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O QUE É “A COISA”?

Tenho traduzido um livro de Chesterton pouco conhecido do público brasileiro (“A Coisa”),
público este que conhece muito pouco desse extraordinário escritor católico inglês. Em algum
momento um leitor pediu que eu desse uma contextualização maior sobre o livro e sobre os ensaios
nele contidos. Não tive tempo de fazer mais do que, em todo ensaio traduzido, adicionar a frase
“Do livro ‘A Coisa’, publicado em 1929”. Pretendo agora dar um pouco mais de informação sobre
o livro, traduzindo a introdução do mesmo e também um comentário de Dale Ahlquist, contido em
seu interessante livro “G.K. Chesterton: The Apostle of Common Sense” [G.K. Chesterton: O
Apóstolo do Senso Comum].

Apenas como informação adicional, “A Coisa” é o primeiro livro de Chesterton publicado após
sua conversão, que ocorreu em 1922. Chesterton era, de fato, um católico muito antes disso. Sua
conversão demorou muito, pois ele esperou sua esposa, que era anglicana, para que ambos se
convertessem simultaneamente. Que maior prova de amor um marido pode dar à sua esposa?

Sobre esta conversão Ahlquist diz na introdução de seu livro: “Em 1922, eles [seus críticos]
ficaram ainda mais chocados, quando G.K. Chesterton se tornou membro da Igreja Católica
Romana. Que um grande homem de letras abraçasse a antiga Igreja de Roma era algo como um
escândalo no mundo literário e no meio intelectual. Eles pensaram que Chesterton tinha
repentinamente se tornado mais limitado, quando de fato, se tornara universal. O que para eles era
um completo quebra-cabeça era, para o próprio Chesterton, a peça final do quebra-cabeça, a
completude de um completo pensador.”

Comentário de Dale Ahlquist – Capítulo 6

Em 1929, Chesterton publicou uma coleção de ensaios sobre o sugestivo título “A Coisa”. (Edições
modernas do livro têm adicionado o subtítulo “Por que sou católico”, que é o título de um dos
ensaios do livro.) O que é “A Coisa”? Não é apenas qualquer coisa. Não é apenas outra coisa. É A
Coisa. É a Igreja Católica.

Nesse livro Chesterton compara “A Coisa” com todas as coisas: filosofias mundanas, negócios,
nacionalismo, protestantismo, agnosticismo, arte, história, educação, e até mesmo esportes. A
palavra “católico” significa “universal”, e nesse livro Chesterton mostra como A Coisa aplica-se a
tudo o mais. Ele também mostra com A Coisa se opõe a tudo o mais. Os ataques contra a fé católica
vêm de todos os lados. Chesterton nota que a “tolerância religiosa” parece significar que o cristão
liberal e tolerante vê o bem em todas as religiões e nada, exceto o mal, na Igreja Católica. Ele não
apenas defende a Igreja de uma grande variedade de ataques, ele mostra como ela é a solução
correta para todos os dilemas do mundo. Em todos os casos, a posição católica é a do senso comum.
“A Fé”, diz ele, “devolve ao homem seu corpo, sua alma, sua razão, sua vontade e sua própria
vida.”

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1. INTRODUÇÃO

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929.

Gilbert Keith Chesterton

Objetar-se-á naturalmente em relação à publicação destes ensaios dizendo que são de natureza
efêmera e controvertida. Em outras palavras, o crítico normal os desprezará como excessivamente
frívolos e desgostará deles por serem excessivamente sérios. A trégua de bom gosto assaz unilateral,
envolvendo todas as questões religiosas, que prevaleceu até pouco tempo atrás, agora deu lugar a
uma guerra assaz unilateral. Mas a trégua pode ainda ser invocada, como o terrorismo do gosto é
invocado contra a minoria. Todos conhecemos o bom e velho coronel conservador que jura, com
sua face vermelha, que não vai falar de política, mas aquela condenação ao inferno de todos aqueles
malditos socialistas não é política. Todos temos um agradável sentimento pela querida e velha
senhora, que vive em Bath ou Cheltenham, que não sonharia maldizer ninguém, mas que
certamente pensa que todos os discordantes são excessivamente temerários ou que empregados
irlandeses são realmente impossíveis. É no espírito dessas duas pessoas admiráveis que a
controvérsia é agora conduzida na imprensa, em nome de uma Fé Progressiva ou de uma Religião
da Irmandade Universal. Assim, contanto que o escritor empregue gestos de companheirismo e
hospitalidade vastos e universais a todos os que estão prontos a abandonar suas crenças religiosas,
lhe é permitido ser tão rude quanto ele queira a todos os que se aventuram a retê-las. O deão da
Catedral de São Paulo se permite alegremente chamar a Igreja Católica de uma corporação traidora
e sangrenta; o Sr. H.G. Wells se permite comparar a Santíssima Trindade a uma dança indigna; o
Bispo de Birmingham[1] se permite comparar o Santíssimo Sacramento a uma bárbara festa de
sangue. Considera-se que frases como estas não conseguem perturbar aquela paz e harmonia
humanas que todos os humanitaristas desejam; não há nada NESSAS expressões que poderia
interferir com a irmandade e a simpatia que une a sociedade. Podemos estar certos disto, pois temos
a palavra dos próprios escritores de que seu objetivo é gerar uma atmosfera de liberalidade e amor.
Se, portanto, qualquer interrupção infeliz estragar a harmonia da ocasião, se for realmente
impossível que essas festividades fraternais transcorram sem algum tolo distúrbio, ou sem alguém
fazer uma cena, é óbvio que a culpa deve recair sobre uns poucos indivíduos irritáveis e irritantes,
que não aceitam essas descrições da Trindade, do Santíssimo Sacramento e da Igreja como
expressões que tranqüilizem seus sentimentos ou satisfaçam suas idéias.

Está claro em todas essas afirmações que elas são aceitas por todas as pessoas inteligentes, exceto
por aqueles que não as aceitam. Mas como eu mesmo, em minha experiência política, me aventurei
a duvidar do direito do coronel conservador de amaldiçoar seus oponentes políticos e dizer que isso
não é política, ou da senhora de amar a todos e odiar os irlandeses, tenho a mesma dificuldade em
admitir o direito do cristão mais liberal e tolerante de ver o bem em todas as religiões e nada, exceto
o mal, na minha. Mas sei que publicar réplicas para se contrapor a isso, particularmente réplicas
diretas que já foram usadas em controvérsias reais, será considerado por muitos como uma
provocação e uma impertinência.

Bem, devo confessar neste caso que sou tão antiquado a ponto de senti-lo como um ponto de honra.
Penso que posso dizer que sou normalmente do tipo sociável, que se dá bem com seus semelhantes;
nem sempre estou disposto a discutir ou disputar; e valorizo muito as relações geralmente alegres
que mantenho com aqueles que de mim diferem por meros argumentos. Gosto muito da Inglaterra,
mesmo como ela é, muito diferente do que foi ou poderá vir a ser; tenho vários gostos populares,
das histórias de detetives à defesa dos bares; vi-me em muitas situações do lado da maioria, como
por exemplo, na propaganda do patriotismo inglês durante a Grande Guerra. Posso até descobrir
nessas simpatias um material suficiente para interesses populares; e, num sentido mais prático, nada
me satisfaz mais do que escrever histórias de detetive, exceto lê-las. Mas se nesta excessivamente
feliz e preguiçosa existência descubro que meus companheiros de religião estão sendo execrados
com insultos por dizerem que sua religião é verdadeira, não seria correto que eu não me colocasse
na posição de ser também insultado. Muitos deles tiveram uma vida muito dura e eu, uma vida
muito fácil, para não considerar um privilégio ser objeto dos mesmos curiosos e controvertidos
métodos. Se o deão da Catedral de São Paulo realmente acredita, como ele indubitavelmente diz,
que os mais devotos e devotados líderes da Igreja Católica, quando aceitam (realista, e mesmo,
relutantemente) o fato de um milagre moderno, eles fazem parte de uma “lucrativa impostura”, devo
preferir acreditar que me acusa, juntamente com homens melhores que eu, de me tornar um
impostor meramente por lucro imundo. Se a palavra “jesuíta” é usada como sinônimo da palavra
“mentiroso”, devo preferir que a mesma simples tradução deva se aplicar à palavra “jornalista”, o
que é muito mais freqüentemente verdade. Se o deão acusa os católicos, como católicos, de desejar
que homens inocentes morram na prisão (como ele faz), devo preferir que ele me conte como
responsável por alguma parte desse terrível e sanguinário melodrama; isso poderia, em qualquer
caso, servir de material para uma história de detetive. Em resumo, é precisamente porque eu
simpatizo e concordo com meus companheiros protestantes e agnósticos, em noventa e nove
assuntos em cem, que sinto ser um ponto de honra não desprezar suas acusações nesses pontos, se
eles realmente têm tais acusações a fazer. Sinto muito se este pequeno livro parece ser controvertido
em assuntos sobre os quais todo mundo se permite ser controvertido, exceto nós mesmos. Mas temo
que não haja solução para isso; e se asseguro ao leitor que tentei começar escrevendo-o com um
inquebrantável espírito de caridade, é sempre possível que a caridade possa ser tão unilateral quanto
a controvérsia. De qualquer maneira, o livro representa minha atitude em relação à controvérsia; e é
quase impossível que tudo nele esteja errado, exceto o que esteja certo.

[1] Bispo da Igreja Anglicana. (N. do T.)


2. O CÉTICO COMO UM CRÍTICO

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929

Gilbert Keith Chesterton

É preciso três pessoas para uma boa briga. Um conciliador é sempre necessário. Não se pode atingir
a completa potencialidade da fúria humana até que um amigo das duas partes intervenha
tacitamente. Sinto-me em tal posição no recente debate entre os puritanos e a revista Mercury do Sr.
Mencken;[1] e o admito com um desconforto não desacompanhado de terror. Sei que o juiz pode ser
picado em pedaços. Sei que um juiz auto-indicado deve ser picado em pedaços. Sei, sobretudo, que
este é especialmente o caso em tudo que envolve quaisquer relações internacionais. Talvez a única
crítica razoável seja a auto-crítica. Talvez isso seja ainda mais verdadeiro no caso de nações do que
no de homens. E posso muito bem entender que muitos americanos aceitariam sugestões de seus
compatriotas que refutariam de um estrangeiro. Posso apenas alegar que me esforcei por cumprir o
excelente princípio patriótico de “Olhar para a Inglaterra Primeiro” na paráfrase igualmente
patriótica de “Criticar a Inglaterra Primeiro”. Tenho feito isso por tempo suficiente para estar bem
consciente de que há males presentes na Inglaterra que estão relativamente ausentes nos Estados
Unidos; e nenhum mais conspicuamente ausente, como o Sr. Belloc observou para a surpresa de
muitos, do que a adoração real, servil, supersticiosa e mística do Dinheiro.

Mas o que me faz tão condenável na presente situação é que sinto uma considerável simpatia por
ambos os lados. Essa atitude ofensiva tentarei ocultar, tanto quanto possível, por um abuso
tacitamente distribuído de coisas que considero abusivas, e por uma aversão elegantemente
simulada por uma ou outra parte de cada caso controverso. Mas a verdade simples é que se eu fosse
americano, eu muito frequentemente me regozijaria quando a Mercury criticasse algo ou alguém;
tampouco meu modesto lar ficaria sem certa exultação quando a Mercury fosse criticada. Mas o que
definitivamente penso é que ambos os lados, e talvez especialmente o lado iconoclasta, precisam do
que todo o mundo moderno precisa – um padrão espiritual fixo, mesmo para seus próprios objetivos
intelectuais. Posso expressar isto dizendo que gosto muito de revolucionários, mas não muito de
niilistas. Pois, os niilistas, como o próprio nome implica, não têm com que se revoltar.

Sob esse ângulo, há pouco o que adicionar ao artigo admiravelmente são, sutil e penetrante do Sr.
T.S. Eliot;[2] especialmente aquela sentença vital em que diz ao Professor Irving Babbitt[3] (que
admite a necessidade de entusiasmo) que não podemos ter um entusiasmo por termos entusiasmo.
Penso que sei, incidentalmente, o que devemos ter. O Professor Babbitt é um homem muito culto; e
eu mesmo conheço pouco latim e menos ainda grego. Mas conheço o bastante de grego para saber o
significado da segunda sílaba de “entusiasmo”, e sei que ela é a chave para esta e outras discussões.

Permitam-me considerar dois exemplos, que demonstram minha concordância com ambos os lados.
Admiro grandemente o Sr. Mencken, não apenas por sua vivacidade e espirituosidade, mas pela sua
veemência e, por vezes, por sua violência. Calorosamente o aplaudo por seu desprezo e detestação
do Serviço; e considero que ele esteja afirmando um fato histórico quando diz, como citado em The
Forum: “Quando uma gangue de agentes imobiliários, corretores de títulos e concessionários de
veículos se reúnem para choramingar contra o Serviço, não precisamos ser freudianos para suspeitar
que alguém está próximo à fraude.” Não vejo porque ele não devesse chamar uma espada de espada
e um fraudador de fraudador. Não o culpo por usar palavras vulgares para coisas vulgares. Mas
observo dois modos em que o fato de sua filosofia ser negativa faz com que sua crítica seja quase
superficial. Em primeiro lugar, é óbvio que tal sátira é inteiramente insignificante a menos que
fraude seja pecado. E é igualmente óbvio que somos instantaneamente tragados pelo abismo do
“moralismo” e do “religiosismo”, se for pecado. E o segundo ponto, se menos óbvios, é igualmente
importante – o instinto saudável do Sr. Mencken contra a hipocrisia obscena não o esclarece a
respeito do coração desta hipocrisia.

A questão sobre o culto do Serviço é que, como tantas noções modernas, ela é uma idolatria do
intermediário, às custas do esquecimento do principal. É como o jargão dos idiotas que falam sobre
Eficiência sem qualquer crítica ao Efeito. O pecado do Serviço é o pecado de Satã: aquele de tentar
ser o primeiro onde ele pode ser apenas o segundo. Uma palavra como Serviço roubou a sagrada
letra maiúscula da coisa que ela em princípio devia servir. Há um sentido em servir a Deus, e um
sentido ainda mais discutível em servir ao homem; mas não há sentido em servir o Serviço. Servir a
Deus é pelo menos servir a um ser ideal. Mesmo se ele fosse um ser imaginário, ele ainda estaria
sendo um ser ideal. Esse ideal tem atributos definidos e mesmo dogmáticos – verdade, justiça,
misericórdia, pureza, etc. Servir-lhe, mesmo imperfeitamente, é servir a um particular conceito de
perfeição. Mas o homem que corre pela rua acenando seus braços e desejando servir a algo ou a
alguém, cairá provavelmente nas mãos da primeira casa de câmbio clandestina ou no primeiro covil
de ladrões ou usurários, e será encontrado servindo-LHES diligentemente. Assim surge a horrível
idéia de que dedicação, confiabilidade, pontualidade são coisas boas; que mera prontidão para servir
aos poderes deste mundo é uma virtude cristã. Esta é a questão contra o Serviço, que é distinto da
maldição contra o Serviço, que tão animada e inspiradamente é rogada pelo Sr. Mencken. Mas a
séria questão não pode ser declarada sem uma vez mais se perguntar se a humanidade deve servir a
alguma coisa; e se não seria melhor tentarmos definir primeiro a que pretendemos servir. Todas
essas palavras tolas como Serviço, Eficiência, Praticidade, etc. falham porque prestam culto aos
meios e não ao fim. Mas tudo se resume a se nos propomos a cultuar o fim; e preferivelmente ao
fim verdadeiro.

Duas outras passagens do texto do Sr. Mencken servirão para mostrar mais agudamente a curiosa
situação em que ele parece negar o que afirma. De um lado, ele parece afirmar muito positivamente
a natureza puramente intencional e subjetiva da crítica; a faz individual e quase irresponsável. “O
crítico está acima de tudo tentando se expressar; está tentando alcançar com isso, para seu próprio
ego interior, o sentimento gratificante de uma função desempenhada, de uma tensão aliviada, de
uma catarse atingida, que Wagner atingiu quando escreveu DIE WALKURIE, e uma galinha atinge
toda vez que bota um ovo.” Isso tudo é muito consistente até certo ponto; mas infelizmente o Sr.
Mencken parece continuar com algo muito inconsistente. Segundo o trecho citado, ele ao final
irrompe com uma canção de triunfo porque há agora nos EUA não somente crítica, mas
controvérsia. “Atualmente, pela primeira vez em anos, há conflito na crítica americana ... orelhas
são mordidas, narizes sangram. Há bofetadas acima e abaixo da cintura.”

Ora, pode haver algo de real em suas afirmações sobre a controvérsia, mas isso é inconsistente com
suas afirmações sobre a auto-expressão criativa. Se o crítico produz a crítica APENAS para se
agradar, é inteiramente irrelevante que ela não agrade alguém mais. O alguém mais tem o direito de
dizer o exato oposto para se agradar, e estar perfeitamente satisfeito consigo mesmo. Mas eles não
podem se controverter porque não podem se comparar. Não podem se comparar porque não há um
padrão comum de comparação. Nem eu nem ninguém pode ter uma controvérsia sobre literatura
com o Sr. Mencken, porque não há forma de criticar a crítica, exceto perguntando se o crítico está
satisfeito. E aí o debate acaba, exatamente no início; pois ninguém pode duvidar de que o Sr.
Mencken esteja satisfeito.

Mas para não fazer o Sr. Mencken uma mera vítima do ARGUMENTUM AD HOMINEM, farei o
experimento num corpus vile[4] e me oferecerei para dissecação. Atrevo-me a dizer que grande
parte da crítica que escrevo é realmente estimulada por estado de espírito de auto-expressão; e
certamente é verdade que há uma satisfação na auto-expressão. Posso tirar uma coisa ou outra em
relação a qual tenha sentimentos definitivos – como, por exemplo, a filosofia do Sr. Dreiser,[5] que
já foi mencionada mais de uma vez nesse debate. Posso alcançar para meu próprio ego interior o
sentimento gratificante de escrever o seguinte: “Ele descreve um mundo que parece ser uma
enfadonha e descolorida ilusão de indigestão, não suficientemente brilhante para ser chamada de
pesadelo; malcheirosa, mas não fedorenta; cheirando a gás estragado de experimentos químicos
ignorantes feitos por estudantes sujos e dissimulados – o tipo de garotos que torturam gatos em
becos isolados; desfibrado e desanimado como um verme ferido; repugnantemente vagaroso e
laboriosamente parecido com uma lesma interminável; desesperador, mas sem nenhuma coragem;
sem vivacidade, sem vontade, sem risada e sem elevação de coração; muito velho para morrer,
muito surdo para desistir de falar, muito cego para parar, muito estúpido para começar de novo,
muito morto para ser assassinado, e incapaz de até mesmo ser amaldiçoado, pois em todos os seus
desgastados séculos, não alcançou a idade da razão.”

Isso é o que sinto; e certamente me dá prazer aliviar meus sentimentos. Livrei-me do que me
apertava o peito. Fiz uma catarse. Botei um ovo. Produzi uma crítica que satisfaz todas as
definições do Sr. Mencken. Desempenhei uma função. Sinto-me muito bem, obrigado.

Mas qual influência meus sentimentos podem ter no Sr. Dreiser, ou em alguém que não admite
meus padrões de verdade e falsidade, não consigo muito perceber. Pode-se dificilmente esperar que
o Sr. Dreiser diga que sua química é charlatanismo, como penso que é – charlatanismo sem a
vivacidade que podemos razoavelmente esperar de charlatães. Ele não considera o fatalismo vil e
servil, como eu; ele não considera o livre arbítrio a mais alta verdade sobre a humanidade, como eu.
Ele não acredita que o desespero é em si mesmo um pecado, e talvez o pior dos pecados, como os
católicos. Ele não considera a blasfêmia o menor e mais tolo tipo de orgulho, como até os pagãos o
fazem. Ele naturalmente não considera sua própria idéia da vida uma falsa idéia, assemelhando-se à
vida real tanto quanto uma vastidão de linóleo assemelha-se ao campo de todas a flores vivas, como
eu considero. Mas ele não a consideraria mais falsa por ser uma vastidão. Ele admitiria
provavelmente que ela fosse sombria, mas consideraria isto correto. Ele provavelmente admitiria
que estivesse perdido, mas não veria nenhum mal em estar perdido. O que eu apresento como
acusação, ele muito provavelmente aceitaria como elogio.

Nestas circunstâncias, não vejo como eu, ou alguém com minhas idéias, poderia estabelecer uma
controvérsia com o Sr. Dreiser. Não parece haver qualquer forma de eu provar que ele está errado,
porque ele não aceita minhas idéias do que é errado. Não parece haver qualquer forma de ele provar
que está certo, porque não compartilho suas noções do que é certo. Podemos, de fato, nos encontrar
na rua e nos atracar; e embora eu acredite que somos ambos homens pesados, não duvido que ele
seja o mais formidável. A própria possibilidade de que sejamos reduzidos a essa explicação
inarticulada pode talvez lançar alguma luz na impressionante descrição do Sr. Mencken sobre a
nova vida literária nos EUA. “Orelhas são mordidas”, ele diz; e esta curiosa forma de
relacionamento cultural poderia realmente ser a única solução, quando orelhas não forem mais
órgãos da audição e quando não houverem mais órgãos exceto os órgãos de auto-expressão. Aquele
que tiver ouvidos para ouvir e não escutar pode muito bem ter suas orelhas mordidas. Tal surdez
parece inevitável no crítico criativo, que é tão indiferente a todos os ruídos como uma galinha,
exceto para o ruído de seu próprio cacarejar quando chocando seu próprio ovo. De toda forma,
galinhas não criticam os ovos alheios, ou jogam ovos umas nas outras, como acontece nas
controvérsias políticas. Podemos apenas dizer que o romancista em questão botou indubitavelmente
um grande, sólido e magnificente ovo – algo da natureza de um ovo de avestruz; e depois disso, não
há nada que impeça a avestruz de esconder sua cabeça na areia, atingindo com isso, pelo seu
próprio ego interior, o sentimento gratificante de uma função desempenhada. Mas não podemos
discutir se o ovo é um ovo ruim, ou se partes dele são excelentes.
Em todas essas circunstâncias, portanto, em razão da ausência de um padrão último de valor, as
mais ordinárias funções não podem ser realmente desempenhadas. Elas não podem ser
desempenhadas não só com “um sentimento gratificante”, ou uma catarse, mas a longo prazo não
podem ser desempenhadas de forma alguma. Não podemos realmente denunciar o corretor de
títulos e promotor do Serviço como um farsante, pois não temos um acordo claro que seja
vergonhoso ser um farsante. Um pouco de manipulação de algumas teorias individualistas do
próprio Sr. Mencken – sobre a mentalidade ser superior ao moralismo – pode apresentar o farsante
como um super-homem. Não podemos realmente argumentar a favor ou contra o mero ideal do
Serviço, porque nenhum dos lados considera o que é para ser servido ou como chegaremos à regras
corretas para servir-lhe. Consequentemente, na prática, pode ser que o Estado de Serviço seja
meramente o Estado Servil. E finalmente, não podemos realmente argumentar a respeito disso ou de
qualquer outra coisa, pois não há regras para o jogo da argumentação. Não há como provar que
alguém ganhou um ponto. Não pode haver “conflito na crítica americana”; os professores não
podem ser “forçados a esboçar alguma defesa.” Isso exigiria acusadores e defensores frente a algum
tribunal mostrando evidências segundo alguns testes da verdade. Pode haver um distúrbio, mas não
uma discussão.

Em resumo, as funções normais do homem – esforço, protesto, julgamento, persuasão e prova – são
prejudicadas ou impedidas por tais negações do cético mesmo quando o cético parece, a princípio,
estar apenas negando alguma visão distante ou alguma lenda miraculosa. Cada função se refere de
fato a algum fim, a algum teste, a alguma forma de distinção entre o uso e o abuso, que o cético
mais comum destrói tão completamente como destruiria qualquer mito ou superstição. Se a função é
desempenhada apenas por satisfação de quem a desempenha, como na parábola do crítico e do ovo,
torna-se fútil discutir se é um ovo podre. Torna-se fútil considerar se ovos produzirão galinhas ou
comporão o café da manhã. Mas mesmo para nos certificarmos de nossa própria sanidade quando
da aplicação de testes, temos realmente de nos voltar para algum problema aborígene, como o do
antigo enigma da anterioridade do ovo ou da galinha; temos realmente, como as grandes religiões,
de começar AB OVO. Se essas sanidades primordiais são perturbadas, a totalidade da vida prática é
perturbada com elas. Os homens podem ser congelados pelo fatalismo, ou enlouquecidos pelo
anarquismo, ou levados à morte pelo pessimismo; pois os homens não continuarão indefinidamente
agindo no que eles consideram uma fábula. E é neste sentido orgânico e quase muscular que a
religião é realmente o auxílio do homem – no sentido de que sem isso ele está perdido, quase
imóvel.

O Sr. Mencken, o Sr. Sinclair Lewis e outros críticos no movimento MERCURY são tão ardentes e
sinceros, eles atacam tão vigorosamente tantas coisas que deve ser atacadas, eles expõem tão
brilhantemente tantas coisas que são imposturas reais, que na discussão com eles um homem terá
um impulso de colocar suas cartas sobre a mesa. Seria fingimento e quase hipocrisia se eu
ignorasse, aqui, o fato de que eu próprio acredito numa solução espiritual especial para esse
problema, uma autoridade espiritual especial sobre esse caos. Tampouco essa idéia está
completamente ausente, como idéia, de muitas outras mentes além da minha. A filosofia católica é
mencionada com muito respeito, e até mesmo com uma espécie de esperança, tanto pelo Prof.
Babbit[6] quanto pelo Sr. T.S. Eliot. Compreendo bem sua cortesia e não procuro levá-los um passo
a mais do que eles desejam ir. Mas, de fato, por uma série de infalíveis passos lógicos, o Sr. Eliot
levou o Prof. Babbitt tão perto dos portões da Igreja Católica que ao final senti-me muito nervoso,
por assim dizer, temendo que eles dessem outro passo involuntário e caísse dentro dela por acidente.

Tenho uma razão particular para mencionar essa questão ao modo de conclusão – uma razão que
está diretamente relacionada a esse curioso efeito do ceticismo em enfraquecer as funções normais
do ser humano. Em um dos mais brilhantes e divertidos livros do Sr. Sinclair Lewis há uma
passagem que cito de memória, mas que penso estar mais ou menos correta. Ele disse que a Fé
Católica difere do Puritanismo corrente na medida em que não pede a um homem que abra mão de
seu senso de beleza, ou de seu senso de humor, ou de seus vícios prazerosos (que ele provavelmente
entende como fumar ou beber, que não são absolutamente vícios), mas também na medida em que
pede a um homem que abra mão de sua vida e alma, de sua mente, de sua razão, etc. Peço ao leitor
que considere, tão calma e imparcialmente possível, a afirmação aqui feita; e coloque-a ao lado de
todos os outros fatos sobre a gradual fossilização da função humana pelas dúvidas fundamentais de
nossos dias.

Seria muito mais verdadeiro dizer que a Fé devolve a um homem seu corpo e sua alma, sua razão e
sua vontade, devolve sua própria vida. Seria muito mais verdadeiro dizer que o homem que a
recebeu, recebe todas as antigas funções que todas as outras filosofias estão tirando. Seria muito
mais próximo da realidade dizer que somente ele terá liberdade, que somente ele terá vontade,
porque somente ele acreditará no livre arbítrio; que somente ele terá razão, pois a dúvida final nega
a razão tanto quanto a autoridade; que somente ele agirá verdadeiramente, porque a ação visa a um
fim. É pelo menos uma visão menos improvável, que todo esse obstinado e incorrigível desespero
do intelecto fará, afinal, do homem que abraçou a Fé o único cidadão andante e falante numa cidade
de paralíticos.

[1] A revista Mercury foi criada em 1921 pelo jornalista, ensaísta e ácido crítico do american way of life, Henry Louis Mencken e circulou até 1981.
(N. do T.)
[2] "The Humanism of Irving Babbitt"[O Humanismo de Irving Babbitt], The Forum, July 1928.
[3] Crítico literário americano que teve muita influência no movimento chamado “Novo Humanismo”. Babbitt foi professor de Eliot em Harvard. O
humanismo de Babbitt é similar a um ecumenismo radical. (N. do T.)
[4] Corpo ou coisa inútil, exceto para experimentos. (N. do T.)
[5] Theodore Herman Albert Dreiser (1871, 1945) – romancista, jornalista e crítico americano. Comunista de carteirinha, era grande crítico do
capitalismo e imperialismo americano. (N. do T.)
[6] “The Critic and American life,” [A crítica e a vida americana] The Forum, February 1928.
3. SERÁ O HUMANISMO UMA RELIGIÃO?

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929


Gilbert Keith Chesterton
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Nota: Este é aparentemente um texto de crítica literária, mas nas mãos de Chesterton ele se
transforma num texto da mais refinada apologética católica. O autor identifica, agrupa e disseca
um grupo poderoso e moderno de inimigos da Igreja. Ele mostra como este grupo, constituído dos
intelectuais mais influentes, são hereges como o foram os protestantes do século XVI e os
revolucionários do século XVIII. Mostra que a forma com que agem os hereges modernos é a
mesma de seus “protótipos”, como Chesterton denomina os seus antepassados e, para terminar, ele
nos brinda com a sua versão do dogma católico “Extra Ecclesiam nulla salus”.
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Acabo de ler o livro “A Crítica Americana”, do Sr. Norman Foerster; espero que não seja
desrespeito ao livro como um todo, que é uma série de detalhados estudos sobre pensadores
americanos, se digo que sua parte principal se encontra no último capítulo; que propõe certo
problema ou desafio ao pensamento moderno. O problema é se o que ele chama de humanismo
pode satisfazer a humanidade. De seus outros tópicos seria fácil falar para sempre. Ele geralmente
diz a coisa certa; ele às vezes diz a última palavra, naquele estilo sugestivo e provocativo que induz
alguém a dizer uma palavra a mais. Em minha própria opinião sobre os autores por ele analisados,
Whitman seria muito maior e Lowell muito menor. Sobre Emerson, ele parece sensível e justo; e
Emerson certamente tinha distinção; mas justamente aquele tipo de árida distinção em relação a
qual sempre temi ser injusto. Um puritano tentou ser pagão; e conseguiu ser um pagão que hesitava
sobre se devia ir ver uma garota dançando. Todas estas questões são estimulantes, mas secundárias
em relação à questão que tomarei a liberdade de abordar separadamente, e de tentar responder
seriamente. Temo que respondê-la seriamente deva significar respondê-la pessoalmente. A questão é
realmente se o humanismo pode desempenhar todas as funções da religião; e não posso evitar
considerá-la em relação à minha própria religião. É justo dizer que o humanismo é muito diferente
do humanitarismo. Seu significado, como explicado aqui, é o seguinte. A ciência e a organização
modernas são, em certo sentido, excessivamente naturais. Elas nos arrebanham como animais
selvagens, segundo a característica de hereditariedade e o destino tribal; elas prendem o homem à
terra como uma planta, em vez de libertá-lo como um pássaro, para não dizer como um anjo. De
fato, sua mais recente psicologia é mais inferior que o nível da vida. O que é subconsciente é sub-
humano e, supostamente, subterrâneo: ou algo menos que terrestre. Esta luta pela cultura é, acima
de tudo, uma luta pela consciência: o que alguns chamariam auto-consciência; mas, de qualquer
forma, contra a mera subconsciência. Precisamos de uma reunião de coisas realmente HUMANAS;
vontade que seja moral, memória que seja tradição, cultura que seja a frugalidade de nossos pais.
Todavia, minha primeira obrigação é responder à questão a mim colocada; e eu a devo responder
negativamente.

Não creio que o humanismo possa ser um substituto completo do super-humanismo. Não o creio
por causa de certa verdade, tão concreta para mim, que pode ser considerada um fato. Sei que isso
soa como algo que é comumente dito em apologética convencional e superficial. Mas não o afirmo
naquele sentido vago; longe de herdá-lo como uma convenção, com ele colidi muito recentemente
como com uma descoberta. Eu o percebi relativamente tarde na vida, e percebi que ele é realmente
toda a história moral de meu próprio tempo. Mas mesmo há poucos anos, quando grande parte de
minhas idéias morais e religiosas estavam muito bem consolidadas, eu não o via tão aguda e
claramente como o vejo agora.

O fato é este: que o mundo moderno, com todos os seus movimentos modernos, está vivendo do seu
capital católico. Está usando, e esgotando, as verdades que permanecem do antigo tesouro da
cristandade, incluindo, claro, muitas verdades conhecidas da antiguidade pagã, mas cristalizadas na
cristandade. Mas o mundo moderno NÃO está realmente inaugurando suas próprias devoções. A
novidade é uma questão de nomes e rótulos, como a propaganda moderna; de quase todas as
formas, a novidade é simplesmente negativa. Não está iniciando coisas novas que ele [o mundo
moderno] possa conduzir muito longe no futuro. Ao contrário, está tomando coisas antigas que não
pode conduzir em absoluto. Pois estas são as duas marcas dos ideais morais modernos. A primeira,
que eles são tomados de empréstimo ou arrebatados de mãos antigas ou medievais. A segunda, que
ele definha muito rapidamente em mãos modernas. Esta é, muito brevemente, a tese que defendo; e
acontece que o livro “A Crítica Americana” quase poderia ter sido escrito para servir de livro-texto
para provar minha opinião.

Começarei com um exemplo particular do qual o livro também trata. Toda a minha juventude foi
preenchida, como com uma aurora, com o ardente brilho de Walt Whitman. Ele parecia-me algo
como uma montanha transformada num gigante, ou como Adão, o Primeiro Homem. Tremia só de
ouvir de alguém que ouvira de alguém que o tivesse visto na rua; era como se Cristo ainda vivesse.
Não tomava conhecimento se sua poesia sem métrica era ou não uma sábia forma, do mesmo modo
que pouco me importava se o Evangelho de Jesus fora rabiscado no pergaminho ou na pedra. Nunca
tive a menor idéia do mal que alguns inimigos o atribuíam; se estivesse lá, não estava lá para mim.
O que eu saudava era uma nova igualdade, que não era um tedioso nivelamento, mas uma
entusiástica elevação; uma clamorosa exaltação pelo simples fato de que os homens eram homens.
Homens reais eram maiores que deuses irreais; e cada qual permanecia tão místico e majestoso
como um deus, enquanto ele se tornava tão franco e reconfortante como um camarada. A idéia pode
ser expressada compactamente por uma das próprias frases de Whitman; ele diz, em algum lugar,
que artistas antigos pintavam multidões em que uma cabeça tinha um halo de luz dourada; “mas eu
pinto centenas de cabeças, mas não pinto uma cabeça sequer sem seu halo de luz dourada.” A glória
era apegar-se aos homens como homens; uma adoração mútua tomava a forma de camaradagem; e o
menor e mais desprezível dos homens deve ser incluído nesta camaradagem; um negro corcunda e
retardado, com um só olho e uma obsessão homicida, não deve ser pintado sem seu halo de luz
dourada. Isto poderia parecer apenas a expansão final de um movimento começado um século antes,
com Rousseau e os revolucionários; e eu fui educado para acreditar, e acreditei, que o movimento
era o começo de coisas maiores e melhores. Mas estas eram canções antes da aurora; e não há
comparação nem mesmo entre o sol e a aurora. Whitman era a irmandade em plena luz do dia,
mostrando infindáveis variedades de criaturas radiantes e maravilhosas, ainda mais sagradas por
serem sólidas. Shelley adorava o Homem, mas Whitman adorava os homens. Cada face humana,
cada característica humana, era motivo para uma poesia mística, como a luz de um fortuito archote,
até então, uma face aqui e ali na multidão. Um rei era um homem tratado como todo homem deveria
ser tratado. Um deus era um homem adorado como todo homem deveria ser adorado. O que
poderiam fazer contra uma raça de deuses e uma república de reis; não verbalmente, mas
verdadeiramente, o Mundo Novo?

Bem ... eis que o Sr. Foerster diz sobre a presente posição do fundador do novo mundo da
democracia: “Nossa ciência atual proporciona pouco respaldo a uma inerente ‘dignidade do
homem’ ou à sua ‘perfectibilidade’. É completamente possível que a ciência do futuro nos afastará
da democracia, nos levando a alguma forma de aristocracia. As expectativas milenárias que
Whitman edificou sobre a ciência e a democracia assentam-se agora, bem sabemos, sobre bases
incertas. A perfeição da natureza, a bondade natural do homem, o ‘grande orgulho do homem em
relação a si mesmo’ contra-balançado por um humanitarismo emocional – estes são os materiais de
uma estrutura levemente colorida com modernidade. Sua política, ética e religião pertencem ao
passado, mesmo aquela superficial ‘religiosidade’ que, ele acreditava, expandiria e completaria a
tarefa da ciência e da democracia ... No essencial de sua profecia, Whitman, somos forçados a
concluir, foi refutado pelos fatos.” Esta é uma afirmação muito moderada e justa; seria fácil
encontrar a mesma coisa numa afirmação muito mais feroz. Eis uma monumental observação do Sr.
H.L. Mencken: “Eles (ele quer dizer certos pensadores liberais e ex-liberais) acabaram percebendo
que os idiotas a quem eles suaram para salvar, não querem ser salvos, e não merecem ser salvos.”
Este é o Novo Espírito, se é que há algum Novo Espírito. “Construirei cidades inconquistáveis, com
cada braço em torno de cada pescoço,” clamava Walt Whitman, “por amor aos camaradas, pelo
permanente amor aos camaradas.” Fico a pensar no rosto do Sr. Mencken de Baltimore, se algum
camarada casual de Pittisburgh tentasse torná-lo inconquistável colocando um braço em torno de
seu pescoço. Mas a idéia está morta por causa de homens muito menos ferozes que o Sr. Mencken.
Ela está morta num homem como Aldous Huxley, que reclamou recentemente do romantismo
“gratuito” da antiga visão republicana da natureza humana. Está morta no mais benevolente e
cômico de nossos críticos recentes. Está morta em tantos homens sábios e bons da atualidade, que
não posso evitar de pensar que, sob as modernas condições de sua “ciência” favorita, ela estaria
morta no próprio Whitman.

Não está morta em mim. Ela permanece real para mim, não por nenhum mérito próprio, mas pelo
fato de que essa idéia mística, embora tenha evaporado como temperamento, ainda persiste como
credo. Estou inteiramente preparado para declarar, tão firmemente quanto declararia em minha
juventude, que um negro corcunda e retardado está decorado como um halo de luz dourada. A
verdade é que o extravagante quadro de Whitman, ou o que ele pensava ser um quadro
extravagante, é, realmente, um quadro muito antigo e ortodoxo. Há, na verdade, incontáveis
quadros antigos em que multidões inteiras são coroadas com halos, para indicar que todos atingiram
a Beatitude. Mas, para os católicos, é um dogma fundamental da Fé que todos os seres humanos,
sem nenhuma exceção sequer, foram especialmente criados, foram formados e afinados como setas
brilhantes, a fim de atingirem o alvo da Beatitude. É verdade que as flechas são cobertas com as
penas do livre-arbítrio e, portanto, projetam a sombra das trágicas possibilidades do livre-arbítrio; e
que a Igreja (tendo estado consciente por eras sem fim daquele lado obscuro da verdade, que os
novos céticos acabaram de descobrir) também chama a atenção para as trevas dessa tragédia
potencial. Mas isso não faz a menor diferença para a grandeza da glória potencial. Em certo
aspecto, é até mesmo parte dela; pois a liberdade é, em si mesma, uma glória. Neste sentido, eles
ainda usariam seus halos até mesmo no inferno.

Mas a questão é que qualquer um que acredite que todos esses seres foram criados para serem
santificados, e multidões deles estão provavelmente no caminho da santificação, tem razoável
motivo filosófico para considerá-los todos criaturas radiantes e maravilhosas, ou ver todas as suas
cabeças circundadas por halos. Essa convicção faz de cada face humana, de cada característica
humana, um tema de poesia mística. Mas esta não é em absoluto como a moderna poesia. A mais
recente poesia moderna não é poesia da recepção, mas da rejeição, ou melhor, da repulsão. O
espírito que habita os mais recentes trabalhos pode ser chamado de uma fúria do fastio. O novo
homem de letras não causa impacto dizendo que para ele um negro corcunda tem um halo. Ele
causa impacto dizendo que exatamente quando ele estava a ponto de abraçar a mais honrada das
mulheres, ele sentiu-se nauseado por uma acne acima da sobrancelha dela ou por uma mancha de
gordura em seu polegar esquerdo. Whitman tentou provar que coisas sujas eram realmente limpas,
como quando ele glorificava o estrume como a origem da pureza da grama. Seus seguidores no
verso livre tentam provar que as coisas limpas são realmente sujas; tentam sugerir algo de leproso e
repulsivo na brancura espessa do leite, ou algo pruriginoso e pestilento sobre o inexplicável
crescimento do cabelo. Em resumo, todo o temperamento mudou na temática poética. Mas ele não
mudou na temática teológica; e este é o argumento a favor de uma teologia imutável. A teologia
católica nada tem a ver com a democracia, a favor ou contra, no sentido de um mecanismo de
votação ou da crítica de privilégios políticos particulares. Não está comprometida em apoiar o que
Whitman dizia a favor da democracia, ou mesmo o que Jefferson ou Lincoln diziam a favor da
democracia. Mas ela está completamente comprometida em contradizer o que o Sr. Mencken diz
contra a democracia. Haverá perseguições dioclecianas, haverá cruzadas dominicanas, haverá a
ruptura de toda a paz e acordo religiosos, ou mesmo o fim da civilização e do mundo, antes que a
Igreja Católica admita que um único idiota, ou um único homem, “não mereça a salvação”.

Descobri assim, na meia idade, esse fato curioso sobre a lição de minha vida, e aquela de toda a
minha geração. Todos crescemos com uma convicção comum, iluminada pelas chamas do gênio
literário de Rousseau, de Shelley, de Vitor Hugo, encontrando seu irrompimento e deflagração final
no universalismo de Walt Whitman. Todos nós aceitamos como coisa natural que todos os nossos
descendentes iriam aceitá-la como coisa natural. Eu disse que a descoberta da irmandade parecia
com a descoberta da luz do dia; de algo de que os homens não se cansariam. Todavia, mesmo no
curto período de minha existência, os homens já dela se cansaram. Não podemos agora apelar ao
amor da igualdade como uma EMOÇÃO. Não podemos agora abrir um livro de poemas e esperar
que ele seja sobre o amor vitalício entre camaradas, ou o “Amor, amada República, que se alimenta
de liberdade e vive.”[1] Percebemos que na maioria dos homens ela morreu, porque era um estado
de ânimo e não uma doutrina. E começamos a ponderar muito tarde, ao modo sábio dos anciões,
como poderíamos jamais ter tido a expectativa de ela durar na forma de estado de ânimo, se ela não
era forte o suficiente para perdurar como uma doutrina. E também começamos a perceber que toda
a força real que nela havia, que é a única força que nela permanece, era a força original da doutrina.
O que realmente aconteceu foi o seguinte: o homem do século XVIII, muitos deles com uma justa
impaciência com padres corruptos e cínicos, dirigiram-se a eles com indignação e disseram: “Bem,
suponho que vocês se denominam cristãos; assim vocês não podem realmente NEGAR que os
homens sejam irmãos ou que seja nossa obrigação ajudar os pobres.” A própria confiança de seu
desafio, o próprio tom marcante da voz revolucionária, vinha do fato de que os cristãos reacionários
estavam numa falsa posição como cristãos. A exigência democrática venceu porque pareceu
irrespondível. E ela pareceu irrespondível, não porque era irrespondível, mas porque nem mesmo os
cristãos decadentes ousaram dar a resposta. O Sr. Mencken estará sempre pronto em nos obsequiar
com a resposta.

Ora, foi exatamente aqui, para mim, que a coisa começou a ficar estranha e interessante. Pois,
olhando em retrospectiva para crises religiosas mais antigas, penso ver certa coincidência, ou
melhor, um conjunto de coisas excessivamente coincidentes para ser considerado uma coincidência.
Afinal, quando chego a pensar nisso, todas as outras revoltas contra a Igreja, antes da Revolução e
especialmente desde a Reforma, contaram a mesma estranha história. Todo grande herege sempre
exibiu a combinação de três extraordinárias características. A primeira é que ele escolhia alguma
idéia mística do conjunto harmonioso das idéias místicas da Igreja. A segunda característica é que
ele usava aquela única idéia mística contra todas as idéias místicas. A terceira (e a mais singular) é
que ele parecia não ter tido nenhuma noção de que sua própria idéia mística favorita era uma idéia
mística, pelo menos no sentido de uma idéia misteriosa, dúbia ou dogmática. Com uma estranha e
incomum inocência, ele aparentemente sempre considerava esta idéia uma coisa natural. Ele a
pressupunha inatacável, mesmo quando ele a estava usando para atacar idéias similares. O exemplo
mais popular e óbvio é a Bíblia. A um pagão imparcial ou a um observador cético, esta deve ter
sempre parecido a mais estranha história do mundo; que homens invadindo um templo para destruí-
lo, destruindo o altar e expulsando o padre, encontraram lá certos volumes sagrados intitulados
“Salmos” ou “Evangelhos”; e (invés de jogá-los ao fogo com o resto) começaram a usá-los como
oráculos infalíveis para invalidar todos os outros sistemas. Se o altar sagrado e principal está errado,
por que os documentos sagrados e secundários estariam certos? Se o padre profanava os
Sacramentos, por que não poderia ter profanado as Escrituras? Mesmo assim, demorou muito para
que ocorresse àqueles que brandiam esta peça do mobiliário da Igreja para quebrar todo o
mobiliário da Igreja, quão profano seria examinar este fragmento do mobiliário. As pessoas se
surpreenderam muito, e em algumas partes do mundo ainda estão surpresas, que alguém tenha tido
a audácia de fazê-lo.
Mais uma vez, os calvinistas tomaram a idéia católica do absoluto conhecimento e poder de Deus; e
a trataram como um truísmo pétreo e irredutível, tão sólido que qualquer coisa poderia sobre ele ser
construído, não importando quão esmagador e cruel fosse. Eles estavam tão confiantes na lógica de
seu princípio fundamental da predestinação, que torturaram o intelecto e a imaginação com terríveis
deduções a respeito de Deus, que pareciam transformá-lo num demônio. Mas nunca pareceu ter-lhes
ocorrido que alguém pudesse inesperadamente dizer que não acreditava em demônios. Eles ficaram
surpresos quando pessoas rotuladas de “infiéis”, aqui e ali, começaram a dizê-lo. Eles tinham
suposto a presciência Divina tão definitiva que ela devia, se necessário, consumar-se através da
destruição da misericórdia Divina. Então veio Wesley e a reação contra o calvinismo; os
evangélicos apoderaram-se da idéia eminentemente católica de que a humanidade tem o sentido do
pecado; e eles perambularam por todo o canto a oferecer a todos alívio de sua misteriosa carga de
pecado. É um provérbio, e quase uma piada, que eles se dirigissem a um estranho na rua e se
oferecessem para abrandar sua secreta agonia do pecado. Mas raramente pareceu ter-lhes ocorrido,
até muito mais tarde, que o homem na rua pudesse responder que ele não desejava ser salvo mais do
pecado do que da febre maculosa ou da Dança de São Vito; porque estas coisas não estavam
causando-lhe nenhum sofrimento. Eles, por sua vez, ficaram muito surpresos quando o resultado do
otimismo de Rousseau e da Revolução começou a se expressar nos homens que alegavam uma
felicidade e dignidade puramente humanas; um contentamento com a camaradagem com os de sua
espécie; terminando com a feliz vociferação de Whitman de que ele não “perde o sono e chora por
seus pecados”.

Ora, a verdade pura e simples é que Shelley, Whitman e os otimistas revolucionários estavam, eles
próprios, repetindo tudo novamente. Eles, embora menos conscientemente por causa do caos de sua
época, também escolheram da antiga tradição católica uma idéia transcendente particular; a idéia de
que há uma dignidade espiritual no homem enquanto homem, e uma obrigação universal de amar o
homem enquanto homem. E eles agiram exatamente do mesmo modo extraordinário de seus
protótipos, os wesleyanos e calvinistas. Consideraram esta idéia absolutamente auto-evidente como
o sol ou a lua; que ninguém poderia jamais destruí-la, embora em nome dela eles destruíssem tudo o
mais. Eles insistiam permanentemente em sua divindade humana, em sua dignidade humana e no
inevitável amor por todos os seres humanos; como se estas coisas fossem simples fatos naturais. E
agora eles estão muito surpresos quando novos e incansáveis realistas irrompem de repente e
começam a dizer que um açougueiro com suíças ruivas e uma verruga no nariz não lhes parece
particularmente divino ou digno, que não sentem o menor impulso sincero de amá-lo, que poderiam
não amá-lo se tentassem, que não reconhecem nenhuma particular obrigação de tentar.

Pode parecer que o processo tenha chegado ao fim, que não haja nada mais a ser extraído pelo
realista puro. Mas não é assim; o processo pode continuar. Há ainda formas tradicionais de caridade
a que os homens se apegam. Há ainda formas tradicionais de caridade para serem descartadas por
eles quando descobrirem que elas são apenas tradicionais. Todos devem ter notado nos mais
recentes escritores a sobrevivência de um assaz dolorido modo de piedade. Eles não mais honram
todos os homens, como São Paulo e outros democratas místicos. Não seria muito dizer que eles
desprezam todos os homens; quase sempre (para fazê-los justiça) inclusive eles mesmos. Mas eles
se apiedam, em certo sentido, de todos os homens, e particularmente daqueles que são dignos de
piedade; atualmente eles estendem este sentimento quase desproporcionalmente a todos os animais.
Essa compaixão pelos homens tem também a mancha de sua conexão histórica com a caridade
cristã; e mesmo no caso dos animais, com o exemplo de muitos santos cristãos. Nada indica que um
novo recuo de tais religiões sentimentais não libertará os homens até da obrigação de se apiedarem
da dor do mundo. Não apenas Nietzsche, mas muitos neo-pagãos seguindo suas idéias, sugeriram
tal insensibilidade como a mais alta pureza intelectual. E tendo lido muitos poemas modernos sobre
o Homem do Futuro, feito de aço e iluminado com nada mais cálido do que o fogo verde, não tenho
dificuldade de imaginar uma literatura que se orgulhasse de um desapego impiedoso e metálico.
Então, talvez, fosse vagamente conjeturado que a última das virtudes cristãs morrera. Mas enquanto
elas viveram, houve cristãos.

Não creio, portanto, que o humanismo e a religião sejam rivais de mesmo nível. Creio ser uma
rivalidade entre o rio e a nascente; ou entre o tição e o fogo. Cada um desses antigos intelectuais
tirou um tição do fogo imortal; mas a questão é que embora ele tenha agitado a tocha muito
loucamente, embora tivesse usado a tocha para incendiar meio mundo, ela se apagou muito
rapidamente. Os puritanos não perpetuaram realmente sua sublime exaltação no desamparo; eles
apenas a fizeram impopular. Não olhamos indefinidamente as multidões do Brooklyn com os olhos
de Whitman; acabamos, com uma singular rapidez, considerando-as com os olhos de Dreiser. Em
resumo, desconfio de experiências espirituais fora da tradição espiritual central; pela simples razão
de que penso que elas não duram, mesmo quando conseguem se difundir. Elas perduram, no
máximo, por uma geração; comumente pelo período de uma moda; no mínimo, pelo período de uma
facção. Não creio que tenham o segredo da continuidade; não, certamente, da continuidade
corporativa. A um democrata antiquado e combatente como eu pode se desculpar o emprestar
alguma leve importância a esta última questão; aquela relativa à vida ordinária da humanidade.
Quantos humanistas supostamente existem entre as massas inferiores dos seres humanos? Serão
eles, por exemplo, não mais do que foram os filósofos gregos entre a multidão ordinária dos alegres
e politeístas pagãos gregos? Serão eles não mais do que foram os homens concentrados na Cultura e
Matthew Arnold, dentre a multidão de seguidores de Manning ou do General Both? Não pretendo,
de modo algum, escarnecer do humanismo; penso que compreendo a distinção intelectual que ele
faz; e tenho tentado compreendê-lo com um espírito de humildade; mas sinto um débil interesse em
quantos da abatida e desnorteada raça humana irão supostamente entendê-la. E pergunto com certo
interesse pessoal; pois há trezentos milhões de pessoas no mundo que aceitam os mistérios que eu
aceito e vivem a fé que eu professo. Desejo realmente saber se está previsto que haverá trezentos
milhões de humanistas na humanidade. O otimista pode dizer que o humanismo será a religião da
próxima geração, tal como Comte disse que a humanidade seria o Deus da próxima geração, e tal,
em certo sentido, ela foi. Mas não é o Deus desta geração. E a questão é qual será a religião da
próxima geração depois desta; o de todas as outras gerações (como diz certa antiga promessa) até o
fim do mundo.

O humanismo, no sentido do Sr. Foerster, tem um caráter muito sábio e valioso. Ele está realmente
tentando ajuntar as peças, isto é, ajuntar todas as peças. Tudo que foi feito antes era primeiro
destruição cega e então seleção aleatória e fragmentária; como se garotos tivessem quebrado uma
janela de vidro e feito com os cacos óculos de lentes coloridas, os óculos de lentes cor de rosa do
republicano ou os óculos verdes ou amarelos do pessimista e do decadente. Mas o humanismo,
como o aqui professado, inclinar-se-á para ajuntar tudo que possa; por exemplo, ele é grande o
suficiente para inclinar-se e pegar a jóia da humildade. Matthew Arnold, que fez algo do mesmo
porte pelo que ele chamava Cultura, em meados do século XIX, tentou algo parecido pela
preservação da castidade; que ele chamava, de um modo muito irritante, “pureza”. Mas antes de
considerarmos, seja a Cultura, seja o humanismo, um substituto da religião, há uma questão muito
simples que pode ser formulada na forma de uma rústica metáfora. O humanismo pode tentar
ajuntar as peças; mas pode ele colá-las? Onde está o cimento que fez da religião uma sociedade e a
fez popular, que pode impedi-la de ser desfeita em pedaços num escombro de gostos individuais? O
que impede um humanista desejar castidade sem humildade, e outro humildade sem castidade, e
ainda outro verdade ou beleza sem ambas? O problema de uma ética ou cultura duradoura consiste
em se encontrar um arranjo das peças através do qual elas permaneçam relacionadas como acontece
com as pedras de um arco. E eu conheço apenas um esquema que provou assim sua solidez,
cavalgando por terras e eras com seus arcos gigantes, e conduzindo o elevado rio do batismo sobre
os aquedutos de Roma.
[1] “Love, the beloved Republic, that feeds upon freedom and lives,” no original. Verso do poema Hertha, de Algenon Charles Swinburne. (N. do T.)
4. O AFASTAMENTO DA DOMESTICIDADE

Do livro A Coisa, 1929


G.K. Chesterton
Nota: Chesterton foi um grande defensor da instituição da família, contra os intelectuais seus
contemporâneos que a desprezavam e ajudaram a construir o estado de coisas que vivemos hoje.
Este texto é um dos muitos que ele escreveu sobre o assunto. O capítulo XIV de Hereges (Alguns
escritores modernos e a instituição da família) e A EMANCIPAÇÃO DA DOMESTICIDADE são
exemplos de tais textos. Em 1920, ele escreveu todo um livro sobre o tema: A Supertição do
Divórcio. Foi certamente uma grande provação o fato de o casal Chesterton não ter podido ter tido
filhos.

Acerca da reforma das coisas, em vez de deformá-las, há um princípio claro e simples; um princípio
que será provavelmente considerado um paradoxo. Existe em tal caso certa instituição ou lei;
consideremos, por simplicidade, uma cerca ou portão que obstrui um caminho. O tipo mais
moderno de reformador dele alegremente se aproxima e diz: “Não vejo objetivo nisto; vamos
derrubá-lo.” A que um tipo mais inteligente de reformador fará bem em responder: “Se você não vê
objetivo nele, eu certamente não o deixarei derrubá-lo. Vá embora e pense. Então, quando você
voltar e me disser que vê nele um objetivo, posso permitir que o destrua.”

O paradoxo assenta-se no mais elementar senso comum. O portão ou a cerca não cresceu ali. Não
foi construído por sonâmbulos que o fizeram enquanto dormiam. É altamente improvável que ele
tenha sido posto lá por loucos fugidos que por alguma razão vagueavam pelas ruas. Alguém teve
alguma razão para pensar que ele seria uma boa coisa. E até que saibamos qual foi a razão, nós
realmente não devemos julgar se a razão foi razoável. É muito provável que tenhamos deixado de
levar em conta todo um aspecto da questão, se algo construído por seres humanos como nós parece
ser inteiramente absurdo e misterioso. Há reformadores que superam esta dificuldade supondo que
todos os nossos pais tenham sido tolos; mas se for assim, podemos apenas dizer que a tolice parece
ser uma doença hereditária. Mas a verdade é que ninguém tem razão em destruir uma instituição
social até que a tenha realmente visto como uma instituição histórica. Se sabe como ela surgiu, e a
que propósitos ela supostamente serviria, ele pode realmente ser capaz de dizer que aqueles foram
propósitos maus, ou que eles se tornaram, desde então, propósitos maus, ou que são propósitos que
já não são mais servidos. Mas se ele simplesmente fita a coisa como uma monstruosidade
inconseqüente que de alguma forma tenha subitamente surgido em seu caminho, é ele e não o
tradicionalista que está sofrendo de uma ilusão. Podemos mesmo dizer que ele está vendo coisas,
como num pesadelo. Este princípio aplica-se a mil coisas, a instituições insignificantes, assim como
a verdadeiras, à convenção assim como à convicção. São pessoas como Joana D’arc, que sabia por
que as mulheres usavam saia, que mais tinha justificativa para não usá-las; são pessoas como São
Francisco, que simpatizava com festas e com o aconchego do lar, que mais tinha direito de se tornar
um mendigo nas ruas. E quando, na ampla emancipação da moderna sociedade, a Duquesa diz que
não vê razão para que ela não brinque de pular carniça, ou o Deão declara que não vê nenhuma
válida razão canônica para que ele não fique de cabeça para baixo, devemos dizer a essas pessoas,
com uma paciente benevolência: “Adia, portanto, a operação que contemplas até que tenhas
percebido, por meio de reflexão madura, que princípio ou preconceito violas. Então, brinca de pular
carniça e ponha-se de ponta cabeça e que o Senhor esteja convosco.”

Dentre as instituições que estão sendo assim atacadas, não inteligentemente mas muito
estupidamente, está a fundamental criação humana chamada Núcleo Familiar ou Lar. Esta é uma
coisa típica que os homens atacam, não porque vêem seu significado, mas porque não a vêem em
absoluto. Eles a golpeiam cegamente, de um modo inteiramente fortuito e oportunista; e muitos
deles a poriam abaixo sem nem mesmo deterem-se para perguntar por que ela foi um dia posta de
pé. É verdade que apenas poucos deles teriam confessado seu objetivo com tantas palavras. Isso
apenas prova quão cegos e descuidados eles são. Mas eles caíram no hábito do mero distanciamento
e gradual desapego da vida familiar; algo que é amiúde meramente acidental e desprovido de
qualquer teoria definida. Mas embora seja acidental, ela é, não obstante, anárquica. E ela é ainda
mais anárquica por não ser anarquista. Parece ser em grande medida instituída sobre a irritação
individual; uma irritação que varia com o indivíduo. Conta-se meramente que neste ou naquele caso
um temperamento particular foi atormentado por um ambiente particular; mas ninguém explica
sequer como o mal surgiu, muito menos se pode-se evitar o mal. Conta-se que nesta o naquela
família a vovó fala muita tolice – que, Deus sabe, é verdade –; ou que é muito difícil ter um
relacionamento intelectual íntimo com Tio Gregório sem dizer-lhe que ele é um tolo, que é
realmente o caso. Mas ninguém considera seriamente o remédio, ou mesmo a doença; ou se a
dissolução individualista existente é realmente um remédio. Grande parte desse negócio começou
com a influência de Ibsen, um poderosíssimo dramaturgo e um debilíssimo filósofo. Suponho que
Nora, da Casa de Bonecas, estava destinada a ser uma pessoa inconseqüente; mas certamente sua
ação mais inconseqüente foi sua última. Ela reclamava de não estar ainda preparada para cuidar de
crianças, e então passou a apreender o máximo das crianças, de modo a estudá-las mais de perto.

Há um único e simples teste dessa negligência do pensamento científico e do senso de uma ordem
social; a negligência que nos deixa agora sem nada, exceto uma confusão de exceções. Li milhares
de vezes, em todos os romances e jornais de nossa época, certas frases sobre o justo direito do
jovem à liberdade, sobre a injusta alegação dos mais velhos em controlar, sobre a concepção de que
todas as almas devem ser livres ou todos os cidadãos iguais, sobre a absurdidade da autoridade ou a
degradação da obediência. Não estou discutindo essas questões diretamente, no momento. Mas o
que me estarrece, num sentido lógico, é que ninguém nesta miríade de romancistas e jornalistas
parece sequer pensar em formular a próxima e mais óbvia questão. Parece nunca ocorrer-lhes
indagar o que acontece com a obrigação oposta. Se a criança é livre de início para desconsiderar os
pais, por que os pais não são livres para desconsiderar a criança? Se o Sr. Jones, pai, e o Sr. Jones,
filho, são apenas dois cidadãos livres e iguais, por que deve um cidadão viver às custas de outro
cidadão pelos primeiros quinze anos de sua vida? Por que o Sr. Jones mais velho deve alimentar,
vestir e abrigar, de seu próprio bolso, outra pessoa que é inteiramente livre de qualquer obrigação
para com ele? Se a brilhante e jovem coisa não pode ser solicitada a tolerar sua avó, que se tornou
algo aborrecida, por que deveria a avó ou a mãe ter tolerado a brilhante e jovem coisa num período
de sua vida em que ela não era, em absoluto, brilhante? Por que eles laboriosamente cuidaram dela
num período em que suas contribuições à conversação eram raras vezes epigramáticas e nem
sempre inteligíveis? Por que Jones, o pai, banca comida e bebida de graça a alguém tão
desagradável quanto Jones, o filho, especialmente nas fases imaturas de sua existência? Por que ele
não pode jogar o bebê pela janela; ou, de qualquer modo, expulsar o garoto de casa? É óbvio que
estamos tratando de uma relação real, que pode ser igualdade, mas que não é certamente
similaridade.

Alguns reformadores sociais tentam esquivar-se dessa dificuldade, eu sei, por meio de vagas noções
acerca do Estado ou de uma abstração chamada Educação, que eliminaria a função parental. Mas
isto, como muitas noções de pessoas firmemente científicas, é uma louca ilusão, da natureza de um
mero luar. Ela se fundamenta nessa estranha e nova superstição, a idéia de infinitos recursos de uma
organização. É como se funcionários públicos crescessem como grama ou se reproduzissem como
coelhos. Há, por suposto, um interminável suprimento de pessoas assalariadas, e de salários para
elas; e elas responsabilizar-se-iam por tudo o que os seres humanos fazem por si mesmos; incluindo
o cuidado com as crianças. Mas os homens não podem ter como meio de vida a criação dos filhos
dos outros. Eles não podem proporcionar um tutor para cada cidadão; quem seria o tutor dos
tutores? Os homens não podem ser educados por máquinas; e embora possa haver um robô pedreiro
ou varredor, nunca haverá um robô diretor de escola ou professora. O efeito real dessa teoria é que
uma pessoa assediada tem de cuidar de cem crianças, em vez de uma pessoa normal cuidar de um
número razoável delas. Normalmente, aquela pessoa normal é impelida por uma força natural, que
não custa nada e não exige salário; a força da afeição natural pela sua prole, que existe mesmo entre
os animais. Se você suprime essa força natural, e a substitui por uma burocracia paga, você é como
um idiota que tem de pagar para que girem a roda de seu moinho porque se recusa a usar o vento ou
a água que ele pode conseguir de graça. Você é como o louco que rega cuidadosamente seu jardim
com um regador, ao mesmo tempo em que segura um guarda-chuva para se proteger da chuva.

Tornou-se, agora, necessário recitar estes truísmos; pois somente fazendo isto, começamos a ter um
vislumbre daquela razão da existência da família, pela qual comecei este ensaio a demandar. Eles
eram todos familiares aos nossos pais, que acreditavam nos elos de parentesco e também nos elos
da lógica. Hoje, nossa lógica consiste principalmente de elos perdidos; e nossa família
predominantemente de membros ausentes. Mas, de qualquer modo, este é o fim correto no qual
começar qualquer investigação deste tipo; e não no final ou nos restos de alguma trapalhada
pessoal, pela qual Dick se tornou descontente ou Susan foi-se embora. Se Dick ou Susan desejam
destruir a família porque não vêem utilidade nela, digo o que disse no início; se eles não vêem a
utilidade dela, é melhor que eles a preservem. Eles não têm nada que, nem mesmo, pensar em
destruí-la até que tenham visto a sua utilidade.

Mas ela tem outras utilidades, além o fato óbvio de significar um trabalho social necessário sendo
feito por amor, quando não pode ser feito por dinheiro; e (é preciso quase ousar insinuar)
presumivelmente ser retribuído com amor, na medida em que nunca pode ser retribuído com
dinheiro. Deste simples lado da questão, a situação geral é fácil registrar. O existente e geral sistema
da sociedade – sujeito, em nossa própria época e cultura industrial, a muitos abusos grosseiros e a
problemas dolorosos – é, contudo, um sistema normal. É a idéia de que a comunidade é composta
de diversos pequenos reinos, dos quais um homem e uma mulher se tornam o rei e a rainha e nos
quais eles exercem uma razoável autoridade, sujeita ao senso comum da comunidade, até que
aqueles sob seus cuidados cresçam e fundem reinos similares e exerçam autoridade similar. Esta é a
estrutura social da humanidade, muito mais antiga do que todos os seus registros e mais universal
do que quaisquer de suas religiões; e todas as tentativas de alterá-la são palavras ao vento e pura
estupidez.

Mas a outra vantagem do grupo pequeno está não tanto negligenciada, mas não é simplesmente
percebida. Temos aqui, novamente, alguns extraordinários delírios espalhados pela literatura e
jornalismo de nosso tempo. Esses delírios existem agora em tal grau que podemos dizer, para todos
os propósitos práticos, que quando uma coisa é afirmada mil vezes como uma verdade óbvia, ela é
quase certamente uma falsidade. Tal tipo de afirmação pode ser especialmente percebida aqui. Há
inegavelmente algo a ser dito contra a domesticidade e a favor do afastamento geral na direção da
vida em hotéis, clubes, escolas, assentamentos comunitários, etc.; ou a favor da vida social
organizada aos moldes do grande sistema comercial de nossa época. Mas a sugestão
verdadeiramente extraordinária é amiúde feita de que essa fuga do lar é uma fuga para uma maior
liberdade. A mudança é realmente apresentada como favorável à liberdade.

A qualquer um capaz de pensar, ela é, claro, o exato oposto. A divisão doméstica da sociedade
humana não é perfeita, sendo humana. Ela não alcança uma completa liberdade; uma coisa algo
difícil de ser feita ou mesmo definida. Mas é uma simples questão de aritmética que ela coloca um
maior número de pessoas no controle supremo de algo, e capaz de moldá-lo segundo seu gosto
pessoal, do que o fazem as vastas organizações que controlam externamente a sociedade; sejam
estas sistemas legais, comerciais ou mesmo meramente sociais. Mesmo se considerarmos apenas os
pais, é evidente que há mais pais que policiais, ou políticos, ou dirigentes de grandes companhias,
ou proprietários de hotéis. Como sugerirei a seguir, o argumento realmente se aplica diretamente
aos filhos assim como diretamente aos pais. Mas o principal é que o mundo exterior ao lar está
agora sob uma rígida disciplina e rotina e é somente no lar que há lugar para a individualidade e
liberdade. Qualquer um que ponha o pé para fora de casa é obrigado a entrar numa procissão, todos
indo no mesmo caminho e, em grande parte, obrigados a usar o mesmo uniforme. Os negócios,
especialmente os grandes, são agora organizados como um exército. É, como diria alguém, um tipo
de militarismo moderado sem derramamento de sangue; como diria eu, um militarismo sem as
virtudes militares. Mas, de qualquer forma, é óbvio que cem funcionários de um banco ou cem
garçonetes de uma casa de chá estão mais organizados e sob controle do que os mesmos indivíduos
quando voltam para suas moradias ou habitações, que portam seus quadros favoritos e as
fragrâncias de seus cigarros vulgares favoritos. Mas isto, que é tão óbvio no caso comercial, não é
menos verdade no caso social. Na prática, a busca do prazer é simplesmente a busca da moda. A
busca da moda é simplesmente a busca da convenção; que é, neste caso, uma nova convenção. A
dança de jazz, os passeios de carro, as grandes festas e entretenimentos em hotéis, não
proporcionam nenhum prazer maior, para alguém de gosto realmente independente, do que o
fizeram as modas do passado. Se uma rica jovem senhora deseja fazer o que todas as outras ricas
jovens senhoras fazem, ela se divertirá muito, simplesmente porque a juventude é divertida e a
sociedade é divertida. Ela deleitar-se-á em ser moderna exatamente como sua avó vitoriana se
deleitou em ser vitoriana. E também pelo mesmo motivo; mas é o deleite da convenção, não o
deleite da liberdade. É perfeitamente saudável para todos os jovens, de todos os períodos históricos,
agruparem-se até certo ponto, e imitarem entusiasticamente uns aos outros. Mas nada há nisso de
particularmente recente e, certamente, de particularmente livre. A garota que gosta de raspar a
cabeça, maquiar seu nariz e usar saias curtas encontrará o mundo organizado para ela e marchará
alegremente com a procissão. Mas a garota que acaso goste de ter seus cabelos batendo em seus
calcanhares, ou de usar adornos bárbaros e vestidos que se arrastam pelo chão, ou (mais terrível de
tudo) de deixar seu nariz no estado natural – ela será, não obstante, bem aconselhada a fazer tais
coisas em sua própria casa. Se a duquesa deseja brincar de pular carniça, ela não deve começar de
repente a pular como um sapo no salão do Hotel Babylon, quando ele estiver lotado de casais
praticando profissionalmente o mais recente tipo de dança, para a instrução da sociedade. Será mais
fácil a duquesa brincar de pular carniça, para a admiração de suas amigas íntimas, no velho hall
recoberto de lambris de carvalho do Castelo Fitzdragon. Se o deão ficar de ponta cabeça, ele fará
isso com maior facilidade e graça na calma atmosfera do Decanato, do que tentando interromper
algum compromisso social já organizado com propósitos filantrópicos.

Se há essa rotina impessoal nas coisas comerciais e mesmo sociais, é ocioso dizer que ela deve
existir nas coisas políticas e legais. Por exemplo, as punições do Estado devem ser generalizações
abrangentes. São somente as punições da família que podem ser adaptadas ao caso individual. Se
Joãozinho pega um dedal de uma caixa de costura, sua mãe pode agir muito diferentemente segundo
ela saiba que ele fez isso de brincadeira, por maldade, para vender para alguém ou para causar
problemas a alguém. Mas se Joãozinho pega um dedal numa loja, a lei não somente pode, mas deve
puni-lo segundo a regra feita para todos os ladrões de loja ou de prata. É somente a disciplina
doméstica que pode mostrar qualquer simpatia ou especialmente qualquer humor. Não digo que a
família sempre faz isso: mas digo que o Estado nunca deve tentá-lo. Assim, mesmo se
considerarmos somente os pais como príncipes independentes, e os filhos apenas como súditos, a
liberdade relativa da família pode e amiúde trabalha a favor destes súditos. Mas desde que os filhos
sejam crianças, eles serão sempre súditos de alguém. A questão é se eles deverão ser distribuídos
naturalmente pelos seus príncipes naturais, como diz o velho ditado, que normalmente sentem por
eles o que ninguém mais sente, uma afeição natural. Parece-me claro que essa distribuição normal
proporciona a maior quantidade de liberdade a um maior número de pessoas.

Meu protesto contra o afastamento anti-doméstico é que ele é estúpido. As pessoas não sabem o que
estão fazendo; porque não sabem o que estão desfazendo. Há uma multitude de manifestações
modernas, das maiores às menores, que vão do divórcio a um piquenique. Mas cada uma é uma
fuga ou evasão; e especialmente uma evasão da questão em tela. As pessoas têm de decidir de modo
filosófico se desejam a ordem social tradicional ou não; ou se há qualquer particular alternativa a
ser desejada. Nas atuais circunstâncias, elas tratam a questão pública meramente como uma mistura
ou mescla de questões pessoais. Mesmo em sendo anti-domésticas, elas são demasiadamente
domésticas em seu teste da domesticidade. Cada família considera apenas seu próprio caso e o
resultado é meramente estreito e negativo. Cada caso é uma exceção a uma regra que não existe. A
família, especialmente no estado moderno, necessita de considerável correção e reconstrução;
muitas coisas necessitam, no estado moderno. Mas o palácio da família deve ser preservado,
destruído ou reconstruído; não se deve deixá-lo cair aos pedaços, tijolo por tijolo, porque ninguém
tem qualquer sentido histórico do objeto da alvenaria. Por exemplo, os arquitetos da reconstrução
devem reconstruir a casa com portas amplas e fáceis de abrir, para a prática da antiga virtude da
hospitalidade. Em outras palavras, a propriedade privada deve ser distribuída com suficiente e
decente igualdade para permitir uma margem a relações festivas. Mas a hospitalidade de uma casa
será sempre diferente da hospitalidade de um hotel. É perfeitamente correto que os jovens da
família Brown e os da família Robinson se encontrem, se misturem, dancem, se exponham ao
ridículo, segundo o plano de seu Criador. Mas haverá sempre alguma diferença entre a família
Brown entretendo a família Robinson e a família Robinson entretendo a família Brown. E será uma
diferença a favor da variedade, da pessoalidade, das potencialidades da mente do homem; ou, em
outras palavras, da vida, da liberdade, e da busca da felicidade.
5. A LÓGICA E O TÊNIS
Nota: Eis aqui uma das muitas situações em que o grande Chesterton nos ensina ser católicos em qualquer discussão,
por mais idiota que pareça. Aqui ele comenta o que um jogador de tênis disse sobre o tênis como praticado na
Inglaterra e, neste comentário, ele defende toda a metafísica medieval, que é, antes de tudo, católica. Este texto é um
capítulo do livro A Coisa.

Gilbert Keith Chesterton

Quando digo que duvidamos do aprimoramento intelectual produzido pelo protestantismo, pelo
racionalismo e pelo mundo moderno, isso geralmente causa uma confusa controvérsia, que é um
tipo de emaranhado semântico. Mas, em geral, a diferença entre nós e nossos críticos é esta: eles
entendem que crescimento é um aumento do emaranhado; enquanto nós entendemos que
pensamento é desemaranhar o emaranhado. Mesmo um pequeno pedaço de fio reto vale mais do
que toda uma floresta de mero emaranhamento. Que haja mais assuntos sendo discutidos, ou mais
termos sendo usados, ou mais pessoas usando-os, ou mais livros e autoridades citadas – tudo isso
não é nada para nós se as pessoas usam impropriamente os termos, entendem mal os assuntos,
invocam autoridades à esmo e sem o uso da razão; e finalmente conseguem um resultado falso. Um
camponês que diz simplesmente, “Tenho cinco porcos; se mato um, fico com quatro porcos,” está
pensando de uma maneira simples e elementar; mas está pensando tão clara e corretamente quando
Aristóteles e Euclides. Agora, suponha que ele leia ou passe os olhos nos jornais e livros populares
de ciência. Suponha que ele comece a chamar um porco de Terra e outro de Capital e um terceiro de
Exportação, e finalmente chega a um resultado de que quanto mais porcos ele mata, mais ele possui;
ou que cada porca que pare faz decrescer o número de porcos no mundo. Ele aprendeu a
terminologia da economia como um meio de simplesmente se emaranhar com a falácia econômica.
Ela é uma falácia em que ele nunca cairia se tivesse firmemente imbuído do dogma divino de que
porcos são porcos. Para tal tipo de instrução e avanço, não temos nenhum uso; e é verdade, neste
sentido somente, que preferimos um camponês ignorante a um pedante instruído. Mas isso não é
porque consideramos a ignorância melhor do que a instrução ou o barbarismo melhor do que a
cultura. É simplesmente porque consideramos que uma clara cadeia lógica de pequena extensão é
melhor que uma interminável extensão do que é interminavelmente emaranhado. É simplesmente
porque preferimos um homem que faça uma simples soma certa do que uma longa divisão errada.

O que observamos sobre toda a cultura atual do jornalismo e das discussões gerais é que as pessoas
não sabem como começar a pensar. Não somente que seu pensamento é de terceira ou quarta mão,
mas que ele começa já na terça parte do processo. Os homens não sabem de onde vêm seus
pensamentos. Eles não sabem quais as conseqüências de suas palavras. Eles chegam ao final de toda
controvérsia e não sabem de onde ela começou ou de que se trata. Eles estão sempre supondo certos
absolutos, que, se corretamente definidos, chocariam até eles próprios como sendo não absolutos
mas absurdos. Pensar é assim estar num emaranhado; continuar a pensar é se aprofundar mais e
mais no emaranhado. E por trás de tudo há sempre algo entendido; que é realmente mal-entendido.

Por exemplo, leio um artigo do admirável Sr. Tilden, o grande tenista, que estava debatendo o que
está errado com o tênis inglês. “Nada pode salvar o tênis inglês,” disse ele, exceto certas reformas
de um tipo fundamental, que ele explica a seguir. O inglês, parece, tem uma maneira estranha e
artificial de considerar o tênis como um jogo, ou uma coisa divertida. Ele admitia que isso é parte
de um tipo de espírito amador em tudo que é (como ele observou verdadeiramente) também uma
parte do caráter nacional. Mas tudo isso se coloca no caminho do que ele chama da salvação do
tênis inglês. Por salvação ele entende o que outros chamariam de tornar o tênis perfeito e outros de
torná-lo profissional. Tomo isso como uma passagem muito típica, tirada de jornais ao acaso, e que
contém a visão de uma pessoa perspicaz e arguta sobre um assunto que ele compreende totalmente.
Mas o que ele não compreende é a coisa que ele supõe entender. Ele conhece totalmente seu assunto
e ainda assim não sabe do que está falando; porque ele não conhece suas suposições básicas. Ele
não percebe a relação de meios e fins, ou axiomas e inferências, em sua própria filosofia. E
ninguém estaria provavelmente mais surpreso e mesmo legitimamente mais indignado que ele, se eu
dissesse que os primeiros princípios de sua filosofia parecem ser estes: (1) Há na natureza das
coisas um certo Ser absoluto e divino; (2) Todos os homens existem para o bem e a glória desse Sr.
Tênis e são obrigados a se aproximar de sua perfeição e obedecer sua vontade; (3) A esta elevada
obrigação eles submetem seus desejos naturais de divertimento nesta vida; e (4) Eles são obrigados
a colocar esta lealdade em primeiro lugar, e amá-lo mais apaixonadamente que a tradição patriótica,
que a preservação de seu próprio estilo nacional, que suas virtudes nacionais. Este é o credo ou
esquema da doutrina que é aqui desenvolvida sem ser definida. A única maneira que temos de salvar
o tênis é impedi-lo de ser um jogo. A única maneira de salvar o tênis inglês é impedi-lo de ser
inglês. Não ocorre a esses pensadores que algumas pessoas podem gostar do tênis porque ele é
inglês e apreciá-lo porque ele é divertido. Há algum padrão abstrato e divino na coisa, para quem
todos devem se levantar, sacrificando todo o prazer e afeição. Quando os cristãos dizem a mesmo
coisa sobre os sacrifícios feitos para Cristo, soa como uma coisa inaceitável. Mas quando jogadores
de tênis dizem isso em relação aos sacrifícios exigidos pelo tênis, soa muito natural e casual na
confusão dos pensamentos e expressões da atualidade. E ninguém nota que um tipo de sacrifício
humano está sendo oferecido a um tipo novo e anônimo de deus.
Nos velhos e bons tempos do racionalismo vitoriano, era convencional zombar de Santo Tomás de
Aquino e os teólogos medievais; e especialmente repetir perpetuamente uma surrada piada sobre o
homem que discutia quantos anjos poderiam dançar na ponta de uma agulha. Os confortáveis e
comerciais vitorianos, com seu dinheiro e mercadorias, poderiam muito bem ter sentido uma ponta
mais afiada da mesma agulha, mesmo que fosse seu outro lado. Teria sido bom para suas almas ter
procurado pela agulha, não no palheiro da metafísica medieval, mas no elegante agulheiro de sua
própria Bíblia de bolso. Teria lhes sido melhor meditar, não sobre como muitos anjos poderiam
permanecer numa ponta de agulha, mas sobre como muitos camelos poderiam passar no buraco de
uma. Mas há outro comentário sobre essa curiosa piada, que é mais relevante para nossos propósitos
aqui. Se o místico medieval realmente discutiu sobre anjos permanecerem sobre uma agulha, pelo
menos ele não discutiu como se o objetivo dos anjos fosse permanecer sobre uma agulha; como se
Deus tivesse criados todos ao Anjos e Arcanjos, todos os Tronos, Virtudes, Potestades e
Principados, somente a fim de que pudessem ser algo para vestir e decorar a inconveniente nudez da
ponta de uma agulha. Mas essa é a maneira de raciocinar dos modernos racionalistas. O místico
medieval não teria dito nem mesmo que uma agulha existe para ser suporte de anjos. O místico
medieval teria dito, em primeiro lugar, que uma agulha existe para fazer roupas para os homens.
Pois os místicos medievais, em sua maneira obscura e transcendental, estavam muito mais
interessados nas razões reais das coisas e na distinção dos meios e dos fins. Eles desejavam
conhecer a razão da existência de uma coisa, e como uma idéia dependia da outra. E eles poderiam
até mesmo ter sugerido, o que tantos jornalistas parecem esquecer, a possibilidade paradoxal de que
o tênis foi feito para o homem e não o homem para o tênis.

Os modernistas foram particularmente infelizes quando disseram que não se deve esperar que o
mundo moderno tolere os antigos métodos silogísticos do escolástico. Eles estavam propondo que
se desfizesse do único instrumento medieval que o mundo moderno exigirá mais urgentemente.
Teria sido melhor ter dito que o renascimento da arquitetura gótica foi sentimental e fútil; que o
movimento pré-rafaelano na arte foi somente um episódio excêntrico; que o uso da palavra “guilda”
para todo tipo possível de instituição social foi artificial e fingido; que o feudalismo da jovem
Inglaterra foi muito diferente do da antiga. Mas esse método elegante de dedução, com a definição
de postulados e a real resposta da questão, é algo que a nossa sociedade midiática está em
desesperada e urgente necessidade; como um envenenado está em necessidade do antídoto. Tomei
aqui um único exemplo que atraiu meu olhar de centenas de milhares que acontecem a cada hora. E
como o tênis, como qualquer outro jogo, tem de ser jogado tanto com a cabeça quanto com as mãos,
penso que seja altamente desejável que ele seja discutido ocasionalmente pelo menos tão
inteligentemente quanto ele é jogado.
6. ORTODOXIA OBSTINADA
7. Um artigo comum

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929

Gilbert Keith Chesterton

Nota do tradutor – com este texto, Chesterton usa seu magistral conjunto de instrumentos literários
para, de uma forma simples, talvez até simplória – dada a audiência a que ele se dirigia – para nos
mostrar que qualquer sistema mais ou menos auto-sustentável de crença – seja ele político ou
religioso –, usa, senão todos, alguns procedimentos do único sistema realmente auto-sustentável e
indestrutível de crença jamais criado, a Igreja Católica – pois Quem a criou é a fonte da sua
sustentação e força. Todos eles se reúnem em concílios, todos editam seus anátemas, todos
excomungam hereges, todos são altamente sensíveis às heresias. Contudo, só a Igreja é acusada de
fazer tudo isso.

O editor de um jornal vespertino publicou recentemente o que ele anunciou como, e até se
desculpou por, um “artigo incomum”. Ele ansiosamente se acautelou de expressar qualquer opinião
sobre as idéias temerárias e perigosas apresentadas pelo artigo. Desnecessário dizer que, depois de
ler cinco linhas do artigo incomum, percebi que ele era um exemplo satisfatório de um artigo
comum. Era mesmo uma cuidadosa e correta cópia de um artigo comum; um tipo de espécie
premiada, como se a coisa pudesse ser ‘incomumente’ comum. Já lera o artigo antes, claro –
milhares de vezes (penso eu) – e sempre dele pensara o mesmo; mas nunca antes, de alguma forma,
ele me parecera exatamente o mesmo.

Há coisas de que o mundo está hoje subconscientemente muito cansado. Ele nem sempre sabe o que
são; pois elas se apresentam comumente com grandes, embora desbotados, rótulos descrevendo-as
como o Novo Movimento ou a Última Descoberta. Por exemplo, os homens já estão cansados do
Estado Socialista como se já tivessem nele vivido por milhares de anos. Mas há algumas coisas cujo
tédio já está se tornando agudo. Está agora muito próximo da superfície; e pode repentinamente
acordar numa forma de suicídio, assassinato ou mesmo no ato de rasgar jornais com os dentes. Tal é
o caso desse produto familiar, o Artigo Comum. Ele não é somente excessivamente comum; tem se
tornado intoleravelmente, insuportavelmente, insustentavelmente comum. Ele é apropriadamente
descrito como “O Clamor de uma Mulher às Igrejas”. Permitam-me anunciar que, embora eu seja
de hábitos plácidos e firmes, e nunca tenha sido acusado de qualquer característica feminina como
histeria, ainda assim, se tivesse lido este artigo mais três vezes, eu teria gritado. Meu grito seria
intitulado, “O Clamor de um Homem aos Jornais”.

Repetirei, algo resumidamente, o que a senhora em questão gritou; pois o leitor já o sabe de cor. A
mensagem de Cristo foi perfeitamente “simples”: que a cura para tudo é Amor; mas como Ele foi
morto (não entendo muito bem a razão) por ter feito esta observação, grandes templos foram
erguidos para Ele e pessoas horríveis chamadas padres têm dado ao mundo nada mais que “pedras,
amuletos, fórmulas, crenças mortas.” Eles também “discutem eternamente sobre o lugar de um
botão ou o ato de ajoelhar.” Tudo isso não oferece nenhum conforto ao infeliz cristão, que
aparentemente deseja ser confortado apenas por saber que tem um dever para como seu próximo.
“Quantos homens na hora de sua morte se confortam com o pensamento dos Trinte-e-Nove Artigos,
[1] da Predestinação, da Transubstanciação, da doutrina da punição eterna, e da crença de que Cristo
retornará no Sétimo Dia?” Os itens compõem um curioso catálogo; e o último item é para mim
especialmente misterioso. Contudo, só posso dizer que, se Cristo foi um formulador da mensagem
original e realmente reconfortante do amor, penso que FARIA diferença se Ele retornasse no Sétimo
Dia. Do resto da lista, considero necessário distinguir os itens. Eu certamente nunca consegui
nenhuma profunda ou calorosa consolação do pensamento sobre os Trinta-e-Nove Artigos. Nunca
soube de ninguém que o tivesse feito. Da idéia da Predestinação, há, em termos gerais, duas visões;
a calvinista e a católica; e faria a mais incomum diferença ao MEU conforto se eu acreditasse na
primeira em vez de na última. É a diferença entre acreditar que Deus sabe, como um fato, que eu
escolho ir para inferno; e acreditar que Deus me jogou no inferno, sem que eu tenha nenhuma
escolha. Quanto à Transubstanciação, é mais difícil falar dela de forma simples; mas eu gentilmente
sugeriria, aos outsiders mais comuns com algum senso comum, que há uma considerável diferença
entre Jeová impregnando o universo e Jesus Cristo vindo a um recinto.

Toco rápida e relutantemente nesses exemplos porque eles exemplificam uma questão muito mais
ampla dessa interminável maneira de falar. Ela consiste em falar como se o problema moral do
homem fosse perfeitamente simples, enquanto todos sabem que não é; e então depreciar as
tentativas de resolvê-lo citando longos trechos técnicos, e falar sobre cerimônias sem sentido sem
perguntar sobre seu sentido. Em outras palavras, é exatamente com se alguém dissesse sobre a
ciência da medicina: “Tudo que se pede é Saúde; o que pode ser mais simples que a graça da
Saúde? Por que não se contentar para sempre com o brilho da juventude e do frescor de estar
sempre bem? Por que estudar as ciências áridas e lúgubres da anatomia e fisiologia; por que inquirir
sobre as condições de obscuros órgãos do corpo humano? Por que pedantemente distinguir entre o
que é rotulado um veneno e o que é rotulado um antídoto, quando é tão simples curtir a Saúde? Por
que se preocupar com a exatidão minuciosa do número de gotas de laudanum[2] ou da exata dose
do cloral,[3] quando é tão legal ser saudável? Fora com seus sacerdotais aparelhos, tais como
estetoscópios e termômetros; como suas ritualísticas fantasias de sentir os pulsos, examinar as
línguas, etc.! O deus Esculápio veio à terra só para nos informar de que a Vida é completamente
preferível à Morte; e este pensamento consolará muitos moribundos desatendidos por médicos.”

Em outras palavras, o Artigo Comum, que é agora velho de mil edições, era sempre besteira e
contra-senso mesmo quando era novo. Pode haver, e ter havido, pedantismo na profissão médica.
Pode haver, e ter havido, teologia que era superficial, árida ou que não oferecia consolação aos
homens. Mas falar como se fosse possível a qualquer ciência atacar qualquer problema sem
desenvolver uma linguagem técnica, e um método sempre metódico e quase sempre minucioso,
meramente significa que você é um tolo e nunca atacou realmente um problema. Mesmo sem pensar
na teoria de uma Igreja, se Cristo tivesse permanecido na terra por um tempo indefinido, tentando
induzir os homens a amar uns aos outros, Ele teria considerado necessário estabelecer alguns testes,
alguns métodos, alguma forma de separar amor verdadeiro de amor falso, alguma forma de
distinguir entre tendências que arruinariam o amor e tendências que o restaurariam. Você não pode
ter sucesso em algo, mesmo no amor, sem pensar. Tudo isso é tão óbvio que pareceria desnecessário
repeti-lo; e mesmo assim é necessário repeti-lo, porque é sua superficial contradição que é agora
repetida incessantemente. Sua superficialidade se estende em torno de nós como uma vasta
imensidão em todas as direções.

O Artigo Comum tem um caráter que ocasionalmente alude à Nova Religião; mas sempre de uma
forma assaz tímida e remota. Ele sugere que haverá uma crença melhor e mais ampla; embora
raramente toque na crença, mas somente em sua amplidão. Não há nunca nele qualquer coisa que
lembre sequer uma nota do verdadeiro inovador. Pois o verdadeiro inovador deve ser, em algum
sentido, um legislador. Podemos colocar a questão de uma maneira hostil, dizendo que o
revolucionário sempre se torna tirano. Podemos colocar a questão de uma maneira amigável,
dizendo que o reformador deve se voltar para a idéia de forma. Mas qualquer um que funde uma
nova religião, mesmo uma falsa religião, deve ter certa qualidade de responsabilidade. Ele deve se
fazer responsável por dizer que algumas coisas devem ser proibidas e algumas permitidas; que há
certo plano ou sistema que deve ser defendido contra a destruição. E todas as coisas que lembram
em qualquer aspecto novas religiões, para fazê-las justiça, mostram essa qualidade e sofrem dessa
desvantagem. A Ciência Cristã é teoricamente baseada na paz e quase na negação da guerra.
Contudo, a guerra não tem sido pequena nos concílios desse credo; e as relações de todos os
sucessores da Sra. Eddy tem sido tudo menos pacíficas. Não digo isso como um sarcasmo, mas
como um tributo; devo dizer que esses procedimentos realmente provam que as pessoas envolvidas
estão tentando fundar uma religião real. É um elogio aos cientistas cristãos dizer que eles também
tiveram seus testes e seus credos, seus anátemas e suas excomunhões, suas encíclicas e suas caças
às heresias. Mas é um elogio aos cientistas cristãos que eles dificilmente conseguem deixar de usar
como um insulto aos cristãos. O comunismo, mesmo em sua forma final do materialismo marxista,
tinha algo das qualidades de uma fé vigorosa e sincera. Teve uma delas pelo menos; expulsou
homens que negavam o credo. Ambos, o comunista e o cientista cristão, estavam sob essa grave
desvantagem; eles realmente transformaram uma fé num fato. Há tal coisa como um governo
bolchevique e ele governa, mesmo que seja um desgoverno. Há tal coisa como curadores na Ciência
Cristã; há provavelmente algo como cura na Ciência Cristã, mesmo que não admitamos que a cura
seja saúde. Há uma Igreja em ativa operação; e por isso ela exibe todos os dogmas e diferenças de
que se acusa a Igreja de Cristo. Mas a filosofia expressa no Artigo Comum evita todas essas
desvantagens, pelo truque de nunca aparecer no mundo da realidade. Seu deus teme nascer; sua
escritura teme ser escrita; consegue permanecer como a Nova Religião, prometendo sempre
acontecer amanhã, nunca hoje. Ela se incha com orgulho espiritual, pois não pode impor o que não
pode nem mesmo inventar. Ela brilha com uma auto-satisfação farisaica, porque não há crimes
cometidos por seu credo e nenhum credo para ser motivo de seus crimes. Esse tipo de crítica é
como um cirurgião que nunca faz uma operação malsucedida, pois nunca opera; um soldado que
nunca falha porque nunca luta. Qualquer um pode falar indefinidamente sobre uma religião
inexistente que será livre de todos os males da existência. Qualquer um pode sonhar com essa
cristandade inteiramente humana e harmoniosa, cujo Cristo nunca nasceu e nunca foi crucificado. É
tão fácil de fazer que uma centena de pessoas nos jornais e nas discussões públicas têm feito nada
mais que isso nos últimos vinte ou trinta anos. Mas é tão fútil aplicar isso tudo a um ideal espiritual
quanto aplicá-lo a uma teoria científica ou a um programa político; e menciono-o apenas porque
acabo de ouvi-lo pela centésima vez; e sinto uma pequena esperança que posso estar mencionado-o
pela última vez.

[1] Estabelecidos em 1563, definem a Igreja Anglicana em relação às outras confissões protestantes. (N. do T.)
[2] Tintura de ópio, contendo 10% de ópio e 1% de morfina. Prescrito para diarréia, dores ou para desintoxicação de bebês de mães viciadas em
heroína e opióides. (N. do T.)
[3] Tricloroacetilaldeído, este aldeído é uma substância sedativa. (N. do T.)
8. Por que sou católico

G. K. Chesterton

Notas do tradutor:

1. Tenho sempre me defrontado com esta pergunta, feita por alguém: “Por que você é católico?” Como somos obrigados
a dar satisfação sobre a fé que nos anima (os cristãos devem estar ‘‘sempre prontos a satisfazer a quem quer que lhes
peça razões da esperança que os anima’’(1 Ped 3,15)), tenho sempre algumas respostas-padrão. Resolvi, contudo,
traduzir este soberbo texto de Chesterton sobre suas razões para ter sido católico, que tomo como orientação para
minhas próprias respostas.

2. Quem conseguir ler em inglês, não perca tempo com minha tradução. Em muitos sentidos, é impossível traduzir
Chesterton. Ele é um mestre com as palavras e este pobre tradutor não dá contra disso em nosso idioma. O link para o
artigo em inglês se encontra ao final da tradução.

3. É interessante ler este artigo em conjunto com outro: Por que acredito no cristianismo, já traduzido neste blog.

4. Claro, temos um Chesterton brasileiro. Ele se chama Gustavo Corção. Não deixe de lê-lo, sobretudo, Três alqueires e
uma vaca, onde Corção fala de Chesterton.

A dificuldade em explicar “Por que eu sou Católico” é que há dez mil razões para isso, todas se
resumindo a uma única: o catolicismo é verdadeiro. Eu poderia preencher todo o meu espaço com
sentenças separadas, todas começando com as palavras, “É a única coisa que ...” Como, por
exemplo, (1) É a única coisa que previne um pecado de se tornar um segredo. (2) É a única coisa em
que o superior não pode ser superior; no sentido da arrogância e do desdém. (3) É a única coisa que
liberta o homem da escravidão degradante de ser sempre criança. (4) É a única coisa que fala como
se fosse a verdade; como se fosse um mensageiro real se recusando a alterar a verdadeira
mensagem. (5) É o único tipo de cristianismo que realmente contém todo tipo de homem; mesmo o
respeitável. (6) É a única grande tentativa de mudar o mundo desde dentro; usando a vontade e não
as leis; etc.

Ou posso tratar o assunto de forma pessoal e descrever minha própria conversão; acontece que
tenho uma forte impressão de que esse método faz a coisa parecer muito menor do que realmente é.
Homens muito melhores, em muito maior número, se converteram a religiões muito piores.
Preferiria tentar dizer, aqui, coisas a respeito da Igreja Católica que não se podem dizer mesmo
sobre suas mais respeitáveis rivais. Em resumo, diria apenas que a Igreja Católica é católica.
Preferiria tentar sugerir que ela não é somente maior que eu, mas maior que qualquer coisa no
mundo; que ela é realmente maior que o mundo. Mas, como neste pequeno espaço, disponho apenas
de uma pequena seção, abordarei sua função como guardiã da verdade.

Outro dia, um conhecido escritor, muito bem informado em outros assuntos, disse que a Igreja
Católica é uma eterna inimiga das novas idéias. Provavelmente não ocorreu a ele que sua própria
observação não é exatamente uma nova idéia. É uma daquelas noções que os católicos têm de
refutar continuamente, porque é uma idéia muito antiga. Na realidade, aqueles que reclamam que o
catolicismo não diz nada novo, raramente pensam que seja necessário dizer alguma coisa nova
sobre o catolicismo. De fato, o estudo real da História mostrará que isso é curiosamente contrário
aos fatos. Na medida em que as idéias são realmente idéias, e na medida em que tais idéias são
novas, os católicos têm sofrido continuamente por apoiarem-nas quando elas são realmente novas;
quando elas eram muito novas para encontrar alguém que as apoiasse. O católico foi não só o
pioneiro na área, mas o único; e até hoje não houve ninguém que compreendesse o que se tinha
descoberto lá.

Assim, por exemplo, quase duzentos anos antes da Declaração de Independência e da Revolução
Francesa, numa era devotada ao orgulho e ao louvor aos príncipes, o Cardeal Bellarmine e Suarez, o
Espanhol, formularam lucidamente toda a teoria da democracia real. Mas naquela era do Direito
Divino, eles somente produziram a impressão de serem jesuítas sofisticados e sanguinários, se
insinuando com adagas para assassinarem os reis. Então, novamente, os casuístas das escolas
católicas disseram tudo o que pode ser dito e que constam de nossas peças e romances atuais,
duzentos anos antes de eles serem escritos. Eles disseram que há sim problemas de conduta moral,
mas eles tiveram a infelicidade de dizê-lo muito cedo, cedo de dois séculos. Num tempo de
extraordinário fanatismo e de uma vituperação livre e fácil, eles foram simplesmente chamados de
mentirosos e trapaceiros por terem sido psicólogos antes da psicologia se tornar moda. Seria fácil
dar inúmeros outros exemplos, e citar o caso de idéias que são ainda muito novas para serem
compreendidas. Há passagens da Encíclica do Papa Leão sobre o trabalho [conhecida como Rerum
Novarum, publicada em 1891] que somente agora estão começando a ser usadas como sugestões
para movimentos sociais muito mais novos do que o socialismo. E quando o Sr. Belloc escreveu a
respeito do Estado Servil, ele estava apresentando uma teoria econômica tão original que quase
ninguém ainda percebeu do que se trata. E então, quando os católicos apresentam objeções, seu
protesto será facilmente explicado pelo conhecido fato de que católicos nunca se preocupam com
idéias novas.

Contudo, o homem que fez essa observação sobre os católicos quis dizer algo; e é justo fazê-lo
compreender muito mais claramente o que ele próprio disse. O que ele quis dizer é que, no mundo
moderno, a Igreja Católica é, de fato, uma inimiga de muitas modas influentes; muitas delas ainda
se dizem novas, apesar de algumas delas começarem a se tornar um pouco decadentes. Em outras
palavras, na medida em que diz que a Igreja freqüentemente ataca o que o mundo, em cada era,
apóia, ele está perfeitamente certo. A Igreja sempre se coloca contra a moda passageira do mundo; e
ela tem experiência suficiente para saber quão rapidamente as modas passam. Mas para entender
exatamente o que está envolvido, é necessário tomarmos um ponto de vista mais amplo e considerar
a natureza última das idéias em questão, considerar, por assim dizer, a idéia da idéia.

Nove dentre dez do que chamamos novas idéias são simplesmente erros antigos. A Igreja Católica
tem como uma de suas principais funções prevenir que os indivíduos comentam esses velhos erros;
de cometê-los repetidamente, como eles fariam se deixados livres. A verdade sobre a atitude
católica frente à heresia, ou como alguns diriam, frente à liberdade, pode ser mais bem expressa
utilizando-se a metáfora de um mapa. A Igreja Católica possui uma espécie de mapa da mente que
parece um labirinto, mas que é, de fato, um guia para o labirinto. Ele foi compilado a partir de um
conhecimento que, mesmo se considerado humano, não tem nenhum paralelo humano.

Não há nenhum outro caso de uma instituição inteligente e contínua que tenha pensado sobre o
pensamento por dois mil anos. Sua experiência cobre naturalmente quase todas as experiências; e
especialmente quase todos os erros. O resultado é um mapa no qual todas as ruas sem saída e as
estradas ruins estão claramente marcadas, todos os caminhos que se mostraram sem valor pela
melhor de todas as evidências: a evidência daqueles que os percorreram.

Nesse mapa da mente, os erros são marcados como exceções. A maior parte dele consiste de
playgrounds e alegres campos de caça, onde a mente pode ter tanta liberdade quanto queira; sem se
esquecer de inúmeros campos de batalha intelectual em que a batalha está eternamente aberta e
indefinida. Mas o mapa definitivamente se responsabiliza por fazer certas estradas se dirigirem ao
nada ou à destruição, a um muro ou ao precipício. Assim, ele evita que os homens percam
repetidamente seu tempo ou suas vidas em caminhos sabidamente fúteis ou desastrosos, e que
podem atrair viajantes novamente no futuro. A Igreja se faz responsável por alertar seu povo contra
eles; e disso a questão real depende. Ela dogmaticamente defende a humanidade de seus piores
inimigos, daqueles grisalhos, horríveis e devoradores monstros dos velhos erros. Agora, todas essas
falsas questões têm uma maneira de parecer novas em folha, especialmente para uma geração nova
em folha. Suas primeiras afirmações soam inofensivas e plausíveis. Darei apenas dois exemplos.
Soa inofensivo dizer, como muitos dos modernos dizem: “As ações só são erradas se são más para a
sociedade.” Siga essa sugestão e, cedo ou tarde, você terá a desumanidade de uma colméia ou de
uma cidade pagã, o estabelecimento da escravidão como o meio mais barato ou mais direto de
produção, a tortura dos escravos pois, afinal, o indivíduo não é nada para o Estado, a declaração de
que um homem inocente deve morrer pelo povo, como fizeram os assassinos de Cristo. Então,
talvez, voltaremos às definições da Igreja Católica e descobriremos que a Igreja, ao mesmo tempo
que diz que é nossa tarefa trabalhar para a sociedade, também diz outras coisas que proíbem a
injustiça individual. Ou novamente, soa muito piedoso dizer, “Nosso conflito moral deve terminar
com a vitória do espiritual sobre o material.” Siga essa sugestão e você terminará com a loucura dos
maniqueus, dizendo que um suicídio é bom porque é um sacrifício, que a perversão sexual é boa
porque não produz vida, que o demônio fez o sol e a lua porque eles são materiais. Então, você pode
começar a adivinhar a razão de o cristianismo insistir que há espíritos maus e bons; e que a matéria
também pode ser sagrada, como na Encarnação ou na Missa, no sacramento do casamento e na
ressurreição da carne.

Não há nenhuma outra mente institucional no mundo que está pronta a evitar que as mentes errem.
O policial chega tarde, quando ele tentar evitar que os homens cometam erros. O médico chega
tarde, pois ele apenas chega para examinar o louco, não para aconselhar o homem são a como não
enlouquecer. E todas as outras seitas e escolas são inadequadas a esse propósito. E isso não é porque
elas possam não conter uma verdade, mas precisamente porque cada uma delas contém uma
verdade; e estão contentes por conter uma verdade. Nenhuma delas pretende conter a verdade. A
Igreja não está simplesmente armada contra as heresias do passado ou mesmo do presente, mas
igualmente contra aquelas do futuro, que podem estar em exata oposição com as do presente. O
catolicismo não é ritualismo; ele poderá estar lutando, no futuro, contra algum tipo de exagero
ritualístico supersticioso e idólatra. O catolicismo não é ascetismo; ele, repetidamente no passado,
reprimiu os exageros fanáticos e cruéis do ascetismo. O catolicismo não é mero misticismo; ele está
agora mesmo defendendo a razão humana contra o mero misticismo dos pragmatistas. Assim,
quando o mundo era puritano, no século XVII, a Igreja era acusada de exagerar a caridade a ponto
da sofisticação, por fazer tudo fácil pela negligência confessional. Agora que o mundo não é
puritano mas pagão, é a Igreja que está protestando contra a negligência da vestimenta e das
maneiras pagãs. Ela está fazendo o que os puritanos desejariam fazer, quando isso fosse realmente
desejável. Com toda a probabilidade, o melhor do protestantismo somente sobreviverá no
catolicismo; e, nesse sentido, todos os católicos serão ainda puritanos quando todos os puritanos
forem pagãos.

Assim, por exemplo, o catolicismo, num sentido pouco compreendido, fica fora de uma briga como
aquela do darwinismo em Dayton. Ele fica fora porque permanece, em tudo, em torno dela, como
uma casa que abarca duas peças de mobília que não combinam. Não é nada sectário dizer que ele
está antes, depois e além de todas as coisas, em todas as direções. Ele é imparcial na briga entre
fundamentalistas e a teoria da Origem das Espécies, porque ele se funda numa origem anterior
àquela Origem; porque ele é mais fundamental que o Fundamentalismo. Ele sabe de onde veio a
Bíblia. Ele também sabe aonde vão as teorias da Evolução. Ele sabe que houve muitos outros
evangelhos além dos Quatro Evangelhos e que eles foram eliminados somente pela autoridade da
Igreja Católica. Ele sabe que há muitas outras teorias da evolução além da de Darwin; e que a
última será muito provavelmente eliminada pela ciência mais recente. Ele não aceita,
convencionalmente, as conclusões da ciência, pela simples razão de que a ciência ainda não chegou
a uma conclusão. Concluir é se calar; e o homem de ciência dificilmente se calará. Ele não acredita,
convencionalmente, no que a Bíblia diz, pela simples razão de que a Bíblia não diz nada. Você não
pode colocar um livro no banco das testemunhas e perguntar o que ele quer dizer. A própria
controvérsia fundamentalista se destrói a si mesma. A Bíblia por si mesma não pode ser a base do
acordo quando ela é a causa do desacordo; não pode ser a base comum dos cristãos quando alguns a
tomam alegoricamente e outros literalmente. O católico se refere a algo que pode dizer alguma
coisa, para a mente viva, consistente e contínua da qual tenho falado; a mais alta consciência do
homem guiado por Deus.

Cresce a cada momento, para nós, a necessidade moral por tal mente imortal. Devemos ter alguma
coisa que suportará os quatro cantos do mundo, enquanto fazemos nossos experimentos sociais ou
construímos nossas Utopias. Por exemplo, devemos ter um acordo final, pelo menos em nome do
truísmo da irmandade dos homens, que resista a alguma reação da brutalidade humana. Nada é mais
provável, no momento presente, que a corrupção do governo representativo solte os ricos de todas
as amarras e que eles pisoteiem todas as tradições com o mero orgulho pagão. Devemos ter todos os
truísmos, em todos os lugares, reconhecidos como verdadeiros. Devemos evitar a mera reação e a
temerosa repetição de velhos erros. Devemos fazer o mundo intelectual seguro para a democracia.
Mas na condição da moderna anarquia mental, nem um nem outro ideal está seguro. Tal como os
protestantes recorreram à Bíblia contra os padres e não perceberam que a Bíblia também podia ser
questionada, assim também os republicanos recorreram ao povo contra os reis e não perceberam
que o povo também podia ser desafiado. Não há fim para a dissolução das idéias, para a destruição
de todos os testes da verdade, situação tornada possível desde que os homens abandonaram a
tentativa de manter uma Verdade central e civilizada, de conter todas as verdades e identificar e
refutar todos os erros. Desde então, cada grupo tem tomado uma verdade por vez e gastado tempo
em torná-la uma mentira. Não temos tido nada, exceto movimentos; ou em outras palavras,
monomanias. Mas a Igreja não é um movimento e sim um lugar de encontro, um lugar de encontro
para todas as verdades do mundo.
9. O que é “A Coisa”
10. A MÁSCARA DO AGNÓSTICO

Do livro "A Coisa", publicado em 1929.

Gilbert Keith Chesterton

Sir Arthur Keith,[1] em suas recentes observações sobre a alma, “deixou o gato escapar da maleta”.
Ele o deixou escapar daquela maleta elegante e profissional que é usada pelo “médico” a quem ele
descreve como conscienciosamente compelido a afirmar que a vida da alma cessa com o último
suspiro do corpo. Talvez a figura do gato não se adéqüe muito bem à maleta; o gato é um animal
místico, cujas nove vidas podem muito bem representar a imortalidade, pelo menos na forma da
reencarnação. De qualquer forma, ele “deixou o gato escapar da maleta”, no sentido de revelar um
segredo que tais homens sábios deveriam sabiamente guardar. O segredo é que tais cientistas não
falam como cientistas, mas simplesmente como materialistas.

Não faz muito tempo, em sua famosa conferência sobre antropóides no Congresso de Leeds, Sir
Arthur Keith disse que falava simplesmente como o primeiro jurado de um júri. É verdade que ele
aparentemente não consultou o júri; e rapidamente se tornou claro que o júri violentamente
discordou; o que é pouco usual num júri, depois que o primeiro jurado entrega o veredito. Mesmo
assim, usando essa imagem, ele quis alegar a completa imparcialidade de tipo jurídico. Ele quis
dizer que um jurado está obrigado, por juramento, a considerar inteiramente os fatos e a evidência,
sem medo ou favorecimento. E esse efeito seria centenas de vezes mais efetivo se tivéssemos a
liberdade de imaginar que as simpatias pessoais do jurado estivessem do outro lado; ou, pelo
menos, se não soubéssemos que elas estavam muito intensamente de um único lado. Sir Arthur
deveria ser cuidadoso em preservar a impressão de que, falando estrita e unicamente como
antropólogo, ele foi forçado a aceitar a seleção natural de antropóides. Ele deveria então deixar que
se inferisse que, como um simples cidadão, ele estaria ansiando por visões seráficas e esperanças
celestiais; estaria pesquisando as Escrituras e esperando pelo apocalipse. Ele, na vida privada, seria
um mórmon multiplicando as estrelas em sua coroa celestial ou um carismático continuamente
convulsionado pelo Espírito Santo. O problema foi que os fatos forçaram-no na direção da
conclusão darwiniana. E um homem desse tipo, sendo forçado a aceitá-los, seria uma testemunha
confiável, porque relutante. No julgamento de Darwin, o homem poderia ter simpatias para com o
acusador, mas como jurado, seria forçado a apoiar o réu.

E agora, Sir Arthur Keith jogou fora toda aquela imparcialidade imperial. Ele fez um grande esforço
para dogmatizar e estabelecer a lei sobre a alma; que não tem nada a ver com o assunto de sua
especialidade, exceto na medida em que é assunto de todos. Mas mesmo não tendo relação com sua
especialidade, serviu para mostrar a todos qual é o lado de Sir Arthur. Transformou o primeiro
jurado num inequívoco advogado daquele lado. De fato, tal apoiador está mais para uma das partes
da acusação do que de um advogado; pois toda a questão é que sendo um ser humano particular, ele,
há muito tempo, tem um preconceito particular. De agora em diante, é óbvio que Keith decidir em
favor de Darwin é simplesmente como Bradlaugh[2] decidir em favor de Darwin, ou Ingersoll[3]
decidir em favor de Darwin, ou qualquer ateu, num banco no Hyde Park, decidir em favor de
Darwin. Quando ELES escolhem o lado da seleção natural, podemos concordar que isso é uma
seleção muito natural.

Quanto à conclusão em si, parece quase inacreditavelmente inconclusiva. A menos que as palavras
de Sir Arthur Keith tenham sido muito distorcidas, ele afirmou especialmente que a existência
espiritual acaba juntamente com as funções físicas; e que nenhum médico poderia
conscienciosamente dizer nada diferente. Por mais que seja grave o ferimento chamado morte (que
é, de fato, freqüentemente fatal), este é um caso em que, surpreendentemente, é desnecessário
chamar um médico. Há sempre uma ironia, mesmo nas páginas simples de minhas histórias de
detetive favoritas, no fato de que todo mundo corre para um médico tão logo estejam certos de que
um homem está morto. Mas na história de detetive pode haver pelo menos algo a ser aprendido,
pelo médico, a partir do cadáver. Na especulação doutrinal não há absolutamente nada; apenas a
eterna história de detetive é confundida pelo doutor em medicina fingindo ser um doutor em
divindade. A verdade é que toda essa história é mero blefe e mistagogia. O médico “vê” que a mente
desapareceu com a morte. O que o médico vê é que o corpo não pode mais chutar, falar, espirrar,
assobiar ou dançar. E um homem não precisa ser médico para perceber isso. Mas se o princípio de
energia – aquele que o fez chutar, falar, espirrar, assobiar e dançar – existe ou não existe em algum
outro plano de existência, disso o médico não sabe mais do que qualquer homem. E quando os
médicos estão lúcidos, alguns deles (como um ex-cirurgião chamado Thomas Henry Huxley[4])
dizem não acreditar que médicos, ou quaisquer outros homens, sabem algo a respeito. Esta é uma
posição inteligível; mas não parece ser a de Sir Arthur Keith. Ele se manifestou publicamente para
NEGAR que a alma sobreviva ao corpo; e para fazer a extraordinária observação de que qualquer
médico deve dizer o mesmo. É como se disséssemos que qualquer competente construtor ou
sobrevivente devesse negar a possibilidade da Quarta Dimensão; porque ele aprendeu o segredo
técnico de que um edifício é medido pela largura, profundidade e altura. A pergunta óbvia é: Por
que mencionar um sobrevivente? Todo mundo sabe que tudo é, de fato, medido por três dimensões.
Qualquer um que pense existir uma quarta dimensão o faz apesar de estar muito consciente que as
coisas são medidas por três. Ou é como se um homem fosse responder a um metafísico berkeliano,
que assegura que toda a matéria é uma ilusão da mente, dizendo: “Posso usar a evidência de um
operário inteligente que realmente tenha de trabalhar com concreto sólido ou aço; e ele lhe dirá que
eles são muito reais.” Devemos naturalmente responder que não precisamos de um operário para
nos dizer que as coisas sólidas são sólidas; e é num outro sentido que o filósofo diz que elas não são
sólidas. Igualmente, não há nada que possa fazer um médico materialista, exceto o que possa fazer
qualquer homem materialista. E é quando um homem absorveu todo aquele materialismo óbvio que
ele começa a usar sua mente. E, como alguns afirmam, ele não para mais.

Essa grande erupção anti-filosófica no campo filosófico foi, contudo, esclarecedora em certo
sentido. Jogou alguma luz nas afirmações prévias do conferencista em áreas que ele tinha mais
direito de fazê-las. Mesmo nestas coisas ele traiu uma curiosa simplicidade comum entre os
cientistas oficiais. A verdade é que eles se tornam constantemente menos cientistas e mais oficiais.
Eles desenvolvem aquele fino disfarce usado diariamente pelos políticos. Eles realizam diante de
nós os mais habilidosos truques com a mais desastrada transparência. É como assistir a uma criança
tentando esconder alguma coisa. Eles estão perpetuamente tentando nos enganar com grandes
palavras e sábias alusões; na suposição de que nunca nos tornaremos sábios – nem mesmo da forma
divertida e apequenada deles. Todo escritor famoso que nos troveja “Galileu” supõe que saibamos
ainda menos que ele sobre Galileu. Todo pregador da ciência popular que nos atira uma longa
palavra pensa que iremos consultar o dicionário e espera que não a estudemos seriamente, nem
mesmo numa enciclopédia. O uso que eles fazem da ciência é assaz parecido com o uso que dela
faz os heróis de certas histórias de aventura, em que o homem branco amedronta os selvagens com a
previsão de um eclipse ou com a produção de um choque elétrico. Estas são, em certo sentido,
verdadeiras demonstrações de ciência. Eles estão, em certo sentido, certos em dizer que são
cientistas. Onde talvez estejam errados seja em supor que somos selvagens.

Mas é muito divertido para nós que assistimos a preparação que fazem para nos dar o choque
elétrico, quando estamos seriamente esperando ser chocados pelo choque. É como uma piada,
quando nós, os selvagens ignorantes, somos não só capazes de prever o eclipse, mas capazes de
prever a previsão. Dentre os fatos que nos são familiares por um longo tempo está o de que os
homens de ciência encenam e preparam seus efeitos como o fazem os políticos. Eles também o
fazem muito mal – exatamente como os políticos. Nenhum desses modernos mistagogos
perceberam quão transparentes se tornaram seus truques. Um dos mais familiares e transparentes
deles é o que é chamado de uma “contradição oficial”. É uma estranha forma simbólica de declarar
que algo ocorreu pela negação de que tenha ocorrido. Assim, reportagens sobre a ilibada reputação
dos políticos são sempre publicadas depois de escândalos políticos de forma tão regular quanto a
publicação dos “bluebooks”.[5] Assim, o “Right Honourable Gentleman”[6] espera que não lhe seja
necessário contradizer o que o “Honourable Member”, com certeza, não poderia ter pretendido
insinuar. Portanto, um membro do Gabinete do Primeiro Ministro nega publicamente que não há
qualquer alteração na política do governo em relação a Damasco. E então, Sir Arthur Keith nega
publicamente que não há nenhuma alteração na atitude científica em relação a Darwin.

E quando ouvimos isso, damos um suspiro de satisfação; pois todos sabemos o que ISSO significa.
Significa mais ou menos o oposto. Significa que houve uma briga dos diabos dentro do partido
sobre Damasco, ou, em outras palavras, que está começando a acontecer um escândalo dos diabos
sobre os desacreditados darwinistas dentro da comunidade científica. A coisa curiosa é que no
último caso, as autoridades não estão apenas solenemente expressando a contradição oficial, mas
muito mais simplesmente supondo que ninguém perceberá que seja oficial. No caso da similar
ficção política, os políticos não somente sabem a verdade, mas sabem que nós também sabemos.
Todos sabem, pela fofoca que é repetida em todos os lugares, exatamente o que significa o acordo
absoluto em tudo que se relaciona ao Primeiro Ministro e seus colegas. O Primeiro Ministro não
espera realmente que acreditemos que ele é o sagrado e amado rei de uma irmandade de cavaleiros
que lhe juraram fé e lhe entregaram seus corações, a ele somente. Mas Sir Arthur Keith realmente
espera que acreditemos que ele é o primeiro jurado de um júri contendo todos os diferentes homens
de ciência, todos em absoluta concordância que a opinião particular de Darwin seja “eterna”. Isto é
o que chamei de segredo infantil e de truque desastradamente transparente. Esta é a razão de eu
dizer que eles nem sequer sabem o quanto sabemos.

Pois o político é menos pomposamente absurdo que o antropólogo, mesmo que os testemos pelo
que eles chamam de Progresso; que é apenas e principalmente uma outra palavra para Tempo.
Todos conhecemos o otimismo oficial que sempre defende o governo atual. Mas isso é como uma
defesa oficial de todos os governos passados. Se um homem dissesse que a política de
Palmerston[7] é eterna, o acharíamos um pouco desatualizado. Ora, Darwin era figura proeminente
no tempo de Palmerston; e está igualmente desatualizado. Se o Sr. Lloyd George[8] se levantasse e
dissesse que o grande Partido Liberal não recuou de uma única posição assumida por Gobden e
Bright,[9] os únicos Tribunos do Povo, concluiríamos relutantemente (se tal coisa fosse concebível)
que ele falava asneiras a um povo ignorante em relação à história do partido. Se um reformador
social afirmasse solenemente que toda filosofia social ainda procedesse estritamente dos princípios
de Herbert Spencer, deveríamos saber que isto não é verdade e que somente uma autoridade
absolutamente fossilizada poderia pretender que fosse. Ora, Darwin e Spencer não eram somente
contemporâneos, mas camaradas e aliados; e a biologia darwiniana e a sociologia spenceriana foram
consideradas como partes de um mesmo movimento, que nossos avós consideraram um movimento
muito moderno. Mesmo considerada a priori como uma questão de probabilidade, parece portanto
assaz improvável que a ciência daquela geração fosse algo mais infalível que sua ética ou política.
Mesmo baseado nos princípios que Sir Arthur professa, parece muito estranho que não haja agora
nada mais a ser dito sobre o darwinismo do que o que ele disse. Mas não precisamos apelar para
aqueles princípios ou para aquelas probabilidades. Podemos apelar para os fatos. Por acaso,
sabemos alguma coisa sobre os fatos; e Sir Arthur Keith não parece saber que sabemos.

Foi num jornal católico que certas afirmações foram feitas sobre o atual darwinismo; afirmações
que o próprio Sir Arthur Keith se esforçou em contradizer; e sobre as quais o próprio Sir Arthur
Keith se mostrou sensacional e desastrosamente errado. É provável que a história seja agora
conhecida de todos os leitores do jornal; mas é provável que ela nunca chegue ao conhecimento da
maioria dos jornalistas, e ela certamente não será comentada na maioria dos outros jornais. Ao tocar
sobre essa controvérsia cômica, a maioria dos jornais são jornais de partido; e apóiam o líder do
partido quando publicam a contradição oficial. Eles não deixam o público saber quão
triunfantemente suas outras contradições foram contraditadas.

Quando o Sr. Belloc afirmou que esses darwinistas estavam desatualizados e desconheciam os
avanços recentes da biologia, ele citou, dentre muitas autoridades recentes, o biólogo francês
Vailleton, que nega a possibilidade da seleção natural num caso particular relacionado a répteis e
aves. Sir Arthur Keith, vindo resgatar o Sr. H. G. Wells, e ansioso por provar que ele e o Sr. Wells
não estavam desatualizados ou desconheciam a recente biologia, contraditou o Sr. Belloc
categoricamente.[10] Disse que não havia tal afirmação no livro de Vialleton; em outras palavras,
ele acusou o Sr. Belloc de ter citado erroneamente ou de ter mal-entendido o livro de Vialleton.
Revelou-se assim, para a surpresa de todos, especialmente do Sr. Belloc, que Sir Arthur Keith não
conhecia a existência do livro. Ele se referia a um trabalho anterior e preliminar do mesmo autor,
publicado muito tempo atrás. Este foi o último trabalho de Vialleton que ele leu. A notícia do
importante livro, do qual eu, um mero homem da rua, ignorante e não-científico, tinha ouvido falar
pelo menos alguma coisa, não tinha caído aos ouvido de Sir Arthur. Em resumo, a acusação geral,
que os darwinistas estão desatualizados, foi provada tão completamente quanto teria sido possível a
qualquer controvérsia existente no mundo.

Agora, quando uma coisa dessas acontece, sobretudo quando acontece a nós, nas páginas de um
jornal em que escrevemos, com um de meus próprios amigos, como se pode esperar que pessoas em
nossas posições levem seriamente em consideração o discurso na abertura da Associação Britânica
em Leeds? Como podemos manter um rosto sério, quando o Presidente faz uma pose, apontando
para as estrelas, e declara que o darwinismo é igualmente eterno? Essa coisa não é dirigida a nós;
mas aos repórteres; da mesma forma que a verdadeira história de Wells e Belloc é geralmente
mantida fora das reportagens.

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[1] Sir Arthur Keith (1866 – 1955) foi um eminente anatomista e antropólogo escocês. (N. do T.)
[2] Charles Bradlaugh (1833 – 1891) foi o mais famoso ateu militante do século XIX na Inglaterra. (N. do T.)
[3] Robert G. Ingersoll (1833 – 1899), veterano da Guerra Civil americana, político, ateu militante e grande defensor do
racionalismo científico e humanista. (N. do T.)
[4] Médico e biólogo inglês, principal defensor da teoria da evolução de Darwin. (N. do T.)
[5] Relatórios do governo inglês que são publicados regularmente. (N. do T.)
[6] Título aplicável à nobreza inglesa e também aos membros do Conselho Privado do Reino Unido. (N. do T.)
[7] Henry John Temple, 3º Visconde de Palmerston (1784 – 1865) – Político inglês que foi Primeiro Ministro de 1855 a
1858. (N. do T.)
[8] Político liberal inglês, único Primeiro Ministro inglês nascido no País de Gales. (N. do T.)
[9] Políticos radicais ingleses do séc. XIX. O Partido Liberal inglês surgiu de grupos radicais como os de Cobden e
Bright. (N. do T.)
[10] Em contraposição ao livro “Outline of History”, a dupla Chesterton/Belloc escreveu vários livros. Chesterton
escreveu uma de suas obras-primas, O Homem Eterno. Belloc manteve com Wells, na década de 1920, uma polêmica,
que é aqui mencionada, que gerou vários livros: “Um complemento ao livro Outline of History do Sr. H.G. Wells”; “As
Objeções do Sr. Belloc Ainda Persistem”, uma resposta ao livro-reposta de H.G. Wells, “As Objeções do Sr. Belloc”.
11. THE EARLY BIRD IN HISTORY
12. Protestantismo: Um romance problemático
13. Um pensamento simples

Gilbert Keith Chesterton

Muitos homens retornariam à fé e moral dos velhos tempos se conseguissem alargar suas mentes o
suficiente. É principalmente estreiteza mental que os mantém na rotina da negação. Mas esse
alargamento é facilmente mal-entendido, porque a mente deve se alargar para perceber as coisas
simples; ou mesmo as coisas auto-evidentes. Precisa-se de um esforço de imaginação para perceber
os objetos óbvios contra um fundo óbvio; e especialmente os objetos grandes contra um fundo
grande. Há sempre o tipo de homem que não consegue perceber nada exceto uma mancha no
carpete, pois não consegue perceber o carpete. E isso tende à irritação, que ele pode exagerar e
transformar numa rebelião. Então há o tipo de homem que percebe somente o carpete, talvez porque
seja um carpete novo. Isso é mais humano, mas pode estar manchado de vaidade e mesmo
vulgaridade. Há o homem que pode ver somente a sala acarpetada; e isso tenderá a isolá-lo demais
das outras coisas, especialmente dos quartos dos empregados. Finalmente, há o homem com larga
imaginação, que não consegue se sentar num cômodo acarpetado, ou mesmo no quarto de despejo,
sem perceber, a todo o momento, o contorno de toda a casa contra seu fundo aborígene de terra e
céu. Ele, compreendendo que o teto foi feito, desde o início, como uma proteção contra o sol ou a
neve, e a porta contra o frio ou a lama, saberá melhor que o restante dos homens – e não pior –as
regras internas. Ele saberá melhor que o primeiro homem que não deve haver mancha no carpete.
Mas ele saberá, diferentemente do primeiro homem, porque há um carpete.

Ele considerará da mesma maneira uma nódoa ou mancha nos registros de sua tradição ou credo.
Não a explicará ingenuamente; não a desprezará. Ao contrário, ele a verá de maneira muito simples;
mas ele também a verá de maneira muito ampla; e contra um fundo de coisas amplas. Fará o que
seus críticos nunca farão, de forma alguma; ele verá as coisas óbvias e fará as perguntas óbvias.
Pois quanto mais eu leio a crítica religiosa moderna, especialmente a que se refere à minha própria
religião, mais me impressiono com a acanhada concentração e a incapacidade imaginativa de
considerar o problema como um todo. Li recentemente uma condenação muito moderada de
práticas católicas, vinda dos EUA, onde as condenações estão longe de ser moderadas. Ela toma a
forma, de maneira geral, de um enxame de questões, perguntas que eu estaria muito disposto a
responder. Contudo, estou vivamente consciente das grandes questões que não foram formuladas.

E sinto, acima de tudo, este fato simples e esquecido; que se certas acusações são ou não são
verdadeiras em relação aos católicos, elas são inquestionavelmente verdadeiras em relação aos
demais. Nunca ocorre ao crítico fazer algo tão simples quanto comparar o que é o católico com o
que é não-católico. Uma coisa que nunca parece passar pela sua mente, quando ele discute o que é a
Igreja, é a simples questão do que seria do mundo sem ela.

Isto é o que eu considero ser estreito demais para perceber a casa chamada Igreja contra o fundo
chamado cosmos. Por exemplo, o escritor a que me refiro entrega-se a milhares de repetições
mecânicas da acusação de repetições mecânicas. Ele diz que repetimos orações e outras formas
verbais sem pensar nelas. E, sem dúvida, há muitos simpatizantes dessa acusação que a repetirá sem
pensar. Mas, antes que expliquemos o real ensinamento da Igreja sobre tais coisas, ou antes que
citemos suas inúmeras recomendações sobre atenção e vigilância, ou que possamos expor a razão
de razoáveis exceções que ela permite, há uma grande, uma simples e luminosa verdade sobre toda
a situação que qualquer um pode ver, desde que ande de olhos abertos. É o fato óbvio de que
TODAS as formas humanas de discurso tendem a se fossilizar em formalismos; e que a Igreja é um
caso único na história, não de uma língua morta dentre línguas eternas; mas, ao contrário, como
tendo preservado uma língua viva num mundo de línguas moribundas. Quando o grande clamor
grego se transformou no latim da Missa, tão antigo quanto a própria cristandade, pode surpreender
alguns que há muitos na igreja que realmente dizem KYRIE ELEISON e dizem-no sinceramente.
De qualquer forma, dizem-no muito mais sinceramente do que um homem que começa uma carta
com “Caro senhor”. “Caro” é enfaticamente uma palavra morta; naquele lugar, ela já não significa
nada. É exatamente o que os protestantes chamam de ritos e formalidades papais; são feitos
rapidamente, ritualmente e sem a memória do significado do rito. Quando o Sr. Jones, o
pretendente, usa essa palavra ao se dirigir ao Sr. Brown, o banqueiro, ele não quer dizer que o
banqueiro lhe seja querido, ou que seu coração esteja cheio de amor cristão, nem mesmo tanto
quanto o coração de algum pobre e ignorante papista que assista a Missa. Mas a vida ordinária,
alegre e pagã está simplesmente transbordante de tais palavras mortas e cerimônias insignificantes.
Você não escapará delas escapando da Igreja e entrando no mundo. Quando o crítico em questão, ou
milhares de críticos como ele, diz que exigimos apenas uma assistência material e mecânica à
Missa, ele diz algo que NÃO é verdade sobre os sentimentos de um católico normal em relação aos
Sacramentos Católicos. Mas ele diz algo que É verdade sobre a assistência oficial das funções
oficiais ordinárias, sobre as recepções ministeriais ou na Corte, e sobre três quartos dos encontros
sociais e das visitas de cortesia que ocorrem na cidade. Esse enfraquecimento da ação social
repetida pode ser uma coisa inofensiva; pode ser uma coisa melancólica; pode ser a marca da Queda
do Homem; pode ser qualquer coisa que o crítico escolha pensar. Mas aqueles que fazem, centenas
e centenas de vezes, a acusação especial e concentrada contra a Igreja, são homens cegos para a
totalidade do mundo humano em que vivem e são incapazes de ver qualquer coisa, exceto a coisa
que caluniam.

Há, nessa área, inúmeros outros casos dessa inconsciência estranha e sinistra. O escritor reclama
que padres são levados cegamente à vocação e não entendem as responsabilidades nela envolvidas.
Isso também já ouvimos antes. Mas raramente a ouvimos de forma tão extraordinária quanto em sua
afirmação de que um homem se compromete com o sacerdócio quando ainda é “uma criança”. Ele
parece nutrir idéias estranhas e elásticas quanto à duração da infância. Como observou o Sr.
Michael Williams, em sua ponderada e esclarecedora coleção de ensaios, “Catolicismo e Mente
Moderna”, isso é brincar com uma matéria de fato, desde que um padre tem no mínimo 24 anos
quando toma votos. Mas, aqui e de novo, sou assombrado pela imensa, nua, e mesmo assim,
desprezada comparação entre a Igreja e tudo o mais fora dela. Muitos críticos do catolicismo
declaram-no destrutivo ao patriotismo; e esse crítico diz algo sobre as desvantagens da Igreja estar
meramente “ligada a uma diocese italiana.” Bem, eu mesmo fui sempre defensor do culto ao
patriotismo; e nada que eu diga aqui tem alguma ligação com o que é normalmente chamado de
pacifismo. Penso que nossos amigos e irmãos empreenderam, dez anos atrás, uma guerra justa
contra o duro paganismo do norte; penso que o prussianismo que eles venceram era o orgulho
congelado do inferno; e aqueles que morreram estão, talvez melhor que nós que vivemos para ver
quão má a Paz pode ser.

Mas, e quando falamos sobre a Igreja envolver jovens com votos? O que devemos dizer àqueles que
contrapõem patriotismo ou cidadania pagão à Igreja nessa questão? Eles convocam, usando de
violência, garotos de 18 anos, eles aplaudem voluntários de 16 anos que dizem ter 18, lançam
milhares deles num enorme forno ou câmara de tortura, do qual sua imaginação nada consegue
conceber e do qual sua honra os proíbe de escapar; eles os mantêm nesses horrores ano após ano
sem qualquer esperança de qualquer vitória; e os matam como moscas, aos milhões antes que
comecem a viver. Isso é o que o Estado faz; isso é o que o Mundo faz; isso é o que faz a sociedade
protestante, prática, razoável e secular. Depois disso, eles têm a impressionante imprudência de
reclamar de nós porque, ao tratar com uma minoria de especialistas, permitimos a um homem
finalmente escolher uma vida de caridade e paz, não somente muito depois que ele tenha passados
dos 21 anos de idade, mas quando ele esteja já bem próximo dos 30, e depois que tenha tido
aproximadamente 10 anos para pensar se ele quer isso ou não.

Em resumo, o que sinto falta em tudo isso é a coisa óbvia: a comparação da Igreja com o mundo
fora dela, ou a ela oposto, ou o mundo oferecido como o substituto da Igreja. E o fato é que o
mundo fará tudo o que sempre acusou a Igreja de fazer, e fá-lo-á de uma maneira muito pior, e em
muito maior escala, e (o que é o pior e mais importante) sem qualquer padrão de retorno à sanidade
ou qualquer motivo para um movimento de arrependimento. Os abusos católicos podem ser
“reformados”, porque há a admissão de uma forma. Os pecados católicos podem ser expiados,
porque há um teste e um princípio de expiação. Mas onde mais, no mundo de hoje, há um tal teste
ou padrão; ou algo exceto um temperamento em permanente mudança, que faz do patriotismo uma
moda, dez anos atrás, e do pacifismo uma moda, dez anos depois?

O perigo hoje é que os homens não tenham alargado suficientemente suas mentes para entender as
coisas óbvias; e esta é uma delas. É que os homens acusam a tradição de Roma de ser meio-pagã e
então se refugiam num completo paganismo. É que os homens reclamam porque os cristãos se
infectaram de paganismo; e então fogem da praga e se refugiam na pestilência. Não há um único
desses defeitos alegados contra a instituição católica que não seja ainda mais flagrante e mesmo
gritante em todas as outras instituições. E é para essas outras instituições, o Estado, a Escola, a
máquina moderna de cobrança de impostos e policiamento, que essas pessoas realmente se voltam à
procura de socorro contra a superstição de seus pais. Esta é a contradição; esta é a colisão
destruidora; este é o desastre intelectual inevitável no qual eles já se envolveram; e temos apenas de
esperar tão pacientemente quanto pudermos para ver quanto tempo eles ainda levarão para
perceberem o que aconteceu.
14. THE CALL TO THE BARBARIANS
15. ON THE NOVEL WITH A PURPOSE
16. A Revolta contra as Idéias

Nota do Tradutor: Este é um capítulo do livro The Thing (A Coisa), publicado em 1929. Aqui
vemos Chesterton expressar algumas de suas idéias sobre o capitalismo, sobre a Reforma e fazer
uma defesa dos valores medievais. A propósito, a "coisa" do título é exatamente a Igreja Católica e
perpassa, sem menção direta, todos os capítulos do livro. Espero um dia poder traduzir este livro.

Gilbert Keith Chesterton

Ao mesmo tempo em que o Daily Express fornece-nos terríveis informações sobre o México, a
seção de cartas do Daily Express fornece-nos informações quase igualmente tão terríveis sobre a
Inglaterra. Isso dá-nos uma idéia do quão monstruosas e disformes são as coisas que ainda existem
em nosso meio, veladas pelas vilas de tijolos vermelhos e por chapéus de feltro. As horrorosas
revelações sobre a Inglaterra foram, claro, principalmente psicológicas. Não foi a anarquia do
estado que fez fracassar a luta dos povos latinos. Foi a anarquia da mente, que é um caráter especial
daqueles a quem chamamos, nos momentos de raiva, de anglo-saxões. Um ateu mexicano seria
muito capaz de cortar a garganta de um padre ou praticar tiro de canhão em uma freira. Mas ele
seria incapaz de afirmar, como fizeram os protestantes no jornal, que era certo para Calles [1]
perseguir aquela crença naquela ocasião, porque era errado para os católicos perseguirem qualquer
crença em qualquer ocasião. Nenhum anarquista consegue ser tão anárquico. Calles poderia ter
explodido a catedral de São Pedro, mas ele não culparia um espanhol por ter feito o que um
mexicano, louvado por ele, estava tentando fazer. A esse respeito, mesmo Calles é mais católico e
mais latino. Ele quer fazer as coisas à sua própria maneira, e impedir milhares de pessoas de fazer
as coisas à maneira deles; mas ele não quer ambas as coisas. Este sacramento selvagem, o milagre
do desaparecimento e reaparecimento do bolo, do bolo que é sempre devorado e sempre permanece
– este milagre pertence à religião da irracionalidade e somente acontece nas capelas de nosso
próprio e livre país.

Em meio à confusão de tais palavras, houve uma frase numa das cartas que é de algum interesse
sociológico para nós. Um desses intolerantes “tolerantistas” estava tentando defender Calles por
meio da sugestão de que somente um preconceituoso pode acusá-lo de extremismo anárquico e anti-
religioso. É muito injusto (foi dito) chamar Calles de ateu ou bolchevique. De fato, podemos
aprender de todas essas cartas que Calles é provavelmente um metodista wesleyano e freqüenta
regularmente a capela de East Croydon. Mas ele é ainda pior. Eles parecem considerar que é um
favor a Calles fazê-lo o extraordinário elogio de comparando-o aos reformadores do século XVI. O
correspondente aqui em foco usa isso com um argumento contra o alegado anarquismo do mexicano
– caso ele seja mexicano. “Calles e seus partidário são estigmatizados como ateus e bolcheviques –
Por quê? Foram os reformadores ingleses bolcheviques? Certamente não.”

Com isso concordamos alegremente. Com uma sincera unanimidade podemos repetir, “Certamente
não.” Os reformadores ingleses certamente não foram bolcheviques. Ninguém concordará com a
elegante afirmação de que os reformadores ingleses foram capitalistas. Poucas pessoas na histórias
mereceram ser descritos tão exatamente, tão completamente, como tipicamente capitalistas. Eles
foram muitas outras coisas além de capitalistas; alguns deles eram mal-educados, alguns
cavalheiros, alguns poucos eram homens honestos, muitos eram ladrões, um tipo mais ordinário de
cortesões, um tipo melhor de monomaníacos; mas eles eram todos capitalistas e o que eles criaram
foi o capitalismo. Todos eles conduziram suas poderosas operações políticas baseados numa enorme

[
acumulação de capital; mas eles nunca, mesmo com seus olhos moribundos, perderam a luz de
esperança e expectativa; a promessa e a visão de mais capital.

Mas o que nos preocupa hoje em dia é isto: é o capitalismo deles que permaneceu. De fato, muitos
deles tinham outros ideais de simplificação espiritual que poderiam, em certo sentido, ser
comparados ao comunismo. Nunca devemos chamar de bolchevique um homem como Cranmer ou
um homem como Burleigh. Poderíamos dizer, com Hamlet, “Pois quiséramos que fôsseis tão
honesto”. Mas havia homens naquele movimento, ou naquela confusão, que eram tão loucos e
honestos quanto os bolcheviques. Havia entusiasmos teóricos e especialmente teológicos que
moviam particularmente em direção à simplicidade; como aqueles dos bolcheviques. Mas uma
coisa deve ser fixada: aquelas teorias estão mortas. Havia um esquema lógico e imponente de
pensamento; mas foi isso que foi completamente abandonado pelo pensamento moderno. Havia
ideais sinceros em alguns dos primeiros protestantes; mas eles não são os ideais dos protestantes
modernos. Assim, o calvinismo foi uma definida filosofia; o que é suficiente para distingui-lo do
pensamento moderno. Mesmo que os protestantes modernos retenham elementos do calvinismo, o
calvinismo está morto. Se eles retivessem elementos de comunismo, como alguns deles poderiam
tê-lo feito, aquele comunismo estaria agora morto. Nada além de seu capitalismo está vivo.

Devemos lembrar que mesmo falar sobre a corrupção dos monastérios é um elogio aos monastérios.
Pois não falamos da corrupção dos corruptos. Ninguém pretende afirmar que as instituições
medievais começaram com mera avareza e soberba. Mas as modernas instituições assim o fizeram.
Ninguém diz que São Bento escreveu suas regras de trabalho a fim de fazer seus monges
preguiçosos; mas somente que eles se tornaram preguiçosos. Ninguém diz que os primeiros
franciscanos praticavam a pobreza para obter riqueza; mas somente que as fraternidades posteriores
obtiveram riquezas. Mas é completamente claro que os Cecils, os Russels etc. quiseram de início
ficar ricos. Que o que foi a morte para o catolicismo foi realmente o nascimento do capitalismo.
Desde então, temos tido não a inconsistência de um homem que, fazendo voto de pobreza, ficasse
rico; mas uma consistência assaz chocante, de um homem que, fazendo um voto de riqueza, ficasse
mais rico ainda. Depois disso, não houve mais fim a corrida da ambição; e a crença coisas cada vez
maiores. É certamente verdade que os reformadores não foram comunistas. Pode ser argumentado
competentemente que os religiosos eram comunistas. Mas a questão mais vital não é o comunismo,
mas um certo espírito comparativo. O grande proprietário de terras aumento e o pequeno
proprietário diminuiu. Ambos eram orgulhosos em possuir terras. Mas o orgulho se tornou cada vez
maior na posse de grandes propriedades, e não na posse da propriedade. Assim, por seu lado, o
merceeiro parou de se preocupar com seu próprio negócio e somente conseguia se orgulhar do
número de negócios com que se preocupar. Disso veio toda a megalomania mercantil de hoje; com
sua transformação universal do pequeno negócio em grandes corporações. Esta foi a conclusão
natural do movimento, na direção oposta à transformação de todos os pequenos negócios em
guildas. Mas sua gênese foi a mudança de um ideal de humildade, em que muitos fracassavam, para
um ideal de orgulho, em que, por sua própria natureza, somente alguns conseguem o sucesso.

Nesse sentido, podemos concordar com o correspondente do jornal; que os reformadores não foram
revolucionários. Podemos tranqüilizar aquele simples cavalheiro com a nossa total percepção de
que eles não foram bolcheviques. Podemos absolver integralmente os Cranmers e os Cromwells de
qualquer desejo incansável de sublevar o proletariado. Podemos absolver os grandes nomes de
Burleigh e Bacon da mancha de qualquer perigosa simpatia com o pobre. A marca distintiva dos
reformadores foi um profundo respeito pelos poderosos, mas um respeito ainda mais profundo pela
riqueza; e uma reverência realmente incomensurável pela própria riqueza. Algumas pessoas gostam
desse espírito, e consideram-no como a mais razoável fundação de um governo estável; não
precisamos discutir sobre isso aqui. Esse espírito é, geralmente, o que é considerado
respeitabilidade por todos os que não têm nada mais para respeitar. Ninguém poderia certamente
confundi-lo com revolução. Mas a questão de importância histórica poderia ser colocada de outra
forma, também mais ou menos favorável aos reformadores. O capitalismo não era apenas sólido,
era em certo sentido, cândido. Ele estabeleceu uma classe a ser adorada aberta e francamente por
sua riqueza. Este é o contraste real entre esta e a ordem medieval. Tal riqueza veio do abuso dos
monges e abades; veio da ação de comerciantes e grandes proprietários. Os abades avarentos
violaram seus ideais. Os empregadores avarentos não tinham ideais para violar. Pois nunca houve,
propriamente falando, um ideal capitalista do bem; apesar de haver um grande número de homens
bons que são capitalistas seguindo outros ideais. A Reforma, especialmente na Inglaterra, foi acima
de tudo o abandono da tentativa de governar o mundo por meio de ideais, ou mesmo por meio de
idéias. A tentativa falhara indubitavelmente, em parte, porque aqueles que eram os supostos
idealistas fracassaram em sustentar os ideais; e muitos dos supostos aceitadores da idéia geral
frustraram a realização das idéias. Mas aquela tentativa sofreu o ataque daqueles que odiavam, não
somente aqueles ideais, mas qualquer ideal. Foi o resultado dos apetites impacientes e imperiosos
da humanidade, que odeiam ser limitados por laços; mas, acima de tudo, por laços invisíveis. Pois
os reformadores ingleses não estabeleceram um ideal oposto ou um conjunto alternativo de ideais.
Como nosso amigo disse verdadeiramente, eles não eram bolcheviques. Eles estabeleceram certas
coisas muito formidáveis chamadas fatos. Eles estabeleceram quase abertamente que iam governar
o reino meramente por meio de fatos; pelo fato de alguém chamado Russel ter tido duzentas vezes
mais dinheiro que seus vizinhos; pelo fato de que alguém chamado Cecil ter obtido o poder de
mandar qualquer vizinho para a forca. Os fatos são sólidos, pelo menos enquanto duram; mas a
coisa fatal sobre eles é que eles não duram. Somente as idéias duram. E hoje um homem pode
chamar-se Russel e ter consideravelmente menos dinheiro que um homem que chama-se
Rockefeller; e a história pode assistir o espetáculo impressionante de um homem chamado Cecil ser
expulso da política e chamado de idealista e um fracassado.

O mesmo progresso que fez os grandes proprietários os destruiu. O mesmo avanço comercial que
exaltou a Inglaterra perante a Europa a humilhou perante a América. Na exata medida em que temos
nossas afeições saudavelmente ligadas a esta aventurosa e patriótica Inglaterra dos últimos poucos
séculos, devemos perceber que nossas afeições estão fadadas a ser traídas. O processo chamado
prático, a tentativa de governar por meio de meros fatos, tem em sua própria natureza a essência de
todas as traições. Descobrimos que os fatos, que parecem sólidos, são, de todas as coisas, as mais
fluidas. Como os professores e os arrogantes dizer, os fatos estão sempre evoluindo; em outras
palavras, eles estão sempre evadindo-se, escapando ou fugindo. Homens que se prostram ante a
riqueza de um grande proprietário, porque isso permite-lhe comportar-se com um cavalheiro, têm de
se prostrar ante a mesma riqueza de alguém que não consegue comportar-se como um cavalheiro; e,
eventualmente talvez, ante a mesma riqueza que não esteja ligada a nenhum ser humano
reconhecível, mas investida em uma companhia irresponsável num país estrangeiro. A riqueza cria,
de fato, asas para si mesmo, e pode até habitar as mais longínquas partes do oceano. A riqueza
torna-se disforme e quase fabulosa; de fato, são satíricos inconscientes que falam de “fabulosa
riqueza”. Grandes financistas compram e vendem milhares de coisas que ninguém jamais viu; e que
são, para todos os propósitos práticos, imaginárias. Assim termina a aventura de se acreditar apenas
em fatos; termina num conto de fadas de fantásticas abstrações.

Devemos retornar à idéia de governo por meio de idéias. Há apenas um grão de verdade na já
mencionada fantasia do comunismo. Mas há idéias muito mais ricas, mais sutis e mais bem
equilibradas no catolicismo medieval. Repito que este catolicismo foi arruinado tanto por católicos
quanto por protestantes. Os pecados medievais impediram e corromperam as idéias medievais, antes
de os reformadores decidirem abandonar todas as idéias. Mas seguir aquelas idéias foi a coisa certa
a fazer, ou tentar fazer; e não há e nunca haverá nada mais a fazer exceto tentar de novo. Muitos
homens medievais fracassaram na tentativa de pôr em prática aqueles ideais. Mas muitos homens
modernos estão fracassando ainda mais desastrosamente na tentativa de viver sem eles. E através
deste fracasso estamos gradualmente entendendo as reais vantagens daquele esquema antigo que
apenas parcialmente fracassou; segundo o qual, em teoria pelo menos, o homem da paz era mais
elevado que o homem da guerra, e a pobreza, superior à riqueza.

Há uma curiosa e pequena frase no ensaio de Macaulay sobre Bacon; aquela grande explosão dos
filisteus contra os filósofos. Numa pequena sentença, o grande filisteu trai a fraqueza de todo seu
argumento de utilitarismo. Falando desdenhosamente do escolástico, ele diz que Santo Tomás de
Aquino deveria sem dúvida (tal era sua simplicidade) ter pensado ser mais importante fabricar
silogismos do que pólvora. Nem mesmo a Conspiração da Pólvora [2] poderia impedir aquele
protestante resistente de supor que a pólvora é sempre útil. Desde seu tempo temos visto muito mais
pólvora. Não é necessário ser um pacifista para considerar que a pólvora não necessita continuar a
ser útil em tão larga escala. E uma grande parte do mundo atingiu agora um estado de reação no
qual está disposto a clamar, “Se houver qualquer silogismo que nos salve de toda essa pólvora, pelo
amor de Deus, permita-nos ouvi-lo.” Eles estão preparados, em desespero, a aceitar até a lógica.
Eles não ouvirão apenas a religião, eles talvez ouçam até a razão, se ela prometer-lhes um pouco de
paz.

______________________________________________________________
[
1] Plutarco Elias Calles, ditador mexicano, anti-católico e maçom, em cujo governo aconteceu a Guerra dos Cristeros
(1926-29), que acabou num massacre de católicos mexicanos. (N. do T.)
[
2] Conspiração da Pólvora foi organizada por católicos para explodir o Parlamento quando o rei James I, em 5 de
novembro de 1605 o estivesse presidindo. (N. do T.)

[
17. AS FESTAS E O ASCETA

Do livro A Coisa, 1929


Gilbert Keith Chesterton

Nota do blog: Chesterton nos dá uma aula de apologia católica, tratando de um dos assuntos mais interessantes do
catolicismo: a alegria cristã e a necessária e pemanente prática da penitência e da mortificação como caminho de
nossa santificação. É assunto ligado à teologia ascética e mística, tratada amplamente por Pe. Tanquerey em seu
Tratado de Teologia Ascética e Mística. Aqui Chesterton mostra como se pode falar de assuntos complicadíssimos de
forma clara e simples, mesmo quando somos confrontados por pagãos altamente ignorantes.

Estava refletindo durante a recente festa de Natal (que, como outras festas, é precedida por um
jejum) que a combinação é ainda um enigma para mim. O modernista, ou o homem que se gaba de
ser moderno, é geralmente muito parecido com o homem que come tanto na véspera que não tem
fome no Natal. Isto é chamado “estar à frente do tempo”; e é característica de todos que são
progressistas, proféticos, futuristas e que geralmente estão mirando o que o Sr. Belloc chama de a
Grande Aurora Rósea; uma aurora que parece muito mais rósea na noite anterior que na manhã
seguinte.

A muitas pessoas, todavia, que não estão ofensivamente à frente do tempo, a combinação dessas
idéias parece realmente ser um tipo de contradição ou confusão. Mas, na verdade, ela não é nem tão
confusa, nem tampouco tão complicada. A grande tentação do católico no mundo moderno é a
tentação do orgulho intelectual. É tão óbvio que a maior parte de seus críticos fala sem
minimamente saber do que está falando, que ele é, às vezes, um pouco provocado a usar uma lógica
muito anti-cristã, que é a de responder um tolo segundo sua tolice. Ele fica um pouco disposto a
deleitar-se em segredo, por assim dizer, com a filosofia muito mais rica e sutil que ele herdou; e
apenas responder ao perplexo bárbaro de forma a torná-lo ainda mais perplexo. Ele é tentado a
concordar ironicamente ou mesmo a se disfarçar de ignorante. Homens que possuem uma elaborada
defesa filosófica de seus pontos de vista às vezes se comprazem em jactar-se da credulidade infantil
dos outros. Tendo alcançado seus próprios objetivos por meio dos labirintos da lógica, eles
indicarão ao estranho somente o mais curto atalho de autoridade; apenas a fim de chocar o
simplório com a simplicidade. Ou, como no caso presente, eles encontrarão um divertimento
amargo em apresentar as partes separadas de um esquema, como se elas fossem realmente
separadas; e em deixar o observador externo fazer delas o que ele conseguir. Assim, quando alguém
diz que um jejum é o oposto a uma festa, e ainda que ambos nos pareçam sagrados, alguns de nós
serão sempre movidos a dizer, “Sim,” e a dar uma condenável gargalhada. Quando o ansioso
investigador ético diz, “O Natal é devotado à fabricação de alegria, a comer carne e beber vinho, e
mesmo assim você incentiva este divertimento pagão e materialista,” você ou eu seremos tentados a
dizer, “Muito bem, meu garoto,” e a deixar a coisa como está. Quando ele então diz, parecendo até
mais preocupado, “E mesmo assim você admira os homens por jejuarem em cavernas e desertos e
por se negarem prazeres comuns; você está claramente comprometido, como os budistas, com o
oposto, ou seja, com o princípio ascético,” estaremos igualmente inspirados a dizer, “Correto,
companheiro,” ou “Percebo isto pela primeira vez, caro amigo,” e a propor apenas um adiamento
para nossa alegre refeição.

Todavia, é uma tentação a ser resistida. Não somente é óbvio que é nossa obrigação explicar aos
outros que o que lhes parece contraditório é realmente complementar, mas também que não estamos
em absoluto justificados no uso de tal tom de superioridade. Não estamos agindo corretamente
quando fazemos de nossa cordialidade uma expressão de nosso desespero; tampouco é assim tão
horrivelmente difícil de explicar. A real dificuldade não é tanto que o crítico seja tosco, mas que nós
próprios não somos sempre claros, mesmo em nossa própria mente, muito menos em nossas
exposições públicas. Não é tanto que eles não sejam sutis o suficiente para entender, mas que eles,
nós e todo mundo não somos simples o suficiente para entender. Aquelas duas coisas são parte de
uma única coisa, se formos diretos o suficiente em olhar a coisa; e vê-la simplesmente como ela é.
Sugeri recentemente que as pessoas deveriam ver a história cristã como se ela fosse contada como
uma história pagã. A Fé é simplesmente a história de um Deus que morreu pelos homens. Mas,
estranhamente, se escrevêssemos as palavras sem o G maiúsculo, como se fosse o culto de alguma
tribo nova e desconhecida, muitos perceberiam a idéia pela primeira vez. Muitos sentiriam o arrepio
de um novo temor e afinidade se simplesmente escrevêssemos: “a história de um deus que morreu
pelos homens”. As pessoas se surpreenderiam e diriam: que bela e tocante seria aquela religião
pagã.

Vamos supor, como argumento, que a Igreja não seja considerada; que não temos nada senão a terra
e os filhos dos homens nela vagando, com suas lendas e tradições ordinárias e mortais. Então,
suponha que aparece nesta terra um prodígio, um portento, ou um suposto portento. De algum modo
o céu rasgara o véu ou os deuses deram alguma nova maravilha à humanidade. Suponha, por
exemplo, que seja uma fonte de água mágica que, conta-se, flui do alto de uma montanha. Ela
abençoa como água sagrada; cura as doenças, inspira mais do que o vinho, ou os que a tomam
nunca mais sentem sede. Bem, essa história pode ser verdadeira ou falsa; mas entre aqueles que a
difundem como verdadeira, é perfeitamente óbvio que a história produzirá uma série de outras
histórias. É igualmente óbvio que tais histórias serão de dois tipos. O primeiro tipo de história dirá:
“Quando a água descia ao vale, havia dança em todas as vilas; os jovens e as donzelas regozijavam-
se com a música e riso. Um marido ríspido e sua esposa foram borrifados com a água sagrada e se
reconciliaram e assim seu lar ficou cheio de alegres crianças. Um aleijado foi borrifado e começou a
saltar alegremente como um acrobata. Os jardins foram aguados e se tornaram alegres com flores,”
etc. É igualmente muito óbvio que haverá outro tipo de história, exatamente da mesma fonte,
contada exatamente pelo mesmo motivo. “Um homem coxo se arrastou centenas de quilômetros, até
que ele quase já não conseguia andar, para encontrar a fonte sagrada. Os homens se deitavam
alquebrados e sangrando por sobre as pedras da encosta da montanha em seus esforços para escalá-
la. Um homem vendeu suas terras atravessadas por rios em troca de uma gota da água. Um homem
recusou-se a retroceder, quando confrontado por bandoleiros, mas foi torturado e morreu clamando
por ela,” etc. Não há nada minimamente inconsistente nestes dois tipos de lendas. Elas são
exatamente o que seria naturalmente esperado, dado a lenda original da fonte milagrosa. Qualquer
um que possa realmente olhá-las simplesmente pode ver que elas são ambas igualmente simples.
Mas nós, em nosso tempo, temos nos confundido com longas palavras para distinções irreais; e
falado incessantemente sobre otimismo e pessimismo, sobre ascetismo e hedonismo, sobre o que
chamamos de paganismo e o que pensamos do budismo, até que não conseguimos entender uma
simples lenda quando ela é contada. O pagão a teria entendido muito mais.

Esta verdade tão simples explica outro fato sobre o qual ouvi o homem culto insistir com algum
entusiasmo: a ênfase e repetição no que concerne ao lado ascético da religião. É exatamente o que
aconteceria com qualquer história humana, mesmo se ela fosse uma história pagã. Notamos mais o
caso do homem que se priva da comida para conseguir a água do que o caso do homem que
simplesmente se alegra em conseguir a água. Notamo-lo mais porque é mais notável. Qualquer
tradição humana valoriza mais os heróis que sofrem por algo do que os seres humanos que
simplesmente se beneficiam dele. Mas isso não altera o fato de que há mais seres humanos do que
heróis; e que esta grande maioria de seres humanos tem se beneficiado disso. É natural que os
homens se maravilhem mais com o homem que deliberadamente se arrasta coxeando do que com o
homem que dança, quando não é mais coxo. Isso não altera o fato de que países onde aquela lenda
prevalece são, de fato, repletos de dança. Aqui apenas sugeri quão simples é, afinal, a contradição
entre austeridade e alegria, que estarrece tanto nossos críticos. Há uma aplicação mais elevada disso
aos ascetas, que talvez eu considere em outra ocasião. Aqui apenas a insinuarei dizendo: “Quanto
mais o homem puder VIVER somente da água, mais ele se certificará de que ela é a água da vida.”
18. QUEM SÃO OS CONSPIRADORES?

Do livro A Coisa, 1929


G.K. Chesterton

Deparei-me, outro dia, mais ou menos indiretamente, com uma senhora de maneiras educadas e até
elegantes, do tipo que seus inimigos chamariam de extravagante e seus amigos de refinada, que por
acaso mencionou certa pequena cidade da parte oeste do país, e aduziu, com uma voz sibilante, que
ela continha “um ninho de católicos romanos”. Isto aparentemente se referia a uma família que
casualmente eu conheço. A senhora então disse, com uma voz alterada de profundo fatalismo: “Só
Deus sabe o que é dito e feito atrás daquelas portas fechadas.”

Ao ouvir essa estimulante especulação, minha mente retrocedeu às minhas lembranças do lar em
questão, que estão ligadas principalmente a biscoitos doces e a uma pequena menina que se
persuadira firmemente de que eu era capaz de comer um número ilimitado deles. Mas quando eu
contrastei essa memória com a visão daquela senhora, ficou repentina e surpreendentemente claro
para mim o vasto abismo que ainda se estende entre nós e muitos de nossos compatriotas, e as
extraordinárias idéias que sobre nós ainda entretêm pessoas que andam por aí, sem cuidadores ou
camisas-de-força, e que aparentemente são, em todos os outros assuntos, sãos. É, sem dúvida,
verdade, e teologicamente razoável, dizer que só Deus sabe o que acontece nas casas dos católicos;
como o é dizer que só Deus sabe o que se passa na cabeça dos protestantes. Não sei por que as
portas dos católicos deveriam estar mais fechadas que as portas dos outros; o hábito não é incomum
em pessoas de todas as crenças filosóficas quando se recolhem à noite; e em outras ocasiões,
dependendo do clima ou do gosto pessoal. Mas mesmo aqueles que acham difícil acreditar que um
católico comum é tão excêntrico a ponto de se trancar na sala de estar, ou de fumar, assim que ele
ponha o pé em casa, têm realmente uma idéia obsessiva de que é mais concebível isto de um
católico do que de um metodista calvinista ou de um irmão Plymouth. 1[1] Permanece o sabor
rançoso de um tipo de romance sensacionalista acerca de nós; como se fossemos todos nobres
estrangeiros ou conspiradores. E o fato realmente interessante é que esse absurdo melodrama pode
ser encontrado entre pessoas instruídas; embora, na atualidade, mais em indivíduos instruídos do
que numa classe instruída. O mundo ainda nos faz esse elogio louco e imaginativo ao imaginar que
somos muito menos comuns do que realmente somos. O argumento, claro, é aquele com o qual
estamos exaustivamente acostumados, em milhares de outros aspectos; o argumento de que porque
a evidência contra nós não pode ser encontrada, ela deve ser ocultada. É óbvio que os católicos
romanos não gritam uns com os outros nas ruas os detalhes do massacre de São Bartolomeu; 2[2] e a
única conclusão que qualquer homem razoável pode tirar é que eles o fazem a portas fechadas. O
projeto de por fogo em Londres não é, exceto raramente, proclamado em letras grandes em pôsteres
do Universo; então, que conclusão possível pode haver, senão que os sinais são dados em mesas de
chá particulares, por meio de um alfabeto simbólico de biscoitos doces? Seria um exagero dizer que
é meu hábito diário pular sobre velhos judeus na rua Fleet e arrancar seus dentes; então, dada minha
admitida obsessão, resta apenas supor que minha casa é equipada como uma câmara de tortura para
esse modo de odontologia medieval. Os crimes católicos não são maquinados em público, então é
razoável supor que eles sejam maquinados em privado. Há realmente uma remota terceira
alternativa; que eles não sejam maquinados absolutamente; mas é absurdo esperar que nossos
compatriotas sugiram uma coisa tão extravagante.

Ora, essa misteriosa ilusão, ainda muito mais comum do que muitos supõem, mesmo na Inglaterra,
e que se estende a todo o interior dos EUA, é por acaso outro exemplo do que sugeri em um ensaio
anterior; o fato de que aqueles que estão sempre bisbilhotando e procurando por coisas secretas
1

2
sobre nós, nunca nem mesmo notaram as coisas mais evidentes sobre eles mesmos. Temos apenas
de nos perguntar o que seria dito se realmente confessássemos alguma conspiração tão
descaradamente como metade de nossos acusadores fez. O que seria dito, tanto nos EUA quanto na
Europa, se realmente tivéssemos nos comportado como uma sociedade secreta, em lugares onde os
grupos de nossos inimigos não podem nem mesmo negar que são, eles próprios, sociedades
secretas? O que aconteceria se o Congresso Católico de Glasgow ou Leeds realmente consistissem
inteiramente de delegados encapuzados de capa e capuz brancos, todos com suas faces cobertas e
seus nomes desconhecidos, a observarem pelas frestas de suas apavorantes máscaras brancas?
Contudo, esta era, até muito recentemente, a rígida rotina da grande organização americana
empenhada em destruir o catolicismo; uma organização que recentemente ameaçou tomar o
governo dos EUA. O que seria dito, se realmente houvesse uma coisa definida, reconhecida e
inteiramente desconhecida, chamada de Sociedade Secreta dos Católicos; tal como tem havido,
desde há muito tempo, uma reconhecida, mas desconhecida Sociedade Secreta dos Maçons? Ouso
dizer que muito do que está envolvido em tais coisas é apenas tolice inofensiva. Mas se tivéssemos
feito tais coisas, teriam nossos críticos dito que elas eram apenas tolices inofensivas? Suponha que
começássemos a disseminar a Fé por meio de um movimento chamado “Know Nothing”[Nada
conhecemos],3[3] porque tivéssemos o hábito de balançar nossas cabeças, dar de ombros e jurar que
nada conhecíamos da Fé que intencionávamos propagar. Suponha que nossa veneração pela
dignidade de São Pedro fosse total e completamente uma veneração pela negação de São Pedro; e
que a usássemos como um tipo de motto ou senha para o juramento de que não conhecíamos Cristo.
Contudo, esta era reconhecidamente a política de todo um movimento político nos EUA, que
objetivava destruir a cidadania dos católicos. Suponha que a Máfia e todas as associações secretas
de assassinos do Continente estivessem trabalhando notoriamente para o lado católico, e não para o
outro lado. Será que nos deixariam sossegados por isso? O mundo não ressoaria com denuncias
indignadas acerca da desgraça de nossa conduta, e de uma traição que nunca deveria ser esquecida?
Contudo, essas coisas são feitas constantemente, e a intervalos regulares, e inclusive nos dias que
correm, por partidos anti-católicos; e nunca é considerado necessário lembrá-las, ou dizer uma
palavra de desculpa, nos escritos de qualquer partidário anti-católico. É apenas nosso modo
jesuítico que nos faz ousar olhar sobre as cercas, quando todo mundo está apenas roubando
cavalos.

Em resumo, o que eu disse recentemente sobre fanatismo é ainda mais verdadeiro sobre coisas
secretas. Quanto a haver algo meramente antiquado acerca de certo tipo de estreiteza doutrinal, esta
se encontra muito mais em Dayton, Tennesse, 4[4] do que em Louvain ou Roma. E da mesma forma,
quanto a haver algo antiquado sobre todas essas farsas de máscaras e mantos, elas têm sido muito
mais características da Ku Klux Klan do que dos Jesuítas. Em verdade, esse tipo de protestante é
uma figura de melodrama ultrapassado, em duplo sentido e em duplo aspecto. É antiquado nos
complôs que ele nos atribui e naqueles que ele próprio pratica.

Em relação à sua prática, é provável que o mundo a descobrirá muito antes dele. O anticlerical
continuará encenando solenemente as trapaças de Cagliostro,5[5] como um médium ainda venda os
olhos à luz do dia; e abrirá sua boca em palavras de mistério muito depois de todos no mundo
estiverem completamente iluminados a respeito dos Illuminati.6[6] E embora a comicidade quase
imbecil daquela sociedade americana, que parece consistir inteiramente de começar tantas palavras
quanto possível com KL, tenha sido atenuada por uma reação de sanidade relativa, não tenho
dúvidas de que há ainda muitos nobres companheiros nórdicos saudando-se pelo feliz segredo de
serem um Kláguia ou um Klimperador, muito tempo depois que todo mundo parou de se
klinteressar por isso. Sob o aspecto político, o poder de tais conspirações foi praticamente
3

6
desarticulado em ambos os Continentes; na Itália, pelos fascistas e nos EUA, por um conjunto de
governadores razoáveis e de espírito público de ambos os partidos políticos. Mas a questão de
interesse histórico permanece: a de que as mesmas pessoas que nos acusavam de mistificação e
mistério é que envolveram todas as suas atividades secularizadas com mistérios e mistificações
muito mais fantásticas; a de que eles nem sequer tiveram a hombridade de lutar contra um antigo
ritual com a aparência de uma simplicidade republicana, mas se gabaram de ocultar tudo numa
espécie de complexidade cômica; mesmo quando não havia nada a ocultar. Hoje, movimentos com
a Ku Klux Klan têm muito pouco a ocultar ou que valha a pena ocultar; e é portanto provável que
nossa curiosidade romântica sobre eles seja muito menor que a imperecível curiosidade romântica
deles sobre nós. A senhora protestante continuará ressentindo-se do fato de que Deus não
compartilhe com ela Seu conhecimento do extraordinário significado do chá com biscoitos doces no
lar católico. Mas nós provavelmente sentiremos cada vez menos interesse por qualquer coisa que os
Kláguias fazem a portas fechadas [closed doors] – ou talvez eu devesse dizer, portas klechadas
(klosed doors).

7
[1] A Irmandade Plymouth era uma seita milenarista que surgiu em Plymouth, Inglaterra, nos anos 1830. (N. do T.)
8
[2] O massacre de São Bartolomeu foi o assassinato de protestantes, por católicos franceses, que começou no dia de
São Bartolomeu do ano de 1572. (N. do T.)
9
[3] Partido Americano, ou Know Nothing, anti-católico e anti-imigração, formado apenas por homens protestantes.
Este partido floresceu em meados do século XIX, nos EUA, e se opunha fortemente à imigração de católicos irlandeses
e alemães. (N. do T.)
10
[4] Cidade onde, em 1925, aconteceu o julgamento de um professor de biologia, John Scopes, acusado de infringir
uma lei estadual que proibia o ensino da teoria da evolução. (N. do T.)
11
[5] Conde Alessandro Cagliostro (1743-1795) foi o nome assumido pelo siciliano Giuseppe Balsamo, que ganhou
notoriedade como alquimista e vendedor de drogas e poções. (N. do T.)
12
[6] Seita secreta criada, em 1776, por Adam Weishaupt, um obscuro professor de filosofia da Universidade de
Ingolstadt, na Bavária. Acredita-se que os Illuminati tiveram participação decisiva na Revolução Francesa e em todo o
movimento hoje conhecido como iluminismo. Para isto, ver, por exemplo, Libido Dominandi – Sexual Liberation and
Political Control, de E. Michael Jones, Editora Saint Augustine, 2000. (N. do T.)

10

11

12
19. THE HAT AND THE HALO
20. ON TWO ALLEGORIES
21. As superstições do protestante

Do livro "A Coisa", publicado em 1929.

Gilbert Keith Chesterton

Aquele delicioso jogo de adivinhação, que tem há muito tempo causado uma alegria inocente em
tantas famílias católicas, o jogo de adivinhar em qual linha de um artigo sobre, por exemplo,
paisagem ou Elegia Latina, flagraremos o deão da Catedral de São Paulo[1] apresentando o antídoto
ao Anti-Cristo; ou a trama papal revelada – este que é o mais familiar de nossos jogos católicos de
salão me entreteve como um tipo de substituto das palavras cruzadas, quando achei que tinha
encontrado um feliz exemplo. Escrevi acima sobre “famílias católicas”, mas quase escrevi, por
força de associações, “lareiras católicas”. Imagino que o deão realmente pensa que, mesmo com
este clima, matemos os fogos domésticos acesos, como o fogo de Vesta, em permanente expectativa
de reascender os fogos de Smithfield. Seja como for, esse tipo de jogo de adivinhação ou palavra
cruzada é raramente decepcionante. O deão já deve então ter tentado centenas de formas de chegar a
seu adorado assunto; e mesmo ocultá-lo, como um canhão disfarçado, até que ele lance o
bombardeio numa perfeita explosão de mau humor. Então as palavras cruzadas não são mais um
quebra-cabeça, embora as palavras sejam suficientemente apropriadas; especialmente aquelas
devotadas o grande processo histórico de desfazer a Cruz.

No caso desse artigo particular, foi somente próximo ao seu final que o assunto real saltou sobre o
leitor numa emboscada. Acho que era um artigo geral sobre superstição; e, sendo um artigo
jornalístico de um tipo moderno, era claramente devotado a discutir superstição sem defini-la. Num
artigo inteligente desse tipo, pareceu suficiente ao escritor sugerir que superstição é algo que ele não
gosta. Algumas coisas são também do tipo que eu não gosto. Mas tal escritor não é razoável nem
quando está certo. Um homem deve ter uma objeção algo mais filosófica a histórias de má sorte do
que chamá-las de credulidade; tanto quanto um homem deve ter uma objeção mais filosófica à
Missa do que chamá-la de magia. Dificilmente seria uma refutação aos espiritualistas provar que
eles acreditam em espíritos; ou uma refutação aos deístas provar que eles acreditam numa
divindade. Credo, crença e credulidade são palavras de mesma origem e podem ser, de muitas
formas, jogadas para lá e para cá. Mas quando um homem supõe a absurdidade em algo que todos
os outros acreditam, desejamos, em primeiro lugar, saber em que ele acredita; em que princípio ele
acredita; e, acima de tudo, em que princípio ele não acredita. Não há traço de algo parecido com
isso na peça de jornalismo metafísico do deão. Se ele tivesse parado para definir seus termos, ou,
em outras palavras, para nos dizer de que falava, tal análise abstrata teria preenchido algum espaço
no artigo. Talvez não sobrasse espaço para todo o alarido contra o Papa.

O deão da Catedral de São Paulo pôs a mão na massa num parágrafo na segunda metade de seu
artigo, em que ele revela aos seus leitores todos os horrores de uma citação de Newman; uma
passagem muito chocante e vergonhosa em que o apóstata degradado diz que está feliz com sua
religião e em estar cercado pelas coisas de sua religião; que aprecia ter objetos que tenham sido
abençoados pelos santos e bem-aventurados, que há um sentido em ser protegido por orações,
sacramentais, etc.; e que a felicidade de tal tipo satisfaz a alma. O deão, tendo nos dado este
apavorante relance da condição espiritual do cardeal, fechou a cortina com um grunhido e diz que
isso é paganismo. Que diferença da ortodoxia cristã de Plotino!

É exatamente esse pequeno relance que me interessa; não tanto um relance da alma do cardeal, mas
da mente do deão. Pereceu-me repentinamente que vejo, numa forma muito mais simples que
anteriormente, a real questão entre ele e nós. E a coisa curiosa sobre a questão é esta: que o que ele
pensa sobre nós é exatamente o que pensamos sobre ele. O que eu, por exemplo, sinto mais
intensamente, na consideração de um caso como o do deão e sua citação do cardeal, é que o deão é
um homem ilustre, inteligente e culto, sempre interessante, algumas vezes justo, ou pelo menos
justificado ou justificável; mas que ele é antes de tudo defensor de uma superstição, como esta seria
compreendida por alguém que a pudesse definir. O que a faz ainda mais divertida é que ela é, num
sentido assaz especial, uma superstição pagã. Mas o que a faz intensamente interessante, pelo
menos para mim, é que o deão é devotado ao que pode ser chamado, por excelência, de uma
supersticiosa superstição. Quero dizer que ela é, num sentido especial, uma superstição LOCAL.

O deão Inge é uma pessoa supersticiosa porque está adorando uma relíquia; uma relíquia no sentido
de uma coisa remanescente. Ele está idolatricamente adorando o fragmento de algo; simplesmente
porque aquele algo casualmente sobreviveu num lugar chamado Inglaterra; numa forma assaz
surrada chamada protestantismo cristão. É como se um patriota local venerasse a estátua de Nossa
Senhora de Walsingham somente porque ela estivesse em Walsingham e sem nem mesmo lembrar
que ela está no Paraíso. É ainda mais como se ele venerasse um fragmento lascado do dedo da
estátua e esquecesse de onde ele tinha vindo e ignorasse completamente a Nossa Senhora. Não
penso que seja supersticioso respeitar a lasca em relação à estátua, ou a estátua em relação ao santo,
ou o santo em relação ao esquema da teologia e filosofia. Mas penso ser supersticioso venerar, ou
mesmo aceitar, o fragmento porque ele casualmente está lá. E o deão Inge aceita o fragmento
chamado protestantismo porque ele casualmente está lá.

Consideremos, por um momento, toda a questão, como fazem os filósofos; envoltos num ar
universal acima de todas as superstições locais como a do deão. É óbvio que há três ou quatro
filosofias ou cosmovisões possíveis aos homens razoáveis; e, em grande parte, elas estão
incorporadas nas grandes religiões ou no amplo campo da irreligião. Há o ateu, o materialista ou
monista ou qualquer nome que ele se dê, que acredita que tudo é, em última análise, material, e tudo
que é material é mecânico. Esta é enfaticamente uma cosmovisão; não muito brilhante ou
animadora, mas é uma em que é possível encaixar muitos fatos da existência. Então há o homem
normal com sua religião natural, que aceita a idéia geral de que o mundo tem um projeto e portanto
um projetista; mas sente que o Arquiteto do universo é inescrutável e remoto, tão remoto em relação
ao homem quanto o é em relação ao micróbio. Esse tipo de teísmo é perfeitamente são; e é
realmente a antiga base da sólida e algo estagnada sanidade do Islã. Há ainda o homem que sente o
peso da vida tão amargamente que deseja renunciar a todo desejo e toda divisão e restituir um tipo
de unidade e paz espiritual da qual nossos eus individuais nunca deveriam ter se separado. Esse é o
temperamento ao qual o budismo, e muitos místicos e metafísicos, responde. Então há um quarto
tipo de homem, algumas vezes chamado místico, que talvez devesse ser chamado mais
propriamente de poeta; na prática ele pode muito freqüentemente ser chamado de pagão. Sua
posição é esta: este é um mundo crepuscular e não sabemos quando ele termina. Se não sabemos o
suficiente para abraçarmos o monoteísmo, muito menos o sabemos para abraçarmos o monismo.
Pode haver um mundo além; mas podemos apenas perceber algumas pistas dele; podemos nos
deparar com uma ninfa na floresta; podemos ver fadas nas montanhas. Não sabemos o suficiente
sobre o natural para NEGAR o preternatural. Esse foi, nos tempos antigos, o mais saudável aspecto
do paganismo. Esse é, nos tempos modernos, a parte racional do espiritualismo. Todas essas são
possíveis como visões gerais da vida; e há uma quarta que é, pelo menos, igualmente possível,
embora certamente mais positiva.

Toda a questão dessa última posição pode ser expressa no verso de um belo poema de M.
Cammaerts sobre jacintos; LE CIEL EST TOMBE PAR TERRE. O Céu desceu ao mundo da
matéria; o poder espiritual supremo está agora operando através da máquina da matéria, ocupando-
se milagrosamente com os corpos e almas dos homens. Ele abençoa todos os cinco sentidos; tal
como os sentidos do bebê são abençoados pelo batismo católico. Ele abençoa até mesmo os
presentes e as lembranças, como relíquias e rosários. Ele opera através da água e do óleo, ou do pão
e do vinho. Ora, esse tipo de materialismo místico pode agradar ou não o deão, ou qualquer outra
pessoa. Mas não posso de forma alguma entender porque o deão, ou qualquer outra pessoa, não VÊ
que a Encarnação é tão parte dessa idéia quanto a Missa; e que a Missa é tão parte dessa idéia
quando a Encarnação. Um puritano pode considerar blasfêmia que Deus possa se tornar uma hóstia.
Um muçulmano pode considerar blasfêmia que Deus possa se transformar num trabalhador na
Galiléia. E ele está perfeitamente certo, de seu ponto de vista; e dado seu princípio primário. Mas se
o muçulmano tem um princípio, o protestante tem apenas um preconceito. Isto é, ele tem somente
um fragmento; uma relíquia, uma superstição. Caso seja profano que o miraculoso deva descer ao
plano da matéria, então o catolicismo é certamente profano; e o protestantismo é profano; e o
cristianismo é profano. De todos os credos e conceitos humanos, nesse sentido, o cristianismo é o
mais completamente profano. Mas porque um homem deveria aceitar um Criador que era um
carpinteiro e então se preocupar com a água benta, porque ele deveria aceitar uma tradição
protestante local de que Deus nasceu em algum lugar particular mencionado na Bíblia, meramente
porque a Bíblia foi deixada em algum lugar na Inglaterra, e então dizer que não se pode acreditar
que uma benção possa permanecer nos ossos de um santo, porque ele deve aceitar a primeira e mais
estupenda parte da história do Céu descendo sobre a Terra e então furiosamente negar algumas
poucas e pequenas deduções a partir disso – esta é a coisa que eu não entendo; nunca pude entender;
cheguei à conclusão de que nunca poderei entender. Posso apenas e tão somente atribuí-la à
superstição.
22. ON COURAGE AND INDEPENDENCE
23. THE NORDIC HINDOO
24. SPIRITUALIST LOOKS BACK
25. RAÍZES DA SANIDADE

Do livro "A Coisa", publicado em 1929.

G.K. Chesterton

O Deão da Catedral de São Paulo, quando está certo, está muito certo. Ele está certo com toda
aquela ênfase ressonante que o faz, em outras questões, tão imprudente e desastrosamente errado. E
não posso senão saudar com gratidão o desdém com que ele se referiu ultimamente a todo o contra-
senso dos jornais a respeito do uso de glândulas de macacos para transformar homens velhos em
homens jovens; ou macacos jovens, se isso for o próximo passo na direção do Super-homem. Ele
tentou, não de forma artificial, contrabalançar sua denúncia daquele materialismo tão experimental
que ele sempre nos acusa de denunciar, dizendo que esse materialismo é um extremo do mal e que o
catolicismo é o outro. A esse respeito, ele diz uma das coisas usuais que comumente considera fácil
dizer, e que nós geralmente consideramos toleravelmente fácil responder.

Um bom exemplo das acusações contraditórias do Deão contra Roma é que ele aparentemente nos
coloca na mesma categoria daqueles que deixam seus filhos completamente “inadvertidos” a
respeito dos perigos morais do corpo. Isso é muito divertido, considerando que temos sido
insultados, por décadas, por forçarmos os jovens na direção da infame Confissão.

Outro dia mesmo, notei que Sir Arthur Conan Doyle reviveu esta acusação de um ataque à
inocência; e deixarei o Deão Inge[1] e Sir Arthur resolver esta questão. E quando ele nos acusa de
indiferença em relação à eugenia e à procriação de criminosos e loucos, é suficiente que ele próprio
tenha denunciado a perversão da ciência manifestada no caso dos macacos. Talvez ele permita que
outros se ofendam igualmente com os esquemas que fazem os homens agirem como loucos e
criminosos a fim de evitarem a loucura e o crime.

Há, contudo, outro aspecto dessa questão de estar certo ou errado, que não é tão freqüentemente
associado conosco, mas que é igualmente consistente com nossa filosofia, e que tem uma notável
relação com o tipo de questão aqui levantada pelo Deão Inge. Este aspecto se relaciona não só a
questões em que o mundo está errado, mas, ainda mais especialmente, a questões em que o mundo
está certo. O mundo, especialmente o mundo moderno, alcançou uma curiosa condição de ritual ou
rotina; na qual podemos quase dizer que ele está errado mesmo quando está certo. Ele continua, em
grande parte, fazendo as coisas razoáveis. Mas ele está rapidamente cessando de ter qualquer
argumento razoável para fazê-las. Está sempre nos afirmando a morte da tradição. Está sempre nos
denunciando por superstição; e suas próprias e principais virtudes são agora, quase inteiramente,
superstições.

O que quero dizer é que quando estamos certos, estamos certos por princípio; e quando eles estão
certos, estão certos por preconceito. Podemos dizer, se eles assim o preferirem, que eles estão certos
por instinto. De qualquer forma, eles ainda estão contidos, por saudável preconceito, contra muitas
coisas em direção as quais eles correriam pela sua própria lógica doentia. É mais fácil tomar
exemplos muito simples e extremos; e alguns dos extremos estão muito mais perto de nós do que
muitos imaginam.

Assim, muitos de nossos amigos e conhecidos continuam a entreter um saudável preconceito contra
o canibalismo. O momento em que este próximo passo na evolução ética será dado parece ainda
distante. Mas a noção de que não há muita diferença entre os corpos de homens e de animais – de
que não estão, de nenhuma forma, distantes, mas muito próximos – é expressa em centenas de
[
maneiras, como um tipo de comunismo cósmico. Podemos quase dizer que é expressa de todas as
formas, exceto pelo canibalismo.

Essa noção é expressa, como no caso de Voronoff,[2] na colocação de partes de animais nos
homens. Ela é expressa, no caso dos vegetarianos, na não colocação de partes de animais nos
homens. É expressa quando se deixa um homem morrer como morre um cachorro, ou quando se
considera mais patético a morte de um cachorro do que a de um homem. Alguns se inquietam sobre
o que acontece com os corpos dos animais, como se estivessem certos de que um coelho se
ressentisse em ser cozido, ou que uma ostra exigisse ser cremada. Alguns são ostensivamente
indiferentes ao que acontece aos corpos dos homens; e negam toda a dignidade aos mortos e todo
gesto de afeto aos vivos. Mas todos têm uma coisa em comum; consideram os corpos humano e
bestial como coisas comuns. Pensam neles sob uma generalização comum; ou, na melhor das
hipóteses, sob condições comparativas. Entre pessoas que chegaram a esta posição, a RAZÃO para
desaprovar o canibalismo já se tornou muito vaga. Permanece como uma tradição e um instinto.
Felizmente, graças a Deus, embora seja agora muito vaga, é ainda muito forte. Mas, embora o
número dos mais ardentes pioneiros éticos que provavelmente começariam a comer missionários
cozidos seja muito pequeno, o número daqueles dentre eles que conseguiriam explicar suas próprias
razões reais para não fazê-lo é ainda menor.

A razão real é que todas essas sanidades sociais são agora as tradições dos antigos dogmas
católicos. Como muitos outros dogmas católicos, eles são sentidos de uma maneira vaga mesmo
pelos pagãos, na medida em que são pagãos sadios. Mas quando se trata de, não meramente senti-
los, mas formulá-los, será descoberto que eles são uma fórmula da Fé. Este é o caso de todas
aquelas idéias de que os modernistas mais desgostam, sobre “criação especial”, [3] sobre a imagem
Divina que não acontece por mera evolução, e sobre o abismo entre o homem e as outras criaturas.
Em resumo, são aquelas mesmas doutrinas pelas quais homens com o Deão Inge estão nos
acusando, como coisas que nos impedem de ter uma completa confiança na ciência ou uma
completa unidade com os animais. São elas que se interpõem entre os homens e o canibalismo – ou
possivelmente as glândulas de macacos. Eles têm o preconceito; e que eles o retenham por muito
tempo! Nós temos o princípio, e eles são bem-vindos quando o quiserem.

Se Euclides estivesse demonstrando com diagramas pela primeira vez e usasse o argumento da
REDUCTIO AD ABSURDUM, ele teria agora somente produzido a impressão que seu próprio
argumento era absurdo. Estou bem consciente de que exponho-me a esse perigo por estender o
argumento de meu oponente a um extremo, que pode ser considerado uma extravagância. A questão
é, por que é uma extravagância? Sei que, neste caso, será argumentado que a característica social do
canibalismo é rara em nossa cultura. Pelo que sei, não há restaurantes canibais ameaçando se
tornarem moda em Londres, como os restaurantes chineses. Antropofagia não é como Antroposofia,
um assunto de conferências públicas; e, variadas como são as religiões e moralidades entre nós,
cozinhar missionários ainda não é uma missão. Mas se alguém tem uma lógica tão modesta que não
perceba o significado de um exemplo extremo, não tenho dificuldade em dar um exemplo muito
mais prático e urgente. Há alguns anos, todas as pessoas sãs teriam dito que o Adamismo [4] era
muito mais louco que a antropofagia. Um banqueiro que andasse sem roupa pelas ruas seria um
contra-senso equivalente a um açougueiro que vendesse carne humana ao invés de carne de
carneiro. Ambos seriam o surto de um lunático sob a ilusão de ser um selvagem. Mas temos visto os
Novos Adâmicos ou o Movimento dos Sem Roupa se instituírem muito seriamente na Alemanha;
com uma seriedade de que somente os alemães são capazes. Os ingleses são provavelmente ainda
ingleses o suficiente para rirem e desgostarem disso. Mas eles riem por instinto; e eles desgostam
somente por instinto. Muitos deles, com sua atual e confusa filosofia, teriam provavelmente uma
[

[
grande dificuldade em refutar um professor prussiano de nudez, por mais que eles desejassem
ardentemente dar nele um chute. Pois, se examinarmos as controvérsias correntes, descobriremos a
mesma condição negativa e indefensável do caso da teoria do canibalismo. Todos os argumentos da
moda usados contra o puritanismo levam, de fato, ao adamismo. Não quero dizer, claro, que eles
não sejam muitas vezes praticamente saudáveis como contra o puritanismo; também não digo que
não haja melhores argumentos contra o puritanismo. Mas digo que em relação à lógica pura, o
homem civilizado baixou a guarda; e está, por assim dizer, nu contra os ataques da nudez. Desde
que ele esteja meramente satisfeito em argumentar que o corpo é belo ou que o que é natural é certo,
ele se rendeu ao adâmico em teoria, embora ainda possa demorar, queira Deus, um longo tempo
antes que ele se renda na prática. Aqui, novamente o teórico terá de defender sua própria sanidade
com um preconceito. Somente o teólogo medieval pode defendê-la com uma razão. Não preciso me
aprofundar muito sobre esta razão; é suficiente dizer que ela é fundada na Queda do Homem, tal
como o outro instinto, contra o canibalismo, é fundado na Divindade do Homem. O argumento
católico pode ser colocado resumidamente dizendo-se que o corpo do homem não é o problema; o
problema é a alma do homem.

Em outras palavras, se o homem fosse completamente deus, poderia ser verdade que todos os
aspectos de seu ser corporal fossem divinos; tal como se ele fosse completamente uma besta,
dificilmente poderíamos culpá-lo por qualquer dieta, por mais bestial que fosse. Mas dizemos que a
experiência confirma nossa teoria sobre a complexidade humana. Esta não tem nada a ver com
coisas naturais em si. Se narizes vermelhos misteriosamente fizessem os homens assassinar,
faríamos leis para cobri-los; mas narizes vermelhos seriam tão puros quanto narizes brancos.

Em muitas pessoas modernas há uma batalha entre as novas opiniões, que eles não seguem até seus
fins, e as antigas tradições, que eles não seguem até seus começos. Se eles seguissem adiante com
as novas noções, isso os levaria até Bedlam. [5] Se eles seguissem retrospectivamente os melhores
instintos, isso os levaria a Roma. Na melhor das hipóteses, eles permanecem em suspenso entre
duas lógicas alternativas, tentando dizer a si mesmos, como o faz o Deão Inge, que eles estão
meramente evitando dois extremos. Mas há esta grande diferença em seu caso: a questão em que ele
está errado é, não importa sob que forma pervertida, uma questão de ciência, enquanto que a
questão em que ele está certo é simplesmente uma questão de sentimento. Não preciso dizer que eu
não uso a palavra aqui num sentido depreciativo, pois nessas coisas há um parentesco muito
próximo entre sentimento e sentido. Mas o fato permanece de que todas as pessoas nessa posição
podem apenas ser sentimentais. Toca a nós sermos também razoáveis.

__________________________________________________________________
[
1] William Ralph Inge (1860-1954), professor, escritor e padre anglicano. (N. do T.)
[
2] Serge Abrahamovitch Voronoff (1866-1951), médico francês de origem russa, ganhou fama por sua técnica de extrair
tecido de testículos de macacos para enxertá-lo em testículos humanos. (N. do T.)
[
3] Diríamos hoje, design inteligente. (N. do T.)
[
4] Crença do séc. II e II, que defendia uma nudez ritualística, à semelhança da nudez de Adão no Paraíso. (N. do T.)
[
5] Nome popular do Hospital Santa Maria de Belém, em Londres, que é um sanatório de psicopatas. (N. do T.)

[
26. SOME OF OUR ERRORS
27. THE SLAVERY OF THE MIND
28. Inge versus Barnes

Do livro "A Coisa", publicado em 1929.

Gilbert Keith Chesterton

Nenhum de nós, espero, jamais desejou ser injusto com o deão Inge: 13[1] embora em tais lutas às
vezes cai a proteção da espada.14[2] E uma cruel injustiça está sendo feita, na sugestão amplamente
ventilada de que ele concorda com o Dr. Barnes. Tais coisas não deveriam ser ditas levianamente de
qualquer cavalheiro. De acordo com a atual lenda, pelo menos, o Soturno Deão, mesmo quando
decide abençoar, acaba amaldiçoando. Mas se há um único ser humano a quem se possa imaginar
que ele queira abençoar, este é seu aliado, o bispo Barnes de Birmingham. 15[3] Mesmo assim, a
aliança serve somente para amenizar a maldição, não para assegurar a benção. Se pudéssemos usar
termos populares a respeito de tais dignatários eclesiásticos, seriamos tentados a dizer que o deão
considerou necessário desancar o bispo. Uma interessante resenha do deão sobre o recente livro de
sermões do bispo contém, claro, certo número de elogios assaz convencionais e certo número de
grosserias, poderíamos dizer implicâncias, com várias outras pessoas incluindo grande parte da
cristandade. Mas nas duas questões notáveis e surpreendentes em que o bispo Barnes foi condenado
pelos católicos, ele é quase tão fortemente condenado pelo Deão da Catedral de São Paulo. O deão
Inge é muito inteligente e culto para fingir ter muita paciência com o contra-senso de testar a
Transubstanciação por experimentos químicos ou psíquicos. Ele tenta revelar para seu colega da
“Broad Church”16[4], tão gentilmente quanto possível, que este caiu no ridículo. Mesmo levando em
conta tais delicadezas entre parceiros, a verdade não poderia ter sido dita mais simplesmente e
melhor. Ele sumariamente indicou ao bispo a responsável definição da doutrina encontrada no livro
de Padre Rickaby sobre metafísica; e secamente observa que ela é muito mais sutil e plausível do
que parece se dar conta o bispo. Ele também acrescenta, com uma amarga e muito atraente
franqueza, que é muito desastroso desafiar os católicos sobre se a Missa lhes faz qualquer bem
espiritual, pois eles certamente se uniriam na resposta afirmativa. Depois destas admissões francas e
interessantes, é uma questão de mera rotina, e quase de respeitabilidade, que o deão devesse
concordar com o bispo de que todo esse sacramentalismo é grandemente deplorável; que pessoas
inteligentes que ele conhece que dizem encontrar Cristo na Missa e não no Serviço Matinal devem
ser “idólatras naturais” e que é “óbvio” que o Santíssimo Sacramento tem uma afinidade com as
religiões inferiores. Também com as classes inferiores. Isso, imagino, é o que o deão realmente
considera tão desagradável.

A questão é, contudo, que o deão definitivamente desdenha o bispo em relação à única grande
questão em que os jornais lhe têm dado grande repercussão. E ele faz exatamente o mesmo, num
grau menor, numa questão secundária e menor que tem similar repercussão. Falo, é claro, da
questão da evolução. O deão, evidentemente, acredita na evolução, como o faz muitas pessoas,
católicas, protestantes e agnósticas. Mas embora acredite em evolução, ele não acredita na evolução
do bispo Barnes. Ele comenta com admirável clareza e decisão sobre a tolice de identificar
progresso com evolução; ou mesmo mera complicação com progresso. Nada poderia ser melhor do
que as breves e picantes frases em que ele demonstra totalmente aquela idealização da teoria

13[1]
Ver RAÍZES DA SANIDADE. (N. do T.)
14[2]
Chesterton refere-se aqui à esgrima, em que as espadas tem uma proteção na ponta, para impedir o ferimento do oponente. (N. do
T.)
15[3]
Ernest William Barnes, eminente matemático inglês, Fellow da Real Sociedade de Londres e também bispo da Igreja da Inglaterra.
Embora grande matemático, foi uma figura pública controvertida. Pacifista, foi contra a participação da Inglaterra na II Grande Guerra.
Mantinha também idéias favoráveis à eugenia. (N. do T.)
16[4]
Um dos três segmentos da Igreja da Inglaterra. A Broad Church é o segmento ecumênico. (N. do T.)
científica, que é de fato simples ignorância a seu respeito. Em palavras simples, o bispo Barnes,
apesar de toda sua pompa, sabe tão pouco de evolução quanto de Transubstanciação. O Deão da
Catedral de São Paulo não revelou toda esta verdade em palavras simples, é claro; mas ele
conseguiu fazê-lo muito simplesmente. Sua franqueza neste caso tem também de ser
contrabalançada com expressões gerais de concordância com o bispo, e com expressões mais fortes
de discordância com todos os demais, especialmente com os inimigos do bispo. O deão alude
desdenhosamente ao mundo ortodoxo, como se este mundo necessariamente repudiasse certas
teorias biológicas; ou como se importasse muito se ele o fizesse. A diferença entre a Broad Church e
a Igreja Católica não é que aquela considere a evolução verdadeira e esta considere-a falsa. É que
aquela considera a evolução uma explicação e esta sabe que ela não é uma explicação. Assim,
aquela a considera de importância capital; e esta algo sem importância. Sendo incapaz de perceber
este princípio, o deão tem de voltar-se para o antigo jargão vitoriano; e dizer que uma nova
descoberta científica passa por três estágios: o de ser considerada um absurdo; o de ser considerada
anti-Escrituras; e o de ser descoberta muito antiga e familiar. Ele poderia ter acrescentado que há
ainda um quarto estágio; o de ser descoberta muito falsa.

Pois esse é o fato muito simples que ambos, o deão Inge e o bispo Barnes, omitiram; e que parece
ser tão completamente desconhecido pelo racionalismo lúcido de um quanto pelo secularismo mais
rude do outro. O arcebispo de Canterbury não está apenas certo em sugerir que velhos cavalheiros
como ele tiveram a evolução como uma coisa familiar durante toda a vida; mas ele poderia ter
adicionado que eles estavam muito mais certos sobre ela na parte inicial de suas vidas do que
estarão no final delas. Aqueles dentre eles que realmente leram as mais recentes investigações e
especulações européias sabem que aquele darwinismo está cada dia mais se tornando muito menos
um dogma e muito mais uma dúvida. Aqueles que não leram as especulações e dúvidas
simplesmente continuam repetindo o dogma. Enquanto o Dr. Barnes estava pregando sermões
cuidadosamente fundamentados na biologia de 50 anos atrás, o Sr. Belloc estava provando
conclusivamente perante todo o mundo que o Sr. H.G. Wells e o Sr. Arthur Keith desconheciam a
biologia de 5 anos atrás. Em resumo, é muito justo, como dissemos, insistir na diferença entre o
deão Inge e o Dr. Barnes; que é análoga à diferença entre Huxley e Haeckel. Todo mundo estaria
melhor e mais feliz se o deão Inge fosse conhecido como professor Inge; e se o Dr. Barnes não fosse
somente um professor, mas um professor prussiano. Então ele poderia ser alardeado juntamente
com outros bárbaros que atacam a cristandade, sem ter o privilégio eclesial de realmente perseguir
cristãos. Mas há pagãos e pagãos e há perseguidores e perseguidores. O deão é um pagão romano
do Senado. O bispo é um pagão teutão dos pântanos e brejos. O deão desgosta da tradição cristã
com o mesmo espírito de Diocleciano e Juliano. O bispo desgosta dela com o espírito mais simples
de um pirata dinamarquês fitando o rígido mistério da Igreja Romana britânica. Mesmo a causa
comum e a máxima geral de CHRISTIANI AD LEONES nem sempre, imagino, reconciliou
romanos e godos. Essas comparações históricas podem parecer irreais; e de fato, num certo sentido
ambos estão muito ligados aos seus respectivos períodos históricos. Eles são ambos muito
vitorianos; mas mesmo aqui há uma diferença e uma superioridade. A superioridade do deão é que
ele sabe disso e o diz. Ele é homem o suficiente para gabar-se de ser vitoriano e não ligar de ser
chamado de reacionário. Enquanto que o bispo parece realmente cultivar a verdadeiramente
extraordinária noção de que suas noções são novas e atualizadas.

É claro que eles têm uma filosofia em comum; e seria uma simplificação barata chamá-la de
materialismo. De fato, seríamos quase tão superficiais em falar de materialismo quanto eles de
falarem de mágica. A verdade é que o estranho fanatismo, que leva o bispo a bradar contra e atacar
todo sacramentalismo como se fosse mágica, é em sua essência interior o próprio reverso do
materialismo. Realmente, não é nem um pouco tão saudável quanto o materialismo. A raiz desse
preconceito não é tanto uma crença na matéria, mas um tipo de horror à matéria. O homem com
essa filosofia está sempre pedindo para que a adoração seja totalmente espiritual, ou mesmo
totalmente intelectual; porque ele sente realmente um desgosto com a idéia de coisas espirituais
tendo um corpo e uma forma sólida. É provável que a suposição de que Deus possa se tornar pão e
vinho lhe cause um tremor místico; embora eu nunca tenha entendido porque dizer que Deus
poderia se tornar carne e sangue não deveria lhe causar o mesmo tremor. Mas esses pensadores
sendo ou não lógicos em sua filosofia, penso que isso é a sua filosofia. Ela tem uma longuíssima
história e um antigo nome. Não é materialismo, mas maniqueísmo.

O deão verdadeiramente expressou uma verdade inconsciente quando disse que os sacramentalistas
são “idólatras naturais”. Ele recua diante disso não somente porque é idolátrico, mas porque é
natural. Ele não suporta pensar quão natural é o anseio pelo sobrenatural. Ele não tolera a idéia do
sobrenatural realmente trabalhar através dos elementos da natureza. Inconscientemente, sem dúvida,
mas muito teimosamente, esse tipo de intelectual sente realmente que sua alma pode pertencer a
Deus, mas seu corpo somente ao demônio ou à besta. Esse horror maniqueísta da matéria é a única
razão INTELIGENTE para qualquer rejeição abrangente das maravilhas sobrenaturais e
sacramentais. O resto é jargão, repetição e argumentação em círculo; todo o insustentável
dogmatismo sobre a ciência impedir os homens de acreditar em milagres; como se a CIÊNCIA
pudesse impedir os homens de acreditar em algo que a ciência não professa investigar. Ciência é o
estudo de admitidas leis da existência; ela não pode provar uma negativa universal sobre se aquelas
leis podem ser suspensas por algo admitidamente acima delas. É como se disséssemos que um
advogado conhece tão bem a onstituição americana que sabe que não pode nunca haver uma
revolução nos EUA. Ou como se um homem dissesse que é um estudante tão íntimo do texto de
Hamlet que está autorizado a negar que um ator possa deixar cair o crânio e sair correndo quando o
teatro pegar fogo. A constituição segue certo curso, contanto que esteja lá para segui-lo; a peça
segue certo curso, contanto que seja encenada; a ordem visível da natureza segue certo curso se não
há nada por trás que possa impedi-la. Mas esse fato não joga nenhuma luz sobre se HÁ algo por trás
para impedi-la. Esta é uma questão de filosofia e metafísica e não de ciência material. E por respeito
à inteligência de ambos reverendos cavalheiros, e especialmente em respeito à alta inteligência do
Deão da Catedral de São Paulo, prefiro pensar que eles se opõem ao que chamam de mágica como
filósofos consistentes e não como cientistas inconsistentes. Prefiro pensar que eles estão pensando
como os grandes gnósticos, budistas e outros místicos da obscura mas digna tradição histórica; ao
invés de estarem cometendo erros lógicos elementares no interesse da ciência popular mais rasteira.
Posso até entender ou imaginar o tremor de repulsão que os domina na presença do divino
materialismo da Missa. Mas ainda penso que eles seriam mais consistentes e completos se
declarassem abertamente seguirão seu princípio até o fim; e dissessem, como os mussulmanos
dizem sobre o Natal, “Longe Dele ter um filho”, 17[5] ou os aterrorizados discípulos que clamavam,
“Longe de Ti esteja isso”18[6], quando Deus estava subindo para ser crucificado.

17[5]
Q 4:171 (N. do T.)
18[6]
1 Sam 20, 9. (N. do T.)
29. O QUE PENSAMOS A RESPEITO

Do livro "A Coisa", publicado em 1929.

Gilbert Keith Chesterton

Estava passando os olhos outro dia numa revista semanal, que é supostamente da área da cultura
popular; neste caso em particular, da área da ciência popular. Na prática, ela oferece principalmente
o que seus leitores otimistas chamam de “pensamento moderno” e o que mais comumente
chamamos de modernismo. A revista não é, de modo algum, injusta ou exclusiva a pontos de vistas
opostos; mais de uma vez ela me permitiu réplicas a artigos nela contidos; e lendo a edição em
questão, meus olhos foram atraídos pelo meu próprio nome.

Ele apareceu num artigo sobre as doutrinas religiosas do Sr. Arnold Bennett. A proeminência desse
nome na mídia em conexão com esses assuntos é um dos impressionantes mistérios do moderno
jornalismo. Tenho não somente uma grande admiração pelo seu gênio artístico, mas também, de
muitas formas, aprecio fortemente a personalidade humana do Sr. Arnold Bennett. Gosto de sua
vitalidade e desprezo pelo desprezo. Gosto de sua humanidade e sua compassiva curiosidade sobre
tudo que é humano. Gosto daquela essencial ausência de esnobismo que o torna capaz inclusive de
se simpatizar com os esnobes. Mas falar das crenças religiosas do Sr. Arnold Bennett parece-me
exatamente como falar das aventuras de caça às raposas do Sr. Bernard Shaw ou da coleção de
vinhos raros do Sr. Pussyfoot Johnson,[1] das visões celestiais do Sr. Arthur Keith[2], ou dos votos
monásticos de Sr. Bertrand Russel. O Sr. Arnold Bennett nunca ocultou, me parece, o fato essencial
de que ele não tem crenças religiosas; como são estas entendidas na língua inglesa da forma que a
aprendi. Que ele tenha vários estimáveis sentimentos e simpatias morais não duvido por um
momento. Mas a questão do Sr. Arnold Bennett é, no momento, um parêntesis. Menciono-o aqui
meramente porque estava no tal artigo em que fui mencionado; e confesso que considerei a
referência um pouco estranha. Não surpreenderá o leitor o fato de que o autor considerou-me menos
modernista que o Sr. Arnold Bennett. Minhas crenças religiosas não são tão puras, virginais e
inocentes, mas foram desfiguradas com afirmações definitivas sobre várias coisas. Mas o autor
declarava ter descoberto algo duvidoso e misterioso sobre minha atitude; e o que me mistifica é sua
mistificação. Ele delicadamente sugere que há mais coisas em mim do que os olhos podem ver;
coisas interiores, que vão além daqueles espetáculos papistas, mas que é inútil submeter-me a uma
vivissecção para descobrir o segredo. Ele diz: “O Sr. Chesterton não quer nos esclarecer; pelo que
sabemos, ele é modernista o bastante em seus próprios pensamentos.”

Ora, seria um pouco irritante se um ateu dissesse, de algum inofensivo cristão protestante como
General Booth[3]: “Pelo que sabemos, ele é ateu o bastante em seus próprios pensamentos.”
Podemos mesmo arriscar perguntar como o ateu pôde formar alguma noção sobre o que General
Booth pensou, em tão completa contradição com tudo o que ele dissera. Ou eu mesmo, por outro
lado, poderia parecer descortês se sugerisse que o Sr. Arnold Bennett pudesse estar ocultando sua
conversão por covardia; e expressasse tal coisa da seguinte forma: “O Sr. Bennett nunca nos dirá a
verdade sobre isso; pelo que sabemos, ele é papista o bastante em seus próprios pensamentos.”
Posso ser inclusive interrogado sobre como chegara a tais suspeitas sobre os pensamentos secretos
do Sr. Arnold Bennett; se escondera sob sua cama e ouvira-o sussurrar orações em latim em seus
sonhos, ou contratara um detetive particular para verificar a existência de seu cilício e de suas
relíquias ocultas. Pode-se perceber que, até que eu produza um caso PRIMA FACIE para minhas
suspeitas, seria mais cortês supor que as opiniões do Sr. Bennett fossem o que ele próprio disse que
são. E se eu fosse sensível a tais coisas, poderia fazer uma solicitação bastante incisiva de que as
pessoas que não soubessem nada a meu respeito, exceto o que eu digo, acreditasse, para a
conveniência geral, no que eu digo. A respeito do assunto modernismo, de qualquer forma, nunca
houve a mínima dúvida ou dificuldade sobre o que digo. Pois, de fato, eu sempre tive um forte
desprezo intelectual pelo modernismo, mesmo antes de acreditar realmente no catolicismo.
Mas eu pertenço, como um produto da evolução biológica, à ordem dos paquidermes. E não sou
movido minimamente por qualquer irritação; mas somente por uma extrema curiosidade a respeito
da razão real para aquele notável ponto de vista. Sei que o autor não quis dizer nada ofensivo; estou
muito mais interessado em saber o que ele quis dizer. E a verdade é que, sob meu ponto de vista,
encontra-se escondida naquela frase curiosa e enigmática toda a controvérsia moderna sobre o
catolicismo. O que o homem quis realmente dizer foi que: “Mesmo o podre e velho Chesterton deve
pensar; ele não pode ter deixado de pensar completamente; deve haver alguma função cerebral em
atividade a fim de preencher as horas vagas de sua vida equivocada e inútil; e é óbvio que se um
homem começa a PENSAR, ele só pode pensar mais ou menos na direção do modernismo.” Os
modernistas pensam realmente assim. Esta é a questão. Esta é a piada.

O que temos realmente de enfiar a marteladas dentro da cabeça desses indivíduos é que um homem
pode pensar cada vez mais profundamente sobre o catolicismo e não sobre as dificuldades do
catolicismo. Temos de fazê-los ver que a conversão é o começo de uma vida intelectual ativa,
frutífera, progressista e mesmo venturosa. Pois ESTA é a coisa em que eles não podem
presentemente acreditar. Eles honestamente dizem a si mesmos: “O que ele pode estar pensando, se
não estiver pensando sobre os Erros de Moisés, segundo as descobertas do Sr. Fulano de Almeida,
ou ousadamente denunciando todos os terrores da Inquisição que existiam dois séculos atrás na
Espanha?” Temos de explicar, de alguma forma, que os grandes mistérios como o da Santíssima
Trindade ou do Santíssimo Sacramento são os pontos iniciais para reflexões muito mais
estimulantes, sutis e mesmo individuais, que comparado com eles, todo esse blablablá cético é tão
ralo, frívolo e poeirento quanto uma maldosa matéria sensacionalista numa pequena cidade da Nova
Inglaterra. Assim, aceitar o Logos como uma verdade é estar na atmosfera do absoluto, não somente
com São João Evangelista, mas com Platão e todos os grandes místicos do mundo. Aceitar o Logos
como um “texto” ou uma “interpolação” ou “desenvolvimento” ou uma palavra morta num
documento morto, usada apenas para dar, em rápida sucessão, umas seis datas diferentes para
aquele documento, é estar totalmente num plano inferior de vida humana; é estar se debatendo por
um mero sucesso negativo; mesmo que fosse realmente um sucesso. Exaltar a Missa é entrar num
suntuoso mundo de idéias metafísicas, que iluminam todas as relações de matéria e mente, de carne
e espírito, das mais impessoais abstrações, tanto quanto das mais pessoais afeições. Planejar
desdenhar e minimizar a Missa com fugazes comentários sobre o que ela tem em comum com
Mitras e as Religiões de Mistérios, é estar completamente tomado por um espírito apequenado e
pedante; não somente um espírito inferior ao catolicismo, mas inferior mesmo comparado ao
mitraismo.

Como disse antes, é muito difícil dizer como podemos atacar essas coisas. Nós e nossos críticos
falamos em duas línguas diferentes; assim, os próprios nomes com que descrevemos as coisas do
lado de dentro significam coisas totalmente diferentes nas etiquetas que eles pregam na parede do
lado de fora. Não raro se disséssemos as grandes coisas que temos a dizer, elas soariam como as
pequenas coisas que eles nos acusam de dizer. Um processo filosófico só pode começar pelo fim
correto; e eles tomam tudo pelo fim errado. Mas estou disposto a pensar que devemos começar
contestando uma frase, ou seqüência de palavras, muito comum; uma coisa que se tornou um slogan
e uma legenda; ou, na linguagem popular ordinária, uma manchete. Porque os jornalistas a repetem
incessantemente, e chama para ela atenção pelo fato de repeti-la, talvez possamos chamar a atenção
negando-a.

Quando um jornalista diz, pela milésima vez, “Uma religião viva não é feita de tediosos e
empoeirados dogmas, etc.”, devemos interrompê-lo com um grito e dizer, “Ei – você está errado de
início.” Se ele se permitir perguntar o que são os dogmas, descobrirá que são precisamente os
dogmas que estão vivos, que são inspiradores, que são intelectualmente interessantes. Ardor,
caridade e unção são admiráveis como flores e frutos; se você está interessado no princípio vivo,
você deve estar interessado na raiz ou na semente. Em outras palavras, você deve estar
inteligentemente interessado na afirmação da qual tudo começou; mesmo se for apenas para negá-
la. Mesmo se o crítico não puder concordar com o católico, pode chegar a perceber que são algumas
idéias a respeito dos Cosmos que o faz católico. Ele pode perceber que o fato de ser cósmico desta
forma, e o católico daquela forma, é o que o faz diferente das outras pessoas; e o que o faz, no
mínimo, uma figura, de nenhuma forma desinteressante, da história humana. Ele não chegará a
nenhum lugar perto disto sentimentalizando contra o sentimento católico, ou pontificando contra os
pontífices católicos. Ele deve tomar as idéias como idéias; e então descobrirá que as idéias mais
interessantes de todas são aquelas que os jornais denigrem como dogmas.

Por exemplo; a doutrina da Dupla Natureza de Cristo é interessante, no sentido mais genuíno; deve
ser interessante para qualquer um que a entenda, muito antes de nela acreditar. Ela tem o que se
pode chamar, com toda a reverência, de um interesse estereoscópico; o interesse de ter dois olhos na
cabeça que criam um objeto, de ter dois ângulos num triângulo que determinam o terceiro. A antiga
seita monofisista declarava que Cristo tinha apenas a natureza divina. A nova seita monofisista
declara que Ele tinha apenas a natureza humana. Mas não é um trocadilho ou um ardil, mas uma
verdade, dizer que o monofisista é por natureza monótono. Em qualquer de suas duas formas, ele
está naturalmente num mesmo tom. A questão da verdade histórica objetiva é uma outra questão,
que não quero discutir aqui, embora esteja pronto a discuti-la em qualquer lugar. Estou discutindo
sobre estímulo intelectual e o ponto inicial do pensamento e da imaginação. E estes, como todas as
coisas viventes, nascem da conjunção de duas, e não de uma apenas. Assim, leio com simpatia, mas
uma simpatia que não vai além do sentimento, os estudos dos modernos monofisistas sobre a vida
de um limitado e meramente mortal Jesus de Nazaré. Eu respeito o respeito deles; admiro sua
admiração; sei que tudo que dizem sobre a grandeza humana e o gênio religioso é verdade, até certo
ponto. Mas esse ponto está sobre uma linha somente; e não tem o poder de convencimento que têm
as coisas que podem convergir. E então, depois de ler tal tributo a um mestre da ética, à maneira dos
Essênios, talvez eu vire uma outra página do mesmo livro, ou de um similar; e me depare com
alguma frase referente a uma religião real, embora pagã; talvez com algum suposto paralelo com o
que é chamado um Cristo pagão. Já vi escrito, mesmo que apenas a respeito de Atis e Adonis,
“Havia uma concepção de que o deus se sacrificou por si mesmo.” O homem que consegue ler estas
palavras sem um arrepio está morto.

O arrepio é mais forte em nós, claro, porque está ligado a um fato e não a uma fantasia. Nesse
sentido, não admitimos que haja nenhum paralelo com as antigas lendas pagãs, como sugerem os
livros dos modernos pagãos. E, de fato, estamos seguros em afirmar que seja apenas senso comum
dizer que não pode haver um paralelo integral entre o que foi admitidamente um mito ou mistério e
o que foi admitidamente um homem. Mas a questão aqui é que a verdade oculta mesmo nos mitos e
mistérios está completamente perdida se nos limitamos à consideração de um homem. Nesse
sentido, há uma verdade irônica e inconsciente nas palavras dos modernos pagãos, que cantam que
“o pagão nos sobrevive e enfrenta”, e que “nossas vidas e nossos ardentes desejos são duas coisas
diferentes”.[4] Isso é verdade em relação aos modernistas, mas não é verdade em relação a nós, que
encontramos simultaneamente a realização de um desejo ardente e a história de uma vida. É
inteiramente verdade que houve, em muitos mitos pagãos o débil prenúncio dos mistérios cristãos;
embora ao dizer isso admitimos que os prenúncios eram sombras.[5] Mas quando todo o parentesco
imaginário tiver sido explorado ou permitido, não será verdade que a mitologia possa se elevar à
altura da teologia. Não é verdade que um pensamento tão ousado ou tão sutil como este tenha
passado pela mente que criou os centauros e os faunos. Nas mais espantosas e gigantescas das
fantasias épicas primitivas não havia nenhuma concepção tão colossal quanto um ser que fosse tanto
Zeus quanto Prometeu.

Mas apenas faço uma advertência aqui, não a fim de discutir sua verdade contra aqueles que não
acreditam nela, mas a fim de insistir em seu intenso interesse intelectual para aqueles que nela
acreditam. Desejo apenas explicar àqueles que se interessam, que uma mente repleta com a
verdadeira concepção dessa Dualidade tem muito que pensar e não necessita escavar deuses mortos
para desacreditar o Homem Eterno. Não há necessidade que eu seja modernista em meus próprios
pensamentos, ou monofisista em meus próprios pensamentos; pois penso que essas idéias são muito
mais tolas e triviais que as minhas próprias. Nas belas palavras da canção de amor em “The Wallet
of Kai Lung”, uma das poucas, verdadeiras e psicológicas canções de amor do mundo: “Esta pessoa
insignificante e universalmente desprezada prefere sem hesitação seus próprios pensamentos aos
dos outros.”[6]

Muitos outros exemplos poderiam ser dados. Esta pessoa (se me for permitido uma vez mais usar a
graciosa locução chinesa) logo exauriria o entusiasmo de descobrir que Maria e Maia começam,
ambas, com um M, ou que a Mãe de Cristo e a Mãe do Cupido foram ambas representadas por
mulheres. Mas sei que nunca devo exaurir a profundidade daquele insondável paradoxo, que é
definido tão audaciosamente no próprio título de Mãe de Deus. Sei que há conexões de
pensamentos e imaginação muito mais profundas, saudáveis e libertadoras naquele enigma do
perfeitamente humano ter tido, uma vez, uma autoridade natural sobre o sobrenaturalmente divino,
do que em qualquer tipo de identificação iconoclasta que assimila todas as imagens sagradas
achatando todas as suas faces. No momento em que Cristo é feito igual a Osíris, pouco sobra de
ambos; mas Cristo, como concebido pela Igreja Católica, é uma combinação complexa, não de duas
coisas irreais, mas de duas coisas reais. Da mesma forma, um Astarot[7] exatamente igual a uma
madona de Rafael, ou vice versa, pareceria uma visão algo monótona; enquanto que há algo que é,
no sentido mais intelectual, único sobre a concepção da THEOTOKOS. Em resumo, em toda essa
mera unificação das tradições, verdadeira ou falsa, há algo que pode ser muito simplesmente
descrito como tola. Mas os dogmas não são tolos. Mesmo os que são chamados de finas distinções
doutrinais não são tolos. São como as delicadas intervenções cirúrgicas; que separam nervo de
nervo, mas para promover a vida. É muito fácil achatar tudo num raio de quilômetros com dinamite,
se seu objetivo é promover a morte. Mas tal como o fisiologista está tratando com tecidos vivos,
assim também o teólogo está tratando com idéias vivas; e se ele faz uma distinção entre elas, é
naturalmente uma finíssima distinção. É costume – que embora sendo deste nosso tempo, já é um
costume que exala mau cheiro – alegar que os gregos ou italianos que discutiam sobre a Trindade
ou sobre os Sacramentos estavam dividindo fios de cabelo ao meio. Não sei se dividir fios de cabelo
é mais triste do que tingir o cabelo, na tentativa vã de imitar os cabelos dourados de Freia ou os
cabelos negros de Cotito. A subdivisão de um fio de cabelo nos diz, pelo menos, sobre sua estrutura;
enquanto que sua mera descoloração não nos diz nada. A Teologia nos introduz na estrutura das
idéias; enquanto que o sincretismo teosófico meramente elimina todas as cores dos coloridos contos
de fada do mundo. Mas meu único propósito aqui é tranqüilizar o gentil cavalheiro que estava
preocupado com a secreta doença da modernidade que estaria corroendo minha mente, de resto,
vazia. Apresso-me ardentemente em explicar que estou muito bem, obrigado; e que tenho muitas
coisas em que pensar sem cair na loucura baconiana de paralelos pagãos, ou no estabelecimento de
conexões entre a lenda do touro morto por Mitras e a “música que matou a vaca.”[8]

[1] William Eugene “Pussyfoot” Johnson, americano e grande defensor da proibição da venda de bebidas alcoólicas. Como autoridade fiscalizadora
ele ganhou o apelido de “pussyfoot”, passo de gato, por sua discrição felina ao perseguir suspeitos de desobediência à lei seca. (N. do T.)
[2] Ver A Máscara do Agnóstico. (N. do T.)
[3] William Booth, metodista inglês e fundador do Exército da Salvação, do qual era General. (N. do T.)
[4] Do poema Dolores, do poeta vitoriano Alegernon Charles Swinburne (1837 – 1909), cujos temas eram sadomasoquistas, lésbicos e anti-religosos.
(N. do T.)
[5] Prenúncio em inglês é “foreshadowing” e sombra é “shadow”. Daí a observação de Chesterton. (N. do T.)
[6] “The Wallet of Kai Lung” é um livro de contos de Ernst Bramah, que teve sua primeira edição em 1900 e fez muito sucesso. Kai Lung é um
contador de histórias da antiga China. (N. do T.)
[7] Em demonologia, Astarot é o Príncipe do Inferno. (N. do T.)
[8] Referência a uma antiga canção folclórica que diz: “Havia um velho homem, e ele tinha uma velha vaca. \ Mas ele não tinha ração para lhe dar, \
Então ele pegou seu violino e tocou-lhe uma música – \ Considere, boa vaca, considere, \ Não é tempo da grama crescer. \ Considere, boa vaca,
considere.’ ” Aqui Chesterton contrapõe o mitraismo à caridade cristã. Veja Tg 2, 15-16. (N. do T.)
30. O otimista como um suicida

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929


Gilbert Keith Chesterton
Livre-pensadores pensam ocasionalmente, mas nunca são livres. No moderno mundo ocidental, eles
parecem sempre presos à monotonia de um cosmos materialista e monista. O cético universal, na
Ásia ou na antiguidade, foi provavelmente um pensador mais ousado, embora muito provavelmente
um homem mais infeliz. Mas o que temos de tratar de ceticismo não é ceticismo; mas uma fé fixa
no monismo. O livre-pensador não é livre para questionar o monismo. Ele é proibido, por exemplo,
no único inteligível sentido moderno, de acreditar num milagre. É proibido exatamente no mesmo
sentido em que ele diria estarmos proibidos de acreditar numa heresia. Ambos são proibidos por
primeiros princípios, não pela força. A Associação de Imprensa Racionalista não seqüestrará,
amordaçará ou estrangulará Sir Arthur Keith se ele admitir a evidência de uma cura em Lourdes.
Tampouco o Arcebispo de Westminster me enforcará, estripará ou esquartejará se eu anunciar que
serei um agnóstico amanhã. Mas em ambos os casos é certo dizer que um homem não pode se livrar
de seus primeiros princípios sem a rendição e a revolução de seu mais íntimo eu. De fato, somos o
mais livre dos dois; pois, dificilmente haverá uma evidência, natural ou preternatural, que não possa
ser acolhida, em algum lugar, pelo nosso sistema; enquanto que o materialista não pode acolher o
mínimo milagre em nenhum lugar em seu sistema. Mas deixemos isso de lado, como uma questão
em separado; e concordemos, apenas para efeito de argumentação, que ambos o católico e o
materialista estão limitados somente pela sua convicção fundamental sobre o sistema cósmico; em
ambos o pensamento está, nesse sentido, proibido e, nesse sentido, livre. Conseqüentemente,
quando vejo em algum encontro promovido pela imprensa, como aquele sobre espiritualismo, um
eminente materialista com o Sr. John M. Robertson discutindo a evidência para o espiritualismo,
sinto exatamente como imagino que ele sentiria quando ouvisse um bispo com uma mitra ou um
jesuíta com uma batina discutindo a evidência para o materialismo. Sei que o Sr. Robertson não
consegue aceitar a evidência sem se tornar alguém muito diferente do Sr. Robertson; que também
está ao alcance do poder da graça de Deus. Mas sei muito bem que ele não é um livre-pensador. Há
muito ele chegou a uma conclusão que controla todas suas outras conclusões. Ele não é levado a
aceitar o materialismo por evidências científicas. Ele está proibido, pelo materialismo, a aceitar
evidências científicas.

Mas há um outro modo em que o livre-pensador não só pensa como é útil. O homem que rejeita a
Fé totalmente é sempre muito valioso ao homem que a rejeita por partes, ou pouco a pouco, ou hora
sim hora não. O homem que escolhe alguma parte do catolicismo que o apetece, ou joga fora
alguma parte que o confunde, de fato produz, não somente o tipo de resultado mais estranho, mas
geralmente o resultado exatamente oposto ao que ele pretendia. E sua inconsistência pode
freqüentemente ser efetivamente exposta tanto do ponto de vista negativo quanto do positivo. Diz-
se que quando os meio-deuses se vão, os deuses surgem; pode-se dizer, numa agradável paródia,
que quando as não-deidades surgem, as meia-deidades se vão; e não estou certo de que isso não seja
uma boa libertação. De qualquer forma, mesmo o ateu pode ilustrar quão importante é manter o
sistema católico integral, mesmo se ele o rejeita integralmente.

Um curioso e divertido exemplo vem dos EUA; em relação ao Sr. Clarence Darrow, uma espécie de
cético simples e ingênuo daquela terra da simplicidade. Ele parece ter escrito algo sobre a
impossibilidade de alguém ter uma alma; do que nada precisa ser dito exceto (como sempre) que
parece que é o cético que realmente pensa supersticiosamente sobre a alma, como um isolado e
secreto animal com asas; que considera a alma separada do eu. Mas o que me interessa sobre ele no
momento é isto: um de seus argumentos contra a imortalidade é que as pessoas não acreditam
realmente nela. E um de seus argumentos para isso é que se elas acreditassem em certa felicidade
além da cova, elas se matariam. Ele diz que ninguém suportaria o martírio do câncer, por exemplo,
se realmente acreditasse (como ele aparentemente supõe que todos os cristãos acreditam) que o
mero fato da morte introduzisse instantaneamente a alma na perfeita felicidade e na companhia de
seus melhores amigos. Um católico saberá certamente que resposta ele tem de dar. Mas o Sr.
Clarence Darrow não sabe minimamente que tipo de pergunta ele fez.

Agora temos a última flor e coroa de todo o moderno otimismo, universalismo e humanitarismo em
religião. Os sentimentalistas falam sobre amor até que o mundo esteja cansado da mais gloriosa das
palavras humanas; eles supõem que possa haver um tipo de utopia de prazer prático que nos
prometem (mas não nos dão) neste mundo. Eles declaram que tudo será perdoado, porque não há
nada a se perdoar. Eles insistem que o “passamento” é somente como ir para a sala ao lado, insistem
que não será sequer uma sala de espera. Declaram que seremos introduzidos numa sala de estar
repleta de todos os confortos concebíveis, sem qualquer referência a como chegamos lá. Eles estão
certos de que não há nenhum perigo, nenhum demônio; não há sequer morte. Tudo é esperança,
felicidade e otimismo. E, como o ateu muito verdadeiramente observa, o resultado lógico de toda
aquela esperança, felicidade e otimismo seria centenas de pessoas se enforcando nos postes ou
milhares de pessoas se jogando em poços e canais. Devemos encontrar o resultado racional da
moderna religião da alegria e do amor num imenso estouro de suicídio humano. O pessimismo teria
matado seus milhares, mas otimismo, seus milhões.

Ora, como eu disse, um católico sabe a resposta; porque detém uma filosofia completa, que mantém
um homem são; e não algum simples fragmento dela, seja triste ou alegre, que pode facilmente
levá-lo à loucura. Um católico não se mata porque não considera seguro que ele mereça o paraíso,
ou que não faça diferença que ele o mereça ou não. Ele não professa saber exatamente que perigos
encontrará; mas ele sabe que lealdade ele violaria e que mandamento ou condição ele
desconsideraria. Ele realmente pensa que um homem pode ser mais adequado ao paraíso porque ele
suportou como um homem; e que um herói poderia ser um mártir do câncer como São Lourenço ou
Santa Cecília foram mártires de caldeirões ou de grelhas. A fé numa vida futura, a esperança numa
futura felicidade, a crença que Deus é Amor e que a lealdade é a vida eterna, essas coisas não
produzem lunáticos e anarquistas, SE elas forem consideradas juntamente com outras doutrinas
católicas sobre dever, vigilância e cuidados contra os poderes do inferno. Elas podem produzir
lunáticos e anarquistas se forem tomadas em separado. E os modernistas, isto é, os otimistas e
sentimentalistas, querem tomá-las em separado. Claro, o mesmo seria verdade se alguém tomasse as
outras doutrinas – do dever e disciplina – em separado. Isso produziria outra idade das trevas de
puritanos rapidamente enegrecendo os pessimistas. De fato, os extremos se encontram, quando
ambos são cortados do que deveria ser uma coisa completa. Nossa parábola termina poeticamente
com dois cadafalsos frente a frente; um para o suicida pessimista e outro para o suicida otimista.

A questão é que essa passagem do cético americano está respondendo o modernista; mas não está
respondendo o católico. O católico tem um motivo muito simples e razoável para não cortar sua
garganta a fim de voar instantaneamente para o paraíso. Mas o cético americano pode realmente
levantar uma questão para aqueles que falam do paraíso como sendo invariavelmente e
instantaneamente povoado de pessoas que cortaram suas gargantas. E isso é somente um exemplo
de uma longa lista de exemplos; nos quais aqueles que tentaram fazer a Fé mais simples,
invariavelmente a fizeram menos sã. Os muçulmanos imaginaram que estavam sendo meramente
razoáveis quando reduziram o credo à mera crença em um único Deus; mas no mundo da psicologia
prática, eles realmente o reduziram a um único Destino. O efeito real no homem comum foi
simplesmente fatalismo; como o do turco que não leva seus feridos a um hospital porque está
resignado ao Kismet ou à vontade de Alá. Os puritanos pensavam que estavam simplificando as
coisas quando recorriam ao que eles chamavam de simples palavras da Escritura; mas, de fato, eles
estavam complicando as coisas criando centenas de raivosas seitas e loucas sugestões. E os
modernos universalistas e humanitários pensavam estar simplificando as coisas quando
interpretavam a grande verdade de que Deus é Amor como significando que possa não haver guerra
com os demônios e perigos para a alma. Mas, de fato, eles estavam inventando enigmas ainda mais
obscuros com respostas ainda mais amplas; e o Sr. Clarence Darrow sugeriu um deles. Ele ficará
gratificado em receber por isso os agradecimentos de todos os católicos.
31. O ESBOÇO DA QUEDA

Do livro A Coisa, 1929


Gilbert Keith Chesterton

Tenho observado a curiosa ação ludibriosa de retaguarda que tem sido tomada para acobertar o
recuo dos darwinistas. Um exemplo da mesma coisa surgiu em conexão com um famosíssimo
nome; na verdade, com dois nomes famosos. O Sr. H.G. Wells respondeu ao Sr. Belloc, que
escreveu uma crítica a Outline of History [Esboço da História],[1] principalmente a fim de protestar
contra um certo tom de arbitrária generalização e simulado conhecimento do desconhecido. Um
caso típico se encontrava no que o Sr. Wells dizia de homens que desenhavam renas nas cavernas:
“Parecia não haver em tais vidas espaço para a especulação e a filosofia,” ao que o Sr. Belloc, como
é natural, respondeu: “Por que não, em nome de Deus?” Mas os detalhes dos vários trabalhos em
questão não me interessam imediatamente aqui; eles predominantemente dependem do hábito de
falar como se cada pintura rupreste tivesse sua data gentilmente nela inscrita: ou cada machadinha
de pedra polida pudesse trazer a inscrição 400.000 a.C., ou possivelmente, a.E.H., antes do Esboço
da História. No momento, o único ponto de contato é aquele que se relaciona à nossa crítica
anterior, a respeito do presente estado do darwinismo. E o que me impressiona é que mesmo o Sr.
Wells, não raro um caloroso polemista, esteja relativa e realmente frio sobre o assunto; e sua defesa
de Darwin é muito mais uma escusa do que uma apologia. De fato, como tantas outras apologias
modernas, ela quase se resume em alegar que Darwin não era darwinista.

Os evolucionistas vitorianos se devotaram a declarar a grandeza da tese de Darwin. Os novos


evolucionistas parecem devotados a explicar sua pequenez. Eles realmente parecem alegar, como na
velha anedota, que ela pariu uma teoria, mas uma teoria muito pequena. Algumas das palavras do
Sr. Wells podem, seguramente e sem injustiça, ser consideradas apologéticas. Ele não tenta, como o
professor previamente mencionado, superar a palavra “origem” falando sobre “a causa da origem”.
Então ele se concentra na palavra “espécies”, como se a evolução não tivesse sido apenas aplicada a
uma sub-divisão. Ele acrescenta que Darwin não a aplicou, no início, nem mesmo ao homem. O
que, fico a pensar, os darwinistas vitorianos teriam pensado tivessem eles ouvido, numa defesa do
darwinismo, que este não se aplicava ao homem? Será que isto significa que apenas o primeiro livro
de Darwin é divinamente inspirado? Novamente, o Sr. Wells diz que a seleção natural é senso
comum. E sem dúvida, se ela apenas significar que o mais capaz de sobreviver sobrevive, ela é
senso comum. Podemos também acrescentar que isto é conhecimento comum. Mas será só isso, que
Darwin esteja sendo defendido porque ele apenas descobriu o que era conhecimento comum? A
questão real, claro, é aquela proclamada pelo Sr. Belloc, quando disse que não é necessário contar
para ninguém que numa enchente o peixe vive e o gado morre. A questão é: em quanto tempo o
gado se transforma em peixe? Isto seria um exemplo da verdadeira teoria darwinista; e ela é agora
minimizada, representada como apenas um elemento de evolução e sem nem mesmo os elementos
de explicação. Imaginamos que haja um saudável preconceito por trás de tudo. O Sr. Wells, de
forma indignada, repudia a blasfêmia pronunciada pelo Sr. Belloc, que o chamou de patriota. Mas é
verdade; o profundo orgulho nacional inglês tem muito a ver com essa devoção. E ao invés de
privar a Inglaterra de seu Darwin, eles privaram Darwin de sua descoberta.

Quando um homem é um gênio tão grande quanto o Sr. Wells, admito que soa provocativo chamá-
lo de provinciano. Mas se ele desejar saber porque alguém o faria, será suficiente apontar
silenciosamente para o título de uma de suas páginas: “Onde fica o Jardim do Éden?” Descer a uma
coisa dessas, e considerá-la significativa ao conversar com um católico inteligente sobre a Queda,
isto é provincianismo; caro e orgulhoso provincianismo. Os camponeses franceses, de quem o Sr.
Wells fala, não são provincianos neste sentido. Como o próprio Sr. Wells admite, eles nada sabem
sobre Darwin e evolução. Eles não sabem e não ligam; é onde eles são muito melhores filósofos que
o Sr. Wells. Eles guardam a filosofia da Queda, na forma de uma simples história que pode ser
histórica ou simbólica, mas, de qualquer forma, não pode ser mais importante do que o que ela
simboliza. Em comparação com essa verdade, não vale sequer um centavo o fato de alguma teoria
da evolução ser verdadeira ou não. Quer o jardim seja ou não uma alegoria, a verdade em si mesma
pode muito bem ser simbolizada por um jardim. E a questão é que o Homem, seja o que for, não é
meramente uma das plantas do jardim que desatolou suas raízes do solo e perambulou com elas,
como se fossem pernas, ou, ao modo de uma dália dupla, tenha desenvolvido olhos e ouvidos
duplicados. Ele é algo mais, algo estranho e solitário; é mais parecido com a estátua que foi
anteriormente o deus do jardim; mas a estátua caiu de seu pedestal e permanece quebrada por entre
plantas e ervas daninhas. Essa concepção não tem nada a ver com o materialismo quando se refere
aos materiais. A imagem pode ser feita de madeira; a madeira pode ter vindo do jardim; o escultor
pode presumivelmente, e provavelmente, permitir a sensação de crescimento e textura da madeira
em que ele esculpiu e se expressou. Mas minha fábula preserva as duas verdades da verdadeira
escritura. A primeira é que a madeira foi esculpida ou estampada com uma imagem,
deliberadamente, e desde fora; neste caso a imagem de Deus. A segunda é que esta imagem foi
danificada e desfigurada, de modo que ela está agora ao mesmo tempo melhor e pior que as meras
plantas do jardim, que estão perfeitas segundo seus próprios planos. Há espaço para muita
especulação sobre a história da árvore antes de ter se tornado uma imagem; há espaço para muita
dúvida e mistério sobre o que realmente aconteceu quando ela se tornou uma imagem; há espaço
para muita esperança e imaginação sobre o que ela se tornará quando for recomposta e transformada
numa estátua perfeita que nunca vimos. Mas há duas coisas imutáveis: que o homem foi elevado
inicialmente e caiu; e responder a isso dizendo, “Onde está o Jardim do Éden?” é como responder a
um filósofo budista dizendo, “Quando você foi um macaco pela última vez?”.

A Queda é uma visão de vida. Ela não é apenas a única visão esclarecedora da vida, mas a única
encorajadora. Ela afirma, contra as únicas filosofias alternativas reais, aquelas dos budistas, dos
pessimistas e dos prometéicos, que nós usamos impropriamente um mundo bom, e não
simplesmente que estamos presos num mundo mau. Ela remete o mal ao uso errado da vontade, e
assim declara que ele pode eventualmente ser corrigido pelo correto uso da vontade. Qualquer outro
credo, exceto este, é uma forma de rendição ao destino. Um homem que guarda esta visão de vida
descobrirá que ela ilumina milhares de coisas; sobre as quais, as éticas evolucionárias não têm nada
a dizer. Por exemplo, sobre o colossal contraste entre a inteireza da máquina humana e a contínua
corrupção de seus motivos; sobre o fato de que nenhum progresso social parece nos livrar do
egoísmo; sobre o fato de que os primeiros, e não o últimos, homens de qualquer escola ou revolução
são geralmente os melhores e os mais puros; tal como William Penn foi melhor que um quacker
milionário ou Washington melhor do que um magnata americano do petróleo; sobre aquele
provérbio que diz: “O preço da liberdade é a eterna vigilância,”[2] que é propriamente apenas um
modo de declarar a verdade do pecado original; sobre aqueles extremos de bem e mal em que o
homem excede a todos os animais pelos padrões do céu e do inferno; sobre aquele sentido de perda
sublime que está em cada verso de toda grande poesia, e em nenhum outro lugar em maior
quantidade do que na poesia dos pagãos e céticos: “Miramos o antes e o depois, e nos consumimos
pelo que não é”;[3] que clama contra todos os arrogantes e progressistas, das profundezas e abismos
do coração partido do homem, de que a felicidade não é somente uma esperança, mas também, em
certo estranho sentido, uma memória; e que somos todos reis no exílio.

Para o indivíduo que sente que esta visão de vida é mais real, mais radical, mais universal que as
simplificações baratas que se opõem a ela, é um choque de trivialidade perceber que alguém, quanto
mais um homem como o Sr. Wells, possa supor que tudo dependa de algum detalhe a respeito de um
jardim na Mesopotâmia, como aquele identificado pelo general Gordon. É difícil encontrar algum
paralelo de tal incongruência; pois não há similaridade real entre os acontecimentos e eventos
mortais e confusos que se passaram conosco, que foram divinos, embora misteriosos, e as escrituras
que são sagradas, embora simbólicas. Mas alguma sombra de comparação poderia ser feita com os
mitos modernos. Digo mitos em que homens como o Sr. Wells geralmente acreditam; o Mito da
Carta Magna ou o Mito do Mayflower. Ora, muitos historiadores sustentarão que a Carta Magna é
algo insignificante; que foi, em grande medida, um item do privilégio medieval. Mas suponha que
um dos historiadores que tem esta visão começasse a discutir entusiasticamente conosco sobre a
fabulosa natureza de nossa imagem da Carta Magna. Suponha que ele produzisse um mapa e
documentos para provar que a Carta Magna não fora assinada em Runnymede, mas em algum outro
lugar; como acredito que alguns eruditos assim consideram. Suponha que ele criticasse a heráldica
falsa e as vestimentas fantasiosas que aparecem nos museus de cera. Poderíamos pensar que ele
estivesse indevidamente entusiasmado com um detalhe da história medieval. Mas com que
assombro percebemos finalmente que o homem realmente considerava que todas as modernas
tentativas de estabelecer a democracia estão erradas, que todos os parlamentos teriam de ser
dissolvidos e todos os direitos políticos destruídos, uma vez que fosse admitido que Rei João não
assinou aquele documento especial, naquela pequena ilha no Thames! O que pensaríamos dele, se
ele realmente pensasse que não temos nenhuma razão para gostar da lei e da liberdade, a não ser a
autenticidade daquela amada assinatura real? Isto é, em grande medida, como eu sinto quando
descubro que o Sr. Wells realmente imagina que a luminosa e profunda filosofia da Queda apenas
significa que o Éden se localizava em algum lugar da Mesopotâmia. Ora, a única explicação para
um grande homem como o Sr. Wells ter um pequeno preconceito, como este sobre a serpente, é que
ele vem de uma tradição religiosa que considerava o texto da Escritura dos Hebreus como a única
autoridade e esquecera tudo sobre a grande metafísica medieval e sua discussão das idéias
fundamentais.

O homem que faz isso é provinciano; e não há mal em dizê-lo, mesmo quando ele é um dos maiores
homens de letras e uma glória da Inglaterra.
[1] No Brasil, esta obra teve várias edições na década de 1950 com o título História Universal. (N. do T.)
[2] Esta citação é de um discurso feito em 1790 por John Philpot Curran (1750-1817), advogado irlandês, orador e patriota. (Nota da edição da
Ignatius Press.)
[3] We look before and after, and pine for what is not, do poema To a Skylark, de Shelley. (N. do T.)
32. THE IDOLS OF SCOTLAND
33. IF THEY HAD BELIEVED
34. A PAZ E O PAPADO

Do livro “A Coisa”, publicado em 1929

Gilbert Keith Chesterton

Há um famoso ditado que a alguns parece falta de reverência, embora de fato seja um esteio de uma
parte importante da religião: “Se Deus não existisse, seria necessário inventá-Lo.” Isso não é
totalmente diferente de algumas das ousadas questões com que Santo Tomás de Aquino inicia sua
grande defesa da fé. Alguns dos modernos críticos de sua fé, especialmente seus críticos
protestantes, cometeram um erro divertido, por causa de sua ignorância do latim e do antigo uso da
palavra DIVUS, e acusaram os católicos de descreverem o Papa como Deus. Os católicos, preciso
dizer, estão tão próximos a chamar o Papa de Deus quanto de chamar um gafanhoto de Papa. Mas
há um sentido em que eles realmente reconhecem uma correspondência eterna entre a posição do
Rei dos Reis no universo e a do seu Vigário no mundo, como a correspondência entre uma coisa
real e sua sombra; uma similaridade parecida com a similaridade imperfeita e defeituosa entre Deus
e a imagem de Deus. E entre as coincidências dessa comparação pode ser colocado o caso deste
epigrama. O mundo se encontrará mais e mais na posição em que mesmo os políticos e os homens
práticos se pegarão dizendo: “Se o Papa não existisse, seria necessário inventá-lo.”

Não é de todo impossível que eles possam realmente tentar inventá-lo. A verdade é que milhares
deles já teriam aceitado o Papa desde que ele não fosse chamado Papa. Acredito firmemente que
seria muito possível, nessa questão e em muitas outras, pregar uma espécie de peça piedosa e
prática em grande número de hereges e pagãos. Imagino que seria muito factível descrever com
precisão, mas em termos abstratos, a idéia geral de um cargo ou obrigação que corresponda
exatamente à posição do Papa na história, e que fosse aceitável em termos éticos e sociais por
muitos protestantes e livre-pensadores; até que descobrissem, com uma reação de ira e assombro
que eles foram levados a aceitar a arbitragem internacional do Papa. Suponha que alguém
apresentasse a antiga idéia como se fosse uma nova idéia; suponha que se dissesse: “Proponho que
seja erguido em alguma cidade central, na parte mais civilizada de nossa civilização o gabinete de
uma autoridade permanente para representar a paz e a base do entendimento de todas as nações
circundantes; que ele seja, pela natureza de seu cargo, posto a parte de todos e, mesmo assim, que
ele jure considerar os acertos e os erros de todos; que ele seja colocado lá como um juiz para
elucidar uma lei ética e um sistema de relações sociais; que ele seja de certo tipo e treinado de certa
maneira, diferente da que encoraje as ambições ordinárias da glória militar ou mesmo dos elos da
tradição tribal; que ele seja protegido, por um sentimento especial, da pressão de reis e príncipes;
que ele jure, de forma especial, considerar os homens como homens.” Não são poucos já, e logo
serão muito mais, os que seriam perfeitamente capazes de propor tal instituição internacional ideal;
há também muitos que suporiam realmente, em sua inocência, que isso nunca tivesse sido tentado
antes.

É verdade que até agora muitos de tais reformadores recuariam ante a idéia de uma instituição ser
um indivíduo. Mas mesmo esse preconceito está enfraquecendo pelo desgaste da experiência
política real. Podemos estar ligados, como muitos de nós estamos, ao ideal democrático; mas muitos
de nós já percebemos que a democracia direta, a única democracia verdadeira que satisfaz o
verdadeiro democrata, é uma coisa aplicável a algumas coisas e não a outras; e ela não é
absolutamente aplicável à uma questão como esta. A voz real de uma vasta civilização
internacional, ou de uma vasta religião, não será, de qualquer forma, as vozes e clamores distintos e
articulados de todos os milhões de fiéis. Não seria o povo o herdeiro de um Papa destronado; seria
algum sínodo ou grupo de bispos. Não é uma alternativa entre monarquia e democracia, mas uma
alternativa entre monarquia e oligarquia. E, sendo eu um dos democratas idealistas, não tenho a
menor hesitação em minha escolha entre as duas formas anteriores de privilégio. Um monarca é um
homem, mas uma oligarquia não são homens; são poucos homens formando um grupo pequeno o
suficiente para ser irresponsável. Um homem na posição de um Papa, a menos que seja literalmente
louco, deve ser responsável. Mas aristocratas podem sempre jogar a responsabilidade uns nos
outros; e ainda criar uma sociedade corporativa cuja visão do resto do mundo seja completamente
obscurecida. Estas são conclusões a que estão chegando muitas pessoas no mundo; e muitos
estariam ainda mais assombrados e horrorizados em descobrir aonde levam essas conclusões. Mas o
ponto de discussão aqui é que mesmo se nossa civilização não redescobrir a necessidade do Papado,
é extremamente provável que, cedo ou tarde, ela tentará suprir a necessidade com algo parecido
com o Papado; mesmo se tentar fazê-lo por conta própria. Esta será realmente uma situação irônica.
O mundo moderno estabelecerá um novo Anti-Papa, mesmo considerando que, como no romance
de D. Benson, o Anti-Papa tenha o caráter de um Anticristo.[1]

A questão é que os homens tentarão colocar algum tipo de poder moral fora do alcance dos poderes
materiais. A fraqueza de muitas tentativas valorosas, bem intencionadas e atuais de justiça
internacional é que o conselho internacional dificilmente pode evitar ser meramente um
microcosmos ou um modelo do mundo externo, com todas as pequenas e grandes coisas, inclusive
as coisas excessivamente grandes. Suponha que em trocas internacionais do futuro alguma potência,
digamos a Suécia, seja considerada injusta ou problemática. Se a Suécia for poderosa na Europa, ela
será poderosa no conselho da Europa. Se a Suécia for muito poderosa na Europa, ela será muito
poderosa no conselho da Europa. E porque ela é a própria coisa irresistível, ela é a própria coisa a
ser resistida; ou, de qualquer forma, a ser restringida. Não vejo como a Europa possa escapar desse
dilema lógico, exceto se descobrir novamente uma autoridade que seja puramente moral e que seja a
guardiã reconhecida de uma moralidade. Pode ser dito sensatamente que mesmo aqueles dedicados
a essa tarefa podem nem sempre praticar o que professam. Mas os outros governantes do mundo
nunca estão obrigados a professá-lo.

Muitas vezes na história, especialmente na história medieval, o Papado interveio no interesse da paz
e da humanidade; tal como os grandes santos se jogavam entre espadas e adagas de facções em luta.
Mas se não houvesse um Papado, algum santo, ou a Igreja Católica, o mundo, abandonado à sua
própria sorte, certamente não teria substituído credos teológicos por abstrações sociais. Em geral, a
humanidade esteve longe de ser humanitária. Se o mundo fosse abandonado à própria sorte,
digamos na era do feudalismo, todas as decisões teriam sido rígida e brutalmente na linha do
feudalismo. Havia apenas uma instituição humana que existira antes do feudalismo. Havia apenas
uma instituição que podia possivelmente trazer consigo alguma débil memória da República e da
Lei romanas. Se o mundo tivesse sido abandonado à sua própria sorte na época da Renascença e da
política italiana do Príncipe, ele teria se organizado inteiramente ao modo da glorificação dos
príncipes. Havia apenas uma instituição que podia a qualquer momento ser forçada a repetir: “Não
coloque sua confiança em príncipes.” Tivesse ela ausente, o único resultado teria sido que o famoso
acordo de CUJUS REGIO EJUS RELIGIO teria sido todo REGIO com muito pouca RELIGIO. E
então, nossos dias atuais têm seus dogmas inconscientes e seus preconceitos universais; e
precisamos uma separação especial, sagrada e, o que parece a muitos, inumana que esteja acima de
nós, para ver além.

Sei que se abusou deste ideal como de nenhum outro; digo apenas que mesmo aqueles que mais
denunciaram a realidade provavelmente começarão de novo a busca pelo ideal. Mas, de fato, não
proponho que qualquer tribunal espiritual deveria agir como um tribunal comum ou que a ele seja
dado poderes de interferência prática nos governos nacionais. Tenho firme convicção de que tal
tribunal não deveria nunca aceitar qualquer envolvimento material. Tampouco desejo, nesta
questão, que qualquer tribunal secular agora constituído no interesse da paz internacional interfira
com a nacionalidade ou com a liberdade local. Preferiria muito mais dar tal poder a um papa do que
a políticos e diplomatas do tipo daqueles a quem o mundo está entregue. Mas não desejo dá-lo a
ninguém e a autoridade em questão não deseja aceitá-lo de ninguém. A coisa de que falo é
puramente moral e não pode existir sem certa lealdade moral; é uma espécie de atmosfera ou
mesmo de um sentimento de afeição. Não há espaço para descrever aqui a maneira em que tal elo
popular se desenvolve; mas não há a mínima dúvida de que ele já se desenvolveu em torno do
centro religioso de nossa civilização; e não é provável que cresça de novo, exceto se ele se dirigir a
um padrão de humildade e caridade muito mais alto que o padrão ordinário do mundo. Os homens
não sentem afeição pelos imperadores dos outros, ou mesmo pelos políticos dos outros; sabe-se que
a afeição deles se esfriou até mesmo em relação aos seus próprios políticos. Não vejo nenhuma
perspectiva de qualquer núcleo positivo de amizade, exceto em certo entusiasmo por algo que move
as partes mais íntimas da natureza moral do homem; algo que pode nos unir não por ser
inteiramente internacional (como dizem os arrogantes), mas por ser universalmente humano. Os
homens não conseguem concordar sobre o nada, tanto quanto não conseguem discordar sobre o
nada. E algo amplo o suficiente para proporcionar tal acordo deve ser ele mesmo maior que o
mundo.

[1] O dom da profecia é aqui exercido por Chesterton em seu mais alto grau. A proposta de um governo mundial, gestada há pelo menos dois séculos
é, na verdade, a versão demoníaca do Anti-Papa. Ela vem para suprir a necessidade um Papa realmente atuante, que existiu por séculos e que
possibilitou o desenvolvimento da Civilização Ocidental. Agora esta civilização recorre à versão demoníaca para continuar existindo. A ONU, que
seguiu à Liga das Nações, é uma primeira versão desta monstruosidade. (N. do T.)
35. O ESPÍRITO DE NATAL

Do livro A Coisa, 1929

G.K. Chesterton

Aventurei-me muito imprudentemente a escrever sobre o Espírito de Natal; e o assunto apresenta


uma dificuldade preliminar sobre a qual devo ser franco. É curioso ver atualmente as pessoas
falarem sobre “o espírito” de uma coisa. Há, por exemplo, um tipo particular de pedante que está
sempre nos dando lição de moral a respeito os espírito do verdadeiro cristianismo. Tanto quanto
posso compreender, ele diz o exato oposto do que ele pretende. Ele explica que devemos usar os
nomes “cristão”, “cristianismo”, etc., para algo que possui o espírito que especialmente não é
cristão; algo que é um tipo de combinação de otimismo infundado de um ateu americano com
pacifismo de um hindu moderado. Da mesma forma, lemos muito sobre o Espírito de Natal no
moderno jornalismo e mercantilismo; mas isto é um oposto do mesmo tipo. Longe de preservar a
essência sem a aparência, preserva-se a aparência onde não pode haver a essência. É algo similar a
tomar duas substâncias materiais, como o pinheiro e as bolas de natal, e espalhá-los por todos os
enormes e frios hotéis cosmopolitas ou em torno de colunas dóricas de clubes impessoais repletos
de cansados, cínicos e velhos cavalheiros; ou em qualquer outro lugar onde o real espírito de Natal
tem a menor chance de estar. Mas há também outro modo em que a complexidade comercial
moderna devora o coração de uma coisa, enquanto preserva sua casca pintada. E este é o sistema
assaz elaborado de dependência da compra e venda, e, assim, do barulho e confusão; e da real
desatenção com as novas coisas que poderiam ser feitas ao modo dos antigos Natais.

Normalmente, se tudo fosse normal nos dias de hoje, seria um truísmo dizer que o Natal foi um
festival familiar. Mas é agora possível (como tive a sorte ou má sorte de descobrir) ganhar a
reputação de paradoxal por simplesmente afirmar que truísmos são verdadeiros. Neste caso, claro, a
razão, a única razoável razão, foi religiosa. Tinha a ver com uma família feliz porque era
consagrada à Sagrada Família. Mas é perfeitamente verdade que muitos homens viram o fato sem
especialmente sentirem a razão. Quando dizemos que a raiz foi religiosa, não queremos dizer que
Sam Weller estava concentrado em valores teológicos quando disse a Fat Boy para “por um pouco
de Natal” em algum objeto, provavelmente comestível. Não queremos dizer que Fat Boy teve um
êxtase de contemplação mística, como um monge ao ter uma visão. Não queremos dizer que Bob
Cratchit defendia o ponche ao dizer que estava apenas observando o vinho quando este era amarelo;
ou que Tiny Tim citou Timothy. Apenas queremos dizer que eles, incluindo o autor, teriam
confessado humilde e entusiasticamente que havia alguém muito anterior ao Sr. Scrooge, que
poderia ser considerado o Fundador da Festa. Mas, de qualquer forma, qualquer que seja a razão,
todos teriam concordado sobre o resultado. A festa do Sr. Wardle centrava-se na família do Sr.
Wardle; e, ainda assim, porque as românticas sombras do Sr. Winkle e do Sr. Snodgrass ameaçavam
a dividi-la para a formação de outras famílias.[1]

O período natalino é doméstico; e por esta razão a maioria das pessoas se preparam para ele
apertando-se em ônibus, esperando em filas, correndo pelos metrôs, comprimindo-se em casas de
chá, e imaginando quando ou se vão chegar em casa algum dia. Não sei se alguns não desaparecem
para sempre na seção de brinquedos ou simplesmente se deitam e morrem nas casas de chá; mas
pelas suas aparências, isto é muito possível. Exatamente antes do grande festival do lar, toda a
população parece ter se tornado desabrigada. É o supremo triunfo da civilização industrial que, nas
enormes cidades que parecem ter casas em excesso, há uma desesperada falta de moradia. Muito
tempo atrás, grande número de nossos pobres se tornaram nômades. Nós até confessamos o fato;
pois falamos deles como árabes das ruas. Mas essa instituição doméstica, na sua presente fase
irônica, foi além de tal anormalidade normal. A festa da família transformou tanto o rico quanto o
pobre em vagabundos. Eles estão tão espalhados no confuso labirinto de nosso tráfego e de nosso
comércio, que não podem, algumas vezes, sequer chegar a uma casa de chá; seria indelicado, claro,
mencionar uma taverna. Eles têm dificuldade em se aglomerar em seus hotéis, quanto mais em se
separar e chegar a suas casas. Tenho em mente o contrário da irreverência quando digo que o único
ponto de semelhança entre eles e a família natalina arquetípica é que não há espaço para eles na
estalagem.

Ora, o Natal é feito de um belo e intencional paradoxo; que o nascimento do desabrigado deve ser
comemorado em todos os lares. Mas o outro tipo de paradoxo não é intencional e não é certamente
belo. É mal o suficiente para que não possamos desnudar a tragédia da pobreza. É suficiente mal
que o nascimento do desabrigado, celebrado no lar e no altar, deva às vezes coincidir com a morte
de desabrigados em asilos e favelas. Mas não precisamos regozijar neste desassossego universal que
atinge ricos e pobres igualmente; e me parece que nesta questão precisamos de uma reforma do
moderno Natal.

Não emitirei outro brilho de paradoxo ao observar que o Natal ocorre no inverno.[2] Isto é, ele não
é somente a festa dedicada à domesticidade, mas é colocada deliberadamente sob condições em que
é muito mais desconfortável correr por aí do que ficar em casa. Mas sob as complicadas condições
das modernas convenções e conveniências, surge este mais prático e mais desagradável tipo de
paradoxo. As pessoas têm de correr para lá e para cá por umas poucas semanas, mesmo que seja
para ficarem em casa por umas poucas horas. A velha e saudável idéia de tais festivais de inverno
era esta: que as pessoas estando fechadas e sitiadas pelo clima se voltavam para seus próprios
recursos; ou, em outras palavras, tinham a oportunidade de mostrar se havia algo em seu interior.
Não é seguro que a reputação de nossos mais modernos e elegantes caça-prazeres sobreviveria ao
teste. Algumas terríveis revelações seriam feitas de algumas figuras favoritas da sociedade, se elas
fossem isoladas do poder da máquina e do dinheiro. Elas estão muito acostumadas a ter tudo nas
mãos; e mesmo quando vão aos mais recentes bailes dançantes americanos, parece que só os
músicos negros dançam. De qualquer forma, para a média da saudável humanidade acredito que
este isolamento de todas estas conexões mecânicas seria um alento e um despertar. No presente, elas
são sempre acusadas de meramente se divertirem; mas elas não estão fazendo algo tão nobre ou
compatível à sua dignidade humana. Elas, em sua maioria, já não podem se divertir; estão
acostumadas demais de que outros as divirtam.

O Natal deve ser criativo. Dizem-nos, mesmo os que o prezam mais, que ele é principalmente
precioso para preservar antigos costumes e antiquados jogos. Ele é realmente valioso para ambos
estes admiráveis propósitos. Mas no sentido a que estou me referindo, pode ser novamente possível
torcer a verdade. Não é que o Natal real deva criar coisas antigas, mas coisas novas. Ele poderia,
por exemplo, criar novos jogos, se as pessoas fossem realmente levadas a inventar seus próprios
jogos. A maioria dos antigos jogos começava com o uso de ferramentas comuns ou peças do
mobiliário. Assim, as próprias regras do tênis se baseiam na estrutura do antigo pátio de estalagem.
Assim, acredita-se, as estacas do cricket foram originalmente somente as três pernas do tamborete
de tirador de leite. Ora, poderíamos inventar novas coisas desse tipo, se lembrássemos quem é a
mãe da invenção. Quão prazeroso seria começar um jogo em que marcássemos ponto por acertar o
porta-guarda-chuva ou o carrinho porta-refeição, ou mesmo o hospedeiro ou a hospedeira; claro,
com um projétil de material leve e macio. As crianças que têm sorte suficiente de ficarem sozinhas
no berço inventam não somente jogos completos, mas dramas e histórias de vida completos; elas
inventam línguas secretas; conduzem laboriosamente revistas de família. Este é o tipo de espírito
criativo que queremos no mundo moderno; queremos tanto no sentido de desejar quanto no sentido
de sentir a falta. Se o Natal pudesse se tornar mais doméstico, creio que haveria um vasto aumento
do real espírito de Natal; do espírito da Criança. Mas entregando-nos a este sonho, devemos, uma
vez mais, inverter a convenção corrente em uma espécie de paradoxo. É verdade, em certo sentido,
que o Natal é o tempo em que as portas devam ser abertas. Mas eu mandaria fechar as portas no
Natal, ou pelo menos um pouco antes do Natal; e então o mundo veria do que somos capazes.

Não posso deixar de lembrar, com um certo sorriso, que numa página anterior e mais controversa
deste livro eu mencionei uma senhora que estremeceu com a idéia das coisas perpetradas por mim e
pelos de minha religião por trás das portas. Mas minha memória está suavizada pela distância e pelo
assunto presente, e sinto o oposto de uma controvérsia. Espero que aquela senhora, e todo o seu
modo de pensar, tenha também a sabedoria de fechar suas portas; e, assim, que ela descubra que
somente quando todas as portas estão fechadas é que a melhor coisa será encontrada lá dentro. Se
eles forem puritanos, que professam uma religião baseada apenas na Bíblica, que eles sejam, uma
vez, uma Família da Bíblia. Se eles forem pagãos, que não aceitam nada exceto a festa de inverno,
que eles sejam, pelo menos, uma família em festa. A discordância ou desconforto de que os
modernos críticos reclamam, não são devidos a que o fogo místico ainda queima, mas que ele já
esfriou. É porque os frios fragmentos de uma coisa antigamente viva são desajeitadamente
agrupados. Brinquedos de Natal estão dançando sem harmonia perante tios graves e pagãos que
prefeririam estar jogando golfe. Mas isto não altera o fato de que eles poderiam se tornar mais
brilhantes e mais inteligentes se soubessem como brincar com os brinquedos; e eles são muito
aborrecidos com o golfe. Seu tédio é apenas o último produto mortal do processo mecânico dos
esportes organizados e profissionais, naquele rígido mundo de rotina fora de casa. Quando eram
crianças, por trás das portas da casa, é provável que quase nenhum deles tivesse sonhos acordados e
dramas não escritos que pertencessem a eles como Hamlet pertenceu a Shakespeare ou Pickwick a
Dickens. Quão mais excitante seria se Tio Henry, ao invés de descrever em detalhes todas as tacadas
com que ele se livrou do banco de areia, dissesse francamente que ele estivera numa viagem ao fim
do mundo e capturara a Grande Serpente do Mar. Quão mais intelectualmente verdadeira seria a
conversa de Tio William se, ao invés de nos dizer de quanto ele reduziu seu handcap, ele pudesse
ainda dizer com convicção que ele era o Rei das Ilhas Canguru, ou o Chefe dos Pele-Vermelhas.
Essas coisas, saídas desde dentro, eram quase todas puro espírito humano; e não é normal que a
inspiração delas deva ser tão completamente esmagada por coisas desde fora. Que não se suponha
por um momento que eu também esteja dentre os tiranos da terra, que imporia meus próprios
gostos, ou obrigaria todas as crianças a jogar meus próprios jogos. Não desrespeito o jogo de golfe;
é um jogo admirável. Eu já o joguei; ou melhor, eu já brinquei com ele, o que é geralmente
considerado o exato oposto de jogar. Deixemos evidentemente que os praticantes do golfe joguem
golfe e mesmo os organizadores o organizem, se sua única concepção de um órgão é algo como um
realejo.[3] Deixem-nos jogar golfe dia após dia; deixem-nos jogar golfe por trezentos e sessenta e
quatro dias, e noites também, com bolas banhadas em tinta luminosa, a fim de serem vistas no
escuro. Mas que exista uma noite que as coisas brilhem desde dentro: e um dia que os homens
procurem por tudo que está enterrado em si mesmos, e descubram – no lugar onde ele está
realmente escondido, por trás de portões trancados e janelas cerradas, por trás de portas três vezes
trancadas e aferrolhadas – o espírito de liberdade.

[1] Sam Weller, Fat Boy, Wardle, Winkle e Snodgrass são personagens de Dickens nos Pickwicky Papers e Bob Cratchit, Tiny Tim e o Sr. Scrooge em
Christmas Carol. (N. do T.)
[2] No hemisfério norte. (N. do T.)
[3] Barrel-organ em inglês. (N. do T.)

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