliano na


identificação que o próprio Camus faz com sua interpretação desse projeto ao seu
próprio1, o que ele chamava então de “raciocínio absurdo” (que enquanto tal não nos
interessa aqui). Essa identificação é justificada em função do reconhecimento do
primado do subjetivo na apreensão da realidade, em oposição ao projeto de
conhecimento de uma realidade objetiva. Enquanto boa parte da tradição filosófica está
voltada ao conhecimento do mundo, das condições de apreensão e limites desse
conhecimento, o projeto fenomenológico busca uma exploração da percepção mesma,
enquanto experiência da consciência. Essa consciência, que é deflacionada de
substância (em comparação a proposição cartesiana) é então definida em função de uma
intencionalidade (não no sentido de finalidade, mas de direção, como diz Camus2).

O existencialismo em geral compartilha dessa noção de consciência e a aplica no


contexto da situação humana. Em oposição a antropólogos, psicólogos e outros que,
enquanto ciências, buscam verdades objetivas a respeito desse “humano”, o
existencialismo em geral busca deflacionar tal noção, reduzindo-a ao mínimo, abrindo
assim o espaço para o individuo, seus projetos, escolhas, intenções (aqui sim no sentido
de finalidade), etc. Podemos notar claramente a proximidade do projeto fenomenológico
e existencialista, diferentes talvez apenas com relação a seus objetivos. Mesmo que em
um sentido completamente diferente da tradição filosófica anterior a ela, a
fenomenologia em geral ainda está interessada em aspectos relacionados ao
conhecimento do mundo - epistemológicos, enquanto o pensamento existencialista,
grosso modo, tem finalidades de cunho mais prático - éticos.

1
In O mito de Sísifo, páginas 56 e 57.
2
Ibdem.
O Pensamento em imagens

Tendo tais finalidades me mente, gostaria de definir então o que Camus chama
de um “pensamento em imagens”. Para tanto, devemos ressaltar que a abordagem
também aqui desenvolvida é adequada à própria postura do autor que, mesmo em seus
ensaios filosóficos (ele também é conhecido por seus romances), tem um modo de
exposição onde seus conceitos não são definidos claramente em parte alguma, mas
desenvolvem-se em uma narrativa construída, justamente, através de imagens.

Como Camus, tomamos o termo imagem em um sentido figurado, porém


simples de representação de uma determinada coisa. Ou seja, algo observável e que
deve ser descrito a partir de um determinado ponto de vista - sem a pretensão à
objetividade3. Essa humildade do pensamento é consequência direta da pressuposição
de que tal observação é sempre feita de um determinado ponto de vista, o locus da
consciência.

Portanto, interessa-nos a experiência comum, ao mesmo tempo em que pessoal,


de cada indivíduo frente a um determinado fenômeno. Nota-se que, apesar da evidente
influência, não tratamos aqui de fenomenologia no sentido estrito da palavra, mas antes
de um projeto interpretativo das experiências de fato centrado na experiência subjetiva.
O conceito de imagem, no entanto, parece coincidir em larga medida com o conceito de
fenômeno, com a diferença que o termo imagem dá um maior peso ao aspecto
representativo (ficcional talvez) do objeto tratado.

Nesse sentido, talvez até poderíamos definir um tal pensamento enquanto


fenomenológico, desde que tomássemos a acepção de fenomenologia de Scheler que a
define a como uma atitude antes que como um método4, talvez então poderíamos definir
o pensamento em imagens propriamente como uma atitude fenomenológica.

Na situação específica do discurso ou da escrita, como meio que aqui dispomos,


essa atitude deve significar que, antes de definir, tentaremos descrever ou “enumerar”
sem a pretensão de esgotar. Nesse movimento “impressionista” e perpétuo da palavra,
os significados então desprovidos de contornos bem definidos, tornando-se figuras

3
Ainda sobre a fenomenologia Camus afirma nas páginas 56 e 57 de O mito de Sísifo: “Coincide com o
pensamento absurdo na sua afirmação inicial de que não existe verdade, só existem verdades.”
4
In “Phenomenology and the Theory of Cognition” de Selected Essays (1973), página 137.
fluidas e adaptáveis aos diversos contextos narrativos. Isso, antes de uma questão de
estilo, é uma escolha que reflete uma desconfiança à facilidade das definições claras,
bem delineadas. Essa desconfiança parte do pressuposto de que o mundo de fato é de
uma constituição complexa5 - uma diversidade inesgotável, o que resulta em certa
impotência do intelecto. Portanto, esse cuidado estilístico reflete o rigor de um
pensamento que tenta capacitar sua forma em acordo com a altura da complexidade do
objeto que ele pretende retratar.

Essa diversidade é, como diz o próprio Camus, “o lugar da arte” 6. Podemos ver
então como e porque Camus escolhe dedicar-se à Literatura. As obras ficcionais:
romances, crônicas, peças, contos e outros são obras ricas em descrições de situações,
cenários, personagens, sentimentos. Além disso, podemos até assumir certo grau de
pretensão verdade nesses relatos, mas a própria estrutura do relato ficcional é desde o
princípio aberta, passível de uma interpretação, mesmo tendo em vista que o “romance
tem sua lógica, seus raciocínios, sua intuição e seus postulados”. Nesse sentido, um
ponto importante que gostaria de colocar em evidência é que Camus se aproveitou ao
máximo desse aspecto não objetivo da arte para usar suas narrativas ficcionais como
geradoras de tensão em seu pensamento.

Assim vemos ser falsa a tese geralmente aceita de que seus ensaios filosóficos
seriam explicações de uma mensagem que os romances pretenderiam passar. Esse
projeto, teorizado e praticado por Sartre7, é positivamente rejeitado por Camus. No
entanto, como figura de grande influência no circulo literário da época, Sartre acaba por
tornar-se uma referência na crítica literária, sobretudo com a ideia de “art engagé”.
Podemos observar, no entanto, que esse referencial não é valido na avaliação da obra
camusiana, não apenas pela sua rejeição da concepção de engajamento literário
sartreano, mas também porque Camus, em forte contraste com Sartre, tem nas obras um
momento não apenas de afirmação, mas de crítica de suas ideias. A concepção que
Camus faz de sua obra literária não deixa outra opção: ela deve operar em um
movimento que afirma ao mesmo tempo em que recusa. Como afirma Lissa Licoln:

5
In O Mito de Sísifo, página 132.
6
Ibidem.
7
Em Qu’est-ce que la littérature?
“Camus, longe de defender esse ou aquele sistema de valor, utiliza o material literário
para colocar esses sistemas em tensão.” 8

Um leitor desavisado poderia estranhar tal crítica de um autor de romances de


teor indiscutivelmente filosófico. Afinal, um autor que explicitamente pretende “fazer
viver mitos” 9, deve, ao mesmo tempo, estar falando algo sobre o mundo de fato. A
questão, mais uma vez é a medida e desmedida. Mais uma vez, aqui o mundo é tido
como inesgotável e um pensamento que não se permite a saltos indutivos deve ao
mesmo tempo em que admite sua incapacidade de satisfazer-se pelo real, não admitir
nada além desse real. Dessa forma, o conhecimento torna-se algo sempre por vir, uma
batalha sem fim e sem esperança de vitória, como a de Sísifo - absurda. Assim, esse
pensamento em imagens nunca deve estar satisfeito e dessa forma é incapaz de produzir
obras que tem por objetivo satisfazer.
Nesse sentido, a tese do romance pode e talvez deva estar lá. A crítica que
Camus faz aqui está em pleno acordo com a afirmação de Blanchot quando ele diz:
“qualquer tese que triunfe num romance deixa imediatamente de ser verdadeira”10. Esse
triunfo é justamente a unificação do sentido do romance em uma tese. Mas, em termos
camusianos o Absurdo está lá, inabalado pelo romance triunfante e por isso prova tanto
a tese quanto o romance falsos. O mundo não é unidade, portanto uma ficção unificada
por uma tese é desenlaçada de suas origens carnais, se afastando da vida. Ao contrário,
um conceito também desenvolvido por Blanchot e que se aproxima mais da ideia que
Camus faz da sua própria obra é o de “literatura da experiência”. Essa ideia é justamente
a de uma literatura que não renuncia esses aspectos carnais e que não por acaso
Blanchot usa Gide como exemplo - uma grande influência para Camus11. O que seria “a
literatura que zomba das obras e está pronta para se arruinar para atingir o inacessível”12
senão a “criação sem amanhã” exposta no Mito de Sísifo?

8
No artigo “L’éthique de l’artiste révolté”, tradução minha.
9
Prefácio de O Avesso e o Direito, página 34. Pretensão também expressa no último parágrafo do
capítulo “Criação sem amanhã”, na página 133 in O Mito de Sísifo. Paragrafo esse, inclusive, que elucida
seu entendimento peculiar do que seja mito: apesar da construção de imagens que muita vezes se serve
de figuras divinas, tem por objetivo ilustrar apenas a experiência humana e sua “paixão sem amanhã”.
10
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Página 216
11
Gide é citado com frequência por Camus, mais informações a respeito no artigo “André Gide et Albert
Camus: rencontres” de Raymond Gay-Crosier.
12
BLANCHOT, Maurice. “Os romances de Sartre” in A parte do fogo. Página 234.
Bibliografia
CAMUS, Albert. L’étranger. Coleção Folio. Paris, Editora Gallimard, 1942.

_____________. O Mito de Sísifo, tradução de Ari Roitman e Paulina Watch., Rio de


Janeiro: Editora Record, 2004.
_____________.Réflexions sur la guillotine in Réflexions sur la peine capitale de
CAMUS, Albert e KOESTLER, Arthur. Versão eletrônica para Kindle. Paris, Calmann-
Lévy, 1957.
_____________. O Avesso e o Direito, tradução de Valerie Rumjanek, 6a edição. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2007.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de
Janeiro: Rocco, 2011.

SCHELER, Max. Selected Philosophical Essays, "Phenomenology and the Theory of


Cognition". Tradução de David Lachterman. Evanston: Northwestern University Press,
1973.
FIUT, Ignacy S. “Albert Camus: Phenomenology and Postmodern Thought”. Revista
Analecta Husserliana, volume 104, 2009. Páginas 341-354.

LINCOLN, Lissa. “L’éthique de l’artiste révolté”. Revista Synergies Inde. Número 5,


páginas 75-85. American University of Paris, 2010.

GAY-CROSSIER, Raymond. “André Gide e Albert Camus: Rencontres”. Études


littéraires, Volume 2, numero 3, dezembro 1969, páginas 335-346.

SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature? Collection Folio Essais. Paris:


Editora Gallimard, 1948.

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