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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.

03037

A DIFERENÇA ENTRE IMAGEM (EIDÓLON) E SÍMILE (EIKÓN) DE


HOMERO À PLATÃO

MESTI, Diogo Norberto (UFMG/CAPES)

Introdução

Num primeiro momento desta pesquisa sustentei que havia uma distinção na
República entre o uso socrático dos símiles (eikónes) e a crítica filosófica às imagens
(eídola). Isso foi feito porque os principais símiles compostos por Sócrates: o do
timoneiro1 (VI 487e ss.), o do sol (VI 506d ss.), o dos prisioneiros na caverna (VII 515a
ss.), o dos tipos psíquicos dos governantes (IX 588b ss.) estão envolvidos num contexto
argumentativo em que são utilizados derivados adverbiais e verbais de eikón (como eikazo,
etc.). Essa postura socrática parecia estar em franca oposição ao uso das imagens (eídola)
que no livro VII são vistas pelos prisioneiros no fundo da caverna e no livro X aparecem
como se fossem produtos exclusivos da fabricação dos poetas.
Essa hipótese se mostrou equivocada porque o próprio Sócrates também fabrica um
eídolon e com ele apresenta o significado da justiça na República. Trata-se de um conceito
de justiça apresentado numa imagem que não é capaz de esgotar ou de levar adiante a
pesquisa pelo que é a justiça em si mesma. Nesse argumento, Sócrates propõe uma imagem
onírica da justiça (IV 443b) segundo a qual cada parte de um todo (seja esse todo a cidade
ou a alma) faz aquilo que lhe cabe por natureza. Ao notarmos que se tratava de um eídolon
utilizado para explicar a justiça, corrigimos nossa postura frente à denegação do uso de
imagens (eídola) por Sócrates.

Diante disso, é preciso avaliar como essa imagem se encaixa no discurso filosófico
e, por conseguinte, investigar como a cultura poética e sofística anterior à Platão trabalha a

1
O símile do timoneiro mostra como o símile da ideia do bem no horizonte do piloto é tomado como uma
exigência para diferenciar o filósofo dos outros.

1
diferença entre imagem e símile para, então, tentarmos diferenciar o uso socrático dos
termos “símile” e “imagem” para falar da alma.

Referencial Teórico

A lacuna que essa pesquisa pretende suprir tem como foco a ausência de um
comentário de vulto que englobe as imagens e os movimentos da alma 2. A solução a ser
desenvolvida neste projeto propõe o estudo do movimento da alma em uma perspectiva
sincrônica: a alma sofre e age, ao mesmo tempo, segundo a imagem que ela mesma produz
de si mesma. O sucesso de tal estudo dependerá de uma visão unificada da República em
que, sem perder o foco da psicologia platônica como referencial teórico, serão abordados
outros temas que se entrecruzam na imagem da justiça e no símile do bem.

Objetivos

O objetivo desta pesquisa é compreender o uso que Sócrates faz do eídolon e do


eikón3 na República, para explicar suas funções nos movimentos psíquicos de
racionalização (epistemológicos, de busca da ciência, e ontológicos, de busca do ser),
impetuosidade (de convencimento e de consenso) e desejo (de satisfação e de prazer). Os
objetivos específicos a serem expostos nesse projeto definitivo são: (i) explicar as
conseqüências filosóficas do fato de a justiça ser apresentada por Sócrates através de uma

2
Alguns exemplos podem ser citados. Robinson (2007), Reis (2009; 2010), tratam do movimento; Desclos
(2000), Vernant (1975), Saïd (1987), Canto (1985), tratam das imagens.
3
Nenhum tradutor diferenciou os termos usados para designar as imagens na obra platônica. No presente
trabalho, traduziremos eikón por símile e eídolon por imagem, no geral, ou por imagem, quando a referência
for homérica. Isso se justifica porque a justiça é apresentada por um tipo específico de imagem, o eídolon,
que possui uma fundamentação teórica distinta dos eikónes e não pode ser considerada sinônima destas. Se
persistirmos defendendo uma univocidade semântica do vocabulário das imagens em Platão, quando se trata
de uma plurivocidade não só terminológica, mas também conceitual, estaremos cometendo o mesmo
equívoco ocorrido nas traduções de idea, ousia e eídos só por Forma.

2
imagem (eídolon); (ii) compreender como a alma percebe, significa e é capaz de agir
sincronicamente através de imagens (eídola) e símiles (eikónes); (iii) detalhar como as
partes da alma são afetadas diferentemente pela imagem e pelo símile.

Metodologia

O caminho para explicar as imagens da alma na República exige: (i) a explicitação do


âmbito contextual e histórico, pois as noções de eikón e de eídolon fazem referência crítica
ao contexto retórico, poético e filosófico de Atenas, no qual os diálogos nascem (cultura
homérica e oral) e para o qual eles tendem (cultura agonística grega das assembléias). Este
estudo exige ainda uma dimensão (ii) filológica, pois o símile e o ídolo precisam ser
traduzidos de acordo com o contexto em que aparecem, uma vez que defendemos que
esses termos são parte essencial do recurso estilístico que Platão designa ao filósofo na
República. Por fim, apenas uma obra de Platão será analisada, recorrendo a passagens
específicas de outras obras de modo auxiliar.

Desenvolvimento

Farei uma divisão cronológica da noção de eidólon. Primeiro, tratando do aspecto


religioso do eidólon em Homero, quando ele fala dos fantasmas do Hades; segundo, da
teoria da percepção e da parapsicologia na acepção do eidólon em Demócrito e, terceiro,
do aspecto político do eidólon de Helena na guerra de Tróia, na referência que Platão faz a
Górgias no livro IX da República. A hipótese desta comunicação é que o eidólon usado por
Platão é uma crítica a Homero e a Demócrito. O caso de Górgias é mais complexo, por que
em parte há crítica, mas em parte há incorporações feitas por Platão.

3
No penúltimo capítulo da Ilíada, um trecho mostra a imagem4 (eidólon) de Pátroclo
dizendo a Aquiles.

Com toda pressa sepulta-me, para que no Hades ingresse,


Pois os imagens (eidola) cansados dos vivos, as almas me exortam
Não permitindo que o rio atravesse para a elas juntar-me.
Por isso, vago defronte das portas amplíssimas do Hades.
Dá-me tua mão, é chorando que o peço, não mais a tua frente
Conseguirei retornar, quando o fogo me houver consumido. (XXIII, vv.
72-77)

Pátroclo aparece para Aquiles, clamando que este lhe sepulte para finalmente poder
entrar no Hades e não ficar vagando pela porta do mesmo. As imagens cansadas dos vivos,
são como imagens que aparecem nos sonhos dos guerreiros na Ilíada e que de certo modo
guiam as batalhas. Esta imagem de Pátroclo é semelhante à aparência do corpo do mesmo,
tanto que, sem sucesso, Aquiles tenta lhe abraçar, mas se desequilibra como se abraçasse o
ar. Numa outra passagem da Ilíada que relaciona alma e imagem, Aquiles conclui que:
“Ora, a certeza adquiri de que no Hades, realmente, se encontram / Almas e imagens dos
vivos, privados, contudo, / De alento” (XXIII, vv. 103-104).

As imagens da alma daqueles que habitam no Hades aparecem aos vivos como um
aspecto visível daquele que morreu e que convence os vivos pela semelhança com os
aspectos físicos do morto, pois “a alma do mísero Pátroclo é assaz parecida com ele”
(idem). Contudo, é uma imagem vazia de sentimento, sem algo que possa ser abraçado.

No caso da noção do eidólon em Demócrito, há uma discussão, feita por Walter


Burket (1977, p. 103), a respeito das divergências entre os comentadores de Demócrito e
sua respectiva doxografia, sobre onde estaria situada no pensamento deste uma teoria do
eidólon, se competiria a uma teoria da percepção ou a uma parapsicologia, a qual diz
respeito à aparição dos deuses e à previsão. É importante dizer que estudar Demócrito

4
Escolhi traduzir por imagem porque ele engloba tanto a aparição de um defunto, no sentido incorpóreo, e
com a aparência do corpo da pessoa, podendo significar fantasma, quanto também admite uma coisa vazia,
falsa e que ilude, bem como o sentido gráfico de uma impressão sensível, onde graficamente tem-se os
contornos da forma da coisa.

4
neste caso é difícil, pois em sua maior parte o eidólon aparece em testemunhos e aquela
divergência sobre o lugar da teoria do eidólon é uma divergência dos próprios testemunhos
antigos, como bem mostra Morel (1996, p. 306-308).

Retomamos a posição de Plutarco: “Plutarco distingue claramente a posição


democritiana da tese epicurista. Epicuro, segundo ele, segue Demócrito sobre os princípios
da teoria dos simulacros, mas não detem o mais interessante: o fato que os simulacros
transportem nào somente as imagens dos corpos, mas também as imagens dos movimentos
da alma”.

A interpretação que adotaremos a respeito do eidólon é a de uma teoria da


percepção, mas que não seria estranha se dissesse respeito também à aparição dos
daimones da religião grega, de um modo semelhante ao caso da imagem (eidólon) de
Pátroclo. Ambas as noções de eidólon poderiam ser definidas do mesmo modo: um aspecto
sensível que aparenta ser a coisa mesma que ele imita, mas que é vazia de conteúdo, que
está sintetizada no seguinte fragmento DK 68 B 195: “Imagens belas de se ver pelas vestes
e adornos, mas vazias de coração”.

Assim, a acepção de uma teoria da percepção em que “a percepção ocorria por


efluentes físicos dos objetos que atingiam o olho” (Cf. TAYLOR, 1999, 109) que “retendo
a forma aproximada de sua superfície constituem imagens deles” (BURKET, 1977, p.103),
não está em plena contradição com a imagem do corpo de Pátroclo ou a imagem de um
deus no sonho, que também devem ter a forma aproximada daquilo que apresenta e que
deixa uma marca.

Traduzir eidólon por imagem, como estamos propondo aqui, resolveria o problema
de Demócrito, pois assim não é preciso decidir afinal se eidólon diz respeito a uma imagem
gráfica gravada e impressa nos olhos, ou a um fantasma de algum daimon. O nome
imagem dá conta das duas acepções, e em ambos os casos, representam imagens vazias das
formas físicas dos homens, das coisas ou também dos deuses. Preservamos imagem em
razão da interpretação que faremos de Platão, mas para sermos mais corretos com
Demócrito deveríamos traduzir eidólon por espectro, caso que não se aplica sempre em
Platão.

5
Para entender a concepção que Platão tem do eidólon, é importante relembrar uma
passagem da República em que é relatado o retorno do dialético à caverna, num resumo do
símile dos prisioneiros onde o dialético é obrigado a usar suas próprias imagens. A crítica à
imagem (eidólon) nesta passagem consiste em uma crítica a apreensão de uma imagem
vazia:

Se alguém não for capaz de definir pela razão (logon) a ideia do bem, distinguindo-a
(apheiro) de todas as outras e, como numa batalha (machêi), passando através de todas
objeções (elenchôn), não estiver disposto a não refutá-las segundo a opinião, mas segundo
a essência (ousian), não atravessar essas dificuldades com uma razão inabalável (lógos), se
for esta a postura dele, afirmarás que ele não conhece nem o bem em si ou algum outro
bem. Mas, se apreende um imagem (eidólon) do bem, é pela opinião que o apreende, não
pela ciência, e a vida agora passa sonhando e cochilando, sem despertar antes de chegar ao
Hades e lá dormir completamente. (VII 534b-d)

O final da passagem da batalha do dialético se refere ao sonho dos moralistas. A


crítica que se faz a eles é confundir a imagem com a própria coisa, pois desconhecem a
diferença entre os múltiplas imagens do bem e o próprio bem. As referências ao sonho, na
República, ocorrem geralmente em relação a alguém que confunde uma imagem com
aquilo a que a imagem se parece. Assim, do mesmo modo que os moralistas sonham com
uma imagem vazia (eidólon) do bem pensando que é o próprio bem, os matemáticos
sonham com as figuras geométricas pensando que é o próprio triângulo, quadrado e etc. Na
República, o maior exemplo é Trasímaco, que discursa sobre uma gama enorme de
concepções de justiça, sem entender a própria justiça. Trasímaco seria um daqueles que
viveriam dormindo e sonhando vendo as sombras do Hades.

É no enfrentamento contra as sombras (schiamachêi, 520c) no fundo da caverna


que o dialético disputa (agônizesthai) “nos tribunais ou em outro lugar qualquer a respeito
das sombras (skiôn) da justiça ou a sombra (skiai) das estátuas, lutando a respeito disso
conforme as interpretações que lhes dão os que jamais contemplaram a própria justiça”

6
(517d). Aqui o dialético torna-se um político utilizando “símiles5 [...] mais nítidos” (VI
511a) (e clareza, afinal, é verdade) daquilo do que é em si mesmo, se opondo aos nomes e
às imagens vazias, contra o “retrato sombreado da virtude” produzido por Trasímaco,
contra a imagem (eidólon) do bem (VII 534 d) e contra os simulacros dos poetas (X 600e).

Contudo, a posição de Platão frente ao eidólon não pode ser vista somente sobre a
perspectiva crítica. Num momento crucial da República Platão formula a justiça por um
eidólon. A função da imagem é mais nebulosa, pois ela é comparada a algo visto num
sonho.6 A dimensão onírica da imagem não é abordada por nenhum comentador e
tampouco é mencionado que o contexto em que aparece tal imagem é o da formulação da
alma tripartite, pois a imagem diz que a justiça será um acordo entre as três partes da alma.
Para esclarecer, primeiro, essa relação entre sonho e imagem é preciso mencionar que
Homero já utilizava eidólon para imagens oníricas.

Em algumas circunstâncias da Odisséia, Ulisses está controlando o seu thymós, o


seu ímpeto, o mesmo thymós que o levou a pensar que a imagem (eídolon) de sua mãe era
a própria Anticléia e que o incitou a abraçá-la. Ulisses narra assim o encontro com sua mãe
no Hades: “Desejei aproximar-me / com ternura daquela que me deu a vida, abraçá-la. /
Três vezes tentei estreitá-la nos braços, guiado pelo / coração (thymós, ímpeto). Três vezes
ela me escapou. Era só sombra (skía), / sonho (oneíro)” (Odisséia, XI, vv. 210-224). Esse
engano de Ulisses traz à tona (i) o sonho que está presente na imagem (eídolon) da justiça
e (ii) uma relação de controle entre razão e ímpeto, elogiada por Platão em Ulisses. Diante
disso, podemos dizer que a imagem da justiça composta por Platão pode ser projetada no
fundo da caverna para convencer os prisioneiros de que a justiça é cada parte fazer o que
lhe cabe, criando uma imagem (eídolon) destinada a servir de pista para o convencimento
do ímpeto (thymós).

5
Símile tem um significado parecido com o de eikón porque, tal como eikón é derivado de eioke, que
significa semelhança, o símile é derivado de semelhante, e designa a qualidade de algo semelhante, que se
semelha, e que é análogo àquilo com o que parece, baseado na similitude entre este tipo de imagem e as
coisas ou os seres que reproduz.
6
O termo usado por Platão não é oneíro mas enunpnion, cujo significado é especificamente algo visto no
sonho ou uma visão no sonho. A diferença é cirúrgica, já que nesta passagem ele está se referindo a um
eídolon da justiça que aparece num sonho e isso é feito para explicar metaforicamente a visão de uma
imagem da justiça que ele teve naquele momento crucial.

7
O elogio que Platão faz do auto-controle que Ulisses tem de seu ímpeto se estende
por toda a República e demonstra um acordo7 psíquico entre as diferentes partes da alma: a
razão deve tentar convencer o ímpeto de que o melhor para este é segui-la e não aos
desejos. As bases deste convencimento serão as imagens (eídola), que, como as imagens
(eídola) em Homero, iludem o coração e o ímpeto. Assim, a imagem da justiça serve para
selar um acordo inicial entre o ímpeto (que é a parte que desde Homero é seduzida pelo
eídolon como se estivesse num sonho) e a razão.8

A passagem do eídolon da justiça na República é a seguinte:

eis que nosso sonho (enýpnion) já está completo e perfeito... Aquele que,
como supusemos / conjecturamos (hypopteýsai9) logo que iniciamos a
fundação de nossa cidade, fazia-nos assinalar que um deus podia bem
fazer-nos chegar ao princípio e a um certo tipo (týpos) da justiça.
Glaucon: Sem dúvida. Sócrates: Ah! Esse modelo, Gláucon, era – e isso
nos ajuda – uma imagem da justiça (eídolon ti tés dikaiosýnes). É justo
que aquele que, por natureza, é sapateiro fabrique sapatos e nada mais
faça, que o construtor construa e, quanto aos outros, também seja assim?
Gláucon: Parece. (443b-c).

7
No contexto argumentativo em que Sócrates investiga a justiça, é necessário haver um acordo entre partes
que se aplica à alma, à cidade e aos interlocutores do diálogo. No jogo dramático, o acordo ocorre sempre
entre os interlocutores que estão discutindo, tanto que Sócrates primeiro diz que chegaram a “um acordo de
que a justiça é cada um possuir o que é seu e realizar o que lhe cabe” (IV 434a), depois disso, ele insere a
tripartição da alma, e o acordo que Sócrates pretende instaurar passa a ser psíquico.
8
No Timeu, Platão expõe uma teoria em que a razão pode enviar eídola para o coração agir. As imagens da
justiça e da tripartição da alma na República são justamente imagens deste tipo e visam convencer o coração
ou ímpeto (o thymós) a seguir o caminho escolhido pela razão. Esse eídolon refletiria no fígado e então o
coração poderia vê-lo e seria convencido por ele.
9
Lidell e Scott mostram que ὑποπτ-εύω significa “A. to be suspicious, X.Hier.2.17, Lys.1.10; ὑ. ἔς τινας c.
inf. fut., have suspicions of them that . . , Th.4.51. 2. merely, suspect, guess, suppose, opp. ἱκανῶς συννοῶ,
Pl.Tht.164a, cf. X.HG5.4.29; have an inkling of, Pl.Grg.453b; “ὁ ἵππος ὑ. τι” X.Eq.6.14:—Pass., to be
conjectured, Pl.Lg.967b. II. trans., suspect, hold in suspicion, τινα S.El.43, Th.8.39; “θὴρ ὑ. κυναγώς”
Theoc.23.10; ὑ. τινὰ ἔς τι of something, Hdt.3.44:—Pass., to be suspected, mistrusted, Th.4.86; “εἴς τι”
Id.6.92, rist.Rh.Al.1437a1: impers., ὡς ὑπωπτεύετο as was generally suspected, X.HG5.4.20. 2. c. acc. pers.
et inf., suspect that he (…)”.

8
Nesse horizonte, o acordo entre as partes que está sendo proposto aqui é uma
petição de princípio de caráter hipotético, pois o que se almeja é que a razão e o ímpeto
criem um acordo sobre a necessidade de eles conviverem sempre em acordo, ou melhor, é
um acordo sobre o que é a justiça entre as partes da alma que precisa de um bom e justo
relacionamento para ser possível.

O próprio símile dos prisioneiros na caverna e a direção do dialético ao sol,


compreendido como um desdobramento do símile do bem que é o sol, representa a
linguagem do dialético que se opõe à construção daquelas imagens e tenta mostrar também
alguns símiles da virtude quando mostra a imagem do movimento da alma do dialético em
direção ao bem.

A discussão é sobre o critério das imagens. O que faz do eidólon diferente do


eikón? Uma interpretação possível para a limitação da imagem (eidólon) é por ela se ater
ao som corpóreo das coisas, como o critério de Crátilo no diálogo que leva seu nome, onde
a sonoridade dos nomes é o critério para a compreensão de sua natureza. Do mesmo modo
que o pintor na República dá atenção apenas às cores quando parece ser capaz de “todas as
imitações porque só alcança uma pequena parte de cada coisa, e isso é apenas um
simulacro” (X 598b ). É como se os aspectos materiais e sensíveis gravados na memória,
como os sons das palavras e as cores das pinturas, não significassem o conceito, mas
apenas uma corporeidade sem essência, uma marca sem preenchimento, uma imagem
vazia, enquanto o critério do eikón é o inteligível.

No caso de Górgias, a relação com Platão é mais complexa. Górgias possui dois
textos que podem ser utilizados para entender a dimensão ontológica e política da crítica de
Platão aos imagens: Tratado do não-ente e Elogio de Helena. O primeiro é de transmissão
indireta, mas não sofre tantas divergência quanto os textos de Demócrito. O objeto de
discussão entre Platão e Górgias é a questão retórica presente no caso de Helena de Tróia
“caso exemplar de beleza servindo como instrumento de persuasão” (COELHO, p.8), e
neste caso Homero está no pano de fundo da discussão.

No Tratado do não-ente, Górgias se refere a prova final da sua segunda asserção:


sendo a primeira, que nada existe; a segunda, que se existe, é inapreensível pelo homem, e
a terceira, que mesmo se for apreendido, é incomunicável e indescritível ao outro. No

9
segundo caso ele diz: “Saudável e salvador é ter a conseqüência: ‘se as coisas pensadas não
são entes o ente não é pensado’. As coisas pensadas pelo menos (deve-se antecipar) não
são entes como sustentaremos: logo, o ente não é pensado” (78).

O argumento de Górgias se sustenta numa exclusividade acerca do que pode ser


pensado, se, por um lado, o que é pensado é o ente, então o não-ente não é pensado, por
outro lado, no entanto, se o não ente é pensado, então o ente não é pensado e este é o caso
para Górgias. Ele lembra que muitas coisas pensadas não possuem qualquer existência
certa e efetiva, e é absurdo “ao não ente não ser pensado”, pois também “Cila e Quimera e
muitos dos não-entes são pensados” e disso ele deduz: “Logo, o ente não é pensado” (p.
13, 79-80).

A questão ontológica de Górgias funda o absurdo de atribuir ao mesmo espaço do


pensar coisas contrárias, excluindo a possibilidade de se pensar o ser porque o não-ente é o
que pode ser pensado e coisas diferentes não podem estar localizadas no mesmo lugar. A
impossibilidade de se pensar o ser diz respeito à impossibilidade do homem apreender e
entender o ser das coisas, e não apenas as coisas fantasiosas.

Platão resolverá isso afirmando que o ser e o não-ser podem ser pensados,
afirmando o ser do próprio não-ser. Isto é, tanto o que é, quanto o que não-é, uma imagem
por exemplo, podem ser pensados conjuntamente. Como, por exemplo, no caso do
produtor de moveis na República, onde o artista ao produzir uma mesa “não produz o que
é, mas algo que parece com o que é, mas que não é. Se alguém afirmasse a respeito do
trabalho do moveleiro ou de outro artífice que é de maneira perfeita (teleôs) aquilo que ele
é, correria o risco de fazer afirmações não-verdadeiras” (X 597a). Isto é importante para
entender a diferença entre os tipos de imagens em Platão, na medida em que é possível
produzir um tipo especial de imagem que comunique o pensamento que se tem sobre o ser
do bem e das virtudes da alma.

Cila e Quimera, as referências do próprio Górgias para refutar a possibilidade de se


pensar e apreender o ser, aparecem no momento em que Sócrates produz um símile, algo
que não é o que é, mas que é de um modo imperfeito, para tentar entender o símile (eikón)
da alma do homem injusto e também do justo:

10
Moldemos em pensamento uns símiles (eikóna) da alma a fim de que aquele indivíduo
venha a saber que tipo de afirmações ele fez.

Gla. Que imagem?

Sócr. Um símile como aqueles de que falam os antigos mitos: a Quimera, a Cila, o Cérbero
e muitos outros monstros que, graças à sua natureza, segundo dizem, assumem muitas
formas em único corpo.

É o que se diz.

Pois bem! Modela o tipo (idea) de um animal que seja de muitas cores e muitas cabeças,
tanto de animais mansos como de animais selvagens, dispostas em círculo, e que seja capaz
de mudar essas formas tirando de si mesmo todas essas formas.

[...]

A quem diz que para aquele homem é vantajoso ser injusto, mas não é útil praticar a
justiça, digamos que o que ele afirma nada mais é que, para ele, é vantajaso nutrir com boa
comida o multiforme animal tornando-o forte e que faça o mesmo com o leão e com os
outros bichos que estão com ele; ao homem, porém, faça passar fome e perder suas forças
de forma que ele se deixe arrastar para onde quer que os outros dois queiram e não deixem
que se habitue com o outro nem se tornem amigos, mas, ao contrário, permita que se
mordam e entredevorem lutando.

Isso é o que afirmaria quem elogia a injustiça.(IX 588b-589a).

Além de fazer referência à Cila e Quimera, esta passagem alude também ao Elogio
de Helena quando se refere à plasticidade do lógos. No Elogio de Helena de Górgias, onde
ele defende as coisas “pelas quais era verossímil ter ocorrido a partida de Helena para
Tróia” (5) e levanta várias hipóteses a respeito do motivo que fez Helena ir para Tróia, ele
começa a defender Helena como alguém ou que sofreu o rapto e foi contra sua vontade, ou
que “foi pelo discurso que persuadiu e iludiu a sua alma” já que “nascendo junto com a
opinião da alma, o poder do encantamento fascina, persuade e altera essa alma pelo
enfeitiçamento” (10).

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Ele prossegue antecipando o que Platão admitirá quando falará que “o lógos é mais
moldável do que cera”, afirmando que “e quantos, a quantos, acerca do quanto persuadiram
e ainda persuadem tendo modelado um falso discurso” (11) e conclui então, “que causa
impede considerar que também Helena, semelhantemente, sob o domínio das palavras
partiu contra vontade do mesmo modo como se raptada pela violência dos violentos?” (12).
A conclusão deste passo mostra ainda o seguinte: “Que a persuasão, unindo-se ao discurso,
também molda a alma da maneira que quer” [...] (13). E nisto consiste a farmácia do lógos
para Górgias, podendo servir de remédio ou de enfeitiçamento (14), na medida em que “os
similes (eikónas) das coisas vistas a visão inscreveu no pensamento” (17). Isso aparece em
Platão no Filebo, onde há a metáfora de homenzinhos desenhando símiles no interior da
nossa alma (39a-b).

Naquela mesma passagem do livro IX sobre o lógos ser mais moldável do que cera,
há a composição dos símiles dos tipos da alma do homem, de um modo parecido com os
símiles que ficam gravados no pensamento daqueles que, para Górgias, vêem coisas
terríveis na guerra e que param de refletir aterrorizados. No mesmo livro IX, o que também
está em questão, como em Górgias, são os símiles que guiam a alma dos homens ou das
mulheres e que, por conseguinte, guiam a política. Esta proximidade entre eles ocorre
apesar de haver uma divergência ontológica sobre o pensamento do ser.

Por um lado, os símiles aparecem na República no movimento pedagógico de


reorientação da alma, explicada no símile dos prisioneiros na caverna, onde são os símiles
do caráter do bem (agathou eikóna êthous) (III 401b) que devem orientar a alma; por outro
lado, isso ocorre nas imagens do movimento de alteração dos tipos psíquicos (eikóna
plasantes tês psykhês, IX 588b-c), para explicar a mudança nas formas de governo, onde
Platão expõe como a política depende também da educação do indivíduo e das imagens
que seu governante se acostumou a ver.

No livro IX, Sócrates está falando dos tipos dos prazeres e explica o prazer do
filósofo, diferenciando-o do prazer do homem que visa só o lucro e do homem que
ambiciona a fama, pois neste caso “eles reproduzem com sombras (skiagraphêmenê) os
contornos do prazer”, e prossegue explicando como é este tipo de prazer:

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Será então que não são obrigados a conviver com prazeres misturados com dores, imagens
(eidólon) do verdadeiro prazer que, delineados com sombras, assumem colorido quando
prazeres e sofrimentos se sobrepõem de forma que uns e outros parecem muito intensos e
são objetos de disputa como a imagem de Helena, que como diz Estesícoro, por ignorância
da verdade, veio a ser objeto de disputa? (IX 586b-c).

Estesícoro é conhecido por ter feito uma palinódia a Helena, afirmando que só o
sua imagem havia ido para Tróia, enquanto a verdadeira Helena ficou no Egito. Sua
imagem vazia tornou-se objeto de uma acirrada disputa política (IX 586c). O livro IX da
República não representa apenas um elo entre Platão e Górgias, mas também entre Platão e
o próprio Homero, já que as sombras, as almas e Helena são assuntos homéricos comum
aos gregos. Seja na vertente homérica, na concepção que ele tem do Hades, da
religiosidade de uma imagem que aparece de onde vivem as sombras dos homens, seja na
vertente psicológica da teoria de como a alma percebe em Demócrito ou seja na vertente
retórica e política de como ocorreu a ida da imagem de Helena a Tróia, Platão critica, em
todos esses casos, a relação doentia que a imagem estabelece com a alma, na relação
fundada pelo engano.

O verdadeiro prazer do qual o outro é uma imagem é o prazer do dialético, que


sente com as coisas que ele aprende e com as imagens corretas que ele usa. Estas críticas
não estão separadas e fazem parte de uma tensão que atravessa toda a República, o que
pode ser notado pela dramatização do diálogo, já que Platão encerra a República, contra o
eidólon dos poetas, dos retóricos e dos peri phuseos, do mesmo modo que iniciou contra a
falsa veste daquele que parece justo, sem ser, quando recusa a tese que pode ser atribuída a
Trasímaco de que bastaria delinear “um círculo a sua volta, como fachada e forma exterior
(schêma), um desenho sombreado (skiagraphian) da virtude” (II 365c) para receber as
glórias da justiça na cidade.

Em resumo, as imagens que o poeta fabrica criam “uma constituição (politeía) má


dentro da alma de cada um, porque favorecem o que ela tem de irracional e não discerne
nem o maior nem o menor, mas, ora julgas grande, ora pequenas as mesmas coisas, criando

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imagens vazias (eidola), mantendo-se bem afastado da verdade” (X 605c). É válido notar
que Politeía é o título original em grego desta obra traduzida geralmente por República.

Conclusões

Portanto, a imagem (eidólon) tem um caráter dúbio na República de Platão


sobretudo porque possui ao mesmo tempo um caráter positivo impensável na boca de
Sócrates quando ele chega a uma imagem (eídolon) da justiça e um caráter negativo que
pode enganar os homens quando produzidos pelos poetas com a intenção de ludibriar os
outros pela perspectiva de um desenho, por exemplo. Enquanto a imagem tem um caráter
dúbio e duplo, o símile (eikón) desempenha na República um papel filosófico central que
pode ser ancorado nas matemáticas, na medida em que é o tipo de imagem que Sócrates
mais utiliza para falar dos aspectos envolvidos na formação da constituição da alma como
se houvessem homenzinhos desenhando símiles no interior da nossa alma. Ele é o tipo de
imagem especial que deve ser mostrado aos jovens quando o que se tem como paradigma
são as formas das virtudes (III 401b-402b), é usado na comparação entre o filósofo e o
timoneiro (VI 488e), para explicar o bem, pelo símile do sol (VI 506b), e também o
movimento da alma do dialético em direção a este bem, no símile dos prisioneiros (VII
515a), símile este que não deve ser chamado de mito e nem de alegoria, por se tratar de
uma imagem e, mais especificamente, de um símile, além de elucidar os tipos psíquicos
presentes no interior de todos os homens (IX 588b).

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