Você está na página 1de 174

Curso de Capacitação e Aperfeiçoamento

em Psicologia Social

Se ainda não adquiriu o CERTIFICADO de 120 HORAS pelo valor


promocional de R$ 57,00. Clique no link abaixo e adquira!

https://bit.ly/32k1opa

1
Sumário
1.0 PSICOLOGIA SOCIAL .................................................................................................. 4
1.1 Impacto da ciência na interação social ................................................................... 6
1.2 Viés Prescritivo da Teoria Psicológica .................................................................... 8
1.3 Teoria psicológica e mudança cultural .................................................................. 19
1.4 Implicações para uma ciência histórica do comportamento social ................... 24
2.0 PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL ............................................................................... 31
2.1 Uma (breve) história da Psicologia Social no Brasil................................................. 32
2.2 A diversidade da Psicologia Social brasileira ............................................................ 37
2.2.1 A análise institucional ............................................................................................ 37
2.2.2 A Psicologia Sócio-Histórica ................................................................................. 39
2.2.3 A Teoria das Representações Sociais ................................................................ 41
2.2.4 Abordagens construcionistas................................................................................ 43
3.0 PSICOLOGIA SOCIAL E DISCIPLNAS AFINS ............................................................ 46
4.0 ABORDAGENS DA PSICOLOGIA SOCIAL E SEU ENSINO .................................... 52
4.1 Ciências naturais, ciências sociais e a Psicologia Social....................................... 56
4.2 As principais "tradições" da Psicologia Social ......................................................... 60
4.3 A "crise" da Psicologia Social: abordagens latino-americanas .............................. 65
4.4 Outras abordagens em Psicologia Social no Brasil ................................................. 71
4.5 Abordagem estrutural .................................................................................................... 73
5.0 IDENTIDADE NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL ................................................... 76
5.1 Identidade Pessoal ........................................................................................................ 77
5.2 Identidade Social ........................................................................................................... 81
5.3 Identidade no Trabalho ................................................................................................. 87
5.4 Identidade Organizacional ............................................................................................ 91
5.5 Distinção e Integração entre os Níveis de Análise ................................................... 96
5.6 Implicações para estudos organizacionais ................................................................ 99
6.0 O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NO DESENVOLVIMENTO..................................... 102
6.1 A influência das leis no meio social .......................................................................... 105
7.0 PSICOLOGIA INSTITUCIONAL .................................................................................... 117
7.1 A Psicologia Institucional de Bleger: uma visão Psicanalítica .............................. 121
7.2 A análise institucional de Lapassade: uma intervenção política .......................... 122
7.3 O Psicólogo e as Instituições ..................................................................................... 126
8.0 PERSEPÇÃO SOCIAL.................................................................................................... 128
8.1 A dimensão social da percepção .............................................................................. 133
8.2 A atenção conjunta ...................................................................................................... 135

2
8.3 Princípios teóricos de interpretação da atenção conjunta..................................... 138
9.0 ATRIBUIÇÃO DA CAUSALIDADE ................................................................................ 143
10.0 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ......................................................... 147
11.0 A PSICOLOGIA SOCIAL E O PAPEL DO PSICÓLOGO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA .............................................................................................................. 151
12.0 O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO .......................................................................... 153
12.1 O indivíduo: ser social ............................................................................................... 153
12.2 Cultura ......................................................................................................................... 156
12.3 Agentes socializadores do processo de socialização .......................................... 158
12.4 Papéis sociais ............................................................................................................ 160
12.5 Identidade social e consciência de si mesmo ................................................... 163
13.0 PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO, GRUPOS E PAPÉIS SOCIAIS ...................... 166
14.0 PSICOLOGIA COMUNITÁRIA .................................................................................... 168

3
1.0 PSICOLOGIA SOCIAL

A psicologia é usualmente definida como ciência do comportamento humano


e a psicologia social como aquele ramo dessa ciência que lida com a interação
humana. Um dos maiores propósitos da ciência é o estabelecimento de leis
gerais por meio da observação sistemática. Para o psicólogo social, tais leis
gerais são desenvolvidas a fim de descrever e explicar a interação social. Essa
visão tradicional da lei científica repete-se de uma ou outra forma em quase
todas as pesquisas fundamentais do campo. Em sua discussão sobre o papel da

4
explicação nas ciências do comportamento, DiRenzo (1966) apontou que uma
"explicação completa" nas ciências comportamentais "é aquela que assumiu o
estatuto invariável de lei" (p. 11). Krech, Crutchfield e Ballachey (1962)
declararam que "enquanto estivermos interessados em psicologia social como
uma ciência básica ou como uma ciência aplicada, um conjunto de princípios
científicos é essencial" (p. 3). Jones e Gerard (1967) propagaram esta visão: "a
Ciência busca compreender os fatores responsáveis por relações estáveis entre
eventos" (p. 42). Como Mills (1969) colocou, "psicólogos sociais querem
descobrir relações causais que permitam estabelecer princípios básicos que
explicarão o fenômeno da psicologia social" (p. 412).

Esta visão da psicologia é, certamente, descendente direta do pensamento


setecentista. Em um tempo em que as ciências físicas produziram contribuições
notáveis ao conhecimento, poder-se-ia ver com grande otimismo a possibilidade
de aplicação do método científico ao comportamento humano (Carr, 1963). Se
princípios gerais do comportamento pudessem ser estabelecidos, talvez fosse
possível eliminar os conflitos sociais, dar um fim aos problemas de doença
mental e criar condições sociais em máximo benefício dos membros da
sociedade. Como outros esperaram outrora, poderia mesmo ser possível dar a
tais princípios uma forma matemática, desenvolver "uma matemática do
comportamento humano tão precisa quanto a matemática das máquinas"
(Russell, 1956, p. 142).

O notável sucesso das ciências naturais em estabelecer princípios gerais


pode ser atribuído em grande medida à estabilidade geral dos eventos no mundo
da natureza. A velocidade da queda dos corpos ou a combinação dos elementos

5
químicos, por exemplo, são eventos altamente estáveis ao longo do tempo. São
eventos que podem ser recriados em qualquer laboratório, 50 anos atrás, hoje,
ou 100 anos depois. Porque são tão estáveis, largas generalizações podem ser
estabelecidas com muita confiança, explicações podem ser empiricamente
testadas e formulações matemáticas podem ser desenvolvidas com êxito. Se os
eventos fossem instáveis, se a velocidade da queda dos corpos ou a composição
dos elementos químicos estivesse em fluxo contínuo, o desenvolvimento das
ciências naturais estaria drasticamente impedido. Leis gerais não apareceriam,
e o registro de eventos naturais destinar-se-ia principalmente à análise histórica.
Se os eventos naturais fossem caprichosos, a ciência natural seria amplamente
substituída pela história natural.

1.1 Impacto da ciência na interação social

Tal como Back (1963) mostrou, a ciência social pode proveitosamente ser
vista como um extenso sistema de comunicações. Na execução da pesquisa, os
cientistas recebem mensagens transmitidas pelo sujeito do experimento. Em sua
forma crua, tais mensagens geram apenas "ruído" para o cientista. Teorias
científicas servem como dispositivo decodificador que converte o barulho em
informação útil. Embora Back tenha usado esse modelo de várias maneiras
instigantes, sua análise termina no ponto da decodificação. Esse modelo precisa
ser estendido além do processo de coleta e decodificação das mensagens. A
tarefa do cientista é também aquela do comunicador. Se suas teorias provam ser
dispositivos úteis de decodificação, elas são comunicadas à população a fim de
que ela possa beneficiar-se de sua utilidade. Ciência e sociedade
retroalimentam-se.

6
Esse tipo de relação do cientista com a sociedade expandiu-se
progressivamente durante a última década. Canais de comunicação
desenvolveram-se rapidamente. No nível da educação superior, mais de oito
milhões de estudantes anualmente deparam-se com cursos oferecidos no
domínio da psicologia, ofertas que se tornaram, nos últimos anos, insuperáveis
em popularidade. A educação liberal de hoje exige familiaridade com as ideias
centrais da psicologia. Os veículos de comunicação de massa vêm também
satisfazer o vasto público interessado em psicologia. A imprensa monitora
cuidadosamente os encontros profissionais tanto quanto os periódicos da
profissão. Editoras acharam rentável apresentar a visão dos psicólogos sobre os
padrões contemporâneos de comportamento, e revistas quase exclusivamente
voltadas à psicologia ostentam hoje um total de mais de 600.000 leitores.
Quando acrescentamos a essas marcas a ostensiva expansão do mercado de
brochuras, a crescente demanda governamental por conhecimento justificando
o investimento público na pesquisa psicológica, a proliferação de encontros
técnicos, o estabelecimento de empreendimentos comerciais vendendo
psicologia através de jogos e pôsteres, e a crescente confiança das grandes
instituições (comerciais, governamentais, militares e sociais) depositada na
competência de seus cientistas comportamentais; começa-se então a sentir a
força do laço pelo qual os psicólogos encontram-se vinculados, em mútua
comunicação, à cultura que lhes envolve.

A maioria dos psicólogos sustenta o desejo de que o conhecimento


psicológico irá causar algum impacto na sociedade. Muitos de nós nos sentimos
7
gratificados quando tal conhecimento pode ser utilizado para fins benéficos. De
fato, para muitos psicólogos sociais, o comprometimento com o campo depende
em grande medida da crença na utilidade social do conhecimento científico.
Contudo, não se assume corriqueiramente que tal utilização alterará o caráter
das relações causais da interação social. Esperamos sim que o conhecimento
do funcionamento seja utilizado na alteração de comportamentos, mas não
esperamos que uma tal utilização afete o caráter subsequente do próprio
funcionamento. Nossas expectativas, nesse caso, podem ser bastante
infundadas. Não apenas a aplicação de nossos princípios pode alterar o dado
sobre o qual eles estão baseados, como o próprio desenvolvimento dos
princípios pode vir a invalidá-los. Três linhas de argumentação são pertinentes:
a primeira é derivada do viés avaliativo da pesquisa psicológica; a segunda, dos
efeitos libertadores do conhecimento; a terceira, da importância dos valores
prevalecentes na cultura.

1.2 Viés Prescritivo da Teoria Psicológica

Como cientistas da interação humana, estamos engajados numa


dualidade peculiar. Por um lado, cientificamente, avaliamos
desinteressadamente o comportamento. Estamos bem avisados dos efeitos
enviesadores de intensos compromissos normativos. Por outro lado, como seres
humanos socializados, nós sustentamos inúmeros valores acerca da natureza
das relações sociais. Raro o psicólogo social em que seus valores não
influenciam o tema de sua pesquisa, seus métodos de observação, ou mesmo
os termos de sua descrição. Na geração de conhecimento sobre a interação
social, comunicamos também nossos valores pessoais. O receptor do
conhecimento provê-se assim de duas classes de mensagens: mensagens que
desinteressadamente descrevem o que parece ser, e aquelas que
sutilmente prescrevem o que é desejável.

8
Este argumento é mais evidente nas pesquisas sobre disposições
pessoais. A maioria de nós sentir-se-ia insultado se fosse caracterizado como
possuindo baixa autoestima ou alto grau de busca de aprovação, cognitivamente
indiferenciado, autoritário, compulsivo anal, dependente do campo, ou de
mentalidade fechada. Em parte, nossas relações refletem nossa aculturação.
Não é preciso ser psicólogo para ofender-se por tais rótulos. Mas, igualmente
em parte, tais reações são criadas pelos conceitos utilizados na descrição e
explicação de fenômenos. Por exemplo, no prefácio a The Authoritarian
Personality (Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson & Sanford, 1950), os leitores
são informados de que "em contraste com o intolerante de antigamente, (o
autoritário) parece combinar as ideias e as habilidades de uma sociedade
altamente industrializada a crenças irracionais e antirracionais" (p. 3). Discutindo
a personalidade maquiavélica, Christie e Geis (1970) notaram que

Inicialmente, nossa imagem dos maquiavélicos foi negativa,


associada a manipulações sombrias e desagradáveis. Entretanto ...
encontramo-nos nós mesmos diante de uma admiração perversa pela
habilidade daqueles para ultrapassar os outros em situações
experimentais (p. 339).

Em sua capacidade prescritiva, tais comunicações tornam-se agentes de


mudança social. Num nível elementar, o estudante de psicologia poderia
certamente desejar excluir da observação pública comportamentos rotulados

9
pelos respeitados acadêmicos como autoritários, maquiavélicos e assim por
diante. A comunicação do conhecimento pode, dessa maneira, homogeneizar os
indicadores comportamentais de disposições subjacentes. Num nível mais
complexo, o conhecimento dos correlatos da personalidade pode induzir o
comportamento a suprimir os correlatos. Não é estranho que muitas pesquisas
sobre diferenças individuais coloquem os psicólogos profissionais em alta conta.
Assim, mais os sujeitos assemelham-se aos profissionais - em termos de
educação, condição econômica, religião, raça, sexo e valores pessoais -, mais
vantajosas suas posições em exames psicológicos. Elevada educação, por
exemplo, favorece diferenciação cognitiva (Witkin, Dyk, Faterson, Goodenough
& Karp, 1962), baixo grau de autoritarismo (Christie & Jahoda, 1954),
mentalidade aberta (Rokeach, 1960) etc. Munidos dessas informações, aquelas
pessoas depreciadas pela pesquisa poderiam contrabalancear a fim de evadir-
se do estereótipo ofensivo. Por exemplo, mulheres que aprenderam que são
mais persuasíveis que homens (cf. Janis & Field, 1959) podem retaliar, e, ao
longo do tempo, a correlação é invalidada ou revertida.

Embora vieses avaliativos sejam facilmente identificados em pesquisas


sobre personalidade, eles não estão de modo algum limitados a esta área. A
maioria dos modelos de interação social também contém juízos de valor
implícitos. Por exemplo, pesquisas sobre conformidade frequentemente tratam
o conformado como um cidadão de segunda categoria, uma ovelha social que
abre mão de convicções pessoais em troca das opiniões errôneas dos outros.
Assim, modelos de conformidade social sensibilizam-no a fatores que poderiam

10
levá-lo a ações sociais deploráveis. Com efeito, o conhecimento protege contra
a eficácia futura destes mesmos fatores. Pesquisas sobre mudança de atitude
frequentemente levam a essas mesmas implicações. Saber sobre a mudança de
atitude estimula a crer que se tem o poder de mudar os outros.
Consequentemente, outros são relegados ao status de manipuláveis. Assim,
teorias de mudança de atitude poderiam sensibilizar em direção à proteção
contra fatores que poderiam potencialmente influenciá-lo. Do mesmo modo,
teorias de agressão usualmente condenam o agressor, modelos de negociação
interpessoal desaprovam a espoliação e modelos de desenvolvimento moral
depreciam aqueles abaixo do estágio ótimo (Kohnlberg, 1970). A teoria da
dissonância cognitiva (Brehm & Cohen, 1966; Festinger, 1957) podia parecer
neutra, porém a maioria dos estudos nesta área tem apresentado o redutor de
dissonância em termos nada elogiosos. "Quão estúpido", dizemos, "que as
pessoas tenham que trapacear, tirar notas baixas em exames, mudar suas
opiniões sobre os outros, ou mesmo comer alimentos indesejáveis, apenas para
manter a consistência".

A observação crítica subjacente a estas notas não é inadvertida. Parece


infeliz que uma profissão dedicada ao desenvolvimento objetivo e imparcial do
conhecimento devesse usar esta posição para fazer propaganda àqueles que
inocentemente recebem esse mesmo conhecimento. Os conceitos do campo
são raramente desprovidos de valor, e muitos poderiam ser substituídos por
conceitos de uma carga valorativa bastante diferente. Brown (1965) indicou o
fato interessante de que a personalidade autoritária clássica, tão temida em
nossa própria literatura, era bastante similar à "personalidade tipo-J" (Jaensch,
1938), em alta conta entre os alemães. Aquilo que nossa literatura nomeou

11
rigidez foi visto por eles como estabilidade; flexibilidade e individualismo na
nossa literatura foram vistos como falta de firmeza e excentricidade. Tais
rotulações enviesadas percorrem nossa literatura. Por exemplo, elevada alta-
estima poderia ser nomeada egoísmo; necessidade de aprovação social poderia
ser traduzida por necessidade de integração social; diferenciação cognitiva como
perfeccionismo; criatividade como desvio; controle interno como egocentrismo.
Do mesmo modo, se nossos valores fossem outros, conformidade social poderia
ser vista como comportamento solidário; mudança de atitude como adaptação
cognitiva; e o desvio em direção ao risco como uma conversão corajosa.

Ainda assim, mesmo que os efeitos de disseminação da terminologia


psicológica precisem ser lamentados, é importante traçar suas fontes. Em parte,
a carga valorativa dos termos teóricos parece bastante intencional. O ato de
tornar público implica o desejo de ser ouvido. Entretanto, termos neutros têm
pouco valor para o leitor potencial, e a pesquisa não-valorativa rapidamente
torna-se obscura. Se obediência fosse renomeada para comportamento alfa e
não fosse tornada deplorável a partir de associações com Adolph Eichman, o
interesse público seria indubitavelmente menor. Além de angariar o interesse do
público e da profissão, conceitos carregados de valor provêem também um
considerável meio de expressão para os psicólogos. Conversei com inúmeros
estudantes graduados que se voltaram para a psicologia como decorrência de
profundas preocupações humanísticas. Dentre muitos se encontra um poeta
frustrado, filósofo ou humanitário que vê, no método científico, simultaneamente,
um meio para expressar seus valores e um obstáculo à livre expressão. Triste é
o fato aparente de que a chave para a livre expressão na mídia profissional é
uma vida próxima ao laboratório. Muitos desejam compartilhar seus valores
diretamente, sem serem limitados pela constante demanda por evidência
sistemática. Para eles, conceitos sobrecarregados de valor compensam o
conservadorismo usualmente oriundo dessas demandas. O psicólogo de maior
reputação pode perdoar-se mais diretamente. Normalmente, no entanto, nós não
costumamos ver nossas opiniões como propagandísticas, mas sim como o
reflexo de "verdades básicas".

Ainda que a comunicação de valores através do conhecimento seja em


certa medida intencional, ela não o é de todo. A defesa de valores é quase um

12
produto inevitável da existência social, e como participantes da sociedade
raramente nos dissociamos desses valores ao perseguir metas profissionais.
Além disso, se confiamos na linguagem da cultura para a comunicação científica,
é difícil encontrar termos dizendo respeito à interação social desprovidos de valor
prescritivo. Nós poderíamos reduzir as prescrições implícitas contidas em
nossas comunicações se adotássemos uma linguagem completamente técnica.
Entretanto, mesmo uma linguagem técnica torna-se avaliativa sempre que a
ciência é usada como veículo de mudança social. Talvez nossa melhor opção
seja mantermo-nos tão sensível quanto possível aos nossos vieses e comunicá-
los tão abertamente quanto possível. A defesa de valores pode ser inevitável,
mas podemos evitar mascará-la como reflexões objetivas da verdade.

Conhecimento e Liberação Comportamental

É comum na prática de pesquisa em psicologia evitar comunicar


quaisquer premissas teóricas ao sujeito antes ou durante a pesquisa. A pesquisa
de Rosenthal (1966) indicou que mesmo as pistas mais sutis das expectativas
do experimentador podem alterar o comportamento do sujeito. Desse modo,
sujeitos ingênuos são requeridos pelos padrões comuns de rigor. As implicações
dessa cautela metodológica simples são de considerável significância. Se os
sujeitos possuem conhecimento preliminar, tais como premissas teóricas, não
podemos testar adequadamente nossas hipóteses. Da mesma maneira, se a
sociedade é psicologicamente informada, teorias sobre isso mesmo que é
informado tornam-se difíceis de serem testadas sem o risco de contaminação.

13
Eis aqui uma diferença fundamental entre as ciências naturais e sociais.
Formalmente, o cientista não pode comunicar seu conhecimento aos sujeitos de
seu estudo de tal forma que suas disposições comportamentais sejam
modificadas. Nas ciências sociais tal comunicação pode ter um impacto vital no
comportamento.

Um exemplo simples pode ser suficiente. Parece que numa enorme


variedade de condições, grupos de tomada de decisão realizam decisões
arriscadas através de grupos de discussão (cf. Dion, Baron, & Miller, 1970;
Wallach, Kogan & Bem, 1964). Investigadores nessa área acautelam-se
bastante para que os sujeitos experimentais não ignorem seu conhecimento
neste assunto. Esses sujeitos, uma vez cientes, poderiam resguardar-se dos
efeitos do grupo de discussão ou responder apropriadamente a fim de ganhar a
aprovação do experimentador. Entretanto, se o desvio em direção ao risco viesse
a se transformar em conhecimento comum, sujeitos ingênuos tornar-se-iam
inalcançáveis. Membros da cultura poderiam sistematicamente compensar as
tendências em direção ao risco produzidas pelo grupo de discussão até tais
comportamentos tornarem-se normais.

Como premissa geral, admite-se que o profundo conhecimento de


princípios psicológicos liberte os sujeitos de suas implicações comportamentais.
Princípios estabelecidos do comportamento tornam-se estímulos à tomada de
decisão de alguém. Como Winch (1958) indicou, "na medida em que

14
compreender algo envolve compreender sua contradição, alguém que,
inteligentemente, realiza X deve ser capaz de visualizar a possibilidade de fazer
não-X" (p. 89). Princípios psicológicos também sensibilizam os sujeitos a
influências que agem sobre eles e dirigem sua atenção a certos aspectos do
meio e deles mesmos. Nesse processo, seus padrões de comportamento podem
ser fortemente influenciados. Como May (1971) expôs mais apaixonadamente,
"cada um de nós herda da sociedade um fardo de tendências que nos modelam
inevitavelmente; porém nossa capacidade de ser consciente desse fato salva-
nos de sermos estritamente determinados" (p. 100). Dessa forma, o
conhecimento de signos não-verbais de estresse ou calma (Eckman, 1965)
habilita-nos a utilizá-los toda vez que nos é útil fazê-lo. Saber que pessoas em
problema são menos dispostas a serem ajudadas quando há um grande número
de espectadores (Latané & Darley, 1970) pode aumentar o desejo de oferecer
ajuda em tais condições. Saber que o estado de excitação pode influenciar a
interpretação de eventos (cf. Jones & Gerard, 1967) pode suscitar cautela
quando esse mesmo estado se encontra em grau elevado. Em cada caso, o
conhecimento aumenta as alternativas de ação, e padrões prévios de
comportamento são modificados ou dissolvidos.

Fuga em direção à Liberdade

A invalidação histórica da teoria psicológica pode ser mais profundamente


investigada em sentimentos comumente observados no interior da cultura
ocidental. Da maior importância é o desconforto geral que as pessoas parecem
sentir quando têm o número de suas alternativas de respostas diminuído. Como
Fromm (1941) viu, o desenvolvimento inclui a aquisição de fortes desejos de
autonomia. Weinstein e Platt (1969) discutiram bastante o mesmo sentimento

15
em termos de "desejo do homem de ser livre", e vincularam esta disposição à
estrutura do desenvolvimento social. Brehm (1966) usou essa mesma disposição
como pedra angular de sua teoria da reatância psicológica. A prevalência desse
valor aprendido teve importantes implicações para a validade, a longo prazo, da
teoria psicossociológica.

Teorias válidas sobre o comportamento social constituem significantes


instrumentos de controle social. Na medida em que o comportamento de um
indivíduo é previsível, ele torna-se vulnerável. Outros podem alterar as
condições ambientais ou seu próprio comportamento em relação a ele a fim de
obter um máximo de recompensa com um mínimo de custo. Da mesma maneira
que um estrategista militar entrega-se a uma derrota quando suas ações se
tornam predizíeis, que um oficial de uma organização pode ser traído por seus
subordinados, e que esposas manipuladas por seus maridos farristas quando
seus padrões de comportamento são confiáveis. O conhecimento torna-se assim
poder nas mãos de outros. Segue-se que princípios psicológicos colocam uma
ameaça potencial a todos aqueles com que estão relacionados. Investimentos
em liberdade podem assim potencializar um comportamento visando invalidar a
teoria. Estamos satisfeitos com princípios de mudança de atitude até o momento
em que os encontramos sendo usados em campanhas dedicadas à modificação
de nosso comportamento. Nesse ponto, podemos nos ressentir e reagir
recalcitrante mente. Maior o poder da teoria em prever o comportamento, maior
seu público de disseminação e mais prevalente e reverberante sua reação.
Assim, as teorias fortes podem estar sujeitas à invalidação mais rapidamente do
que as fracas.

O valor comum atribuído à liberdade pessoal não é o único ponto que


responde pela ruína de uma teoria psicossociologia. Na cultura ocidental, parece

16
haver um grande valor atribuído à singularidade ou individualidade. A imensa
popularidade de Erikson (1968) e Allport (1965) pode se dever ao grande apoio
que esses autores dão a este valor, e recente pesquisa em laboratório (Fromkin,
1970, 1972) demonstrou a força desse valor na alteração do comportamento
social. A teoria psicológica, na sua estrutura nomotética, é insensível às
ocorrências singulares. Indivíduos são tratados como exemplares de classes
maiores. Uma reação comum é a de que a teoria psicológica é desumanizante,
e como Maslow (1968) notou, pacientes sustentam um forte ressentimento ao
receberem a rubrica ou serem rotulados com termos clínicos convencionais.
Similarmente, negros, mulheres, ativistas, suburbanos, educadores e idosos têm
todos reagido amargamente a explicações sobre seus comportamentos. Dessa
forma, podemos nos esforçar em invalidar teorias que nos seduzem por sua
aparência impessoal.

Psicologia dos Efeitos de Esclarecimento

Até agora discutimos três modos através dos quais a psicologia social
altera o comportamento que ela pretende estudar. Antes de passarmos a um
segundo grupo de argumento em favor da dependência histórica da teoria
psicológica, devemos lidar com um importante meio de combate aos efeitos
descritos até agora. A fim de preservar a validade transhistórica dos princípios
psicológicos, a ciência poderia ser removida do domínio público e a
compreensão científica reservada a uma elite seleta. Essa elite seria,
evidentemente, cooptada pelo Estado, uma vez que nenhum governo poderia
admitir o risco da existência de um estabelecimento privado desenvolvendo
ferramentas de controle público. Para a maioria de nós, tal proposta é

17
repugnante, e nossa inclinação é, ao contrário, procurar uma solução científica
ao problema da dependência histórica. Muito do que se disse aqui sugere uma
resposta desse tipo. Se pessoas que são psicologicamente esclarecidas reagem
aos princípios gerais contra dizendo-lhes, ratificando-lhes, ignorando-lhes, e
assim por diante, então deveria ser possível estabelecer as condições sob as
quais essas várias reações ocorrerão. Baseado em noções de reatância
psicológica (Brehm, 1966), profecias auto realizadoras (Merton, 1948) e efeitos
de expectativa (Gergen & Taylor, 1969), poderíamos construir uma teoria geral
das reações à teoria. Uma psicologia dos efeitos de esclarecimento deveria
habilitar-nos a predizer e controlar os efeitos do conhecimento.

Embora uma psicologia dos efeitos de esclarecimento pareça um


promissor suplemento a teorias gerais, sua utilidade é seriamente limitada. Uma
tal psicologia pode investir-se de valor, aumentar nossas alternativas
comportamentais, e pode ser ofensiva por sua ameaça a sentimentos de
autonomia. Assim, a teoria que prediz reações à teoria é também suscetível à
violação ou justificação. Nas relações entre pais e filhos ocorre frequentemente
algo que ilustra esse ponto. Pais estão acostumados a usar recompensas diretas
a fim de influenciar o comportamento de suas crianças. Com certo tempo, as
crianças adquirem consciência da premissa dos adultos de que uma
recompensa atingirá os resultados desejados e tornam-se obstinadas. O adulto
pode então reagir com uma psicologia ingênua dos efeitos de esclarecimento e
expressar desinteresse pela realização da tarefa por parte da criança,
novamente com a intenção de alcançar o objetivo desejado. A criança pode

18
responder apropriadamente, mas muito frequentemente irá emitir alguma
variação de "você só está dizendo que você não se importa porque você
realmente quer que eu faça". Nos termos de Loevinger (1959), "... um aumento
no controle parental é contrabalanceado por um aumento no controle filial" (p.
149). Em bom português, nomeia-se lhe psicologia reversa, e é frequentemente
malvista. Certamente, pode-se contar com pesquisa sobre reações à psicologia
dos efeitos de esclarecimento, porém rapidamente pode-se ver que essa troca
de ações e reações poderia ser estendida indefinidamente. Uma psicologia dos
efeitos de esclarecimento está sujeita às mesmas limitações históricas como
outras teorias de psicologia social.

1.3 Teoria psicológica e mudança cultural

O argumento contra leis transitórias em psicologia social não apenas


reside na consideração do impacto da ciência na sociedade. Uma segunda
importante linha de pensamento merece consideração. Se examinarmos as mais
proeminentes linhas de pesquisa durante a última década, logo perceberemos
que as regularidades observadas e, assim, os princípios teóricos mais
importantes, estão firmemente vinculados a circunstâncias históricas. A
dependência histórica dos princípios psicológicos é mais notável em áreas onde
o foco incide sobre o público. Psicólogos sociais têm se preocupado muito, por
exemplo, em isolar indicadores de ativismo político durante a última década (cf.
Mankoff & Flacks, 1971; Soloman & Fishman, 1964). Entretanto, se se examina
esta literatura ao longo do tempo, inúmeras inconsistências aparecem. Variáveis
que predizem com êxito o ativismo político durante os primeiros estágios da
guerra do Vietnã são distintos daqueles que predizem com êxito o ativismo

19
durante os períodos finais. Parece clara a conclusão de que os fatores
mobilizadores do ativismo político mudaram com o tempo. Assim, qualquer teoria
do ativismo político construída de achados anteriores seria invalidada por
achados posteriores. Pesquisas futuras em ativismo político encontrarão ainda,
indubitavelmente, outros indicadores mais úteis.

Tais alterações nas relações funcionais não estão limitadas em princípio


às áreas concernentes ao público imediato. A teoria da comparação social de
Festinger (1957), por exemplo, e a extensiva linha de pesquisa dedutiva (cf.
Latané, 1966) estão baseadas na dupla suposição de que (a) pessoas desejam
avaliar-se corretamente e (b) a fim de fazê-lo, comparam-se com outros. Há
pouquíssimas razões para achar que tais disposições são geneticamente
determinadas, e podemos facilmente imaginar pessoas, e mesmo sociedades,
nas quais tais suposições não se sustentariam. Muitos de nossos comentadores
sociais são críticos da tendência comum a buscar na opinião dos outros a
definição de si e tentam mudar a sociedade com sua crítica. Com efeito, toda a
linha de pesquisa parece depender de um conjunto de propensões aprendidas,
propensões que poderiam ser alteradas pelo tempo e circunstâncias.

Da mesma maneira, a teoria da dissonância cognitiva depende da


suposição de que as pessoas não toleram cognições contraditórias. A base de
tal intolerância não parece ser geneticamente dada. Há certamente indivíduos
que entendem tais contradições de modo bastante diferente. Escritores
existencialistas recentes, por exemplo, celebram o ato inconsistente.

20
Contrariamente, devemos concluir que a teoria é preditiva em razão do estado
atual das disposições aprendidas. Do mesmo modo, o trabalho de Schachter
(1959) sobre afiliação está sujeito aos argumentos elaborados a partir da teoria
da comparação social. O fenômeno da obediência de Milgram (1965) é
certamente dependente das atitudes contemporâneas frente à autoridade. Na
pesquisa sobre mudança de atitudes, a credibilidade do comunicador é um
potente fator porque aprendemos a confiar em autoridades na nossa cultura, e a
mensagem comunicada tornar-se dissociada de sua fonte com o passar do
tempo (Kelman & Hovland, 1953) porque, atualmente, não nos parece útil reter
a associação. Em pesquisas sobre conformidade, pessoas conformam-se mais
a amigos do que a não-amigos (Back, 1951) parcialmente porque aprenderam
que amigos punem comportamentos desviantes na sociedade contemporânea.
Pesquisas em atribuição causal (cf. Jones, Davis & Gergen, 1961; Kelley, 1971)
dependem da tendência culturalmente dependente a perceber o homem como a
fonte de sua ação. Essa tendência pode ser modificada (Hallowell, 1958) e
alguns (Skinner, 1971) de fato demonstraram que isso pode acontecer.

Talvez a garantia principal de que a psicologia social nunca desaparecerá


pela sua redução à fisiologia seja a de que a fisiologia não pode dar conta das

21
variações do comportamento humano ao longo do tempo. As pessoas podem
preferir roupas de cores abertas e alegres hoje e fechadas e sóbrias amanhã;
podem valorizar autonomia nessa era e dependência na próxima. Certamente, a
variação das respostas ao meio repousa em variações na função fisiológica.
Todavia, a fisiologia nunca pode especificar a natureza do estímulo ou do
contexto da resposta a que cada indivíduo está exposto. Não pode nunca dar
conta do contínuo deslocamento dos padrões do que é considerado bom e
desejável na sociedade, de uma série de fontes de motivação primária para o
indivíduo. Entretanto, ainda que a psicologia social esteja imunizada do
reducionismo fisiológico, suas teorias não estão isoladas da mudança histórica.

É possível inferir dessa última classe de argumentos um compromisso


com pelo menos uma teoria da validade transhistórica. Tem-se argumentado que
a estabilidade nos padrões de interação sob a qual a maioria de nossas teorias
repousa depende de disposições adquiridas de duração limitada. Isso sugere
implicitamente a possibilidade de uma teoria da aprendizagem social
transcendendo as circunstâncias históricas. No entanto, tal conclusão não é
confiável. Consideremos, por exemplo, uma teoria elementar de reforço. Poucos
duvidariam de que a maioria das pessoas responde às contingências
recompensadoras e punitivas em seu meio, e é difícil imaginar um tempo em que
isso não seria verdadeiro. Tais premissas parecem assim válidas
transhistoricamente, e a primeira tarefa do psicólogo poderia ser o isolamento
das formas funcionais precisas relacionadas aos padrões de recompensa e
punição do comportamento.

22
Esta conclusão peca em dois pontos importantes. Muitos críticos da teoria
do reforço têm sustentado que a definição de recompensa (e punição) é circular.
Reforço é tipicamente definido como aquilo que aumenta a frequência de
resposta; aumento de resposta é definido como aquilo que reforça. Assim, a
teoria parece limitada à interpretação post hoc. Apenas quando a mudança do
comportamento ocorreu pode-se identificar o reforçador. A réplica mais
significante a esse criticismo reside no fato de que recompensas e punições
ganham valor preditivo tão logo são indutivamente estabelecidas. Assim, isolar
a aprovação social como um reforço positivo para o comportamento humano
depende inicialmente de uma observação post hoc. Contudo, uma vez
estabelecida como um reforçador, a aprovação social prova ser, no que concerne
à predição, um bem-sucedido meio de modificação do comportamento (cf.
Barron, Hecknmueller, & Schultz, 1971; Gewirtz & Baer, 1958).

Entretanto, parece também que o reforço não permanece estável ao longo


do tempo. Reisman (1952), por exemplo, convincentemente demonstrou que a
aprovação social tem um valor reforçador muito maior em nossa sociedade
contemporânea do que há um século. E enquanto orgulho nacional poderia ser
um forte reforçador do comportamento juvenil nos idos de 1940, para a juventude
contemporânea tal sentimento provavelmente seria aversivo. Com efeito, a
circularidade essencial na teoria do reforço pode a qualquer momento ser
recolocada. Como os valores reforçadores mudam, assim também a validade
preditiva dessa pressuposição de base.

A teoria do reforço encara outras limitações históricas quando a


consideramos em suas determinações mais precisas. Igualmente à maioria das
teorias da interação humana, a teoria está sujeita ao investimento ideológico. A
noção de que o comportamento é totalmente governado por contingências
externas é vista por muitos como vulgarmente desprovida de sentido. O
conhecimento da teoria habilita-nos a evitar ser capturado por suas predições.
Assim como terapeutas da modificação do comportamento sabem, pessoas que
estão familiarizadas com essas premissas teóricas podem subverter seus efeitos
desejados com facilidade. Finalmente, já que a teoria se provou tão efetiva na
alteração do comportamento de organismos inferiores, torna-se particularmente
ameaçador a alguém que valorize a autonomia. De fato, muitos de nós não

23
gostaríamos que tentassem modelar nosso comportamento através de técnicas
de reforço, e inclinar-nos-íamos a quebrar a expectativa do ofensor. Em suma, a
elaboração da teoria do reforço não é menos vulnerável a efeitos de
esclarecimento do que outras teorias da interação humana.

1.4 Implicações para uma ciência histórica do comportamento social

Sob a luz dos presentes argumentos, a tentativa contínua de construir leis


gerais do comportamento social parece mal direcionada, e a crença associada a
ela de que o conhecimento da interação social pode ser acumulado como nas
ciências naturais revela-se injustificada. Em essência, o estudo em psicologia
social é fundamentalmente um empreendimento histórico. Estamos
essencialmente engajados em incontáveis questões contemporâneas.
Utilizamos metodologia científica, porém os resultados não são princípios
científicos no sentido tradicional. No futuro, historiadores poderão voltar-se para
tais relatos do passado a fim de alcançar uma melhor compreensão acerca da
vida atualmente. Entretanto, é provável que os psicólogos do futuro encontrem
pouco valor no conhecimento contemporâneo. Esses argumentos não são
puramente acadêmicos e não se limitam a uma simples redefinição de ciência.
Aqui estão implicadas significantes alterações na atividade de campo. Cinco
dessas alterações merecem atenção.

Rumo à Integração do Puro e do Aplicado

Entre psicólogos acadêmicos encontra-se difundido um preconceito


contra a pesquisa aplicada, um preconceito que é evidenciado pelo enfoque

24
dado à pesquisa pura pelos periódicos de prestígio e pela dependência de
promoção e manutenção de contribuições à pesquisa pura em oposição à
pesquisa aplicada. Esse preconceito baseia-se, em parte, na suposição de que
a pesquisa aplicada é de valor transitório. Enquanto está se limitaria a resolver
problemas imediatos, a pesquisa pura contribuiria para um conhecimento básico
e duradouro. Do ponto de vista atual, o solo no qual se assentam tais
preconceitos não é merecedor de respeito. O conhecimento que a pesquisa pura
se dedica em estabelecer é também transitório; generalizações nessa área de
pesquisa geralmente não perduram. A tal ponto que, quando generalizações da
pesquisa pura têm grande validade transhistórica, podem estar refletindo
processos de interesse periférico ou importantes para o funcionamento da
sociedade.

Psicólogos sociais são treinados para usar ferramentas de análise


conceitual e metodologia científica a fim de explicar a interação humana. No
entanto, dada a esterilidade em aperfeiçoar os princípios gerais ao longo do
tempo, essas ferramentas mostram-se mais produtivas quando usadas na
resolução de problemas de importância imediata para a sociedade. Isso não
implica que tais pesquisas devam ser de alcance restrito. Um defeito
fundamental de grande parte das pesquisas aplicadas é que os termos usados
para descrever e explicar são relativamente concretos e específicos para o caso
em mãos. Enquanto os comportamentos concretos estudados pelos psicólogos

25
acadêmicos são frequentemente mais triviais, a linguagem explicativa é
altamente geral, e assim mais amplamente heurística. É assim que os
argumentos presentes sugerem uma intensa focalização em assuntos sociais
contemporâneos, baseados na aplicação de métodos científicos e ferramentas
conceituais largamente generalizadas.

Da Predição à Sensibilização

O objetivo central da psicologia é tradicionalmente encarado como a


predição e o controle do comportamento. Do nosso ponto de vista, esse objetivo
é despropositado e oferece pouca justificativa para a pesquisa. Princípios do
comportamento humano podem ter valor preditivo temporalmente limitado, e seu
alto conhecimento pode torná-los impotentes como ferramentas de controle
social. Todavia, previsão e controle não precisam servir de pedras angulares do
campo. A teoria psicológica pode desempenhar um papel excessivamente
importante enquanto dispositivo de sensibilização. Pode esclarecer-nos acerca
da gama de fatores que potencialmente influenciam o comportamento sob várias
condições. A pesquisa pode também oferecer algumas estimativas da
importância desses valores num determinado momento. Seja no caso do

26
domínio da política pública ou dos relacionamentos pessoais, a psicologia social
pode aguçar a sensibilidade de um indivíduo para influências sutis e apontar
suposições sobre o comportamento que não se mostraram úteis no passado.

Quando se pede um “conselho” ao psicólogo social sobre um provável


comportamento em uma situação concreta, a reação consiste em desculpar-se.
É necessário explicar que o campo ainda não se encontra suficientemente
desenvolvido a ponto de que predições confiáveis possam ser feitas. Do nosso
ponto de vista, tais desculpas são inapropriadas. O campo pode raramente
fornecer princípios para que predições confiáveis possam ser feitas. Padrões de
comportamento estão sob constante mudança. Contudo, o que o campo pode e
deve oferecer são pesquisas informando o inquiridor do número de possíveis
ocorrências, ampliando assim sua sensibilidade e preparando-o para uma
acomodação mais rápida à modificação ambiental. Pode prover ferramentas
conceituais e metodológicas com as quais um número maior de juízos de
discernimento pode ser efetuado.

Desenvolvendo Indicadores de Disposições Psicossociais

Psicólogos sociais evidenciam uma contínua preocupação com processos


psicológicos básicos, ou seja, processos que influenciam um vasto e variado

27
conjunto de comportamentos sociais. Simulando a preocupação de psicólogos
experimentais com processos básicos, como visão em cores, aquisição da
linguagem, memória e assim por diante, psicólogos sociais detiveram-se em
alguns processos, tais como dissonância cognitiva, nível de aspiração e
atribuição causal. Entretanto, há uma profunda diferença entre os processos
estudados nos domínios da psicologia geral experimental e no domínio da
psicologia social. No primeiro caso, os processos estão frequentemente
guardados biologicamente no organismo, não estão sujeitos a efeitos de
esclarecimento e não dependem de circunstâncias culturais. Ao contrário, a
maioria dos processos de domínio social é dependente de disposições sujeitas
a modificação ao longo do tempo.

Assim sendo, é um erro considerar os processos em psicologia social


como básicos no sentido das ciências naturais. Antes, podem ser largamente
considerados a contrapartida psicológica de normas culturais. Da mesma
maneira que um sociólogo preocupa-se em medir preferências parciais ou
padrões de mobilidade no decurso do tempo, o psicólogo social poderia atentar
para os padrões de mudança das disposições psicológicas e a sua relação com
o comportamento social. Se a redução de dissonância é um processo importante,
então deveríamos estar aptos a medir a prevalência e a força de tal disposição
no seio da sociedade ao longo de tempo e os modos de redução de dissonância
prediletos num dado momento. Se a elevação da estima parece influenciar a
interação social, os amplos estudos culturais deveriam revelar a extensão dessa
disposição, sua força em várias subculturas, e a forma do comportamento social
com a qual se encontra mais associada a um dado momento. Embora
experimentos em laboratório sejam adequados ao isolamento de disposições
particulares, são pobres indicadores da série e da significância dos processos
28
da vida social contemporânea. São extremamente necessárias metodologias
que estabeleçam contato com a prevalência, força e forma das disposições
sociais no tempo. Com efeito, uma tecnologia dos indicadores sociais
psicologicamente sensíveis (Bauer, 1969) é desejada.

Pesquisa em Estabilidade Comportamental

O fenômeno social pode variar consideravelmente na medida em que se


submete à mudança histórica. Certos fenômenos podem ser mais estreitamente
vinculados a dados fisiológicos. A pesquisa de Schachter (1970) sobre estados
emocionais parece ter uma forte base fisiológica, assim como o trabalho de Hess
(1965) sobre afeto e constrição pupilar. Embora disposições adquiridas possam
vir a superar algumas tendências fisiológicas, tais tendências deveriam se
reafirmar gradualmente. Outras propensões fisiológicas, ainda, podem ser
irreversíveis. Pode haver também disposições que são suficientemente
poderosas para que nem o esclarecimento e nem mesmo as mudanças
históricas venham a causar-lhe algum impacto. Algumas pessoas geralmente
evitarão estímulos físicos dolorosos, apesar de suas sofisticações ou das

29
normas correntes. Devemos pensar, então, em termos de um contínuo de
durabilidade histórica, com fenômenos altamente suscetíveis à influência
histórica num extremo e processos mais estáveis no outro.

Assim, métodos de pesquisa habilitando-nos a discernir a durabilidade


relativa do fenômeno social são bastante necessários. Métodos interculturais
poderiam ser empregados para esse fim. Embora a replicação intercultural seja
repleta de dificuldades, similaridade numa dada função entre culturas
amplamente divergentes atestaria fortemente sua durabilidade no tempo.
Técnicas de análise de conteúdo poderiam também ser empregadas no exame
de períodos históricos recentes. Até agora, tais empreendimento têm fornecido
pouco além de citações indicando que algum grande pensador pressentiu uma
hipótese familiar. Temos ainda que travar contato com a vasta quantidade de
informações referentes aos padrões de interação nos últimos períodos. Embora
a progressiva sofisticação dos padrões de comportamento ao longo do espaço
e do tempo fornecesse valiosas compreensões referentes à durabilidade, alguns
difíceis problemas apresentar-se-iam. Alguns padrões de comportamento podem
permanecer estáveis até uma observação minuciosa. Outros podem
simplesmente tornar-se disfuncionais com o passar do tempo. A confiança do
homem num conceito de deidade tem uma longa história e é encontrada em
numerosas culturas. Entretanto, muitos são céticos sobre o futuro desta crença.
Taxas de durabilidade teriam assim que contribuir para a estabilidade potencial
tanto quanto atual do fenômeno.

Ainda que a pesquisa por disposições culturais mais duráveis seja


extremamente valiosa, não deveríamos de aí concluir que seja mais útil ou
30
desejável que estudar os padrões passados de comportamento. Grande parte
da variabilidade do comportamento social deve-se indubitavelmente a
disposições historicamente dependentes, e o desafio de capturar tais processos
"em luta" e durante períodos preciosos da história é imenso.

Rumo a uma História Social Integrada

Sustentou-se que a pesquisa em psicologia social é fundamentalmente o estudo


sistemático da história contemporânea. Assim sendo, parece miopia manter a
separação disciplinar (a) do estudo tradicional de história e (b) de outras ciências
historicamente fronteiriças (incluindo sociologia, ciência política e economia). As
particulares estratégias de pesquisa e a sensibilidade do historiador poderiam
elevar a compreensão da psicologia social, passada e presente. Particularmente
útil seria a sensibilidade do historiador às sequências causais no curso do tempo.
Muitas pesquisas em psicologia social centram-se em segmentos momentâneos
de processos em andamento. Temos nos concentrados muito pouco na função
desses segmentos dentro de seu contexto histórico. Temos pouca teoria lidando
com a inter-relação entre eventos dentro de longos períodos. Da mesma feita,
historiadores poderiam beneficiar-se das mais rigorosas metodologias
empregadas pelos psicólogos sociais tanto quanto de sua sensibilidade a
variáveis psicológicas. Contudo, o estudo da história, passada e presente,
deveria ser empreendido da maneira mais ampla possível. Fatores políticos,
econômicos e institucionais são todos fatores necessários à compreensão numa
perspectiva integrada. A concentração em psicologia apenas oferece uma
compreensão distorcida de nossa condição presente.

2.0 PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL

No Brasil, a Psicologia Social é uma arena de diversidades: ela possui


várias definições, abordagens teóricas e objetos de estudo. Algumas(uns)
autoras(es) a consideram uma subárea da Psicologia, outras(os) acreditam que
ela é a interseção da Psicologia com a Sociologia. Há ainda aquelas(es) que
afirmam que o adjetivo "social" não delimita uma subdivisão temática ou
conceitual, mas enfatiza a importância do compromisso político que toda(o)

31
psicóloga(o) deve ter. Umas(nos) baseiam-se nas leituras do Materialismo
Histórico e Dialético para estruturar suas pesquisas ou sua prática profissional.
Outras(os) preferem as leituras contracionistas ou ainda a Teoria das
Representações Sociais. Há psicólogos(as) sociais cognitivistas, behavioristas,
psicanalistas, comunitários... (Cordeiro, 2017; Cordeiro & Spink, 2014).

Diante de tamanha diversidade, seria impossível escrevermos um artigo que


apresentasse a história da Psicologia Social brasileira. Desse modo, falaremos
apenas de algumas psicologias sociais que são feitas em nosso país. Assim
como qualquer recorte, o que fazemos aqui é fruto de escolhas. Escolhas
guiadas por nossas trajetórias de pesquisa, por nossas experiências como
docentes da área, por nossos posicionamentos. Escolhas que produzem uma
narrativa singular do que foi e do que é a Psicologia Social em nosso país. Mais
exatamente, produzem uma narrativa dividida em duas partes: a primeira retoma
o modo como costumamos contar a história dessa ciência; e a segunda
apresenta algumas das abordagens teórico-metodológicas que fazem parte de
sua história.

2.1 Uma (breve) história da Psicologia Social no Brasil

Diversas(os) autoras(es) (Bernardes, 2001; Bock & Furtado, 2007;


Cordeiro, 2013; Ferreira, 2011; Mancebo, Jacó-Vilela & Rocha, 2003; Tittoni &
Jacques, 2001) dividem a história da Psicologia Social brasileira em dois grandes
momentos: um anterior e o outro posterior à chamada crise de referência, que
assolou essa área do conhecimento na década de 1970. Sustentam que, antes
de tal crise, a Psicologia Social brasileira era marcada pela hegemonia do
modelo norte-americano, tinha uma base positivista e defendia a neutralidade da
ciência, passando, após a crise, a fazer uma severa crítica ao modelo biologista
e, principalmente, a defender uma ciência comprometida com a transformação
social.

Mas é importante pontuarmos que essa crise de referência não aconteceu


somente no Brasil e nem foi um fenômeno restrito à Psicologia Social. Pelo
contrário, este movimento de questionamento – ou, como diria Lallement (2008),

32
de "pulverização metodológica" e "abalo teórico" – afetou também outras áreas
do conhecimento, tal como a Sociologia. De acordo com o autor, as décadas de
1960 e 1970 foram marcadas por uma Sociologia que traduzia, inicialmente, o
declínio do impulso modernizante do pós-guerra. O enfraquecimento da fé na
igualdade de oportunidades, bem como o esgotamento das garantias de coesão
social pelo simples crescimento econômico, fez com que instituições – como a
escola, a prisão e a fábrica – fossem questionadas. No caso específico da
América Latina, o abalo teórico foi impulsionado, sobretudo, pela situação
política vivenciada por alguns países da região. Diante da repressão político-
cultural dos regimes autoritários e de uma profunda crise paradigmática,
começaram a ganhar espaço abordagens sociológicas "alternativas", como a
Sociologia Nacional, a Teoria da Dependência e a Teoria do Novo Autoritarismo
(Liedke Filho, 2003).

Nesse mesmo período, a Psicologia Social norte-americana começou a


ser problematizada pelos europeus. Na França, por exemplo, a tradição
psicanalítica foi retomada após o movimento de maio de 1968 e a tradição norte-
americana foi criticada por ser "uma ciência ideológica, reprodutora dos
interesses da classe dominante, e produto de condições históricas específicas"
(Lane, 1984/2007, p. 11). Esse movimento repercutiu na Inglaterra: em 1972,
Israel e Tajfel analisaram a "crise" sob o ponto de vista epistemológico – era "a
crítica ao positivismo, que em nome da objetividade [perdia] o ser humano."
(Lane, 1984/2007, p. 11). Dois anos mais tarde, é publicado o
livro Reconstructing Social Psychology (Armistead et al., 1974), com
contribuições de muitos psicólogos críticos ao status quo da disciplina.

Foi também nesse período que, no Brasil, começaram a ganhar força as


críticas ao conceito de doença mental e ao modelo hegemônico de intervenção
psiquiátrica. O foco é deslocado da patologia para a saúde e se enfatiza a
importância de ações preventivas junto a populações pobres e desatendidas
pelo Estado. Ganhou força, também, a preocupação com a educação popular.
Fundamentada nas ideias de Paulo Freire, a alfabetização de adultos passa a
ser vista como uma ferramenta de conscientização e resistência contra a
opressão do regime militar (Lane, 1996).

33
Foram, portanto, vários movimentos, várias críticas e vários acontecimentos que
criaram o solo epistêmico, social e político para que a chamada "crise de
referência" acontecesse, trazendo à tona a necessidade de refletir sobre o papel
da Psicologia em um contexto marcado pela violência de Estado, pela miséria e
pela desigualdade social.

Quem somos? O que buscamos? Qual nossa contribuição social? Críticas


duras eram feitas aos profissionais que serviam ao sistema nas fábricas e
consultórios particulares. A quem estamos servindo? – era a pergunta chave.
Começava a cair por terra a visão de uma ciência neutra e uma prática
descomprometida. (Bock & Furtado, 2010, p. 510).

De acordo com Bernardes (2001), esse movimento de questionamento da


Psicologia Social hegemônica começou a se fortalecer no Brasil e em outros
países da América Latina durante os Congressos da Sociedade Interamericana
de Psicologia (SIP) realizados em Miami, EUA (1976) e em Lima, Peru (1979).
Os principais motivos de insatisfação eram: a dependência teórico-metodológica,
principalmente dos Estados Unidos, a descontextualização dos temas
abordados, a superficialidade e a simplificação das análises desses temas, a
individualização do social e ausência de preocupação política. Em suma, "a
palavra de ordem era a transformação social." (p. 31) 1.

No caso específico do Brasil, essas insatisfações levaram ao


desenvolvimento e/ou à adoção de diferentes teorias e metodologias: um grupo
de pesquisadores, liderado por Georges Lapassade, Osvaldo Saidon e Gregorio
Baremblitt, desenvolveu a Análise Institucional; já Silvia Lane coordenou o grupo
que estabeleceu os fundamentos do que mais tarde viria a ser conhecido como
a Escola Sócio Histórica; outro grupo, liderado por Ângela Arruda e Celso Sá,
começou a realizar trabalhos a partir de teorias europeias, especialmente a das
Representações Sociais (Jacó-Vilela, 2007). Poderíamos acrescentar a essa
lista várias outras abordagens, tais como: as (pós)contorcionistas, a Psicanálise
Social, a Psicologia da Libertação e a Escola de Frankfurt.

Essas correntes costumam ser agrupadas sob o rótulo de "Psicologia


Social Crítica". Mas não podemos deixar de considerar que esse é um termo

34
polissêmico, que abriga teorias com posicionamentos epistemológicos,
ontológicos e políticos distintos. Nas palavras de Spink e Spink (2007), a
Psicologia Social Crítica é muito mais "uma frente de luta ampla do que um
movimento articulado; uma aliança de argumentos e práticas em vez de uma
escola." (p. 576). A despeito de suas divergências, no geral, essas abordagens
expressam seu caráter crítico de quatro maneiras: 1) se contrapondo às bases
epistemológicas do conhecimento, "recolocando a ciência como prática social
sujeita às vicissitudes dos fazeres humanos" (p. 577); 2) considerando a
centralidade da linguagem na produção dos conhecimentos (tanto dos científicos
quanto dos do senso comum); 3) radicalizando o potencial transformador da
ciência e 4) rompendo com o paradigma positivista de ciência.

Com o fortalecimento das abordagens críticas, começou a se pensar na


necessidade de criar uma associação brasileira que representasse as "novas"
Psicologias Sociais. No congresso da SIP, em Lima, essa demanda foi
amplamente discutida. Falava-se na importância de "fortalecer a organização
dos psicólogos ligados à área da Psicologia Social, criando espaços para o
diálogo e o avanço desse campo. Além disso, caminhava-se para o
fortalecimento de um pensamento latino-americano na Psicologia, a partir da
Psicologia Social." (Lane & Bock, 2003, p. 146). Após o congresso, foi nomeada
uma comissão para redigir o estatuto da nova associação. No ano seguinte,
durante a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), esse estatuto foi votado e aprovado, instituindo oficialmente a
Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Segundo as autoras, as
intenções políticas da ABRAPSO sempre foram a construção de uma psicologia
social crítica, voltada para os problemas nacionais, acatando diferentes
correntes epistemológicas, desde que filiadas ao compromisso social de
contribuir para a construção de uma sociedade mais justa. A ABRAPSO nasceu
da insatisfação com a psicologia europeia e americana. Os problemas de nossa
sociedade, marcada pela desigualdade social e pela miséria, não encontravam
soluções na psicologia social importada como um saber universal dos países do
Primeiro Mundo. (p. 149).

35
Hoje, a ABRAPSO é responsável, entre outras coisas, por organizar
encontros locais, regionais e nacionais, bem como por editar livros e publicar a
revista Psicologia & Sociedade.

Além dessa associação, foram criados programas de pós-graduação


específicos da área. De acordo com Bomfim (2003), os primeiros cursos de
mestrado em Psicologia Social foram criados na década de 1970, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade de São Paulo
(USP), "engrossando o material disponível para consultas bibliográficas" (p.
138). Hoje, há 7 programas em funcionamento que indicam que sua área básica
é Psicologia Social, além de outros 2 programas que possuem "Psicologia
Social" em seu nome (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior [Capes], 2016a) (quadro 1). Além disso, há 45 programas com
formação geral em Psicologia que possuem linhas de pesquisa voltadas à
Psicologia Social (CAPES, 2016b).

36
Quadro 1: Programas de pós-graduação com nome e/ou área básica em Psicologia Social

2.2 A diversidade da Psicologia Social brasileira

2.2.1 A análise institucional

A história da Análise Institucional (AI) no Brasil não pode ser contada sem
considerar o contexto político dos países latino-americanos – principalmente, da
Argentina. De acordo com Cunha, Dorna e Rodrigues (2006), essa abordagem

37
começou a ser desenvolvida na França na década de 1960. Logo em seguida,
psicanalistas argentinas(os) entraram em contato com as obras de seus
principais expoentes – como René Lourau, Georges Lapassade, Giles Deleuze
e Félix Guatarri –, passando a utilizar as ferramentas teóricas e metodológicas
por eles propostas para promover transformações, de cunho libertário, nos
campos da saúde mental, educação e formação. Mas com o golpe militar de
1976, muitas(os) dessas(es) psicanalistas foram forçados ao exílio e
algumas(ns) se mudaram para o Brasil – tais como Gregório Baremblitt e
Osvaldo Saidón –, o que acabaria imprimido "marcas argentinas e psicanalíticas"
na AI brasileira.

No entanto, apesar dessa influência, o desenvolvimento dessa


abordagem foi influenciado, permeado e performado também por outros atores
e eventos – motivo pelo qual as autoras preferem não falar em história da AI,
mas em história do grupal ismo-institucionalismo, um "termo composto mais
apto a sintetizar a mescla de perspectivas francesas, argentinas e ‘nativas'
característica de nosso processo histórico de emergência e expansão da AI."
(Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006, p. 3).

A entrada dessa perspectiva francesa – mais ligada aos campos


psicossociológico e sociológico – no Brasil está intimamente relacionada à
história do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).

Desde o final dos anos 1960, "o Setor" − alcunha pela qual ficou conhecido
− incorporou a AI francesa como um de seus referenciais, tendo recebido, em
1972, a visita de Georges Lapassade.... Visita "intempestiva", por sinal, para os
tempos ditatoriais, visto que a AI francesa constitui pensamento/prática tendente
ao marxismo libertário e/ou ao anarquismo, e Lapassade fora, além do mais,
ativo militante do movimento de maio de 1968, enfatizando, à época da estada
no Brasil, temas como o anticolonialismo, a afirmação da homossexualidade e a
denúncia do racismo. (Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006, p. 3).

O "Setor" reunia professoras(es) e estudantes de Psicologia e


caracterizava-se por colocar em pauta temas praticamente esquecidos (ou

38
negados) pela Psicologia de então, tais como alfabetização de adultas(os),
saúde pública, antipsiquiatria, análise de discurso e de conteúdo,
psicossociologia francesa, práticas comunitárias e a relação entre Psicologia e
poder. Além disso, oferecia treinamento em dinâmica de grupos e comunidades
terapêuticas, realizava levantamentos socioeconômicos, intervenções
psicossociologias, pesquisas de opinião e de atitudes, preocupando-se sempre
"em produzir uma psicologia social comprometida com as necessidades da
população, especialmente com as classes populares. E é justamente a partir das
intervenções realizadas junto a diferentes movimentos e grupos que a Psicologia
Social do Setor vai sendo construída." (Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006, p. 5).

Por meio de um projeto de cooperação com a Embaixada da França no


Brasil, o Setor recebia professoras(es) francesas(es) e enviava algumas(uns) de
suas(seus) integrantes para estudar na França. Entre as(os) professoras(es) que
vieram dar cursos e participar de seminários organizados pelo Setor, podemos
citar Max Pagès, André Lévy, Georges Lapassade, Pierre Fédida e Michel
Foucault (Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006). O contato frequente com essas(es)
pesquisadoras(es) deu à AI mineira uma nuance francesa.

2.2.2 A Psicologia Sócio-Histórica

Assim como a AI, a Psicologia Sócio Histórica começou a se desenvolver


no Brasil no final da década de 1970, impulsionada pelo movimento de
contraposição às práticas psicológicas hegemônicas daquele período. No
entanto, as histórias, influências teóricas e preocupações centrais dessas duas
abordagens psicossociais são bastante diferentes.

39
A "Psicologia Sócio Histórica" (ou "escola de São Paulo") começou a ser
desenvolvida por um grupo de professoras(es) e estudantes da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Insatisfeitas(os) com os rumos
que tomavam as pesquisas e intervenções psicossociais na década de 1970,
lideradas(os) por Silvia Lane e fortemente influenciadas(os) pela Psicologia
Histórico-Cultural de Vigotski, essas(es) pesquisadoras(es) buscavam se
contrapor às dicotomias (como indivíduo/sociedade e teoria/prática) sustentadas
pelo modelo positivista de ciência e construir uma Psicologia comprometida com
a transformação da realidade brasileira. Ou seja, buscavam construir uma
Psicologia que considerava o "conhecimento científico como práxis, unidade
entre saber e fazer" (Bock, Ferreira, Gonçalves & Furtado, 2007, p. 48), na qual
teoria e prática deveriam ser vividas sempre como militância. Para isso,
propunham adotar uma nova concepção de "homem": o "homem" social e
histórico, bem como um novo método: o materialismo histórico e dialético (Lane,
1984/2007).

Uma das experiências que contribuíram para essa insatisfação com a


Psicologia Social hegemônica e para o desejo de construir uma Psicologia
comprometida socialmente foi o trabalho que o grupo de Silvia Lane desenvolveu
com sindicatos e comunidades operárias de Osasco, na Grande São Paulo. Com
a colaboração de Alberto Abib Andery e Odette de Godoy Pinheiro – também
docentes da PUC-SP – esse projeto tinha como finalidade a prevenção em saúde
mental da população trabalhadora de um bairro periférico do referido município

40
e, para isso, propunha o desenvolvimento de ações de caráter educativo-
preventivo e ações de atendimento ambulatorial (Andery, 1984). Segundo Bock,
Ferreira, Gonçalves e Furtado (2007), alunas(os) da PUC-SP naquele período,
os trabalhos de Osasco permitiram um profundo questionamento tanto da
metodologia quanto da teoria da psicologia social. Recuperou-se a experiência
já consagrada de Paulo Freire com sua obra "Pedagogia do oprimido", leu-se
Alberto Merani, debateu-se a necessidade e preponderância do método
qualitativo de pesquisa, falou-se em pesquisa-ação o ou pesquisa participante.
Questionou-se profundamente o parâmetro teórico da psicologia social. De uma
hora para outra, apenas a discussão crítica da Psicologia Social americana não
era mais suficiente. (p. 48, destaque dos autores)

Foi, também, importante para o desenvolvimento da Psicologia Sócio


Histórica a aproximação de Lane com psicólogas(os) sociais de outros países
latino-americanos, como as venezuelanas Maritza Montero e Maria Auxiliadora
Banchs, a peruana Gladys Montecinos, o cubano Fernando Gonzalez Rey e o
espanhol, radicado em El Salvador, Ignacio Martín-Baró (Bock, Ferreira,
Gonçalves & Furtado, 2007).

Atualmente, a Psicologia Sócio-Histórica está presente em diversos


programas de pós-graduação e cursos de graduação em Psicologia, tais como
os oferecidos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-
RS), pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (Unesp) e pela própria PUC-SP. Possui, também, um grupo de
trabalho na ANPEPP, intitulado "A Psicologia Sócio Histórica e o Contexto
Brasileiro de Desigualdade Social".

2.2.3 A Teoria das Representações Sociais

O termo "representações sociais" foi utilizado pela primeira vez por Serge
Moscovici em Psychanalyse: son image et son public (1961) para se referir aos
saberes populares e do senso comum, elaborados e partilhados coletivamente
com o objetivo de construir e interpretar o real (Oliveira & Werba, 2007).
Moscovici havia percebido que os meios de comunicação difundiam uma série

41
de conceitos psicanalíticos e que esses eram incorporados à linguagem
cotidiana de diferentes grupos sociais de uma forma bem "livre", sem fazer
referência alguma à fundamentação teórica original. Havia percebido também
que, nesse movimento, conceitos complexos eram transformados em
conhecimento acessível, útil para dar sentido à realidade e justamente é esse
processo de transformação de noções acadêmicas em ideias do senso comum
que o autor enfoca nessa obra (Álvaro & Garrido, 2006).

Segundo Celso Pereira de Sá (2007), a Teoria das Representações


Sociais (TRS) chegou ao Brasil em 1978, com a publicação da primeira parte do
livro de Moscovici. Pouco tempo depois, estudantes latino-americanas(os) –
dentre elas(es), algumas(uns) brasileiras(os) – começam a procurar o laboratório
de Moscovici na França para fazer cursos de pós-graduação. Segundo o autor,
foi a partir da iniciativa dessas(es) estudantes que a TRS penetrou efetivamente
no Brasil: "de fato, no seu segundo ingresso no país, em 1982, a teoria veio
corporificada na pessoa de uma pesquisadora francesa, Denise Jodelet, que,
atendendo aos convites de suas estudantes latino-americanas, após passar pela
Venezuela, desembarcou em Campina Grande, Paraíba." (p. 598).

Jodelet foi uma figura importante para a familiarização de estudantes e


estudiosas(os) brasileiras(os) com TRS. Além de desenvolver parcerias com
grupos de pesquisa de várias universidades do país, incentivou a realização de
eventos sobre a abordagem, promovendo, com isso, aproximações entre
pesquisadoras(es) brasileiras(os) e várias(os) autoras(es) europeus – entre
elas(es), o próprio Moscovici. De acordo com Sá (2007), com o passar dos anos,
"os pesquisadores brasileiros foram se tornando cada vez mais competentes e

42
autônomos em suas atividades de ensino –inicialmente em nível de pós-
graduação, mas hoje também na graduação – e de produção de conhecimento
nesse domínio da psicologia social." (p. 598). Desse modo, segundo o autor,
embora os vários grupos já consolidados de pesquisa ainda mantenham
parcerias com países europeus, há um crescente esforço de associação e
cooperação internas, cujos resultados têm se mostrado mais evidentes nas
atividades do Grupo de Trabalho sobre Representações Sociais, da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) e nas
Jornadas Internacionais sobre Representações Sociais. Esse esforço de
cooperação resultou, também, na criação de centros e redes de pesquisa, tais
como o "Centro Internacional de Estudos em Representações Sociais e
Subjetividade – Educação" (CIERS-ed), o "Centro Internacional de Pesquisa em
Representação e Psicologia Social ‘Serge Moscovici'" e a "Rede Internacional de
Pesquisa sobre Representações Sociais em Saúde" (RIPRES) (Jodelet, 2011) 3.

Segundo Jodelet (2011), hoje, podemos até mesmo falar em uma "escola
brasileira" da TRS . Afinal, já temos um "um grupo de pesquisadores unido por
um mesmo estilo e uma mesma preocupação ou orientação" (p. 22). Para a
autora, apesar de possuírem divergências teóricas e metodológicas, as(os)
pesquisadoras(es) que fazem parte dessa "escola" têm em comum a
preocupação de entender os (e intervir nos) problemas sociais de seu país. Em
suas palavras: os trabalhos são desenvolvidos essencialmente em torno de
temas ou domínios chamados de "aplicação", mas que em efeito, são domínios
onde surgem problemas sociais importantes: educação, saúde, ambiente,
política e justiça social, movimentos sociais, memória e história... essa
orientação social é característica de uma "escola" radicalmente diferente da
perspectiva das escolas europeias. Estas se dedicam a processos e temas
definidos de maneira teórica para enriquecer a teoria, afinar as metodologias, no
laboratório ou no campo; ou para oferecer novas vias de análise dos fenômenos,
conceitos e temas da disciplina "psicologia social", opondo-se as correntes
tradicionais. (p. 22).

2.2.4 Abordagens construcionistas

43
Em texto publicado em 1985, no American Psychology, Kenneth Gergen
define a investigação construcionista como aquela que se preocupa com a
explicitação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem e
explicam o mundo em que vivem. Não é propriamente uma teoria, mas um
movimento de questionamento das formulações representacionistas sobre
produção de conhecimento, que perpassa diferentes campos do saber, tais
como a filosofia, a antropologia, a sociologia, a física e a própria Psicologia Social
(Spink & Spink, 2007).

Para Lupicinio Iñiguez (2008), a principal característica desse movimento


é o contínuo questionamento daquilo que é considerado óbvio, natural, correto e
evidente. Para assumir essa postura crítica e, ao mesmo tempo, reflexiva,
autoras(es) construcionistas costumam se basear em alguns pressupostos: o
primeiro deles é o antiessencialismo, ou seja, a adoção de uma postura
desnaturalizadora, que considera que tanto as pessoas como o mundo em que
elas vivem são produtos de processos sociais específicos. Assim, não existiriam
objetos naturais: "os objetos são como são porque nós somos como somos, os
fazemos, tanto como ele nos fazem e, portanto, não há objetos independentes
de nós, nem nós somos independentes deles" (Ibañez, 2001, p. 578). É neste
sentido que autoras(es) construcionistas afirmam que a realidade é construída.

Desse modo, a postura construcionista problematiza o modo como


aprendemos a olhar para o mundo e para nós mesmos. Questiona a ideia de que
podemos produzir conhecimento a partir da observação objetiva e imparcial da
realidade – como se a ciência fosse um "espelho" que reflete as coisas tal como

44
elas são. Sustenta que a verdade, o bom e o correto são construções sociais
(Iñiguez, 2008). Essa é, portanto, uma postura relativista, mas não no sentido de
"um idealismo desenfreado porque, ao assumir que nossos critérios para definir
valores e verdades são construções nossas, a nossa responsabilidade de adotar
posturas éticas e assumir valores aumenta." (Spink & Spink, 2007, p. 578).

A postura construcionista nos convida a problematizar a essencialização


do mundo social e natural, bem como a entender a historicidade e o caráter
situado de nossas maneiras (científicas ou não) de compreender o mundo em
que vivemos. Ao fazer isso, a linguagem deixa de ser apenas expressiva e
adquire um caráter performativo, passando a ser uma "forma de construção da
realidade por gerar as categorias a partir das quais pensamos e damos sentidos
aos eventos do nosso cotidiano. Como consequência, o conhecimento passa a
ser tomado como uma construção coletiva resultante de práticas sociais
culturalmente localizadas." (Spink & Spink, 2007, p. 578).

A reflexão construcionista adentrou no Brasil por duas vias: uma em


interlocução com pesquisadores associados ao Taos Institute, que têm Kenneth
Gergen como principal referência, e a outra decorrente de aproximações com a
filosofia da linguagem, sobretudo Rorty (1994) e mais conectada a
pesquisadores da Universidade Autônoma de Barcelona, que têm Tomas Ibañez

45
por principal referência. A interlocução com o Taos Institute se deu por meio de
visitas de pesquisadores à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, sobretudo Sheila McNamee, e por meio da realização de estágios
sanduíche em universidades norte-americanas com linhas de pesquisa
inspiradas nas reflexões construcionistas. Nesse âmbito, um marco importante
foi a tradução do livro "Terapia como construção social" publicada em inglês em
1992 e traduzida para o português em 1998 (McNamee & Gergen, 1998).

A influência de pesquisadores da Universidade Autônoma de Barcelona


foi pontuada por visitas recíprocas de pesquisadores do Programa de Estudos
Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e da UAB, sobretudo em diálogo com Lupicinio Iñiguez. Contudo, as
reflexões construcionistas já se faziam presentes no Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Práticas Discursivas no Cotidiano (NUPRAD), com forte influencia
da "virada linguística" na filosofia e das correntes da Psicologia Discursiva (por
exemplo, Potter & Wetherell, 1987). Assim, em 1999, pesquisadores afiliados ao
NUPRAD organizaram e publicaram uma primeira apresentação da abordagem
de análise de práticas discursivas pautada na abordagem construcionista (Spink,
1999).

Embora compartilhem de pressupostos tais como a especificidade cultural


e histórica das maneiras de conhecer o mundo e a valorização da postura crítica
e reflexiva, há algumas diferenças decorrentes dessas influências. A corrente
derivada das propostas de Gergen tem foco mais relacional, dando primazia aos
relacionamentos humanos na produção e sustentação do conhecimento
(Rasera, Guanaes & Japur, 2004; McNamee, 2011). Em contraste, a corrente
associada às reflexões de Tomas Ibañez é mais fortemente influenciada pelos
estudos de ciência e tecnologia que levam a aproximações com vertentes da
sociologia simétrica, sobretudo a Teoria Ator-Rede (Law & Hassard, 1999).

3.0 PSICOLOGIA SOCIAL E DISCIPLNAS AFINS

Os psicólogos sociais estudam atitudes e convicções, conformidade e


independência, amor e ódio. Em termos mais formais, a psicologia social é o

46
estudo científico da maneira como as pessoas pensam, influenciam e se
relacionam umas com as outras (MYERS, 2000).

A psicologia social ainda é uma ciência jovem. Os primeiros experimentos


de psicologia social foram relatados há apenas um século (1898), enquanto o
primeiro texto de psicologia social foi publicado há apenas três quartos de século
(1924). Só na década de 1930 é que a psicologia social assumiu sua forma atual.

E foi só depois da Segunda Guerra Mundial, para a qual os psicólogos


contribuíram com estudos imaginativos de persuasão e moral dos soldados, que
ela começou a se destacar como o campo vibrante que é hoje. Em apenas três
décadas, o número de publicações especializadas em psicologia social mais do
que dobrou (MYERS, 2000).

Hoje, o campo em expansão da psicologia social enfatiza (MYERS, 2000):

- O poder da situação: somos criaturas de nossas culturas e contextos. Assim,


as situações ruins, às vezes, sufocam as boas intenções, induzindo as pessoas
a aceitar falsidades ou a consentir com a crueldade.

- O poder da pessoa: somos os criadores de nossos mundos sociais. Se um


grupo é mau, seus membros contribuem (ou resistem) para tal. Enfrentando a
mesma situação, pessoas diferentes podem reagir de maneiras diferentes.
Depois de anos de prisão política, uma pessoa exala amargura. Outra, como
Nelson Mandela, da África do Sul, trata de seguir em frente e se empenha para
unir seu país.

47
- A importância da cognição: as pessoas reagem de maneiras diferentes em
parte porque pensam de maneiras diferentes. Sempre importa como
raciocinamos intuitivamente. A maneira como reagimos ao insulto de um amigo
depende de como explicamos o fato: um reflexo de hostilidade ou apenas um
mau dia.

A realidade social é uma coisa que interpretamos de um modo subjetivo.


Nossas convicções a respeito de nós mesmos também importam. Temos uma
perspectiva otimista? Sentimos que estamos no controle? Vemos a nós mesmos
como superiores ou inferiores? Tais pensamentos (cognições) influenciam
nossas atitudes e comportamentos.

- O emprego dos princípios de psicologia social: os psicólogos sociais estão


mais e mais aplicando seus conceitos e métodos, as preocupações sociais
atuais, como o bem-estar emocional, a saúde, a tomada de decisão em tribunais,
a redução do preconceito, o projeto e a conservação ecológica e a busca pela
paz.

Os psicólogos sociais interessam-se profundamente pela maneira como


as pessoas pensam, influenciam e se relacionam umas com as outras. Mas isso
também ocorre com os sociólogos e os psicólogos da personalidade (MYERS,
2000).

48
• Psicologia social e sociologia

As pessoas muitas vezes confundem a psicologia social com a sociologia. Os


sociólogos e os psicólogos sociais partilham um interesse pela maneira como as
pessoas se comportam em grupos. Mas a maioria dos sociólogos estuda desde
grupos menores até maiores (sociedades e suas tendências), enquanto a
maioria pensa sobre os outros, é influenciada pelos outros, ou se relaciona com
os outros. Isso inclui estudos de como os grupos afetam o indivíduo e como o
indivíduo afeta os grupos (MYERS, 2000).

Alguns exemplos: ao estudar relacionamentos íntimos, um sociólogo pode


estudar tendências nos índices de casamento, divórcio e coabitação; um
psicólogo social pode examinar como certos indivíduos se sentem atraídos uns
pelos outros. Ou um sociólogo pode investigar como as atitudes raciais das
pessoas de classe média de um grupo diferem das atitudes das pessoas de
baixa renda. Um psicólogo social pode estudar como as atitudes raciais se
desenvolvem dentro do indivíduo (MYERS, 2000).

Embora os sociólogos e os psicólogos sociais usem alguns dos mesmos


métodos de pesquisa, os psicólogos sociais baseiam-se muito mais nos
experimentos em que manipulam um fator, como a presença ou ausência da
pressão de colegas, a fim de verificar qual é o efeito. Os fatores que os
sociólogos estudam, como classe socioeconômica, são tipicamente difíceis ou
aéticos para manipular (MYERS, 2000).

49
• Psicologia social e psicologia da personalidade

A psicologia social e a psicologia da personalidade são aliadas em seu


foco no indivíduo. A diferença está no caráter social da psicologia social. Os
psicólogos da personalidade concentram-se no funcionamento interno particular
e nas diferenças entre indivíduos; por exemplo, por que alguns indivíduos são
mais agressivos do que outros. Os psicólogos sociais concentram-se na nossa
humanidade comum, como as pessoas, em geral, encaram e afetam uma as
outras. Indagam como as situações sociais podem levar a maioria dos indivíduos
a agir com bondade ou crueldade, a se conformar ou ser independente, a sentir
simpatia ou preconceito (MYERS, 2000).

Há outras diferenças: a psicologia social tem uma história mais curta.


Muitos representantes da psicologia da personalidade, como Sigmund Freud,
Carl Jung, Karen Horney, Abraham Maslow e Carl Rogers, viveram e
trabalharam durante os primeiros dois terços deste século. A maioria dos
contribuintes da psicologia social está viva. A psicologia social também possui
poucos teóricos famosos e muito mais pesquisadores desconhecidos e criativos
que contribuem para conceitos de menor escala (MYERS, 2000).

Estudam-se os seres humanos de diferentes perspectivas, conhecidas


como disciplinas acadêmicas. Estas perspectivas variam de ciências básicas,
como física e a química, a disciplinas integrativas, como a filosofia e a teologia.
Qualquer perspectiva é relevante, dependendo daquilo sobre o que se quer falar.
50
Veja o amor, por exemplo. Um fisiologista pode descrever o amor como um
estado de excitação. Um psicólogo social pode examinar como várias
características e condições – boa aparência, a semelhança entre parceiros, a
pura exposição reiterada – acentuam os sentimentos a que chamamos amor.
Um poeta enalteceria a sublime experiência que o amor pode às vezes ser. Um
teólogo pode descrever o amor como o objetivo dos relacionamentos humanos
determinado por Deus (MYERS, 2000).

Não se presume que qualquer um desses níveis é a verdadeira


explicação. As perspectivas fisiológica e emocional do amor, por exemplo, são
apenas duas maneiras de se considerar o mesmo evento. Da mesma forma, uma
explicação evolucionista dos tabus universais contra o incesto (em termos da
penalidade genética que a prole paga pela endogamia) não substitui uma
explicação sociológica (que pode considerar os tabus de incesto como uma
maneira de preservar a unidade familiar) ou uma teológica (que pode se
concentrar na verdade moral). As várias explicações podem se complementar
(MYERS, 2000).

Se toda verdade é parte de uma só estrutura, então os níveis diferentes


de explicação devem se ajustar para formar um quadro geral. O reconhecimento
do relacionamento complementar de vários níveis explicativos nos livra de
discussões inúteis se devemos encarar a natureza humana em termos científicos
ou subjetivos: não é uma questão de ou isso/ou aquilo. O sociólogo Andrew
Greeley (1976) explica: “Por mais que tente, a psicologia não pode explicar o
propósito da existência humana, o significado da vida humana, o supremo
destino da pessoa humana.” A psicologia social é uma importante perspectiva

51
da qual podemos nos considerar e compreender, mas não é a única (MYERS,
2000).

4.0 ABORDAGENS DA PSICOLOGIA SOCIAL E SEU ENSINO

O ensino de Psicologia Social, nos cursos de graduação em Psicologia de


todo país, nem sempre segue uma mesma diretriz. Ao compartilharmos opiniões
com estudantes de diferentes universidades, seja em eventos científicos ou de
cunho político, deparamo-nos com um mosaico de teorias e de práticas
inspiradas na Psicologia Social. Muitas vezes, encontrar pontos em comum entre
as distintas abordagens torna-se um trabalho intelectual árduo, digno de
fervorosas horas de discussões político-acadêmicas – regado pelo mais alto
grau de comprometimento afetivo com a transformação social em nossa pátria.

Ávidos por transformar a realidade, muitos estudantes esperam de seus


mestres uma atitude crítica em relação à sociedade. Querem mudá-la para
melhor, trazendo o bem-estar, igualdade e justiça social em diferentes níveis:

52
individual, familiar, grupal, comunitário, institucional e até mesmo nacional ou
internacional.

O aspecto comum a essas calorosas discussões estudantis parece ser o cunho


prioritariamente social da futura prática profissional, mais do que um ponto de
vista teórico específico. Em outras palavras, o desejo de atuação com
compromisso social leva à busca de teorias e métodos de intervenção social,
muitas vezes esperados no ensino de disciplinas de Psicologia Social.
Destrinchando essa inquietação dos estudantes, percebemos que o "social" da
Psicologia é o que parece definir a Psicologia Social, e não o status como
disciplina científica e como campo profissional desta última.

Diante desse panorama, encontramos um lapso na formação em


Psicologia Social dentro dos cursos de graduação em Psicologia no Brasil. Como
argumenta Stralen (2005), a maioria dos cursos de Psicologia está marcada por
uma estrutura curricular tradicional, em que a "Psicologia Social aparece apenas
como uma disciplina básica que permite compreender os aspectos sociais do
comportamento psicológico" (p. 94). Isso significa que o lapso contido na
formação é o de que se ensina Psicologia Social como uma abordagem em
Psicologia, ao invés de considerá-las como disciplinas que possuem interfaces
entre si.

53
Como explicam Ávaro e Garrido (2006, p. 06), tende-se a confundir
abordagens sociais em Psicologia com a disciplina científica Psicologia Social
pela sua própria rotulação. Stralen (2005, p. 94) complementa que, no Brasil, tal
confusão ocorre também: a) pela formação de psicólogos sociais dar-se em
cursos de graduação em Psicologia; b) pela diminuição cada vez maior do
número de disciplinas de Psicologia Social em cursos de ciências humanas e
ciências sociais aplicadas; c) pela ação do Conselho Federal de Psicologia
(CFP), que regulamenta supervisão de estágio supervisionada por psicólogos
inscritos nos Conselhos de Psicologia, o que dificulta a contratação universitária
de psicólogos sociais não graduados como psicólogos.

A Psicologia Social é uma disciplina diferente da Psicologia, apesar das


estreitas ligações que resguarda com esta, como veremos mais adiante. Ao
longo do texto traremos argumentos que reforçam este nosso ponto de vista,
parcial e refutável como qualquer outro viés científico.

Nos EUA, é possível graduar-se em Sociologia com ênfase em Psicologia


Social, ou graduar-se em Psicologia com ênfase em Psicologia Social,
dependendo da universidade cursada. Na Argentina, existem cursos superiores
específicos de Psicologia Social. Também há casos de graduação específica em
Psicologia Social em países europeus. Por que, então, no Brasil ensina-se
Psicologia Social como uma das vertentes em Psicologia? Essa é uma pergunta
que remete à criação dos cursos de Psicologia no Brasil e à regulamentação da
profissão de psicólogo, como lembra Krüger (1986), mas que ainda merece
maior aprofundamento por parte dos pesquisadores. Por outro lado, remete-nos
também a outro debate de cunho teórico: examinarmos quais foram as distintas
influências das diferentes abordagens da Psicologia, ainda em emergência,
decisivas na constituição dos também distintos vieses teóricos da Psicologia
Social, com lembra Rey (2004).

Segundo escrevem Stralen (2005, p. 93) e Álvaro e Garrido (2006), a


Psicologia Social é uma disciplina que se constitui no espaço de interseção entre
a Psicologia e Sociologia. Rose (2008) e Mailhiot (1976) entendem que a
Psicologia Social pode ser considerada uma disciplina de ciências sociais. Por
outro lado, Krüger (1986, p. 08) argumenta que situá-la entre as ciências

54
humanas e sociais esbarra na dificuldade de estabelecerem-se limites rigorosos
entre tais ciências. Nessa linha, Rodrigues (1978) expõe aspectos comuns entre
a Psicologia Social e a Sociologia, Antropologia Cultural, Filosofia Social e outros
setores da Psicologia, descrevendo que cada disciplina possui objeto formal
distinto de estudo, que delimita o campo de cada uma delas, mas que por se
tratar de áreas afins, possuem interseção bastante nítida em seu objeto material.
Um exemplo dado por Rodrigues é o da delinquência juvenil: este objeto material
pode ser estudado segundo distintas abordagens disciplinares, variando a
ênfase, a unidade de análise e os métodos empregados, mas "a diferença é,
para todos os efeitos práticos, inexistente" (Rodrigues, 1978, p. 09-10).

Essa dificuldade de inscrição da Psicologia Social dentro das ciências


humanas e/ou sociais se dá, em grande parte, por conta do momento em que
surgiram não apenas ela, mas também a Psicologia, Sociologia e Antropologia.
Trata-se do contexto do destacamento das ciências sociais das ciências naturais
no final do século XIX, em que antigos temas de especulação passaram a ser
estudados segundo o paradigma científico moderno: teoria, levantamento de
hipóteses, teste empírico das hipóteses levantadas, análise dos dados colhidos,
confirmação ou rejeição das hipóteses, generalização. Por outro lado, nos
primórdios da Psicologia Social moderna, nos Estados Unidos do final do século
XIX e começo do século XX, os primeiros pesquisadores dessa área
encontraram respaldo em centros tanto de Psicologia quanto de Sociologia (Farr,
1998). Isso resultou em origens plurais da disciplina, em disputas pelo seu status
como ciência social ou ciência humana e até mesmo em sua negação como área
de investigação autônoma.

55
Diante de tais questões, este artigo visa localizar a emergência da
Psicologia Social em suas diferentes abordagens, contextualizando-a dentro dos
paradigmas das ciências sociais e sua posterior evolução, com o objetivo de dar
subsídios aos estudantes de graduação e pós-graduação a respeito das distintas
vertentes que a disciplina oferece atualmente. Para tanto, faremos uma breve
recapitulação do destacamento das ciências sociais das naturais no final do
século XIX, localizando a Psicologia Social dentro desse cenário. Em seguida,
faremos uma didática apresentação das vertentes mais proeminentes na
disciplina, mostrando período e país de origem, e abordaremos a "crise" na
Psicologia Social nos anos 1960. Então dissertaremos a respeito das linhas
contemporâneas – incluindo aquelas utilizadas na América Latina e Brasil, dando
maior destaque à Psicologia Social comunitária.

4.1 Ciências naturais, ciências sociais e a Psicologia Social

A ciência moderna surge a partir do século XVII, embora seu embrião


encontre-se no século precedente (Ludwing, 2009). De modo geral, o
pensamento moderno plasmou-se como consequência do declínio da cultura
medieval e consolidou-se pela necessidade de separação entre teologia, filosofia
e as nascentes áreas da ciência. Reforçado pelo Iluminismo e pela Revolução
Francesa, um de seus aspectos centrais era o destaque concedido à razão como
instrumento de obtenção do saber e, para tal, se aceitava "somente as verdades
resultantes da investigação da razão através de procedimentos demonstrativos"
(Ludwing, 2009, p.14). Nesse ponto é que o método científico ganha centralidade
na produção do conhecimento. Sua construção ocorreu, primeiramente, na área
das ciências da natureza e teve em Galileu Galilei (1564-1642) e Francis Bacon

56
(1561-1626) os fundadores do método experimental: observação de fatos,
proposição de hipótese e verificação por meio de experiências controladas. O
reforço desse tipo de método veio no século XIX, com a emergência do
Positivismo, com seu rigor e acento na universalidade e objetividade científica.

Graças ao método experimental, as ciências naturais puderam evoluir de


maneira consistente, consolidando disciplinas como a Química, Física e Biologia.
Vale lembrar: como campo de estudos e especulação, os temas envolvendo
essas disciplinas modernas são antigos, mas a maneira como se constituíram
nesse novo contexto está marcada pelos modelos da ciência moderna. As
ciências sociais passaram a se desenvolver graças a métodos próprios, a partir
do final do séc. XIX, apesar de haverem iniciado usando os métodos das ciências
naturais. Dentre os novos métodos, Ludwing (2009, p.17-20) enuncia: dialético,
fenomenológico, estrutural e funcionalista. Lembramos que, para o autor, as
ciências sociais e humanas são colocadas juntas na diferenciação das ciências
naturais.

Álvaro e Garrido (2006) localizam a Psicologia Social nesse contexto mais amplo
da diferenciação das ciências sociais. E relembram dois aspectos importantes,
que destacamos no trecho abaixo:

Desde seu surgimento, no pensamento social europeu do século XIX, a


Psicologia Social se definia como uma disciplina plural. A pluralidade, tanto de
enfoques teóricos como de objetos de estudo, continuou caracterizando a
Psicologia Social à medida que ocorria sua diferenciação e sua consolidação
definitiva como disciplina científica independente, o que aconteceu
simultaneamente na Psicologia e na Sociologia (Álvaro & Garrido, 2006, p. 40).

O primeiro destaque refere-se ao fato de que a diversidade nas formas de


entender os fenômenos psicossociais foi fundante de cada uma dessas três
disciplinas, marcando campos de estudo, métodos, profissão e nicho de atuação.
Portanto, a delimitação disciplinar ocorreu tanto como tentativa de demarcação
dos domínios para cada tipo de cientista, quanto pela necessária fragmentação,
à mentalidade da época, para desenvolvimento de campos do saber. Em nosso
ponto de vista, o que marcou as distinções disciplinares estava mais ligado aos

57
cientistas do que à ciência em si, pois as barreiras entre Psicologia, Sociologia
e Psicologia Social eram tênues e havia muitas intersecções entre elas.

O segundo destaque é o da pluralidade na constituição da Psicologia


Social, o que significa origens múltiplas, e não apenas pela obra de um ou outro
autor. Para Rodrigues (1978, p. 39), os manuais de Psicologia Social diferem
consideravelmente a respeito das origens modernas dessa disciplina. Segundo
Krüger (1986, p. 10), "o início das especulações, interpretações e doutrinas a
respeito do Homem e do seu comportamento social remonte a filósofos das
civilizações clássicas, helênicas e romana, que alimentam as raízes da cultura
ocidental até hoje". Nesse sentido, o autor menciona que se encontra já em
Platão (428-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.) as bases filosóficas que
constituem a pré-história da Psicologia Social. Para Mailhiot (1976, p. 17-18),
encontramos os primórdios da Psicologia Social nas obras de Auguste Comte
(1793-1857).

58
No entanto, se levarmos em consideração a Psicologia Social do ponto de
vista da implementação de métodos, técnicas de pesquisa e construção
conceitual (Krüger, 1986, p. 11), remontaremos às obras publicadas por Small e
Vincent em 1894 (num manual de sociologia), Gustave Le Bon em 1895, Gabriel
Trade em 1898, o início do curso de Psicologia Social ministrado por George H.
Mead em 1900, a obra de Charles Ellwood em 1901 e, por fim, Felix Le Dantec
em 1911. No entanto, como lembram Álvaro e Garrido (2006, p. 40), credita-se
o início da Psicologia Social como ciência independente com as obras de William
McDougall e de Edward A. Ross, ambas em 1908 e contendo no título
"Psicologia Social".

Para Farr (1998), as raízes da Psicologia Social moderna são encontradas


nas obras desses e outros autores, na interface com a Psicologia e a Sociologia
– o que resultou em enfoques de Psicologia Social psicológica e de Psicologia
Social sociológica. Colocado por outro ângulo, a pluralidade da Psicologia Social
esteve estreitamente ligada à utilização de métodos de investigação. Do lado da
Psicologia Social psicológica, predominou a experimentação em laboratório e a
compreensão de ciência segundo objetivismo e universalidade, inerentes à visão
positivista. Do lado da Psicologia Social sociológica, a busca por novas
metodologias resultou no desenvolvimento de pesquisas aplicadas e métodos
qualitativos, não obstante estes tenham coexistido com estudos de caráter
quantitativo.

Isso significa que o desenvolvimento das vertentes em Psicologia Social


também ocorreu sob o crivo das discussões a respeito da
objetividade/subjetividade, pesquisa quantitativa/qualitativa,
experimentalismo/pesquisa aplicada, inerentes aos debates que permeavam o
destacamento das ciências sociais das naturais. As respostas a essas questões
vieram marcar as diferenças nos fundamentos epistemológicos e estatuto
ontológico de cada uma das linhas teóricas da disciplina – e ainda causa
inquietação e dissenso entre profissionais, docentes e estudantes nos trabalhos
de investigação e intervenção.

Para Corga (1998), a Psicologia Social é uma disciplina que tenta entender o
Homem em seu contexto social, mas entre suas diferentes abordagens parece

59
ter em acordo apenas o nome. Sua pluralidade (que gera tensões e divisões)
deve ser observada segundo dois tipos de diversidade:

1) Diversidade Gestáltica. A diversidade vista a partir da totalidade da Psicologia


Social enquanto disciplina, cujas tensões de divisão aparecem: pelos estudos
centrados nas inter-relações sociais a partir do ponto de vista do indivíduo; e por
aqueles centrados nos aspectos sociológicos das relações sociais entre
indivíduos.

2) Diversidade Analítica. Fruto desta primeira, a diversidade tratada


analiticamente, em seus fundamentos científicos, com delimitações de: objeto de
estudo, método, conceitos, teorias, etc.

Em suma, podemos perceber que a pluralidade na Psicologia Social deve-se


tanto à ênfase em pontos de vista focados seja nos indivíduos ou nos aspectos
mais sociológicos das relações, quanto nos fundamentos científicos que
configuraram cada abordagem. Quais as linhas teóricas decorrentes desses
momentos iniciais e os seguintes desdobramentos, especialmente na América
Latina, isso é o que veremos a seguir.

4.2 As principais "tradições" da Psicologia Social

A partir dessa diversidade na disciplina, Corga (1998) circunscreve


agrupamentos segundo quatro principais ";tradições"; da Psicologia Social, que
a autora compreende

como um conjunto dos fundamentos, convicções e expressões que


compõe e dinamiza uma cultura. Esse conjunto é reconhecido por uma

60
comunidade, tal qual suas marcas, como as características pertencentes a este
grupo, e que, portanto, o diferencia dos demais (Corga, 1998, p. 70).

A autora complementa que é por meio de congressos, sociedades


científicas, revistas, centros de pós-graduação e handbooks que tais tradições
são cultivadas. Em outras palavras, pela maneira como os paradigmas
científicos são compartilhados, que Kuhn (2006) entende como " o conjunto de
regras, padrões, modelos e valores compartilhados por um determinado grupo
de praticantes da ciência que legitimam um campo de pesquisa" (p. 30). Como
já afirmamos anteriormente, é pelo trabalho dos cientistas que os paradigmas
científicos são validados – e não pela ciência em si, como algo independente das
pessoas que a praticam.

Para Corga (1998, p.75-183), existem quatro principais "tradições" em


Psicologia Social, que se sobressaíram não apenas nas origens da disciplina,
mas que até hoje têm fortes influências tanto no ensino quanto nas pesquisas.
São elas:

A) a tradição sociológica americana do interacionismo simbólico, iniciada


por George Herbert Mead (1934/1962) nos EUA, entre 1900 e 1931, e
desenvolvido por seus discípulos, entre eles, Blumer (1969), que alcunha o termo
"interacionismo simbólico". Posteriormente, dentro desta tradição, Sarbin (1968)
desenvolve a teoria do papel e Stryker a teoria da identidade (Styker & Burke,
2000). As teorizações de Mead continuam influenciando teóricos
contemporâneos, como por exemplo Habermas (1990), que afirma que "a única
tentativa promissora de apreender conceitualmente o conteúdo pleno do
significado da individualização social encontra-se na Psicologia Social de G. H.
Mead" (p. 185).

B) a tradição do experimentalismo psicológico (Psicologia Social


experimental), ocorrida nos EUA também no início do século XX, com seu
desenvolvimento e transformações por meio das influências do Behaviorismo
(Allport, 1924), Neobehaviorismo (Hull, 1952; Skinner, 1938), Gestalt (Lewin,
1951, 19702; Asch, 1952/1977), e Psicologia Cognitiva. A Psicologia Social
ganhou visibilidade principalmente pelos autores provenientes desta tradição.

61
Farr (1998) aponta Asch como um dos precursores da Psicologia Social
cognitiva, nos EUA. No entanto, por ter boa parte de suas idéias inspiradas na
Gestalt, Corga (1998) o localiza ainda sob as influências desta última, e não da
Psicologia Cognitiva.

C) a tradição dos "estudos de grupos sociais". Corga localiza vários


autores que contribuem para a edificação desta tradição, nos primeiros anos de
produção acadêmica norte-americana: 1) os estudos de Mayo (1933/1945), com
pequenos grupos de trabalhadores da Western Electric Company em
Hawthorne, Chicago, entre 1924 e 1932; 2) os estudos sociológicos da Escola
de Sociologia de Chicago, nos anos 1930, em ambientes naturais; 3) alguns
trabalhos de F. H. Allport, sobre "facilitação social" e "conformismo"; 4) as
inovações de J. L. Moreno no trabalho de psicoterapia de grupo; 5) as
contribuições de Sherif (1948, 1962), que em 1936 publica "A psicologia das
normas sociais", na qual aponta como os sujeitos se aproximam no grupo para
criar normas para situações ainda não estruturadas. Posteriormente, na década
de 1960, com o prosseguimento das pesquisas, elabora um modelo explicativo
das relações intergrupais para a questão do conflito e cooperação intergrupo. 6)
as contribuições de Lewin, que mesmo considerado como consolidador da
Psicologia Social experimental, tem em sua obra importante marco para as
pesquisas nesta "tradição". Além do Centro de Pesquisas em Dinâmica de
Grupo, Lewin também funda um outro centro, nomeado "comissão para inter-
relações comunitárias", no qual guiou estudos sobre as raízes do anti-semitismo,
práticas de socialização para a conscientização coletiva da discriminação social
e sobre o preconceito de forma global. 7) os trabalhos de Festinger (1957/1975,

62
1974; Festinger et al., 1950/1963), com sua teoria de "comparação social" e
"dissonância cognitiva"; a "teoria do intercâmbio social", de Thibaut e Kelley
(1959/1967); as pesquisas sobre a "Personalidade Autoritária", de Adorno et al.
(1950/1965); os trabalhos do sociólogo Homans (1951), com a teoria do
intercâmbio e a proposta de uma análise sociológica alternativa ao
funcionalismo; e as contribuições de Asch nas investigações sobre as minorias.

Os estudos a respeito de grupos sociais diminuíram consideravelmente


nos anos 1960, nos EUA, devido aos contextos sócio-político-econômicos.
Entretanto, o interesse dos psicólogos sociais a respeito de processos grupais e
intergrupais é retomado no final dos anos 1970 (Corga, 1998). Desta vez, com
força na Europa, perdurando e tendo produção expressiva até hoje. Algumas
escolas (grupos universitários) representam tal "tradição", como a Escola de
Bristol, com estudos da compreensão das relações intergrupais, seus conflitos e
discriminações, por meio de conceitos como identidade social, categorização
social e comparação social. As figuras proeminentes são seu precursor Tajfel
(1972, 1978, 1981) e seu discípulo Turner (1987), este último com a teoria da
auto-categorização, entre outros autores. Além da Escola de Bristol, existe
também a Escola de Genebra e outros grupos de pesquisadores ingleses,
americanos, canadenses e alemães, todos dedicando-se ao estudos de grupos
sociais.

D) a tradição sociológica européia das representações sociais, iniciada


Serge Moscovici (1978), a partir dos anos 1960 na França, com a publicação do
livro "A representação social da psicanálise". Moscovici se inspira na obra de

63
Émile Durkheim (com seus conceitos de representação individual e coletiva), que
critica duramente a Psicologia, mas que acrescenta:

não temos nenhuma objeção a que se caracterize a Sociologia como um


tipo de Psicologia, desde que tenhamos o cuidado de acrescentar que a
Psicologia Social tem suas próprias leis, que não são as mesmas da Psicologia
individual (Durkheim, 1898 citado por Farr, 1998, p. 152-3).

Nessa esteira é que Moscovici vai constituindo sua obra, diferenciando-


se de Durkheim, na qual pretende analisar os processos através dos quais os
indivíduos e os grupos em interação constroem uma "teoria" sobre um objeto
social, a qual norteará e orientará seus comportamentos, tomando como ponto
de partida as representações sociais da Psicanálise na França (Corga, 1998, p.
95). Álvaro e Garrido (2006) localizam as contribuições de Moscovici dentro do
contexto da Psicologia, por se tratar de um psicólogo, não obstante tenha se
inspirado em idéias de Durkheim. As teorizações de Moscovici possuem
discordâncias da Psicologia Social cognitiva tradicional, com o enfoque
individualista para leituras dos processos cognitivos e, por isso, Corga (1998) o
insere dentro da tradição sociológica de Psicologia Social.

Como se nota, há "tradições" em Psicologia Social no contexto da


Sociologia e aquelas no contexto da Psicologia, como preferem descrever Álvaro
& Garrido (2006), com teóricos que se influenciam mutuamente e que são,
prioritariamente, de origens européia e norte-americana. As "tradições" no
contexto da Sociologia seguiram mais inovações metodológicas das abordagens
qualitativas, enquanto aquelas no contexto da Psicologia desenvolveram-se
mais segundo metodologias quantitativas.

A importância dos norte-americanos para a Psicologia Social vai além do


desenvolvimento teórico-metodológico de teorias que tentassem explicar os
fenômenos psicossociais (com as ressalvas das diferenças já explicitadas). Para
Farr (1998, p. 28-31), após a Segunda Guerra, muitos psicólogos sociais norte-
americanos, entre eles Cartwright e Festinger (discípulos de Lewin), ajudaram
os europeus com suas pesquisas até então isoladas, no apoio logístico
necessário para a constituição de sociedades científicas. Entre elas, a

64
Associação Européia de Psicólogos Sociais Experimentais, que fora liderada por
personalidades proeminentes como Tajfel e Moscovici. Segundo Farr (1998),
Cartwright chega a influenciar até mesmo no apoio ao estabelecimento da
Psicologia Social no Japão.

Por outro lado, Lane (1981, p. 76-7) descreve que a produção da


Psicologia Social (prioritariamente experimental, norte-americana e de viés
pragmático), desde seu florescimento até os anos 1960, tinha seu foco de
pesquisas centrado nos estudos dos fenômenos de liderança, opinião pública,
propaganda, preconceito, mudanças de atitudes, comunicação, relações raciais,
conflitos de valores, relações grupais, etc. Em suma, todos estudos e
experimentos que procuravam procedimentos e técnicas de intervenção nas
relações sociais, que se traduziam em fórmulas de ajustamento e adequação de
comportamentos individuais ao contexto social. A crítica a esse tipo de produção
foi um dos motivos da chamada "crise" da Psicologia Social, que teve
repercussão direta nas produções latino-americanas, como veremos a seguir.

4.3 A "crise" da Psicologia Social: abordagens latino-americanas

No final da década de 1960, críticas vindas principalmente da Europa


começam a colocar a Psicologia Social tal como praticada em solo norte-
americano em xeque. No mesmo período, um movimento de autocrítica também
chega aos psicólogos sociais norte-americanos e aos seguidores latino-
americanos, que se inspiravam nessas teorizações. Este momento foi

65
denominado de "crise da Psicologia Social". Os questionamentos vieram de
vários lados e os artigos e livros produzidos nessa linha

refletiam criticamente a Psicologia Social, como os de Bruno, Poitou,


Pêcheux e outros publicados na Nouvelle Critique sob o título "Psicologia Social:
uma utopia em crise", assim como o prefácio de Moscovici numa obra organizada
por ele com o título Introduction de la psychologie sociale. Por outro lado, Merani
na Venezuela, Sève na França, Israel e Tajfel na Inglaterra contribuíram para
uma reflexão mais profunda, assim como a releitura de Politzer, George Mead e
Vigotski trouxeram novas perspectivas de estudo (Lane, 2006, p. 68-9).

Corga (1998, p. 152-154) aponta que tais críticas tinham como foco
principal o questionamento do laboratório como ambiente de produção científica,
complementando que passou-se a problematizar os avanços dos experimentos
em laboratório em detrimento da relevância do que se estava produzindo para o
enfrentamento de problemas sociais. Lane (1981, p. 78-80; 2006, p.67-8)
descreve que as críticas dirigiam-se principalmente ao caráter ideológico e
mantenedor das relações sociais das teorias e técnicas que vinham sendo
produzidas e que, na América Latina, mais um fator veio contribuir para reforçar
os questionamentos sobre teorias e metodologias: o caráter político da
Psicologia Social e da atuação dos psicólogos diante das ditaduras militares.

Esse movimento de crítica atinge diretamente a (re)produção latino-


americana. Em 1973, no XIV Congresso da Sociedade Interamericana de
Psicologia (SIP), realizado em São Paulo, questionou-se a produção da
Psicologia (como ciência) ter leis universais para o comportamento humano, uma
vez que este muda em função das diferenças históricas, culturais e sociais de
cada momento (Maluf, 2004). No congresso de 1976 (Miami, EUA), foram
explicitadas as críticas aos modelos teórico-metodológicos, mas sem propostas
de superação. No congresso seguinte, em 1979 (Lima, Peru), psicólogos dos
diferentes países latino-americanos passam a reconhecer que suas produções
deveriam estar voltadas para as condições próprias de cada um de seus países.
O encontro de brasileiros nesse congresso gerou a força necessária à criação
da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), segundo Lane
(1981). O impulso definitivo da criação da ABRAPSO veio em Novembro de

66
1979, por meio do I Encontro de Psicologia Social, sediado em São Paulo, com
o tema "Psicologia Social e Problemas Urbanos", e sua fundação oficial veio em
Julho de 1980, no Rio de Janeiro, durante a 32ª Reunião Anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) (Abrapso, 2009).

Nesse contexto de questionamento teórico, metodológico e político, nasce


a Psicologia Social comunitária, ou simplesmente Psicologia Comunitária.
Segundo Andery (1984, p. 204), o termo aparece primeiro na Inglaterra e depois
nos EUA, enquanto Psicologia "na" comunidade. Entretanto, Montero (2004a)
precisa que a origem dessa vertente prático-teórica ocorreu tanto na América
Latina quanto nos EUA, como tentativas de redirecionamentos da Psicologia
Social para o enfrentamento de sua "crise".

Aprofundando-nos neste ponto, Montero (2004a) argumenta que entre os


anos 1960 e 1970, a emergência da Psicologia Social comunitária ocorreu: a) a
partir das discordâncias da Psicologia Social psicológica norte-americana e o
caráter estritamente subjetivista e experimental com que vinha sendo produzida
até então. b) Pelo impulso de outras disciplinas das ciências sociais que tinham
leituras macrossociais voltadas à comunidade.

Fato importante a ser mencionado, tal vertente da Psicologia Social surge,


na América Latina, em um contexto em que as desigualdades sociais e o
momento político explicitavam uma urgência de trabalhos críticos voltados para
a realidade de seus povos. Segundo Montero (2004b, p. 42-49), a Psicologia
Social comunitária nasce de uma prática emergente e transformadora de
psicólogos sociais colocados diante de situações concretas, apelando para uma
pluralidade de fontes teóricas e revisões críticas delas, que os conduziram à
elaboração de um modelo teórico próprio às realidades latino-americanas. A
autora expõe que o desenvolvimento dessa vertente na América Latina ocorreu
por meio de primeiras influências, influências mais centrais e por relações Inter
influentes, entre três correntes: a Psicologia Social comunitária, ela mesma; a
Psicologia da Libertação (Martín-Baró, 1998); e a Psicologia Social crítica (Lima,
2010).

67
Diante desse campo emergente, Freitas (1999, p. 50) agrega que o tipo
de práxis da Psicologia Social comunitária vem se desenvolvendo por duas
preocupações básicas: a) a construção do conhecimento, que configura esse
campo. b) Aquela comprometida explicitamente com a transformação da
realidade. Nessa linha, Montero (2004a, p. 53) argumenta que os modelos
construídos dentro dessa abordagem são tratados em seis frentes: prático-
teórico, ontológico, epistemológico, metodológico, ético e político.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que a Psicologia Social comunitária é


um ramo da Psicologia Social que aborda as comunidades e que é realizada com
elas. Ou, nas palavras de Montero (2004a), o ramo da psicologia [social] cujo
objeto é o estudo dos fatores psicossociais que permitem desenvolver, fomentar
e manter o controle e poder que os indivíduos podem exercer sobre seu
ambiente individual e social para solucionar problemas que os afetam e lograr
mudanças nesses ambientes e na estrutura social (p. 70, tradução nossa).

Segundo Sawaia (1997, p. 86), pode-se dizer que o objetivo


dessa práxis psicossocial é de atuar pela legitimação social dos envolvidos, que
pressupõe a legitimidade individual na vida pública e na privada, no sentido de
buscar firmar o exercício da autonomia e da criação no espaço coletivo. Ou seja,
atua-se pela potencialização das ações individuais e coletivas em prol do bem
comum e da felicidade particular.

68
Um dos impulsionadores das vertentes críticas aos modelos vigentes em
Psicologia Social foi Martín-Baró (1998; 1999; 2001), com suas contundentes
colocações a respeito da disciplina e do caráter histórico das teorias, do caráter
ideológico das práticas dos psicólogos e do ético-político a ser adotado na
atuação transformadora. Como exposto por Blanco (1998), Martín-Baró propõe
a atuação do psicólogo por meio do compromisso pela emancipação,
desideologização e bem-estar, o que configuram a própria libertação. Adotando
a ideia de conscientização de Paulo Freire, Martín-Baró (2001, p.169-172) afirma
ser este o horizonte primordial do fazer dos psicólogos, trabalhando-se pela
desalienação da consciência social. Ao falar sobre a consciência, o autor a
descreve da seguinte maneira:

A consciência não é simplesmente o âmbito privado do saber e sentir


subjetivo dos indivíduos, mas sobretudo aquele âmbito onde cada pessoa
encontra o impacto reflexo de seu ser e de seu fazer em sociedade, onde
assume e elabora um saber sobre si mesmo e sobre a realidade que lhe permite
ser alguém, ter uma identidade pessoal e social. A consciência é o saber e o
não-saber sobre si mesmo, sobre o próprio mundo e sobre os demais, um saber
prático antes que mental, já que se inscreve na adequação às realidades
objetivas de todo comportamento (Martín-Baró, 2001, p.167-8, tradução nossa).

Sendo a consciência um objeto de estudos privilegiado pela Psicologia (e


Psicologia Social), como colocado por Martín-Baró, é importante que a
consideremos como uma realidade psicossocial, ou seja, um saber dialético das
pessoas sobre si mesmas e sobre a coletividade. Nesse sentido, o trabalho de
conscientização visa:

a) romper com a alienação, constituída em esquemas fatalistas


sustentados ideologicamente, que consideram a maioria popular como indolente,
preguiçosa e incapaz de transformar sua realidade;

b) sair da reprodução da relação dominação/submissão;

c) recuperação da memória histórica, para assumir a ligação do passado


e presente numa perspectiva de futuro que integrem o pertencimento e as lutas
políticas no âmbito pessoal e social.

69
Dentro dessa perspectiva de atuação comprometida com a realidade,
Montero & Martín-Baró (1987) entendem que este campo teórico e metodológico,
de processos políticos e de formas de intervenção psicopolítica são,
eminentemente, marcantes da Psicologia Política – uma outra vertente da
Psicologia Social. A Psicologia Social comunitária latino-americana (ou
Psicologia Comunitária, como preferem denominar alguns grupos brasileiros)
desenvolveu-se em algumas direções, enquanto a Psicologia Política veio se
desenvolvendo por outros caminhos, apesar de haver intersecções dentro das
perspectivas atuais em ambas, como lembra Freitas (2001).

Do ponto de vista metodológico, a abordagem da Psicologia Social


comunitária não poderia deixar de ser de cunho participativo, uma vez que suas
posturas rompem com a neutralidade do pesquisador em relação aos "objetos"
de estudo (as pessoas), o que implica a consideração de uma postura ética e
política diferenciada do pesquisador. Além do rompimento da neutralidade, há
também a intenção de emancipação nas ações que configuram o grau de
participação da pesquisa, delineadas em função de acordos firmados junto aos
envolvidos na Co construção do conhecimento.

Como vimos até este momento, após a "crise" da Psicologia Social, muitos
psicólogos passaram a atuar com base em teorias mais condizentes com a
realidade latino-americana. Não obstante já exista produção prático-teórica

70
relevante na área, para Corga (1998) essa vertente não é tratada como "tradição"
por ainda não possuir sedimentação paradigmática suficiente, tal qual aquelas
citadas anteriormente. Em suma, temos mais estas duas correntes compondo a
gama de opções prático-teóricas da Psicologia Social:

E) a Psicologia Social comunitária (ou Psicologia Comunitária), que na América


Latina já apresenta produção teórica relevante e expressiva.

F) e a Psicologia Política, que também vem ganhando força no cenário europeu,


norte-americano e latino-americano.

4.4 Outras abordagens em Psicologia Social no Brasil

Apesar da "crise" na Psicologia Social ter conduzido inúmeros psicólogos


a explorar novas possibilidades técnico-teóricas, em muitos centros de pesquisa
se realizam trabalhos em todas as vertentes citadas acima. Encontramos nos
diferentes centros de pós-graduação em Psicologia Social no Brasil
investigações dentro das linhas citadas até então. Além delas, é importante
mencionar também outras vertentes, estudadas pelos pesquisadores da
Psicologia Social no Brasil:

G) a Psicologia Social fundada pelo argentino Enrique Pichon-Rivière


(2002, 2003) e seus discípulos, cujos trabalhos são mais conhecidos pela
contribuição dos grupos operativos, mas que de longe não estão restritos a
estes.

H) as interfaces entre a Psicologia Social e as leituras da Psicanálise dos


fenômenos sociais e aquelas provenientes da Psicanálise de abordagem grupal
e institucional, com autores advindos da escola argentina, inglesa e francesa de
psicanálise (Castanho, 2005).

I) a Psicologia Social em sua interface com a Psicossociologia, pelas


contribuições do movimento institucionalista (socio psicanálise, psicoterapia
institucional, socio análise e esquizoanálise) (Machado & Roedel, 2001), também
com autores argentinos e franceses, e da qual emerge recentemente a
Psicologia Social clínica proposta por Barus-Michel (2004).

71
J) a corrente nomeada como Psicologia Social crítica (ou Psicologia
Crítica), que adota discussões de autores marxistas, neomarxistas e da Escola
de Frankfurt (Lane, 1981, 2006; Lima, 2010; Monteiro, 2006).

K) as contribuições dos russos A. N. Leontiev, L. S. Vygotsky e A. R. Luria,


que dão base às teorizações da Psicologia Sócio-Histórica (B ock, Gonçalves &
Furtado, 2004), com contribuições pertinentes às discussões da Psicologia
Social, em especial pelo estudo a respeito: da constituição social da
subjetividade; da historicidade como noção básica nos processos de formação
do sujeito; da consciência e atividade como categorias centrais para
compreender o indivíduo/sociedade; da aquisição da linguagem, aprendizagem
e socialização como fenômenos do âmbito individual/social.

L) O construcionismo social inaugurado por K. J. Gergen (1973; 2008),


afim às teorizações do interacionismo simbólico e teoria psicossocial de G. H.
Mead, à fenomenologia social de Alfred Schütz (que combina a fenomenologia
de Husserl e a sociologia de Weber) e aos desdobramentos dados por Berger e
Luckmann (2008), no difundido "A construção social da realidade". Atualmente,
o construcionismo social ganha força, como indicam Ibañez Gracia (2004),
Iñiguez (2004), Mol (2008), Spink e Menegon (2004).

Além, é claro, de muitas outras leituras em Psicologia Social realizadas


dentro do contexto da Psicologia e Sociologia contemporâneas, não referidas

72
acima e que recebem o devido valor em seus respectivos centros de estudos,
manuais e livros da área. Todas as tradições e correntes teriam,
paradoxalmente, um mesmo ponto em comum e de litígio: a relação indivíduo-
sociedade. Segundo Corga (1998, p. 240), todas essas abordagens são
consideradas como pertencentes à grande disciplina Psicologia Social por tentar
estudar o indivíduo psicológico e a sociedade num único objeto, deixando de
lado tanto a supremacia do psicologismo quanto do sociologismo, por meio de
metodologias quantitativas e qualitativas.

4.5 Abordagem estrutural

Verifica-se que os estudos da TRS ( teoria de representações sociais)


têm como principal escopo obter acesso ao conhecimento social que orienta as
práticas de uma dada população, ou seja, o conhecimento que ela utiliza para
interpretar seus problemas e justificar suas práticas sociais.

A teoria das Representações Sociais pode ser aplicada, na perspectiva


desenvolvida por Jean-Claude Abric. De acordo com o ABRIC (2001), essa teoria
toma como hipótese geral para o estudo experimental das representações
sociais que toda representação se organiza em torno de um núcleo central
(elemento fundamental da representação) que, por ser estruturante da
representação, tem função geradora (cria ou transforma a significação dos
outros elementos da representação) e organizadora (determina a natureza dos
vínculos que unem entre si os demais elementos da representação).

O núcleo central é um subconjunto da representação, cuja ausência


desestruturaria ou daria uma significação radicalmente diferente à representação
em seu conjunto. Por outro lado, é o elemento mais estável da representação, o
que mais resiste à mudança. Uma representação é suscetível de evoluir e de se
transformar superficialmente por uma mudança no sentido ou da natureza de
seus elementos periféricos. Mas ela só muda de significação quando o próprio
núcleo central é posto em questão.

O núcleo central diz respeito àquelas representações construídas a partir


de condições históricas particulares de um grupo social, ou seja, representações

73
construídas pelo grupo em função do sistema de normas ao qual o mesmo está
sujeito que, por sua vez, estão relacionadas às condições históricas,
sociológicas e ideológicas desse grupo.

Ele é determinado pela natureza do objeto representado, pelo tipo de


relações que o grupo mantém com este objeto e pelo sistema de valores e
normas sociais que constituem o meio ambiente ideológico do momento e do
grupo (ABRIC, 1998).

Uma das funções do núcleo central, como já foi dito anteriormente, é


transformar o significado dos outros elementos constitutivos da representação.
O núcleo central dá um sentido e um valor para os outros elementos.

Determina a natureza dos elos, unindo entre si os elementos da


representação, sendo o elemento unificador e estabilizador da representação
(ABRIC, 1998).

Em torno do núcleo central organizam-se os elementos periféricos. Eles


constituem o essencial do conteúdo da representação: seus componentes mais
acessíveis, mais vivos e mais concretos. Representam os elementos periféricos
resultantes da ancoragem da representação na realidade. Têm um papel
essencial na adaptação da representação às evoluções do contexto (ABRIC,
1998).

Face à estabilidade do núcleo central, os elementos periféricos constituem


o aspecto móvel e evolutivo da representação. Funcionam como um sistema de
defesa da representação. A transformação de uma representação se opera a
partir dos elementos periféricos, provocando mudanças, interpretações novas,
deformações funcionais defensivas e toleradas contradições (ABRIC, 1998).

Os elementos periféricos dizem respeito às adaptações individuais destas


representações, em função da história de vida de cada membro desse mesmo
grupo. Assim, o núcleo central atua como elemento unificador e estabilizador das
representações sociais construídas por um determinado grupo, enquanto os
elementos periféricos constituem-se em verdadeiros sistemas que atuam no
sentido de permitir certa flexibilidade às mesmas. Diante de elementos novos,
esses últimos é que são acionados para realizar as devidas "adaptações",

74
evitando, assim, que o significado central das representações, para aquele
grupo, seja colocado em questão.

Um dos aspectos importantes de se observar relaciona-se às funções das


representações sociais, apresentadas por Abric:

- Função de saber.

-Função identitária.
-Função de orientação.

- Função justificadora.

Na função de saber (ou cognitiva), as representações permitem


compreender e explicar a realidade na qual os atores sociais adquirem
conhecimentos. Assim, facilitam a comunicação social (ABRIC, 1998).

Na função identitária, elas definem a identidade e permitem a proteção da


especificidade dos grupos, salvaguardando a imagem positiva dos mesmos.

A função de orientação permite que as representações guiem os


comportamentos e as condutas dos indivíduos; elas são um guia para a ação.
(ABRIC, 1998; MOSCOVICI, 1978; JODELET, 2001).

A função justificadora permite a justificativa das tomadas de posição e dos


comportamentos por parte dos sujeitos, assim como a manutenção ou reforço
dos comportamentos de diferenciação social assumidos pelos grupos sociais ou
pelos indivíduos (ABRIC, 1998).

Então, se uma Representação Social é uma preparação para a ação, ela


não o é somente na medida em que dirige o comportamento do ser humano, mas
também na medida em que refaz e reconstitui os elementos do meio em que o
comportamento do humano deve ter lugar.

A escola é um espaço onde se observam relações com diferentes


expectativas que variam de acordo com as funções sociais e escolares e os
papéis que cada um ocupa na dinâmica escolar. A teoria das representações
sociais vem contribuir para se perceber e esclarecer criteriosamente esses
saberes coletivos que são partilhados por um grupo e que nem sempre estão
explícitos ou claros (CARBONE & MENIN, 2004).

75
Tais representações podem ser de um determinado grupo quando
práticas, vivências, classe social são elementos partilhados por esse grupo. A
organização dessas “teorias da realidade” pode se relacionar com outras visões
que o humano tem a respeito do tema pesquisado (CARBONE & MENIN, 2004).

As representações são resultantes do modo como os atores sociais


representam socialmente esse objeto e do significado que este adquire em suas
vidas.

5.0 IDENTIDADE NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL

O estudo da identidade envolve múltiplos níveis de análise. No âmbito


geral, dois níveis são mencionados nos estudos sobre essa temática: o pessoal
e o social (Antaki e Widdicombe, 1998; Gioia, 1998; Ruano-Borbalan, 1998;
Castells, 1999; Brown e Starkey, 2000; Howard, 2000). Essa é a primeira
classificação a que normalmente os estudiosos do assunto recorrem para
distinguir o fenômeno em seus níveis de percepção. A identidade pessoal está
ligada a uma construção individual do conceito de si, enquanto a identidade
social trata do conceito de si a partir da vinculação da pessoa a grupos sociais.

Nos estudos organizacionais, outras classificações têm demonstrado sua


aplicabilidade. São os conceitos de identidade no trabalho (Sainsaulieu, 1977) e
identidade organizacional (Whetten e Godfrey, 1998; Brown e Starkey, 2000;
Gioia, Schultz e Corley, 2000; Pratt e Foreman, 2000; Scott e Lane, 2000).

76
Embora se estabeleça essa diferenciação para fins de estudo, há uma
ligação entre as distintas formas estabelecidas, pois todas elas estão
embasadas no comportamento de indivíduos ou grupos. Mesmo a identidade
organizacional, que parece mais centrada nas organizações, só pode ser
explicada a partir do comportamento humano nas organizações. Entretanto a
distinção é importante para fins de análise, pois cada uma das classificações
contém elementos próprios, que melhor possibilitam a sua compreensão. Nessa
perspectiva, apresentam-se, a seguir, abordagens sobre cada um desses níveis
e, na sequência, suas interfaces, iniciando-se assim pelas considerações acerca
da identidade pessoal.

5.1 Identidade Pessoal

A identidade constitui uma tentativa de explicação do conceito de si,


sendofruto de uma construção psicológica. É processo em construção, definido
pela intermediação constante das identidades assumidas e das identidades
visadas (Dubar, 1996). Essa distância existente entre tais tipos de identidades é
exatamente o espaço de conformação do eu, ou seja, da construção da
identidade. É sob esse espaço que vão se processar as interações sociais e
ocorrerá a participação dos outros na construção da própria identidade.

77
A dinâmica da identidade é alimentada pela busca constante de unidade
subjetiva por parte dos indivíduos, pois eles adotam frequentemente padrões
comportamentais direcionados para preencher as expectativas do outro sobre
sua própria conduta, contrariando muitas vezes sua autodeterminação (Ricoeur,
1990). Entretanto, se essa dissonância ocorrer com muita intensidade, pode
resultar em fragilidade e em ruptura da unidade subjetiva (Moessinger, 2000).
Construir a própria identidade é, portanto, permanente desafio no sentido de
encontrar o equilíbrio entre aquilo que se é e o que os outros esperam que nós
sejamos. O outro é o espelho social que permite ao indivíduo reconhecer-se,
avaliar-se e aprovar-se. Sob essa perspectiva, o eu não existe, a não ser em
interação com os outros (Whetten e Godfrey, 1998).

Desse modo, embora exista em cada indivíduo um senso de


individualidade, a construção do autoconceito é inseparável do outro; portanto
as experiências desocialização constituem o principal referencial para formação
das identidades. É por meio delas que os processos de identificação são
deflagrados e os modelos são construídos no imaginário de cada um, fornecendo
o suporte para o processo de internalização por parte daqueles que se
identificam, porque a identificação "é a modelagem em pensamento, sentimento
ou ação de um indivíduo sobre outra pessoa" (Symonds apud Sainsanlieu, 1977,
p.305). Ao viver essas experiências, o indivíduo busca a noção de si, da

78
presença subjetiva, na tentativa de definir as fronteiras de si, de preservá-las e
de reencontrá-las. Nesse sentido, a identidade é resultante de múltiplas
identificações (Maffesoli, 1998; Miranda, 1998).

Assim as estruturas identitárias encontram-se constantemente renovadas


pelo seu caráter dinâmico e múltiplo, construídas e reconstruídas a todo o
momento. Os sucessivos processos de socialização conferem à palavra eu o
conteúdo de diversos eus (Craib, 1998), os quais o indivíduo procura
constantemente ordenar.

A identidade é sobretudo uma luta entre o processo consciente e


inconsciente. Os processos inconscientes ressoam no consciente, produzindo
significados. A ausência dessa transferência produziria uma vida estéril, como
uma concha vazia, e é somente por meio dela que a maturidade do indivíduo
acontece (Chodorow, 1989). No momento em que ele organiza o inconsciente,
a individuação torna-se mais forte e resulta na formação de um autoconceito
mais diferenciado.

A memória exerce papel importante na construção da identidade, porque


a representação de si é inseparável do sentimento de continuidade temporal. O
passado, o presente e o futuro são importantes para prover continuidade ou
consistência subjetiva (Haviland et al., 1994). A partir dos múltiplos mundos
classificados, ordenados e nominados na memória, segundo a lógica do
indivíduo e de sua categorização social, que consiste em reunir o que se parece
e separar o que difere, o indivíduo vai construir sua própria identidade (Candau,

79
1998). Ao narrar seu autoconceito, o sujeito ordena, segundo sua autoridade, os
eventos que ele selecionou, consciente e inconscientemente, e registrou na
memória. Não só o passado, mas também o futuro age na conformação das
identidades, por meio das representações desejadas de si, ou seja, da
idealização do eu (Markus e Nurius, 1986). O self desejado é, desta forma, fonte
de motivação para novas formas de identidade.

A identidade é ainda um fenômeno que se processa ao longo da vida do


indivíduo, atuando como mecanismo regulador das interações sociais e da
presença do outro na vida pessoal. Erickson (1994) atribui a formação da
identidade a diferentes fases do ciclo de vida; para este autor, a infância e a
adolescência são períodos nos quais a influência dos outros na definição das
identidades é mais forte. Na idade adulta os espelhos que orientam as escolhas
não estão tão disponíveis como na infância ou na adolescência; mas, mesmo
assim, o indivíduo continua buscando referências, protótipos e modelos até
atingir determinado nível de composição entre a sua interioridade e a
exterioridade, que corresponde ao processo de individuação. No entanto o nível
de interioridade nunca será pleno, pois algum nível de interação social será
sempre necessário que exista.

O conceito de si é, portanto, uma construção mental complexa, fruto de


uma relação dialética que considera o indivíduo igual a seus pares, mas único
na sua existência, na sua experiência e vivência pessoal. A igualdade e a
diferença permeiam a todo o momento as tentativas de auto-representação por
parte dos indivíduos. Assim uma identidade bem construída é aquela que
delineou os limites entre a individualidade e os grupos aos quais a pessoa está
vinculada. O resultado é que, embora reunidos na presença física, o eu e o grupo
se encontram separados nos processos psíquicos.

80
5.2 Identidade Social

A identidade social é "a representação que um indivíduo dá a si mesmo


por pertencer a um grupo" (Tajfel apud Whetten e Godfrey, 1998). Nesse sentido,
ela é o fruto da interação dos mecanismos psicológicos e dos fatores sociais.
Trata-se de processo social dinâmico, em contínua evolução, que se constrói por
semelhança e oposição.

A identidade de um grupo repousa sobre uma representação social


construída, sobre a qual uma coletividade toma consciência de sua unidade pela
diferenciação dos outros (Dubar, 1996), pois a vida no grupo cria um imaginário
social (Maffesoli, 2000). Dessa forma, a identidade social é constituída não
somente pela representação que o indivíduo faz dele mesmo no seu ambiente
social, referindo-se a diferentes grupos aos quais ele pertence, mas também aos
grupos de oposição, aos quais ele não pertence (Zavalloni apud Chauchat e

81
Durand-Delvigne, 1999), pois essa identidade é guiada pela necessidade do
indivíduo de ser no mundo, assim como pela sua necessidade de pertencer a
grupos sociais. Isso ocorre porque a definição do outro e de si mesmo é
largamente relacional e comparativa (Ashforth e Mael, 1989).

Pertencer a um grupo representa para o indivíduo uma possibilidade de


redução da incerteza subjetiva (Hogg e Terry, 2000), pois o significado emocional
implícito na relação entre eles constitui, para o sujeito, um estímulo afetivo, na
medida em que ele se sente integrante do grupo. Não só o sentimento de
pertencer, mas também a sua autopercepção como membro do grupo são as
bases requeridas para a identificação social, propiciando assim uma orientação
para a ação, compatível com a sua participação no grupo. A adesão ao grupo
requer, portanto, pensar, agir e sentir-se como integrante, a fim de que todos
tenham em comum uma mesma lógica de atuar nas posições sociais que
ocupam (Sainsanlieu, 1977).

82
A representação de um grupo é comum, porque deriva de histórias vividas
em conjunto e de saberes comuns. As crenças constituem a característica
mental de um grupo e exprimem a experiência comum de seus membros
(Deschamps et al., 1999). Elas orientam a escolha dos meios e dos fins para as
ações particulares e servem de critério de avaliação de acontecimentos. Elas
contribuem também para estabelecer as fronteiras simbólicas do grupo (Cuche,
1996). São elas também que colaboram para consolidar a unidade do grupo, a
qual é também definida porelementos como o tamanho e a diversidade (McGarty
apud Sherman, 1999). É por meio do interacionismo, que consiste na premissa
de que as pessoas atribuem um significado simbólico a objetos,
comportamentos, pessoas e outros, que é desenvolvido e transmitido pela
interação dos membros (Howard, 2000), que o grupo assegura a sua coesão.
Dessa forma, o grupo constitui a imagem de uma totalidade unificada; a
identidade social resulta na sua unidade e no processo de identificação e
distinção, pelo qual cada um procura fundar sua coesão e marcar sua posição
em relação a outros grupos.

83
A identidade social é, portanto, "um processo de justaposição na
consciência individual, uma totalidade dinâmica, em que os diferentes elementos
interagem na complementaridade ou no conflito, pois o indivíduo tende a
defender sua existência e sua visibilidade social, sua integração à comunidade,
ao mesmo tempo que ele se valoriza e busca sua própria coerência" (Lipianski
apud Ruano-Borbalan, 1998, p.144).

Em consonância com a Teoria da Identidade Social, os indivíduos (Tajfel


e Turner apud Worchel e Austin, 1986):

• sempre procuram manter uma identidade social positiva;


• a identidade social positiva está ligada à comparação positiva que o
indivíduo faz de grupos aos quais se vincula;

84
• quando a identidade social for insatisfatória, o indivíduo abandona o seu
grupo e busca vinculação em outros grupos.

Como resultado desse processo, o indivíduo sacrifica sua vida pessoal,


liberdade e recursos pessoais por grupos que se tornam centrais na sua
identidade (Worchel, 1998). A categorização dos indivíduos pode ocorrer, então,
por diferentes finalidades e, deste modo, eles fazem normalmente parte de vários
grupos, os quais fornecem múltiplas bases para a categorização de si em
diferentes momentos (Sherman et al. apud Abrams e Hogg, 1999).

Algumas classificações dos grupos assim os distinguem: (1) grupo primário,


como sendo estável, caracterizado por uma vida comum, relações pessoais e
íntimas entre seus membros; (2) grupo secundário, no qual os indivíduos são
motivados por um objetivo determinado e suas relações são formais e funcionais
(Lipiansky apud Ruano-Borbalan, 1998). O mesmo autor apresenta outra
distinção: (1) grupos de vinculação, como aqueles de que o indivíduo faz parte
e; (2) grupos de referência, aqueles que fornecem valores, normas e modelos de
atitude, de opinião e comportamento a seus membros.

Por outro lado, Lipiansky (apud Ruano-Borbalan, 1998) salienta que a


identidade social não é somente constituída pelos traços positivos que o
indivíduo assinala nos grupos, mas também pelos negativos, que precisam ser
evitados. Estes caracterizam a identidade negativa, projetada sobre o outro (o

85
inimigo, o estrangeiro etc.), "o que permite purificar, unificar e confortar a
comunidade, evitando os elementos que ameaçam a sua coesão social" (Ruano-
Borbalan, 1998, p.146). Dessa forma, a violência e formas de contestação
podem acompanhar certos casos de afirmação identitária. Este autor ressalta
que grupos que se opõem podem influenciar-se mutuamente, num processo de
"aculturação antagonista".

Grosso modo, a identidade social se funda sob determinadas categorias,


como, por exemplo, a etnia, a identidade sexual, a classe social, os portadores
de deficiências, a idade, entre outras. Unidos sob o mesmo fundamento, os
indivíduos procuram sua contextualização no tempo e no espaço, buscando
fortalecer suas identidades. Por essa razão é que as manifestações ligadas a
nacionalismos e a movimentos sociais se processam num dado contexto de
construção social das identidades, que a todo o momento são construídas e
desconstruídas. Por isso a identidade social é também associada a bases de
poder (Deetz, 1994; Antaki e Widdicombe, 1998).

Resumidamente, o conceito de identidade social articula o processo cognitivo


de categorização e vinculação social e é "a estrutura psicológica que realiza a
ligação entre o indivíduo e o grupo" (Baugnet, 1998, p.66). Ela é importante, pois
haverá sempre uma ligação entre a experiência afetiva oriunda dos
relacionamentos e a experiência cognitiva da descoberta de um sentido ao
mundo, às coisas e à ação.

86
5.3 Identidade no Trabalho

Baugnet (1998) salienta que, pelo exercício de papéis, os indivíduos


constroem ativamente suas identidades. Na mesma direção, os papéis ligados
ao mundo do trabalho compõem uma face da estrutura identitária dos indivíduos
e, de acordo com Sainsanlieu (1995), a empresa constitui um lugar de
socialização importante para os indivíduos que nela trabalham. "Ela é uma
verdadeira instituição secundária de socialização, a qual, após a escola e a
família, modela atitudes, comportamentos, a ponto de produzir uma identidade
profissional e social" (Sainsanlieu, 1995, p.219).

A socialização dos indivíduos no mundo do trabalho é fruto da experiência


das relações de poder, vivenciadas no universo produtivo, as quais geram
normas coletivas de comportamento e fornecem a possibilidade de construir uma
identidade no trabalho, entendida como: "a maneira de elaborar um sentido para
si a multiplicidade de papéis sociais, e de fazê-la ser reconhecida por seus
companheiros de trabalho" (Sainsanlieu, 1995, p.217).

De acordo com Sainsanlieu (1995), as identificações possíveis por parte


do indivíduo na organização estão vinculadas: (1) ao trabalho que realiza, sendo
que quanto mais intensa, maior a probabilidade de resultar em progressão
profissional; (2) com a empresa, e, nesse caso, o resultado é um sentimento de
proteção por parte do indivíduo; (3) com uma trajetória, constituindo uma
identidade visada, pautada num projeto pessoal que o indivíduo imagina para si
no trabalho, ou seja, sua possível identidade. Segundo o autor, são também

87
importantes na construção das identidades no trabalho os tipos de
relacionamentos, aos quais o indivíduo está submetido na empresa, geralmente
mantidos numa hierarquia entre colegas ou com outras pessoas na empresa.
Além desses fatores, os sistemas de representação existentes nas empresas
são variáveis importantes no processo de constituição das identidades na esfera
organizacional. Para Sainsanlieu (1995) as representações ligadas à legitimação
da autoridade na empresa, aquelas ligadas às finalidades do trabalho e da
empresa, estão entre as diretamente relacionadas com o autoconceito no
trabalho.

O tipo de relações de trabalho e de poder que é mantido no universo


empresarial influencia sobremaneira a construção de identidades. Assim, ao
estudar a identidade em um ambiente com estrutura hierárquica rígida,
Sainsanlieu (1977, p.334) observou que "nas circunstâncias de total
dependência e de incapacidade de se opor aos outros, colegas ou chefes, os
indivíduos não podem senão interpretar sua experiência de trabalho de maneira
imaginária, alucinatória e fantasmagórica". Ele verificou também que havia uma
tendência dos indivíduos em se diferenciarem de seus inferiores e se
identificarem com seus superiores, numa tentativa de reduzir a sua distância
social. Para ele, esse tipo de identificação com os mais poderosos pode ser
ainda interpretada como produto de uma avaliação permanente dos meios, de
que o indivíduo dispõe para se engajar no combate à ordem estabelecida,
sustentando a sua diferença no sistema social no qual se insere. No entanto
"esses processos são entraves para o avanço e a igualdade entre pares, em face

88
da tentação permanente do favoritismo" (Sainsanlieu, 1977, p.310), que pode se
estabelecer entre os membros da organização, na tentativa de reduzir as
desigualdades e dissonâncias.

A identidade no trabalho também se processa no plano afetivo e cognitivo.


O fato de viver sob uma estrutura institui uma espécie de mentalidade coletiva,
com a qual o indivíduo se conforma, assimilando suas regras e normas de
comportamento e estabelecendo vínculos afetivos com as pessoas com as quais
convive nesse ambiente. Esse processo pode derivar em identificações por parte
do indivíduo, as quais podem conter significados distorcidos. Sobretudo quando
os espaços de autonomia do indivíduo na organização são reduzidos, há a
possibilidade de engendrar processos de identificação que tenham natureza
projetiva, nos quais o indivíduo se imagina no lugar do outro, buscando assim a
destituição do lugar ocupado, ou os de natureza introjetiva e imitativa, quando o
indivíduo copia o outro e procura viver a vida do outro.

Ao analisar a identidade no trabalho, especialmente em modelos


organizacionais com predomínio de modernas relações de trabalho, os quais
pressupõem uma certa autonomia dos indivíduos, Sainsanlieu (1995) constatou
que há pluralidade de modelos identitários no universo do trabalho, que se
distinguem principalmente pelos tipos de socialização compartilhada entre os
indivíduos e por seus modos de integração na empresa. Essa variedade de
lógicas implica a possiblidade de existirem várias maneiras de se definir com

89
relação às situações de trabalho e, portanto, diversos tipos de motivação afetam
os indivíduos. Ele classificou seis modelos identitários, ordenados sob a variável
coerência identitária, passando de variável, fraca a extremamente forte nos
seguintes tipos, respectivamente: (1) regulamentar; (2) comunitário; (3)
profissional; (4) profissional de serviço público; (5) temporário; e (6)
empreendedor.

No ambiente de trabalho, tanto a identidade pessoal como a social pode


ser construída, de acordo com as modalidades concretas de experiência. Assim,

"quando os meios de ser reconhecido como autor do resultado do


trabalho não são acessíveis senão em nível coletivo, porque cada um é
muito fraco para sustentar sozinho uma relação de desafio, a
racionalidade não é acessível senão ao preço de certo grau de fusão entre
os desejos realizados por meio dos processos de identificação projetiva
recíproca entre os pares. Quando, enfim, cada um dispõe de meios
suficientes para obter sozinho o reconhecimento de suas ações pelos
outros, o indivíduo pode conciliar por ele mesmo o desejo, a reflexão e a
ação, a ponto de edificar uma lógica pessoal e particular" (Sainsanlieu,
1995, p.335).

A construção das identidades no trabalho não está desvinculada dos


interesses pessoais e coletivos, que estão sendo constantemente articulados

90
nas organizações. Os arranjos sociais que se desdobram nas empresas são
dinâmicos e permeiam a memória dos seus integrantes. Os indivíduos
selecionam, assim, aqueles relacionamentos que constituirão parte de seu
universo relacional, para que, a partir daí, construam as experiências e os
relacionamentos com os quais irão fazer face às pressões que objetivam elevar
os espaços de poder na organização. A identidade no trabalho constitui, dessa
forma, componente importante no processo motivacional, que concorre também
para a construção de uma auto-estima positiva. Conseqüentemente, não só a
realização do trabalho, mas também a esfera social organizacional é
positivamente afetada, podendo resultar em formas de trabalho mais criativas,
que contribuem para integrar a subjetividade, a socialização e o trabalho.

Não resta dúvida de que a força dos processos de categorização na


organização contribuirá para maior solidificação da identidade no trabalho,
porque eles resultam em sentimentos de vinculação e diferenciação, que
favorecem uma visão simbólica de si como integrante de um espaço imaginário
maior na organização. Nessa atmosfera, simultaneamente, acontece um
fenômeno que liga psiquicamente o indivíduo à organização, ou seja, a
identidade organizacional.

5.4 Identidade Organizacional

Outro desdobramento nas pesquisas sobre identidade trata da identidade


organizacional. Os trabalhos dessa natureza são relativamente recentes na
teoria organizacional; contudo os resultados têm demonstrado a sua
aplicabilidade no referido campo, incluindo desdobramentos que associam a
identidade a outras variáveis de estudo. De modo geral, o pressuposto que

91
baseia essa área é que as organizações e seus grupos são categorias sociais e,
portanto, existe em seus membros a percepção de que são membros dela. De
forma significativa, portanto, as organizações existem na mente de seus
membros e a identidade organizacional é parte da identidade individual deles.
As necessidades e comportamentos são coletivos e a ação dos membros da
organização é influenciada por suas autoimagens organizacionais (Brown,
1997).

A identidade organizacional compreende o processo, atividade e


acontecimento por meio dos quais a organização se torna específica na mente
de seus integrantes (Scott e Lane, 2000). Esse processo compreende as crenças
partilhadas pelos membros da organização sobre o que é central, o que a
distingue e é duradouro na organização (Albert e Whetten apud Whetten e
Godfrey, 1998). Ele se constrói, dia após dia, quando o indivíduo vai
internalizando a crença de que a organização na qual está inserido é a mesma
que era ontem, simbolizando a sua existência temporal. Nessa perspectiva,
Machado-da-Silva e Nogueira (2001), ao estudarem a identidade organizacional
de duas organizações, procuraram destacar os seus aspectos distintos e
duradouros, para interpretarem, a partir deles, as referidas identidades. Também
Albert e Whetten (apud Whetten, 1998) ressaltam que a identidade
organizacional tem três dimensões: (1) a definida pelos membros da
organização, que é a central; (2) o que distingue a organização de outras; e (3)
o que é percebido como traço contínuo, ligando o passado ao presente.

92
A representação da organização é expressa por seus membros por meio
de comportamentos, comunicação e simbolismo. A idealização e a fantasia
também fazem parte desse processo e explicam a tendência de as pessoas se
identificarem com as organizações, principalmente quando elas representam
uma possibilidade de conexão com seus atributos e desejos pessoais. Nesse
sentido, a identificação com a organização tem uma associação linear e positiva
com a realização de desejos (Mael e Ashforth, 1992). Entretanto os objetivos, a
missão, as práticas e os valores presentes na organização também contribuem
para dar forma às identidades organizacionais, diferenciando uma da outra, aos
olhos dos seus integrantes (Scott e Lane, 2000).

Para Jo Hatch e Schultz (1977, p.361) a identidade organizacional é "o


produto reflexivo do processo dinâmico da cultura organizacional". A cultura
provê o material simbólico com o qual as imagens serão construídas e
comunicadas. Ao correlacionar cultura, identidade e imagem, os autores
sustentam que a experiência de trabalho dos participantes da organização e a
visão da capacidade de liderança dos níveis estratégicos da organização são os
elementos determinantes. Todavia para os autores a identidade organizacional
sofre também influências externas, por meio do processo de formação de
imagens.

Embora exista distinção entre identidade e imagem organizacional, esta


última é nitidamente relacionada com a formação da identidade organizacional.
Enquanto a identidade é associada à visão interna na empresa, a imagem está
ligada também a uma visão externa. Por isso qualquer deterioração da imagem
pode constituir um risco para a identidade organizacional. Por outro lado, a

93
imagem está associada à identidade corporativa (Gioia, Schultz e Corley, 2000).
Para Rindova e Schultz (apud Whetten e Godfrey, 1998) existe uma
complementaridade entre a identidade organizacional e a identidade corporativa,
que permite conjugar as percepções interna e externa da organização. Nesse
sentido, a identidade corporativa é frequentemente chamada de identidade
visual, pois se utiliza de formas visuais; a identidade organizacional é formulada
e expressa por meio da palavra. A primeira tem foco na externalidade e nas
percepções do mercado; a última tem foco interno nas crenças dos membros da
organização. Além disso, a identidade organizacional cria um senso de
identificação entre os membros da organização, enquanto a identidade
corporativa estimula a diferenciação da empresa no mercado. Esses elementos
caracterizam um processo circular, que envolve dependência mútua entre
cultura, imagem e identidade (Rindova e Schultz apud Whetten e Godfrey, 1998).

As associações entre cultura e identidade têm permeado estudos na


esfera organizacional, tais como o de Pavlica e Thorpe (1998), que estudaram a
autopercepção gerencial comparativa entre gerentes da República Tcheca e da
Grã-Bretanha e o de Belle (1991), associando identidade profissional, gênero e
cultura de empresa. Outra comparação presente nos estudos sobre identidade
no âmbito organizacional, é aquela ligada à ideologia corporativa, como uma das
formas de construção da identidade organizacional. Sob esse aspecto,
destacam-se os estudos sobre a crise identitária de gerentes intermediários em
contextos de reestruturação organizacional (Rouleau, 2001; Turnbull, 2001).

94
No âmbito organizacional a identidade pode apresentar diferentes
configurações. Albert e Whetten (apud Pratt e Foreman, 2000) apresentam os
seguintes tipos de identidades: (1) ideográfica, quando não há uma unidade
sobre a identidade da organização; consequentemente diferentes grupos,
subgrupos e unidades da organização mantêm múltiplas identidades; (2)
holográfica, isto é, múltiplas identidades são compartilhadas por todos na
organização. Para Pratt e Foreman (2000) múltiplas identidades organizacionais
podem ser gerenciadas, resultando até mesmo em vantagens para as
organizações, como, por exemplo, a maior possibilidade de satisfazer as
expectativas de seus membros, melhorar a sua capacidade de criatividade e
aprendizado, além de facilidade em reter mão-de-obra diversificada. Outro
aspecto é ponderado por Asforth e Mael (1996), que consideram as identidades
organizacionais como flexíveis e mutáveis. Elas podem passar de positivas a
negativas ou vice-versa, dependendo dos acontecimentos, resultados e
impactos das empresas.

Ao discutir a identidade organizacional, a identificação está presente, pois


não há identidade sem identificação. A identificação organizacional constitui "um
envolvimento baseado no desejo de afiliação" (Kelman's apud Ashforth e Mael,
1989, p.23). Essa identificação é, por vezes, utilizada como sinônimo de
compromisso, embora ela seja mais internalizada do que este e possa engendrar
aderência a valores e normas grupais, assim como homogeneidade de atitudes
e comportamentos. Uma identificação forte com a organização "aumenta a
cooperação entre os membros e a competição com os não membros" (Dutton,
Dukerich e Harquail, 1994). Estes autores salientam que a identificação
organizacional pode ter efeitos positivos e negativos sobre o autoconceito dos
membros da organização. Nesse sentido, Ashforth e Mael (1989) chamam a
95
atenção para a identificação cega, que pode se tornar problemática para a
instituição ou para o equilíbrio de seus integrantes. Um processo intenso de
identificação é discutido por Pratt (2000) que, ao relatar o caso da Amway,
demonstra como a identificação é construída sob identidades projetadas,
principalmente em termos de aspirações pessoais. "Os sonhos são considerados
centrais para ser membro da família" (Pratt, 2000, p.465). Eles constituem o elo
entre os membros e a companhia, numa tentativa de vinculação e de ratificação
do desejo de afiliação, na medida em que a realização dos desejos está ligada
à vinculação organizacional. Pratt (2000) ilustra também outras estratégias que
visam a: (1) reduzir o círculo de relacionamentos de seus integrantes à esfera da
companhia; e (2) categorizar as pessoas em termos ambivalentes como
membros da Amway ou não.

A identidade organizacional, tal como as outras modalidades da


identidade, remete ao vivido e à subjetividade. Ela orienta a ação dos indivíduos
e é dinamicamente construída por meio de interações sociais, identificações e
afiliações. Portanto o contexto identitário no âmbito organizacional é constituído
pelo indivíduo, pelo grupo e pela organização. A fim de articular a discussão em
torno dos níveis apresentados, aborda-se a seguir uma integração entre os tipos
de identidade discutidos neste trabalho.

5.5 Distinção e Integração entre os Níveis de Análise

Os níveis de identidade considerados até o momento, estão ligados à


formação do autoconceito por parte dos indivíduos e resultam em influências na
esfera pessoal, social, assim como no âmbito organizacional. Isso significa que
96
há multiplicidade de identidades construídas simultaneamente, o que contribui
para a complexidade do fenômeno em estudo. É possível, no entanto, delinear
alguns limites entre cada categoria, para visualizar os impactos de cada uma
delas. No Quadro 1 procurou-se reunir os aspectos principais de cada um dos
tipos de identidade discutidos, evidenciando as diferenças de enfoque para cada
abordagem. Embora todos os níveis estejam centrados na conformação do eu,
está se processa em diferentes maneiras, bem como em diferentes momentos
da vida do indivíduo. Também a multiplicidade de relacionamentos está presente
em todas as identidades e consiste em um elemento importante para sedimentar
os processos cognitivos e afetivos, indispensáveis para uma coerência
identitária.

Por outro lado, se cada um dos níveis apresenta suas particularidades no


processo de definição da identidade, há profunda complementaridade entre eles,

97
resultando que a formação da identidade pessoal, por meio do grupo, do trabalho
ou da organização envolve a todo o momento construção e desconstrução, pois
o contexto social é dinâmico e complexo. Desse modo, a formação do
autoconceito, englobando a noção de grupo, incorporando o trabalho e as
organizações, alicerça-se em etapas gradativas, construídas sobre processos de
identificação, originalidade e conformação, os quais são permeados pela
emoção e pela cognição, conforme demonstra a Figura 1. Dessa maneira, o
indivíduo identifica-se com o grupo ou grupos aos quais pertence, com o trabalho
que realiza e com a organização à qual pertence. Também esses elementos
interagem na configuração do auto representação do indivíduo. Além disso, a
organização é o reflexo do trabalho realizado em seu interior e dos grupos que
a constituem. O grupo ou grupos podem ser conhecidos pelo retrato do trabalho
que realizam; o trabalho, por sua vez, também engloba o imaginário do grupo.

Ao analisar a identidade no contexto organizacional é importante


considerar que o agir e o interagir dão forma às identidades. A todo o momento,
portanto, realizar e pertencer são condições para que os processos de
identificação sejam desencadeados e gerem estímulos, novas descobertas e
maneiras de realizar as atividades, transformando o espaço organizacional em
importante palco para potenciação das existências. Desse modo, o grupo, o
trabalho e a organização passam a constituir as bases centrais de representação
do eu para o indivíduo. Por último, é importante salientar que, quanto maior o
reconhecimento do indivíduo em todos os âmbitos, ou seja, no trabalho
realizado, no grupo ou na organização à qual o indivíduo está vinculado, maior
98
é a força desses elementos na construção do conceito de si. Do ponto de vista
organizacional, isso implica um ambiente de trabalho favorável, no qual seus
integrantes manifestam autonomia e segurança na realização de suas tarefas.
Outras implicações organizacionais são discutidas a seguir.

5.6 Implicações para estudos organizacionais

O campo de estudos sobre identidade na esfera organizacional revela-se


amplo e fecundo. As possibilidades de conhecer a realidade social da
organização a partir do estudo das identidades, são também formas importantes
para compreender a estruturação da ação nesse ambiente, pois as identidades
têm também o papel de estruturar a ação, por parte de indivíduos, grupos ou
organizações.

Alguns estudos, mencionados no decorrer do texto, estabeleceram


importantes associações, como, por exemplo, sobre os efeitos da identidade
social na produtividade de grupos (Worchel, 1998), da associação entre
identidade organizacional e identidade corporativa (Rindova e Schultz apud
Whetten e Godfrey, 1998; Gioia, Schultz e Corley, 2000) ou da associação entre
a subjetividade e a identidade no trabalho (Sainsanlieu, 1977, 1995).

Ainda assim, há um campo vasto a ser explorado no que tange às


configurações da identidade no meio organizacional e suas possíveis

99
associações. Por exemplo, a existência de uma associação entre tempo de
trabalho, identidade organizacional e identidade pessoal. Nessa perspectiva, ao
realizar um estudo com aposentadas que se tornaram empreendedoras,
Machado (1999) constatou que, para aquelas mulheres que trabalharam durante
muitos anos na mesma instituição, a organização era uma referência muito forte
em suas identidades pessoais e a ação empresarial nas empresas que criaram,
estava intensamente ligada às orientações e valores adquiridos na experiência
organizacional anterior. Ao mencionar a organização em seus discursos, as
mulheres a referenciavam como um grupo primário de sua socialização, na
medida em que, a todo o momento, estabeleciam associações entre a empresa,
a figura materna ou paterna.

Outro aspecto ainda pouco explorado nos estudos desta natureza, está
relacionado com a possibilidade de associação entre stress e identidade no
trabalho. Não se sabe até que ponto níveis elevados de identidade no trabalho
resultam em alta dedicação, que pode conduzir ao stress, ou se o exercício de
um trabalho ao qual o indivíduo não se identifica contribui para o stress no
trabalho.

É provável que uma elevada categorização social favoreça a coesão


grupal na esfera organizacional; no entanto pouco foi explorado sobre a relação
entre essa categorização social e a construção de uma identidade organizacional
ou até mesmo com a identidade no trabalho. Além disso, em contextos de
mudança organizacional, a categorização social exerce, certamente,
considerável influência.

100
Outra associação importante foi estabelecida por Davel e Machado (2001)
entre a liderança e a identificação nas organizações contemporâneas. Trata-se
de uma abordagem da liderança alicerçada sobre questões políticas, cognitivas
e emocionais, envolvendo constantemente reconhecimento e consentimento.
Esse enfoque de estudos demonstra que a identidade e a liderança são
fenômenos a serem estudados em conjunto, principalmente no ambiente de
trabalho atual, orientado para a valorização da autonomia do indivíduo e do
trabalho em grupo.

Enfim, essas reflexões fortalecem a premissa de que o contexto socio


psíquico é, em grande parte, determinante da vida organizacional e a identidade
é um instrumento útil para melhor compreender a realidade organizacional.
Especificamente, ao abordar a identidade, a principal das implicações aqui
presente é a compreensão de que ela é fonte importante de estruturação da
ação, sob qualquer das múltiplas perspectivas: o indivíduo, o grupo ou a
organização. Embora níveis de estudos da identidade se sobreponham, há uma
forma distinta de construir o autoconceito nos diversos planos: pessoal, no grupo,
no trabalho e na empresa. Todavia, no plano imaginário, eles se encontram
interligados e orientam a atuação do indivíduo.

Reconhecer a importância da identidade no âmbito das organizações,


procurando a conjugação dos diferentes níveis de sua análise, implica a
tendência em: (1) contribuir para ampliar a autonomia e a segurança da ação
individual nas organizações; (2) estimular o trabalho em grupo, cooperativo e
engendrado sob uma lógica consentida; (3) estimular a criatividade, resultante
da experiência afetiva no trabalho; (4) favorecer o comportamento participativo
nas organizações, na medida em que ele resulta da integração simbólica
existente entre o indivíduo, o grupo e a organização.

Ao buscar a unidade, a partir da diferenciação, a identidade é capaz de


harmonizar a igualdade e a soberania, na medida em que parte sempre do
pressuposto de que somos iguais, mas únicos. Sob essa perspectiva, é possível
articular o movimento de indivíduos, grupos e organizações em direção à
integração e à autonomia.

101
6.0 O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NO DESENVOLVIMENTO

Alexis de Tocqueville dizia-nos que, no mundo civilizado, a igualdade e a


liberdade tendem a ser crescentemente desejadas. No entanto, acrescentava:
"o amor pela igualdade é maior do que o amor pela liberdade".

Tal proposição gera consequências bastante desconfortáveis. A


sociedade democrática, ao alimentar o desejo pela igualdade, correria o risco de
destruir a liberdade. Deixados à própria sorte, os seres humanos procurariam
exercer o máximo de liberdade individual, sacrificando a liberdade dos outros e,
portanto, a igualdade da maioria.

Como reduzir a desigualdade quando os homens querem o máximo de


liberdade? O próprio Tocqueville resolveu esse paradoxo, ou seja, para que a
liberdade floresça sem comprometer a igualdade, dizia ele, é preciso impedir que
o poder se concentre nas mãos de poucos. Para tanto, as sociedades humanas
têm de criar regras impessoais e que se aplicam a todos os cidadãos.

Esse é o papel das instituições. Na ausência de regras que garantem o


direito à propriedade, por exemplo, os seres humanos teriam de defender esse
direito caso a caso, o que, além de oneroso, tumultuaria as transações, os
investimentos, o desenvolvimento econômico e o progresso social.

Na linguagem dos institucionalistas da atualidade – como Douglass North


–, as instituições garantem regras que reduzem os custos de transação. A
liberdade, a igualdade e a democracia só sobrevivem com base no poder
controlado. A função principal das instituições é ajustar os limites da igualdade
aos limites da liberdade. Liberdade e igualdade são preservadas como bens
comuns na razão direta da eficiência das instituições.

Platão ensinava que a virtude de um objeto está no seu bom desempenho.


A virtude de uma faca é o bom corte. A virtude da monarquia é a lealdade. A
virtude da ditadura é a obediência. A virtude da democracia é a tolerância.

102
A tolerância, entretanto, está longe de ser uma virtude natural. Ela é
construída pelos homens, palmo a palmo, e por eles cultivada através de
instituições capazes de recolher os descontentamentos e harmonizar soluções.
Ocorre que, muitas vezes, as instituições não conseguem garantir uma
transação equilibrada entre liberdade e igualdade. Nessas sociedades, a tarefa
maior não é promover eleições para escolher os novos governantes, mas, sim,
o de fazê-los governar sob o controle de instituições eficientes.

O processo de desenvolvimento resulta de mudanças muito mais


profundas do que a simples melhoria da produção e da produtividade. Ele implica
mudar ideias, atitudes e, sobretudo, condutas.

Honestidade, confiança, respeito e outros valores sociais são importantes


quando compartilhados por todos. São bens públicos. Entretanto, pela sua
natureza, os seres humanos praticam a honestidade só dentro do seu grupo –
mas não fora dele. Os membros da máfia, por exemplo, são gente de honra em
relação aos seus pares. Contudo, com relação aos de fora do grupo, a regra é
tirar vantagem, por qualquer meio.

Thorstein Veblen, ao se dedicar ao estudo dos "vested interests"


(interesses camuflados), aprofundou a conduta maximizadora dos seres
humanos que procuram conseguir o máximo de benefício com o mínimo de
custo. Ocorre que esse custo mínimo pode ser máximo quando se considera que
a conta é, muitas vezes, paga pelos excluídos. Isso não promove a cooperação
e tem efeitos deletérios sobre a governança e a justiça social.

103
As normas que conduzem ao bom governo e ao desenvolvimento justo
não são fáceis de serem produzidas. Muito depende de como as leis são
cunhadas.

Quando um grupo é muito forte e outro muito fraco, as leis criam


instituições de modo enviesado, garantindo a liberdade de uns ao custo da
desigualdade de outros. Surge, então, a mais brutal de todas as desigualdades
– a desigualdade legal.

As regras justas, que deveriam ser garantidas pela lei como um bem
público, transformam-se, na verdade, na principal fonte dos males públicos.

A teoria dos jogos explica que os seres humanos nascem e crescem com
desejos essencialmente egoístas. Poucas pessoas atuam altruisticamente por
força de sua natureza. São as instituições de boa qualidade que estabelecem as
regras segundo as quais a melhor maneira de satisfazer o egoísmo de cada um
é cumprindo com suas obrigações em relação aos outros. Essa é a matemática
que move a defesa intransigente do interesse individual para o alcance de
resultados coletivos.

104
Numa palavra, a virtude desse tipo de instituição é a de proteger quem
precisa ser protegido e, numa linguagem mais da moda, de incorporar os
excluídos ao mundo dos incluídos.

Os excluídos são frágeis para influenciar a criação de instituições


equalizadoras. A vida exige deles um imediatismo constante. Sua preocupação
central é com a próxima refeição. São pessoas que, por não contarem com
regras de proteção, precisam transacionar caso a caso as ações que garantam
a sua sobrevivência.

Assim é a vida dos pobres. Eles têm de procurar fazer pequenos avanços,
de forma calculada e cautelosa, e, com isso, evitar naufragar na sua tênue
existência.

6.1 A influência das leis no meio social

Uma lei é de boa qualidade quando as regras por ela criadas protegem
essas vidas, dando às pessoas condição de administrar sua trajetória com um
mínimo de previsibilidade.

Permitam-me examinar, com exemplos, o impacto de algumas de nossas


leis no campo social:

1. Dos 70 milhões de brasileiros que trabalham, apenas 28 milhões são


protegidos pelas instituições do trabalho e da Previdência Social; 42 milhões são
desprotegidos.

105
Os desprotegidos do mercado informal, quando ficam doentes, não
dispõem de licença remunerada para tratar da saúde; quando ficam
desempregados, não há seguro-desemprego; quando param de trabalhar, não
há FGTS; quando envelhecem, não há aposentadoria; quando morrem, não
deixam nada para seus descendentes.

Essa é a vida dos excluídos. São os que mais necessitam de proteção e,


ao mesmo tempo, os que nada possuem. Eles não têm proteção para os quatro
momentos mais críticos de suas vidas, a saber: (a) quando perdem o trabalho,
(b) quando perdem a saúde, (c) quando perdem a juventude e (d) quando
perdem a vida; em outras palavras, na hora do desemprego, da doença, da
velhice e da morte. Não há como dizer que a nossa lei é um bem público; está
bem mais próxima do mal público.

Por que é assim? Porque as leis foram cunhadas com este viés: os
incluídos contam com direitos; os excluídos contam com destino.

Isso tem a ver com o processo de elaboração das leis. Observem que, na
maioria das vezes, os projetos que visam proteger os excluídos acabam, no final
de sua tramitação, reforçando a proteção dos incluídos. Por que isso acontece?

Durante o processo legislativo, os incluídos agem através de


organizações bem montadas que, se necessário, espalham até o terrorismo de
informações para assustar os parlamentares, muitos dos quais estariam
dispostos a transacionar alguns graus de liberdade por graus de igualdade.

106
Na discussão de projetos de lei, os excluídos nunca são convocados. Eles
são pretensamente representados por integrantes de corporações que usam a
retórica da igualdade para manter sua liberdade dentro de cidadelas protegidas
por leis anteriores e derivando benefícios das novas proteções. É isso que
mantém a proteção de 40% dos brasileiros e a desproteção de 60% de nossos
irmãos.

2. Querem mais um exemplo de mal público? A Lei 9.601/98, que visou


incorporar uma parte dos trabalhadores informais dentro do mercado formal
através da contratação por prazo determinado e protegido, estabelece que a
referida contratação só pode ser feita com a aprovação do sindicato que
representa os empregados na empresa onde há vagas, ou seja, uma lei que
visava proteger os excluídos colocou o seu destino nas mãos dos incluídos. Que
tipo de justiça social pode surgir desse tipo de regra? Não é à toa que essa lei
não pegou. Os incluídos rejeitam a entrada dos excluídos. A lei está a seu favor.
E a empresa não pode admitir o empregado que está disposto a aceitar as
condições oferecidas. Essa não é uma lei do tempo de Getúlio Vargas. É uma
lei cunhada na esquina do século XXI – em janeiro de 1998.

3. Vejamos outro exemplo. No Brasil, somos 170 milhões de habitantes e temos


cerca de 3 milhões de ações trabalhistas por ano. O Japão, com uma população
de 135 milhões de habitantes, tem apenas 1.500 ações trabalhistas/ano.

107
Será que os juízes japoneses são 2 mil vezes mais rápidos do que os
brasileiros? Não. A diferença está nas leis e nas instituições. No Brasil, as leis
trabalhistas são extremamente detalhadas, o que instiga a desavença e o
conflito. No Japão, as leis estabelecem princípios gerais, deixando os detalhes
para empregados e empregadores, o que instiga a negociação e o consenso.
Culpa de quem? De instituições elitistas e da ação preservacionista de grupos
de elite que vivem do conflito. Toda vez que se pretende reduzir o peso do
detalhismo e aumentar a criatividade da negociação, esses grupos passam a
atuar com argumentos sofisticados a que os excluídos não têm o que dizer – e
nem são chamados para falar. Para o sistema japonês, bastam 14 mil
advogados; para o brasileiro, são mais de 600 mil. Para quem ganha a vida com
o conflito, reduzir as injustiças pela via da negociação constitui séria ameaça.
Por isso preferem – e conseguem – manter instituições obsoletas. Enquanto o
resto do mundo baseia o contrato na negociação flexível, o Brasil continua
insistindo em leis rígidas e detalhadas.

Não são, no entanto, apenas os que vivem profissionalmente do conflito


que resistem a essas mudanças. A negociação não interessa também aos
incluídos, que estão ancorados em leis e estatutos empresariais que lhes
asseguram os chamados "direitos adquiridos" ou "privilégios adquiridos". As
organizações dos funcionários estatutários, de empresas estatais, de servidores
"celetistas", de funcionários de fundações e autarquias e alguns outros
protegidos pelas instituições atuais não aceitam a ideia de compatibilizar
liberdade com igualdade para muitos e não para poucos.

As ações organizadas desses grupos tendem a contribuir muito mais para


a estabilidade do que para a transformação que o País precisa. Tudo isso
sustentado por leis de má qualidade.

108
4. Neste campo surgiu uma lei de boa qualidade em 2002. Foi a Lei 9.958, que
criou as Comissões de Conciliação Prévia que dão às partes o direito de resolver
seus problemas diretamente, sem a interferência de advogados, funcionários
públicos ou juízes.

Em menos de dois anos, formaram-se 1.200 comissões desse tipo. Em


uma amostra analisada no primeiro semestre de 2002 ficou claro que, em cerca
de 80 mil casos analisados diretamente por empregados e empregadores, com
a participação dos sindicatos, 85% foram resolvidos diretamente, em clima
cordial, e dentro de 15 dias – Uma enorme economia de tempo e de outras
despesas! As Varas e Tribunais do Trabalho começam a registrar uma queda no
número de ações ali propostas.

Ocorre que, em algumas dessas comissões, houve fraudes. Umas


passaram a cobrar exorbitâncias pelos serviços prestados. Outras negociaram o
que não podia ser negociado –verbas do FGTS, INSS e outras. Finalmente, há
as que forçaram os trabalhadores a aceitar o que não queriam.

As más comissões são a minoria, mas foi o suficiente para as corporações


dos advogados, procuradores e magistrados alarmarem a imprensa e proporem,
em última análise, a extinção desse novo mecanismo: um ato do mais puro
corporativismo de quem deseja viver a vida toda à custa de conflitos banais que
podem ser resolvidos pelas próprias partes.

Por erros de uma minoria, pretende-se desamparar a maioria. É como a


decisão do prefeito que resolve acabar com a banda porque o clarinetista
desafinou ou de quem deseja jogar fora a água suja do banho junto com a
criança.

109
As fraudes ocorrem em todos os setores e são para ser combatidas e
punidas. Ao que me consta, ninguém propôs acabar com a Justiça do Trabalho
porque o Juiz Nicolau dos Santos Netto participou de um assalto ao Tribunal
Regional do Trabalho de São Paulo – casa que lhe dava o emprego e a
responsabilidade de fazer justiça.

5. Vejam o que ocorre com o seguro-desemprego: os 20% mais pobres recebem


apenas 3% dos seus recursos, e o restante é apropriado pelos não-pobres. Essa
injustiça vem se perpetuando desde que se implantou o seguro-desemprego no
Brasil.

Ai daquele que tentar mexer nisso! A reação dos não-pobres é forte – e


vencedora, como ocorreu na derrota da proposta que pretendeu juntar os
recursos do seguro-desemprego com os do FGTS para criar um sistema mais
racional para proteger quem precisa ser protegido.

6. Vejam o que ocorre na previdência social: os 20% mais pobres ficam com
apenas 7% do que o País gasta com aposentadorias e pensões; o restante vai
para os não-pobres. Assim é a lei. É mais um exemplo de mal público.

7. Há outras injustiças garantidas por lei. Vejam esta: o valor médio da


aposentadoria dos pobres que recebem do INSS é de 1,8 salário mínimo; o valor
da aposentadoria dos funcionários públicos é de 14,4 salários mínimos.

Os fatos não deixam dúvida. Entre os brasileiros pobres, a previdência


social é um luxo; entre os de renda alta é uma regra. Isso é assim porque as leis

110
previdenciárias são assim. Todos acompanharam o fracasso da pretensão de se
tornar a previdência social mais justa. As corporações agiram com eficiência.
Houve até um voto errado, de autoria do Deputado Antônio Kandir, que foi crucial
para deixar tudo do jeito que está.

Não há como esconder. A Constituição Federal de 1988 consagrou a


tendência de se fazer uma fachada igualitária para instituições que, na realidade,
aprofundam as desigualdades.

8. Vejamos alguns exemplos no campo da educação. Enquanto os mais pobres


têm enormes dificuldades para concluir a 8a. série, os mais ricos, que fazem os
cursos médios em escolas caríssimas, cursam universidades públicas
inteiramente gratuitas.

As pesquisas evidenciam que 75% dos estudantes das universidades


públicas (gratuitas) podem pagar pelos seus estudos. No entanto, ai daquele que
tentar fazê-los a gerar uma receita para cobrir as bolsas de estudo a serem
dadas a quem não pode pagar. Surgem nessa hora as mais sofisticadas teorias,
que os excluídos não conseguem refutar.

111
A qualidade precária da educação dos pobres é um dos principais
determinantes da baixa renda dessa população. E, ficando na pobreza, os
pobres deixam de ter acesso a uma série de outras proteções.

O que impede fazer essa reforma? Leis elitistas que protegem quem já
está protegido e desprotege quem precisa de proteção.

9. Há outras desigualdades extravagantemente criadas por lei: a nossa


Constituição Federal exige a frequência obrigatória à escola dos 7 a 14 anos,
mas só permite o jovem trabalhar quando completar 16 anos. São mandamentos
constitucionais. Têm de ser obedecidos.

Ora, o que o jovem vai fazer entre os 14 e 16 anos? Sabemos que a


maioria não pode continuar os estudos. E a Constituição diz que a totalidade não
pode trabalhar. Quem não estuda e não trabalha faz o quê? Será essa a melhor
maneira de proteger os jovens?

As causas da desigualdade sociais são múltiplas. Porém, as leis de má


qualidade são o principal determinante na área social. No passado, as
oligarquias dos ricos dominaram a cunhagem das leis e o próprio Estado. Hoje
são os grupos neocorporativistas que impedem a ampliação da justiça social.

112
Nem tudo está perdido. No meio de tanta desigualdade criada por lei, há
institutos que conseguiram varar a barreira dos "lobbies" e se colocarem como
verdadeiros bens públicos. Lembro aqui a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei
do SIMPLES.

A caminhada, porém, na área social é enorme. Nessa área, temos de


praticar muito mais a transação de liberdade por igualdade e reduzir a
concentração de poder que continua nas mãos de poucos.

O que fazer? Sonhar com um surto de magnanimidade dos que controlam


a cunhagem das leis? Neste ponto, peço licença para especular. E o grande
desafio é fazer os excluídos participarem das decisões que tratam de seus
problemas. Para tanto, nutro fortes esperanças na incorporação das novas
tecnologias no campo social.

Irei direto ao assunto. Acredito estarmos perto da democracia digital,


quando os excluídos poderão se pronunciar sobre assuntos que lhes dizem
respeito sem sair de onde vivem.

Seria o renascimento da democracia da Grécia? Um sonho sem base


empírica? Uma utopia sem rumo? Penso que não. Os meios para discutir e votar
a distância já estão disponíveis. Os especialistas preveem a sua universalização
em curto prazo, como ocorreu com outras tecnologias. O telefone celular
expandiu-se em poucos anos e adentrou as camadas sociais mais pobres, que
hoje o dominam com maestria, da mesma maneira que aprenderam a lidar com
os segredos dos caixas automáticos dos bancos, com o voto eletrônico e com a
própria Internet.

113
Convém ressaltar que estamos em plena cultura do videogame, em que
a juventude não teme a comunicação eletrônica.

Em muitos países, inúmeras decisões locais já são tomadas com a


participação direta da população através da comunicação mediada pela
informática. Manuel Castells cita inúmeros exemplos de experimentos pioneiros
que se tornarão, dentro em breve, rotina na vida dessas comunidades.

A participação virtual começa com os grupos mais educados e, de


maneira concêntrica, penetra nos grupos menos educados. Em uma pesquisa
realizada pelo Economist em 1999, mais de 50% dos europeus apoiaram a ideia
de acompanhar – e até votar! – todas as matérias em discussão nos
parlamentos. Cerca de 75% estão certos de que a comunicação eletrônica vai
melhorar a qualidade das leis, tirando proveito da vocalização dos que sempre
estiveram excluídos.

A literatura sobre esses processos cresce de maneira frenética. No início,


a prática da democracia digital não exigirá a posse privada de computadores,
mas apenas o acesso a pontos de contato que podem estar nas escolas, nas

114
empresas, nos supermercados, nas farmácias, nos clubes, nos "cyber-cafés" e
em vários outros locais.

Como diz Castells, porém, está surgindo um novo tipo de excluído: o


excluído digital. As pessoas vivem hoje em comunidades que têm dois tipos de
populações: uma pequena minoria de "aldeões eletrônicos" que residem na
fronteira da tecnologia e uma multidão transitória que entra e sai das redes nos
momentos precisos e para dar opinião ou um voto sobre assunto de seu
interesse.

Isso, porém, deve mudar rapidamente. Há 10 anos, ninguém imaginava


que as informações seriam grátis, como ocorre hoje com o livre acesso à
Internet. A ciência de todo o mundo está sendo disponibilizada na casa de cada
um. E dizem os especialistas que estamos apenas adentrando na era digital. O
Brasil já possui cerca de 18 milhões de computadores domésticos e tem muito a
crescer quando esses equipamentos baratearem, como aconteceu com o
telefone celular.

Aos poucos, aquelas duas populações irão se mesclar a ponto de os


excluídos serem incorporados no mundo de quem tem opinião. Os governados

115
começarão a controlar os governantes. Quando isso se generalizar, estaremos
diante de um processo de participação que simboliza o mais genuíno bem
público.

Para quem acha que isso é irreal, convém enfatizar que líderes
autoritários já se preocupam com o acesso de seus povos aos órgãos decisórios.
Os governantes da China e Coréia do Norte, por exemplo, estão tentando, sem
sucesso, evitar que seus governados explorem o desconhecido através dos
novos meios de comunicação. Da mesma forma, as oligarquias econômicas e os
representantes do neocorporativismo buscam impedir que seus representados
participem de modo direto de decisões que lhes dizem respeito.

Nina Hachigian (pesquisadora da "Rand Corporation" para assuntos da


Ásia), em trabalho recente, mostra o realismo da comunicação digital para
enfraquecer os ditadores e os defensores de privilégios.

Na história, poucos tiveram sucesso em impedir a penetração das


tecnologias que ajudaram os consumidores a satisfazer seus desejos e os
produtores a se tornarem mais eficientes. Será uma surpresa se, em pleno do
século XXI, alguém conseguir barrar os eleitores de se pronunciarem não só nas
urnas – como querem os candidatos –, mas também nos momentos mais críticos
para a solução de seus problemas.

Estamos no meio de um período em que a história corre muito depressa.


Há pouco mais de 10 anos, a cortina de ferro estava em pé. O Japão era exemplo
de desenvolvimento. Nelson Mandela era tratado como prisioneiro de guerra. E
Fernando Henrique Cardoso era esquerdista convicto. Em tão pouco tempo, a
cortina ruiu. O Japão entrou em recessão. Mandela é um ícone da democracia
mundial. E Fernando Henrique é rotulado de neoliberal.

116
As novas tecnologias vão surpreender os cépticos quando começarem a
colaborar na solução dos mais intrincados problemas sociais, como a
criminalidade, a corrupção, o abuso de poder, as injustiças e as desigualdades
entre os seres humanos.

Com a ampliação da participação a distância, mas em tempo real, elas vão


ajudar a bloquear os desejos daqueles que, para satisfazer sua ânsia infinita de
liberdade, sacrificam, sem constrangimento, os mais elementares princípios da
igualdade. Daí para frente, a humanidade vai testemunhar o afastamento dos
aproveitadores, tornando infernal a vida dos espertos que exploraram os mais
fracos com a retórica da falsa justiça.

7.0 PSICOLOGIA INSTITUCIONAL

A Psicologia Institucional é o termo usado para designar a abordagem da


psicologia nas instituições, fundamentada no referencial psicanalítico. Surgiu na

117
Argentina na década de 60 e difundiu-se no Brasil através do estado de Rio
Grande do Sul.

José Bleger contribuiu de maneira fundamental para o desenvolvimento


de métodos de trabalho a nível institucional, ampliando seus estudos sobre
grupos e entendendo que a instituição é um grupo que resulta de acordos que
se fazem entre a organização e as pessoas a quem a organização confia as
atribuições contidas nas funções.

Entendendo a dinâmica institucional, este teórico, enfatiza a importância


dos objetivos do psicólogo e os objetivos da instituição, e propõe que a
Psicologia Institucional é constituída por um processo de investigação e ação,
onde o método clínico de indagação operativa é um instrumento básico de
pesquisa.

O criador da Psicologia Institucional afirma ainda que ocorreu uma


mudança de paradigma em relação aos campos de atuação do psicólogo, no
âmbito individual e privado, relacionados somente a problemas
psicopatológicos e no campo de promoção a saúde, abriu assim amplas
possibilidades para atuação em grupos, empresas e instituições.

Portanto, podemos entender que para o psicólogo, atuar em uma


instituição está lhe interessará como organismo concreto, mas sem deixar de
lado que seu principal objetivo é o de estudar os fenômenos humanos que se
dão em relação com a estrutura, a dinâmica e os objetivos da instituição.

Há aproximadamente três décadas, começou a se tornar visível, entre


nós, a preocupação de estender a psicologia para além das áreas em que
habitualmente se exercia: pesquisas de laboratório, psicodiagnóstico,

118
psicoterapias, treinamento e seleção profissional, predominantemente. Por
currículo e por lei, ora mais e ora menos contraditoriamente1, o ensino e a
atuação profissional vão produzindo o desenho de uma psicologia que não
parece querer ficar à margem das reflexões filosóficas e sociológicas, feitas nas
salas de aula, ou à margem de ações políticas das agremiações estudantis e dos
movimentos sociais e comunitários em geral.

Nesse desenho da profissão, ganhou espaço o trabalho junto a


instituições (aqui entendidas como organizações), sobretudo as de saúde,
educação e promoção social. Em 1982, o governo do estado de São Paulo abriu
vagas para psicólogos, nos serviços públicos, contribuindo para a extensão dos
limites institucionais da profissão. Vários egressos das faculdades dirigiram-se
para esses atendimentos que tomaram um caráter multiprofissional, dada a
abertura feita, também em outras áreas. Os mestres universitários e profissionais
mais experientes (entre eles, estavam psicólogos e psicanalistas que migraram
da Argentina para cá) dedicavam-se à supervisão desses trabalhos. Não tardou
a aparecer uma disciplina na Universidade de São Paulo, ainda optativa:
Psicologia Institucional. Com o passar do tempo, os currículos de outras
faculdades foram incorporando o mesmo título.

É assim que, cada vez mais, psicologia e instituição vão se tornando um


binômio conhecido e reconhecido. Tal efeito, no entanto, não resolve as
questões oriundas de um trabalho que, apesar de tudo, ainda não tinha um
respaldo suficiente na formação e no currículo. E, sendo as práticas concretas o

119
carro-chefe, multiplicaram-se, quase às raias da dispersão, os modos de
compreensão e intervenção. Estamos falando agora do estado das coisas no
final da década de 1980 e início da de 1990. Isto de tal forma que parecia haver
tantos modelos de trabalho quantos fossem os mestres e supervisores em
campo. Uns se diziam socio psicanalistas, outros psicólogos institucionais,
outros ainda, analistas institucionais (e aqui, agrupava-se a maior variedade de
posições, desde os adeptos de Lapassade até os de seu parceiro intelectual,
Lourau; ou, desde os que assinavam uma autoria pessoal até os que se filiavam
à orientação de Delleuze e Guattari; e assim por diante).

Apesar da liberalidade na nomeação daquilo que faziam, profissionais e


autores sobre o tema produziam trabalhos até certo ponto diferentes sob a
insígnia institucional. Em parte, deriva dessa diversidade, no limite da
indiferenciação, uma vantagem para o exercício da psicologia: multiplicaram-se
(e se multiplicam) iniciativas e tentativas de alargar os horizontes do pensamento
e do fazer concreto, extrapolando os já distantes limites legais e provocando os
psicólogos a abandonar determinadas certezas cristalizadas em suas
modalidades de atuação, para abraçar desafios ainda muito tensos e informes.
O que está longe de ser algo negativo.

Gradativamente, permanecem dois títulos a significar os trabalhos “junto


às instituições”, como se costuma dizer: Psicologia Institucional e Análise
Institucional. Seriam elas a mesma coisa? A rigor, não. Vejamos.

120
7.1 A Psicologia Institucional de Bleger: uma visão Psicanalítica

Psicologia Institucional é um termo cunhado por J. Bleger, psiquiatra


argentino de orientação psicanalítica inglesa, que a um certo momento, buscou
aliar psicanálise e marxismo para pensar a atuação do profissional em
psicologia, para além das práticas terapêuticas e consultorias. Em nome dele e
por meio de seus escritos, nos idos de 1970, a Psicologia Institucional cruzou
fronteiras e, assim, apesar dos efeitos da repressão política que forçava os mais
inquietos a “falarem de lado e olharem para o chão3”, novos ares pareciam poder
soprar nestes brasis.

Trabalhar com psicologia institucional, portanto, é trabalhar com uma


determinada abordagem psicanalítica específica. E, como Bleger o define, com
essa abordagem, toma-se a instituição como um todo, como alvo da intervenção.
Em seu livro Psicohigiene e Psicologia Institucional (Bleger, 1973/1984), fica
claro que o psicólogo opera com os grupos, desde os de contato direto com a
clientela até a direção, por meio de um enquadre que preserva os princípios
básicos do trabalho clínico psicanalítico, bem como suas justificativas. Ainda: a
compreensão que tem das relações interpessoais guarda uma formulação muito
interessante: a da simbiose e ambiguidade nos vínculos e ele mesmo aproxima

121
essa compreensão às ideias de M. Klein a respeito de posições nas relações de
objeto; mais do que ao conceito de narcisismo em Freud (Bleger, 1977/1987).

Tudo isto implica que se alguém se diz trabalhando com psicologia


institucional, estará, ao mesmo tempo, tomando, tanto a instituição e suas
relações quanto a intervenção do psicólogo, a partir de uma perspectiva
psicanalítica; ou da perspectiva de uma psicanálise. Interpretações ou
assinalamentos, informados por esta compreensão das relações institucionais,
definem sua inserção nos grupos, seu fazer.

Assim, apenas sumariada, a proposta de Bleger perde muito de sua


riqueza e força... operativa. Para que se lhe faça justiça e para que se possam
apreciar as alterações que ele mesmo faz na psicanálise que em princípio
credita, recomendosobretudo a leitura dos textos O Grupo como Instituição e o
Grupo nas Instituições (Bleger, 1979/1981) e Psicologia Institucional (Bleger,
1973/1984).

7.2 A análise institucional de Lapassade: uma intervenção política

Análise Institucional, por sua vez, é o nome dado a um movimento que


supõe um modo específico de compreender as relações sociais, um conceito de
instituição e um modo de inserção do profissional psicólogo que é de natureza

122
imediatamente política. Desalojado do lugar de intérprete dos movimentos
grupais ou interpessoais, ele não se delega a tarefa diferenciada da interpretação
ou de assinalamentos; ele é, acima de tudo, um instigador da autogestão dos
grupos nas organizações, um favorecedor da revelação dos níveis institucionais,
desconhecidos e determinantes do que se passa nesses grupos. É um
provocador de rachaduras e rupturas na burocracia das relações instituídas. Está
do lado do instituinte, ainda que se questione sempre esse lugar e a própria
análise como facilitadores da “liberação da palavra social dos grupos”
(Lapassade, 1974/1977).

O idealizador da Análise Institucional é Georges Lapassade, psicólogo de


formação, que passou a trabalhar com psicossociologia e prosseguiu com um
intrigante caminho intelectual e político, o qual desembocou nesse movimento
autodenominado Análise Institucional.

Por que “movimento”? Porque, num tom acalorado e ruidosamente


polêmico, em princípio pelo estilo de sua escritura, praticamente, convoca
adeptos a uma causa. Propõe uma forma de agir e pensar que deveria mobilizar
todos os níveis institucionais ao mesmo tempo; e isto seria justificável por
finalidades políticas (supostamente) óbvias (e) que todo leitor deveria ter!
Funciona quase como uma convocação à militância. E o leitor se sente nessa
condição de chamado aos brios: “Mexa-se! O que você está fazendo aí sentado?
Venha engrossar as fileiras dos que rompem com a burocracia, liberam a palavra
social e fazem a revolução permanente!”.

Tal chamado, porém, como uma segunda voz nos escritos de seu livro
mais conhecido entre nós (Lapassade, 1974/1977), traz já a ambiguidade,
assumida por ele, de apresentar e criticar radicalmente a Análise Institucional
que ele mesmo propõe. No “Prólogo à Segunda Edição” dessa obra, acaba por
dizer, enfaticamente, sobre a ineficácia da Análise Institucional, na medida em
que conta com a ação de técnicos como coordenadores e preceptores de
mudança; a menos que se queira considerar, por um artifício, que a análise se
dá no nível da palavra e, portanto, não tem relação automática com uma
mudança na ação concreta. Por isso, não menos enfaticamente, afirma que o
que se deve fazer é a Ação Direta (análise em ato), por aqueles mesmos que
constituem os grupos de uma determinada instituição e/ou organização, com as
123
lideranças nascidas de seu interior. Segundo ele, essa é a verdadeira revolução
permanente que “decapita o rei”, as instituições sociais dominantes. Tudo, por
inspiração dos momentos históricos da revolução de 1968, na França, e ainda
visando à liberação da palavra social. Ora, poucos anos mais tarde, registra-se
em um “Prólogo à Terceira Edição”, que a liberação a ser feita é a do corpo e
que o que, então, se sustenta como ação de um profissional da psicossociologia
e da psicologia é Crise Análise.

São de Lapassade distinções conceituais importantes que parecem


frequentar o discurso de institucionalistas e de psicólogos afeitos a essa
perspectiva de trabalho. Nem sempre citada a fonte, alguns desses termos
parecem ter ganhado um sentido muito próximo ao de sua origem nesses outros
discursos.

A primeira delas é a distinção instituinte/instituído. O instituinte é uma


dimensão ou momento do processo de institucionalização em que os sentidos,
as ações ainda estão em movimento e constituição; é o caráter mais produtivo
da instituição. O instituído é a cristalização disso tudo; é o que, na verdade, se
confunde com a própria instituição.

A segunda é a distinção entre dois outros termos: organização e


instituição. Organização é um nível da realidade social em que as relações são

124
regidas por estatutos e acontecem no interior de estabelecimentos, espaços
físicos determinados. A instituição é o nível da lei ou da Constituição que rege
todo o tecido de uma formação social; está acima dos estatutos das
organizações. Ainda, segundo Lapassade, a instituição pode ser considerada o
brique-braque das determinações daquilo que atravessa os grupos de relação
face a face numa organização social. A sala de aula é exemplar nesse sentido:
a relação entre as pessoas é regida por normas que, em última instância, estão
apoiadas no que prevê a lei maior para o ensino; nesse contexto, o professor
poderá ser considerado um representante do Estado frente a seus alunos.

Menos conhecida é a concepção de burocracia que anima essa proposta.


Em poucas palavras, a novidade que esse autor nos apresenta é a de que
burocracia é, em princípio, uma questão de poder. Uma questão de divisão no
poder, entre grupos de decisão e grupos de execução do fazer institucional,
sendo que os primeiros decidem não apenas o que, mas também, o como fazer.
A normatização e a comunicação vêm de cima para baixo, e não há previsão de
canais legais ou legítimos para que essa relação se inverta. A regra de ouro é a
obediência e a organização acaba sendo um fim em si mesma. Indivíduos e
grupos acabam se munindo de um radar que possa sondar as necessidades e
interesses que não os próprios. É a heteronomia de grupos e sujeitos, que corre
em sentido oposto ao da autonomia.

Sobretudo com essa concepção de burocracia, Lapassade faz um


mapeamento das relações institucionais, trazendo para elas a organização da
separação, pelo poder de decisão, e a produção de sujeitos sem autonomia,
alienados e alienadores da palavra social. As relações de poder e a ideologia
têm, assim, seu contexto constituinte.

Podemos derivar daí um alvo para ação do psicólogo. E, com isso,


voltamos ao início e título desse item: trata-se, nessa perspectiva, de um trabalho
imediatamente político, e apenas mediatamente psicológico.

Tudo o que aqui se apressou em dizer é apenas um convite ao leitor para


que consulte esse intrigante livro (Lapassade, 1974/1977).

Como dissemos anteriormente, a nomeação Análise Institucional


estendeu-se a uma variedade de compreensões e modos de atuação, sobretudo

125
os psicanalíticos. De tal forma que, hoje, a referência comum tem sido o fato de
se tratar de trabalhos institucionais e/ou junto a instituições. Em geral, quando
conduzidos na forma de supervisão do trabalho de profissionais de ação direta.

7.3 O Psicólogo e as Instituições

Toda civilização necessita de um universo com signos e significados que


é construído pela linguagem. Através dela o indivíduo pode entrar em contato
com os demais.

O psicólogo institucional para efetuar um trabalho de maneira plena, não


deve ser funcionário da instituição para que tenha liberdade em atuar sem ter
vínculo financeiro, pois vai intervir nas relações, sendo assim não pode ser parte,
é necessário um distanciamento para ter uma visão ampla.

O psicólogo ao ser chamado para prestar seus serviços, ouvirá o


responsável pela contratação a problemática e o objetivo, entretanto nem
sempre os objetivos que o profissional de psicologia julgará com necessário a
ser atingindo irá de acordo com o que foi mencionado pelo responsável da
empresa. Em alguns casos que os objetivos são muitos antagônicos, a própria
parte que contratou os serviços tenta boicotar os serviços para que não continue
a se desenvolver.

Alguns comportamentos que são reproduzidos pelos funcionários da


instituição, têm relação direta com o ambiente de trabalho.

Para estudar instituições o psicólogo levará em consideração: a estrutura


física, a história da instituição, os objetivos pelo qual existe, organização, as
regras e as pessoas que a compõe.

126
Para Bleger o objetivo do psicólogo institucional é proporcionar a psico-
higiene, ou seja, qualidade de vida para as pessoas que estão naquele ambiente,
principalmente nesse ponto em específico os objetivos do psicólogo instituição
se opõe, as instituições que visam apenas números e lucros desconsiderando o
sujeito biossocial.

A linguagem é a primeira instituição que o sujeito tem contato, para Bleger


a linguagem é o instrumento mais poderoso de controle da sociedade sobre os
seus membros.

Por esse motivo o psicólogo deve conhecer a história da instituição e de


seus membros, para compreender como se relacionam e por onde deve começar
atuar.

Ao estudar a linguagem, o psicólogo deve ir mais fundo em compreender


não o que é dito explicitamente, mas os conteúdos implícitos. Nessas análises é
possível captar os conflitos velados que ocorre nas relações, que não são
propriamente verbalizados, porém os membros identificam que existe, mas como
não é exposto mantem-se essa dinâmica ruim.

A linguagem é uma instituição pé existente ao sujeito, e contém alguns


princípios a

baixo:

127
• Exteriorização: É exterior a vontade do indivíduo, que a aprende sem
questionar e é primordial para se inserir na sociedade.
• Objetividade: Reproduz as ações, determinadas coisas só existem se
estiverem no exterior, no campo objetivo, para maioria das pessoas.
• Coercitividade: Impõe dificuldades para que as mudanças não possam
acontecer, caso for contra a algo instituído pode ser lembrado pelas
regras, normas de forma agressiva e punitiva.
• Autoridade moral: Só a coerção não é o suficiente para manter a ordem
da instituição é preciso torna-la legitima, criando ameaças de sofrimento.
• Historicidade: A instituição já existia antes do indivíduo nascer e
provavelmente continuará após. A história é contada de geração, a
geração, através de conversas, escritos se mantendo na história.

Bleger recupera os processos grupais, a questão institucional e política, pois


trabalhar grupos é trabalhar relações, insere questões sociais na prática.

O grupo inicialmente se caracteriza pelo sincretismo (regredido,


atrapalhado, ambíguo) que é provocado pelo medo e ansiedade. Através das
intervenções, o objetivo é que

ocorra uma organização egoica dos membros e uma separação do eu e o outro.

Para que o psicólogo consiga atuar primeiramente, já na primeira


conversa com a instituição é necessário expor o enquadre, sendo possível
controlar algumas variáveis, compreender o lugar que o profissional de
psicologia ocupa no ambiente, auxiliando a identificar o problema, porém quem
irá resolver propriamente é a instituição e seus membros.

8.0 PERSEPÇÃO SOCIAL

128
Conceitualmente, a percepção social estuda a forma como formamos
impressões sobre outras pessoas e sobre como fazermos inferências sobre elas.
As conclusões mostram a importância de abordar o papel dos valores no
processo subjetivo-objetivo e nas relações do indivíduo e da sociedade.
Portanto, é através desses aspectos que podemos dá sentido ao mundo social
que nos rodeia, é também, através dela que podemos ter a capacidade de formar
impressões de maneira rápida e objetiva sobre esse mundo.

129
Na psicologia, o estudo da percepção é de extrema importância porque o
comportamento das pessoas é baseado na interpretação que fazem da realidade
e não na realidade em si. Por este motivo, a percepção do mundo é diferente
para cada um de nós, cada pessoa percebe um objeto ou uma situação de
acordo com os aspectos que têm especial importância para si própria, ou seja, é
através da percepção que um indivíduo faz do outro que se pode notar a forma
de como esse indivíduo organiza e interpreta as suas impressões sensoriais para
atribuir significado ao seu meio. Portanto a percepção tem uma grande
importância, ela pode ser relacionada pela a imagem que se faz do outro, pelo
conteúdo da memória, conceitos de valor e normas sócios culturais, ou seja, a
percepção está ligada a valores específicos do indivíduo ou de grupos distintos.

O pescador de Ilusões é um filme produzido em 1991, dirigido por Terry


Gilliam no filme podemos observar de uma maneira clara as mais variadas
formas de percepção do indivíduo envolvendo valores, atitudes ou até mesmo a
transformação social do outro. E, é possível perceber também na cena escolhida
descrita abaixo mudanças de comportamentos que vão atribuir componentes
indispensáveis para a construção pessoal de cada pessoa.

O filme retrata a história de Jack Lucas um radialista bem-sucedido, sem


compromisso ético, que em um de seus programas ele brinca com um psicótico
durante seu programa e o aconselha a fazer o que deseja. O homem vai a um
restaurante, atira em várias pessoas e depois se mata. Anos mais tarde, ainda
corroído pelo remorso, o radialista é salvo de um incidente por Parry um mendigo
louco, que acolhe em seu abrigo e lhe oferece comida e dormida. Vendo a
situação de abandono e pobreza ele ficou muito comovido. Mas ele apenas se
sensibilizou mesmo no dia em que descobriu que aquele mendigo tinha sido um
ex-professor de história, e apenas tinha chegado àquela situação devido a um
trauma horrível, desde o dia que mataram a esposa que ele tanto amava, com
um tiro na cabeça na frente dele, exatamente naquele restaurante que o psicótico
aconselhado por Jack foi, fazendo a esposa de Parry mais uma das vítimas
daquele incidente, desde esse dia ele torna-se um mendigo com problemas
mentais que procura pelo Santo Graal.

130
O radialista traz consigo o peso da culpa pela morte da mulher do mendigo
e tentando reparar seu erro tentando ajudá-lo, em todos os sentidos desde o
financeiramente até o de tentar protegê-lo e com o passar do tempo acabam se
tornando amigos. Até que um dia o mendigo se apaixonou por uma mulher que
ele via na rua, quando ela ia ao trabalho, a partir daí ele passou a observá-la,
seguindo-a, mas não tenha como ter uma aproximação dela e Jack ao saber
disso resolveu a ajudá-lo, convidando os dois para a sua casa, para um jantar
na tentativa de aproximá-los. No começo a mulher por nome Lydia Sinclair não
queria aceitar o convite, mas com muita insistência acabou aceitando, dessa
forma os dois se apaixonaram um pelo outro, Parry se curou de seus traumas e
problemas mentais, e passou a viver uma vida nova. Tudo com a ajuda de Jack
que mostrou que os valores e atitudes podem mudar o comportamento das
pessoas, e daí por diante ele passou a não se sentir mais culpado e começou de
novo a viver a sua vida normal se tornando uma pessoa bem melhor.

Na leitura da obra da professora Sílvia Tatiana Maurer Lane fica clara


também que a interação humana ao se compartilhar objetivos, regras, valores e
entre outros, exerce uma influência considerável no processo de construção da
identidade de cada indivíduo.

A professora Sílvia Tatiana Maurer Lane tem uma trajetória de vida


profissional, no campo da Psicologia Social, que faz dela uma das mais
importantes influências no desenvolvimento de um novo projeto para a
Psicologia: o projeto do compromisso social. Seu trabalho, sempre aliado ao de
outras pessoas, produziu novos caminhos para a Psicologia. Sua produção
teórica permitiu a construção de novas perspectivas no campo da Psicologia
Social, sendo responsável pelo desenvolvimento da perspectiva sócio histórica
na Psicologia Social no Brasil. Suas ideias sobre a prática permitiram a
construção da Psicologia Social Comunitária. Seu empenho na América Latina
criou intercâmbios e trocas, fortalecendo o diálogo no campo da Psicologia entre
profissionais deste continente. Seus princípios permitiram apoio na construção
de um novo projeto de Psicologia.

Sua preocupação básica em construir uma psicologia social voltada para


a realidade brasileira e latino-americana, com vistas a contribuir para a

131
superação das desigualdades e das situações de opressão, demandava uma
construção teórica que permitisse compreender o homem como participante do
processo social. Nesse sentido, entendia que o conhecimento da psicologia
deveria levar à compreensão dos mecanismos que provocam a alienação e
contribuir para ampliar a consciência dos homens. Sua teoria sobre o psiquismo
teve essa direção.

Lane discute claramente como a psicologia social coloca como objeto as


relações interpessoais e a influência de fatores sociais no indivíduo, mas
estabelecendo uma dicotomia entre indivíduo e sociedade e dentro de uma
perspectiva naturalizante. Tais formulações estão baseadas em um método
experimental, que busca relações causais entre variáveis e estabelece a
necessidade de verificação empírica de princípios teóricos. Baseado no
positivismo, o método prega a neutralidade do conhecimento científico e a
distinção entre o conhecimento e a ação, ou seja, entende que o conhecimento
deve ser objetivo e desvinculado de qualquer intenção em relação a seu uso.

Em entrevista concedida à revista Psicologia e Sociedade, em 1995, ela


reafirmava a convicção sobre a necessidade de democratizar o saber, em nossa
sociedade profundamente desigual e excludente. Para ela, a aceitação das
diferenças, a luta contra o preconceito e a discriminação dependiam dessa
democratização, isto é, da presença do intelectual fora dos muros da academia,
atuando e interagindo com os grupos sociais. E isto deveria ser feito

[...] abrindo esse espaço para todo mundo, para quem quiser
aprender e mais: fazendo o esforço de falar a linguagem de todo o
mundo. Transmitir nosso saber numa linguagem do cotidiano. É um
desafio. Mas é uma briga entre o poder autoritário e o poder
democrático. Acho que esta é a questão fundamental da academia.
(LANE, 1995, p.9)

Assim despojada e generosa, Sílvia se revela em sua extrema


sensibilidade e em sua paixão pelo conhecimento, que ela quer transmitir a
todos, pois o que é bom deve ser de todos, sem discriminação. E desse modo

132
se despediu de nós, deixando um legado de dignidade e de grande força
intelectual. Viva Sílvia Lane!

8.1 A dimensão social da percepção

Nossa experiência é essencialmente intersubjetiva. Merleau-Ponty (1945)


reporta-se à nossa relação com aspectos básicos da espacialidade, como a
profundidade, a iluminação e a forma das coisas. Essa dimensão das nossas
vivências constitui o que se poderia chamar, segundo o filósofo, de mundo físico,
ou mundo natural. Mas o mundo físico, mesmo no sentido fenomenológico da
expressão, que escapa às acepções das ciências naturais, não passa de um
recorte abstrato da nossa experiência. É preciso compreender, como faz
Merleau-Ponty (1945), que "quase toda a nossa vida" (p.31) se passa no mundo
cultural. Estamos cercados por pontes, estradas, casas e utensílios, como
óculos, cadeiras e colheres. "Cada um desses objetos carrega implicitamente a
marca da ação humana à qual ele serve", comenta Merleau-Ponty (1945, p.399).
E estamos rodeados, principalmente, pela presença corpórea de outras pessoas.
"O primeiro dos objetos culturais e aquele pelo qual eles todos existem, é o corpo
de outrem enquanto portador de um comportamento", complementa o filósofo
(Merleau-Ponty, 1945, p.401). Orientando-nos pelo tema da percepção, é
possível identificar, portanto, dois problemas básicos referentes à
intersubjetividade: a questão da percepção do outro e a questão do vetor social
que marca a nossa relação com as coisas.

133
Essa distinção aparece na literatura filosófica e científica contemporânea
na forma dos problemas da cognição social, relativos a "como compreendemos
os outros" (Gallagher, 2010, p.112), e da realização participativa de sentido
(participatory sense-making), que diz respeito a "como compreendemos o mundo
circundante com e mediante os outros" (Gallagher, 2010, p.112, grifos do autor).
De acordo com Gallagher, trata-se de duas questões intimamente relacionadas,
mas que, todavia, merecem ser diferenciadas. Pode-se afirmar que a diferença
fundamental concerne ao objeto intencional em cada tipo de circunstância. Na
realização participativa de sentido, o objeto central é o mundo e as coisas
mundanas. O interesse recai, nesse caso, sobre a constituição de sentido no
campo da interação intersubjetiva, ou, de modo mais geral, sobre a "Co
constituição de um mundo significativo [meaningful world]" (Gallagher, 2010,
p.113). No âmbito da cognição social, o objeto são os outros agentes, as
pessoas, e o seu comportamento.

A dimensão social da percepção pode ser evidenciada quando a


examinamos à luz dos problemas referentes à atenção. Constata-se, conforme
as teorias fenomenológicas, que a aparição de um objeto exige o recuo do
horizonte perceptivo. Na atividade perceptiva, operam-se, continuamente,
seleções, de modo que algo possa aparecer. Não é possível ouvir ou ver tudo
ao mesmo tempo. Identifica-se, portanto, na percepção, o que Weizsäcker
(1939/1962) chama de restrição constitutiva, que coincide, em grande medida,
com o tornar-se atento a alguma coisa. Esse acontecimento não é, todavia, um
fenômeno solitário. Somos, frequentemente, cativados pelo outro, que se torna
nosso objeto de atenção, ou por aquilo a que ele dedica atenção. A atenção
dedicada a algo de modo partilhado pode se dar no plano de uma "Co atenção
presencial" (Citton, 2014, p.127), caso em que duas ou mais pessoas,
conscientes da presença de outrem, interagem com o mundo juntas, e no plano
mais amplo de uma comunidade, ou mesmo no de uma sociedade de massas,
em que as pessoas não compartilham, ao mesmo tempo, o mesmo lugar. O
conceito de atenção conjunta, que analisaremos a seguir, diz respeito ao nível
da co-atenção presencial, e nos endereça à intersecção das questões relativas
à cognição social, ou, em termos mais gerais, à nossa percepção do outro
enquanto ser sensível, e à percepção conjunta das coisas, quer dizer, à

134
realização participativa de sentido. Por meio do exame dos problemas
envolvidos na atenção conjunta, é possível desenvolver temas relativos a um
importante aspecto da percepção: a sua dimensão corpórea, que demanda que
as ideias de cognição e de sentido sejam discutidas com base em elementos da
esfera sensório-motora, principalmente a ação e o movimento.

8.2 A atenção conjunta

A atenção conjunta (joint attention) pode ser considerada uma plataforma


conceitual que reúne pesquisas interdisciplinares voltadas ao estudo das origens
da cognição humana, especialmente a linguagem e a compreensão social
(Meltzoff, Kuhl, Movella & Sejnowski, 2009). Nesse âmbito de pesquisa,
concorda-se em definir a atenção conjunta como "um fenômeno profundamente
social" (Seemann, 2011, p.195), com importante função na comunicação e na
aquisição de conceitos.

Na psicologia do desenvolvimento, a atenção conjunta unifica,


conceitualmente, uma série de habilidades sociais, por parte das crianças, no
âmbito da percepção e da ação. Constata-se que a atenção conjunta começa a
ocorrer em torno do nono e do décimo segundo mês de vida. Observa-se, nessa
fase, que os bebês transpõem um regime diádico de interação, ora com coisas,

135
eventos ou situações, ora com outra pessoa. No esquema diádico, a criança,
engajada atentamente na manipulação de algum objeto, não interage com o
sujeito que por acaso esteja à sua volta. Ou, no caso de regozijar-se com a
presença de alguém, não concede atenção aos objetos do ambiente. A partir dos
nove meses de idade, passam a ser cada vez mais frequentes atividades em
que a criança partilha com outrem um objeto de interesse, configurando, então,
esquemas triádicos de interação, ou seja, ações que abarcam, além da criança,
um parceiro e um objeto de percepção conjunta. Nessa nova estrutura de
coordenação da percepção e da ação, a criança e o adulto conjugam sua
atenção em relação a objetos e eventos (Tomasello, 1999; Moll & Meltzoff, 2011).
É justamente essa forma de interação, e os comportamentos a ela associados,
que foi designada como atenção conjunta, desde os trabalhos pioneiros de
Bruner (1983).

As pesquisas realizadas em torno do assunto (Bruner, 1983; Tomasello,


1999; Moll & Meltzoff, 2011; Bimbenet, 2011; Sheinkopf et al., 2016; Hurwitz &
Watson, 2016) revelam que os episódios primordiais de atenção conjunta e as
habilidades correspondentes a ela emergem segundo um determinado padrão
de desenvolvimento, que indica diferentes níveis de especificidade do triângulo
referencial entre a criança, seu parceiro de atividades e os objetos circundantes.
São mais comuns, inicialmente, situações em que, embora a interação por parte
da criança com o adulto seja mediada por um objeto, a referência partilhada é
incipiente, por exemplo, quando, atraída por uma coisa qualquer, a criança olha
para o rosto do outro, buscando verificar se este se encontra envolvido na
mesma cena e se se mostra ciente daquele mesmo objeto. Constata-se, nesses
casos, a alternância do olhar da criança entre seu objeto de interesse e o seu
parceiro social. Pouco a pouco, passam a se manifestar, de modo mais estável,
atos em que o bebê acompanha o olhar ou as indicações gestuais do adulto,
focalizando, então, sua ação perceptiva naquilo que prende a atenção do outro.
Verifica-se, nessas circunstâncias, maior precisão em relação ao que olham e
ao que se referem a criança e o seu par. Faz parte dessa categoria de
realizações o aprendizado por imitação (imitative learning), caracterizado por
situações em que a criança age com os objetos da forma como os adultos atuam
sobre eles. A própria criança passa, mais tarde, a apontar e mostrar objetos e

136
acontecimentos aos seus pares, dirigindo, então, a atenção e o comportamento
destes.

Para Tomasello (1999), a emergência da atenção conjunta por volta dos


nove a doze meses de idade configura um fenômeno coerente, ou seja, bem
delineado, no desenvolvimento infantil. Mas seria preciso um passo a mais nos
estudos, no sentido de se elaborar uma explanação, igualmente lógica, em torno
do papel desenvolvimento da atenção conjunta. A hipótese teórica geral que
congrega essa linha de pesquisas integra os comportamentos triádicos ao
problema da cognição social na infância. A hipótese específica é de que a
atenção conjunta implica o início da compreensão, por parte da criança, do outro
como agente intencional como ela mesma. Tomasello (1999) explica o sentido
que dá à intencionalidade: "Agentes intencionais são seres animados que têm
objetivos e que fazem escolhas ativas entre as formas comportamentais
disponíveis para atingir aqueles objetivos, incluindo escolhas ativas sobre em
que prestar atenção na busca desses objetivos" (p.68). A atenção seria, portanto,
um tipo de percepção intencional, na medida em que, para Tomasello (1999), os
indivíduos "(...) escolhem intencionalmente atentar [intentionally choose to
attend] a certas coisas e não a outras" (p.68) em seu processo de busca por suas
metas no ambiente. O autor dá o exemplo de um pintor e de um alpinista que,
preparando-se para a realização de suas respectivas atividades, voltam seus
olhares para uma determinada montanha. Embora vejam a mesma coisa, os dois
137
atentam a aspectos distintos dela3. Os comportamentos triádicos, especialmente
aqueles em que a criança dá indícios de identificar com alguma precisão a "que"
o adulto se dirige ou o "que" está fazendo, denotam, segundo Tomasello (1999),
"uma clara compreensão da atenção do adulto" (p.69), embora ainda haja, por
parte da criança, muito a conhecer acerca da relação entre a direção de um olhar
e o foco de atenção.

Bruner (1983) também se reporta à possibilidade da referência conjunta,


embora dirigida a um mesmo tópico atencional, envolver grande variação de
exatidão. O exemplo aludido por ele é o de uma mãe, detentora de
conhecimentos especializados em física, que alerta seu filho de quatro anos
sobre o perigo de sofrer um choque elétrico ao explorar uma tomada. Este objeto
não é visado da mesma maneira pelos dois, sobretudo em virtude da ideia de
eletricidade que a mãe e a criança são capazes de atualizar nesta situação.
Importa, todavia, que as partes envolvidas em uma "troca referencial" (Bruner,
1983, p.68) saibam que partilham alguma justaposição "em sua atenção focal"
(Bruner, 1983, p.68).

O que convém enfatizar, portanto, é que, em situações de atenção


conjunta, a criança não apenas compreende o outro como fonte de auto
movimento e de poder causal, mas como ser capaz de realizar escolhas
comportamentais e perceptivas. Aliás, segundo Tomasello (1999), esta
"distinção crítica" (p.74) estaria ausente, por exemplo, nas teorias de Piaget, que
se limitaria a identificar, na criança, a capacidade de atribuir poderes causais ao
outro. Para autores como Bruner (1983) e Tomasello (1999), está em questão,
na atenção conjunta, a emergência da compreensão, por parte da criança, de
outrem como percipiente, como ser dirigido a objetivos da mesma forma que ela
mesma. Esta seria a base para que a criança se compreenda como participante
em interação com o outro, com atenção focal justaposta, e para que a
comunicação gestual evolua rumo à aquisição da linguagem.

8.3 Princípios teóricos de interpretação da atenção conjunta

138
Os princípios norteadores da posição adotada por precursores, como
Bruner (1983) e Tomasello (1999), acerca dos problemas da ontogênese
envolvidos na atenção conjunta advêm da filosofia da mente e dos seus
desdobramentos nas ciências cognitivas, principalmente no que se
convencionou chamar de teoria da mente. Admite-se, nesse contexto teórico,
que o sujeito da cognição, em suas relações com outrem, ocupa-se
predominantemente com a explicação do comportamento alheio, sobretudo com
a previsão do curso ulterior das ações desse agente físico e das suas
consequências no ambiente. Concorda-se, além disso, em atribuir a esse
sistema comportamental, externo ao sujeito cognoscente, estados internos
prováveis. De acordo com Petit (2004), a relação intersubjetiva, nesse enquadre
filosófico, é sintetizada em um sujeito que, na interação com um outro, torna-se
"'um atribuidor de propriedades mentais' a um 'objeto-alvo' do ambiente e do qual
ele quer 'predizer o comportamento' afim de antecipá-lo" (p.128)4. No que diz
respeito aos processos internos do sujeito perceptivo que estariam envolvidos
na interação com outrem, trata-se, para os pesquisadores, de investigar os
mecanismos representacionais que possibilitariam a compreensão, constituída
perceptivamente, da vida mental do outro. As hipóteses explicativas acerca
desse processo passam, sem pretensão a uma listagem exaustiva, pela
suposição de módulos mentais especializados na detecção da direção ocular de
alguém, em mecanismos de compartilhamento da atenção, que seriam
responsáveis pela formação de representações triádicas, além das teorias
inferencial e da simulação, que tiveram grande aceitação nos programas de
pesquisa voltados à atenção conjunta (Fuchs & De Jaegher, 2009; Bimbenet,
2010, 2011; Seemann, 2011).

A teoria inferencial, também conhecida como teoria da teoria, e a teoria


da simulação representam as principais interpretações da atenção conjunta
atreladas à teoria da mente. Sua análise permite a identificação da permanência
de concepções solipsistas no seio dos debates sobre o caráter social da vida
mental.

Ambas se baseiam, no que se refere às pesquisas voltadas ao


desenvolvimento infantil, em estudos que evidenciam a intensa sociabilidade das

139
crianças desde fases bastante precoces da ontogênese. Das protoconversações
em que os bebês se engajam junto com os seus cuidadores à capacidade do
recém-nascido de imitar comportamentos dos adultos, como protusões da língua
e abertura da boca, constata-se a tendência das crianças de se identificar com
seus coespecíficos (Tomasello, 1999), ainda que com base em expedientes
exclusivamente sensório-motores, destituídos de uma faculdade categorizadora.
Meltzoff (1999), contudo, chega a assumir que os bebês, bem cedo, mediante
os jogos de imitação recíproca na interação com outros agentes, adquirem
informação sobre "(...) como o outro é 'igual a mim' [like me]" (Meltzoff, 1999,
p.256). Concorda-se em afirmar, de todo modo, a capacidade do bebê de se
identificar em profundidade com seus Co específicos, fato que constitui uma
importante diferença na comparação comportamental entre os seres humanos e
outros primatas.

Um segundo pressuposto das teorias inferencial e da simulação decorre


das premissas básicas da teoria da mente: considera-se que, nas interações
sociais, o sujeito perceptivo tem acesso direto ao comportamento do outro, mas
não é capaz de experimentar diretamente suas crenças, desejos e intenções.
Estes elementos são encarados como estados mentais que repousam, ocultos,
sob o comportamento alheio. Seria necessário, portanto, construir, o tempo todo,
teorias sobre as intenções dos outros. Este gênero de exercício inferencial teria

140
origem bem cedo em nosso desenvolvimento. Meltzoff (1999) afirma: "é
nossa teoria de que crianças têm teorias" (p.253, grifos do autor), sobretudo no
que concerne à compreensão do comportamento intencional de outrem. Na
teoria da simulação, defendida por Tomasello, o processo representacional de
leitura das intenções estrangeiras baseia-se na ação mental de "colocar-se no
lugar do outro". O pressuposto, nesse caso, é que o funcionamento psicológico
das outras pessoas é compreendido com base no psiquismo do próprio
percipiente, conhecido mais direta e intimamente por ele mesmo. Tomasello
(1999) considera que, nesse sentido, as crianças, na medida em que adquirem
a capacidade de se compreender como entes intencionais, no sentido de seres
com propósitos referidos ao meio circundante, passam a aplicar esta
compreensão ao comportamento de outrem. O outro pode, então, ser tratado
como um agente psicológico, possuidor de interesses próprios e centro de uma
atenção voltada a entidades que lhe são exteriores (Carpenter, Nagell &
Tomasello, 1998).

141
Consideramos as pesquisas em torno da atenção conjunta ricas em
descrições e reflexões sobre a dimensão social da percepção. Desses estudos
sobressai a inscrição da relação às coisas e ao mundo no contexto da
sociabilidade, principalmente a emergência da consciência "de um ver em
comum" (Bimbenet, 2011, p.309). Não se trata, simplesmente, do ponto de vista
da criança, de olhar para aquilo que o outro olha, mas de tomar consciência de
que o outro olha uma mesma coisa. O olhar conjunto constitui um ato, ao mesmo
tempo, de referência e de comunicação, constatado ainda mais claramente
quando a criança passa "a 'declarar' a coisa para o outro" (Bimbenet, 2011,
p.309), apontando-a e mostrando-a para ele, quando se volta àquilo que
interessa o outro, quando interroga sua atitude em relação ao objeto,
expressivamente e, mais tarde, verbalmente.

Os estudos inaugurais da atenção conjunta denotam, por outro lado, um


compromisso teórico com ideários mentalistas e intelectualistas. Seus
pressupostos solipsistas comprometem a compreensão das bases psicológicas
da relação com o outro e a conotação social de interação com o mundo (Petit,
2004). A abordagem da atenção conjunta realizada por autores como Tomasello
e Meltzoff, denominada de perspectiva representacionalista (Fuchs & De
Jaegher, 2009), ou sócio-cognitiva (Bimbenet, 2010), acaba, com efeito, por
enfatizar uma proto-compreensão, por parte da criança, de seus estados mentais
e a ocorrência de processos reflexivos e de projeção desse conhecimento no
outro. Desde que se considere a mente como um domínio interior apenas
acessível ao próprio sujeito mental, a vida mental do outro não pode ser
acessada senão indiretamente, segundo os indícios revelados pelo seu
comportamento (Bimbenet, 2011). O pressuposto da teoria da mente é, além
disso, de que o outro apenas pode ser reconhecido, desde o início, "como um
outro eu mesmo" (Bimbenet, 2010, p.98). Do mentalismo decorre o
intelectualismo. "Se o outro é constitutivamente um problema, é ao
conhecimento, então, que ele se oferece em primeiro lugar", afirma Bimbenet
(2011, p.349). Como o outro não se apresenta diretamente na relação social, seu
entendimento exige processos de interrogação e de elaboração de um saber
explicativo ou preditivo.

142
Em suma, tomado como parâmetro acerca das discussões
contemporâneas sobre a percepção social, o conceito de atenção conjunta
expressa a preocupação científica com a dimensão comum da nossa relação
com o mundo. As interpretações preponderantes da atenção conjunta denotam,
contudo, a primazia de um ideário mentalista capaz de comprometer a
apreensão da conotação propriamente social da percepção.

9.0 ATRIBUIÇÃO DA CAUSALIDADE

A teoria da atribuição da causalidade, cujos princípios foram postulados


inicialmente por Fritz Heider nos anos 60, sugere que o ser humano envida todos
os esforços necessários para explicar os acontecimentos aos quais presencia e
para tal estabelece uma diferenciação entre as causas que podem ser atribuídas
à pessoa, as chamadas causas disposicionais, como por exemplo, aos fatores
de personalidade, a motivação para realizar alguma coisa, os esforços
despendidos em uma tarefa, e aquelas que podem ser imputadas à situação,
como, por exemplo, o impacto de normas e das expectativas sociais (HEIDER,
1970).

A teoria da atribuição da causalidade sustenta-se no entendimento de que


as pessoas usam os objetos e eventos presentes no seu universo psicológico
para construírem modelos causais, indutivos ou dedutivos, nos quais são
estabelecidos relacionamentos entre causas e efeitos (HEIDER, 1970).

Heider acreditava em uma psicologia ingênua, do senso comum, em que


as explicações sobre os fenômenos poderiam ser obtidas de forma natural, sem
necessidade de controle científico.

Com isso, parece ficar clara a ideia trazida por Heider de que mesmo sem
a psicologia científica, o ser humano teria suficiente compreensão de si mesmo
para explicar o que lhe ocorre. Seria capaz inclusive de atribuir causas para
explicar e justificar fatos que observa ou vivencia (SÁ, 2009).

Portanto, é possível inferir dessa afirmação que o ser humano não fica
satisfeito em apenas observar os eventos que o cercam; ele tem necessidade de
ligar os acontecimentos, buscando uma relação fixa de causa e efeito entre eles.

143
O resultado dessa relação permite, segundo Heider (1970, p. 97), “um mundo
mais ou menos estável, previsível e controlável”.

A relação fixa de causa e efeito entre os acontecimentos também dá


sentido às experiências pessoais e fica de tal forma marcada cognitivamente,
que o indivíduo reage à realidade do ambiente baseando-se nela. Sabendo-se
ainda que as ações individuais sejam determinadas pela maneira como as
cognições sobre o mundo e os outros estão estruturadas, é possível afirmar que
os processos de atribuição de causas exercem um papel fundamental no
comportamento humano (SÁ, 2009).

Porém, para complicar, nem sempre princípios lógicos e racionais são


seguidos no processo de atribuição. Muitas vezes, o que existe é uma lógica e
racionalidade pessoais (advindas da interferência de desejos, motivações e
necessidades individuais no processo), que fazem todo sentido para o sujeito,
mas não encontram evidências dentro da realidade, o que torna o processo
bastante complexo (DELA COLETA & DELA COLETA, 2006).

De acordo com Weiner (1985), Heider foi o primeiro a propor uma análise
sistemática das estruturas causais. A ideia inicial era de que a atribuição de
causas ao resultado de uma ação poderia ser dirigida a duas condições: fatores
do ambiente e fatores pessoais (SÁ, 2009).

Os fatores ambientais são externos ao sujeito e as causas são


consideradas impessoais, como dificuldades e facilidades da tarefa, acaso e
características das outras pessoas. Os fatores pessoais são internos ao sujeito
e as causas são consideradas diretamente relacionadas a ele e podem ser
classificados em características estáveis (habilidade e capacidade) e instáveis
(esforço, empenho e intenção) (HEIDER, 1970).

Supondo que a força do ambiente fosse zero, a ação seria determinada


apenas pelos fatores pessoais. Da mesma forma, se não houvesse influência de
fatores pessoais, a ação seria exclusivamente determinada pela força do
ambiente. Ocorre, porém, que não é comum a total ausência de um fator, de
forma que o outro seja responsável exclusivo pela ação, sendo o mais correto
pensar em uma relação entre eles (SÁ, 2009).

144
Assim, pode-se dizer que o relacionamento entre as características
estáveis da força pessoal (habilidade, capacidade) e as forças do ambiente
comporiam a disposição de “ser capaz”. O sujeito faria a atribuição de “ser capaz”
ao acreditar que as forças ambientais são menores que suas forças pessoais. O
contrário, com forças ambientais maiores que sua habilidade ou capacidade, o
levaria a associação de “não ser capaz” (HEIDER, 1970).

O outro tipo de atribuição existente, que compõe o conceito de “tentar”, e


dirigida aos esforços e intenções do sujeito (características instáveis do fator
pessoal). E a relação entre esforço e capacidade, ou de forma mais completa, e
a possibilidade do esforço compensar a falta de capacidade (HEIDER, 1970).

Assim, por exemplo, um esportista com menor capacidade que seu


adversário pode até vencer o jogo, mas precisará se esforçar mais que ele para
superá-lo. De acordo com Heider (1970, p.131) isso é “necessário quando a
pessoa tem pouco poder e a tarefa é difícil”. Se os dois esportistas fazem o
mesmo esforço, aquele que vence terá mais poder e será considerado mais
capaz.

Outra importante consideração sobre atribuições de causas, que pode ser


lida em Weiner (1979), é de que a busca pelas causas dos eventos é mais
frequente em situações de insucesso ou inesperadas para o sujeito. Heider, no
seu livro de 1958, The psychology of interpersonal relations, já analisava
situações como esta. Na edição brasileira da obra, Heider (1970, p. 138) afirma
que “às vezes, na ausência de ação ou no fracasso desta, os dados tornam muito
claro se a condição que falta é o ‘ser capaz’ ou o ‘tentar’”.

No entanto, pode acontecer de necessidades ou desejos do sujeito que


influenciaram a atribuição que é feita. Uma pessoa pode não admitir que não tem
ou não teve capacidade de cumprir uma tarefa e dizer que só não o fez porque
não quis, ou seja, não se esforçou. Aceitar a incapacidade como causa poderia
prejudicar a autoestima, enquanto mudar o tipo de atribuição para a falta de
esforço seria uma forma de preservá-la. O tipo de causa atribuída exerce,
portanto, papel fundamental nas emoções do sujeito (HEIDER, 1970).

Nomeado por Heider de atribuição egocêntrica, esse mecanismo serviu


de base para o desenvolvimento da ideia de egotismo atribuicional, que seria

145
uma tendência para atribuir atos próprios com consequência positiva a aspectos
pessoais (capacidade, esforço) e atos próprios com resultado negativo a
características do ambiente (dificuldade da tarefa, azar) (SNYDER, STEPHAN &
ROSENFIELD, 1978).

De acordo com Rodrigues (1996), o processo de atribuição de


causalidade, a partir dessas considerações de Fritz Heider, foi um dos temas
mais estudados da Psicologia Social. Segundo Dela Coleta e Dela Coleta (2006),
Jones e Davis foram os primeiros a utilizar os estudos de Heider como base para
seus trabalhos. Em 1965, partindo da ideia de que um indivíduo pode observar
a ação de outras pessoas ou ser ele mesmo sujeito da ação, buscaram
sistematizar e estabeleceram princípios sobre como um observador faz
inferências e atribui intenção à ação de outras pessoas. Em 1967, Daryl Bem
pareceu complementar os estudos de Jones e Davis ao estudar as atribuições
que o próprio indivíduo faz às suas ações e como isso está relacionado ao seu
comportamento (SÁ, 2009).

Em 1967, seguindo com o desenvolvimento das ideias de Heider, Kelley


buscou integrar as contribuições de Jones e Davis e Daryl Bem, e acabou
estabelecendo pela primeira vez uma forma de teoria aos estudos sobre
atribuição de causalidade. Com isso, novas hipóteses foram geradas e novos
estudos foram desenvolvidos (RODRIGUES, 1996; DELA COLETA & DELA
COLETA, 2006).

Apesar do avanço conseguido, faltava ainda uma sistematização das


suposições teóricas propostas para a atribuição de causalidade até então.
Coube a Jones e Nisbett fazer isso, em 1972, ao esclarecer objetivamente a
diferença dos processos atribuicionais utilizados por indivíduos, ao observar ou
participar de uma ação ou tarefa (RODRIGUES, 1996; DELA COLETA & DELA
COLETA, 2006).

Nesse panorama, Bernard Weiner propôs, em 1972, um modelo


motivacional baseado na teoria da atribuição (Weiner, 1972). “A maneira como
a pessoa explica ou atribui seu desempenho afeta suas expectativas e reações
emocionais, que, por sua vez, influenciam a futura motivação para realização”
(WEINBERG & GOULD, 2001, p. 84).

146
10.0 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

A teoria das representações sociais foi elaborada por Serge Moscovici


com o intuito de explicar e compreender a realidade social, considerando a
dimensão histórico-crítica (OLIVEIRA, 2001).

O conceito de Representação Social se estabelece no limite entre a


psicologia e a sociologia, especialmente entre a psicologia e a sociologia do
conhecimento. Este teve início com Durkheim, com o conceito da teoria da
Representação Coletiva, no qual procurava dar conta de fenômenos como
religião, mitos, ciência, categorias de tempo e espaço em termos de
conhecimento inerente à sociedade. Moscovici (1978), por sua vez, afasta-se da
perspectiva sociológica de Durkheim quando considera as representações como
algo compartilhado de modo heterogêneo pelos diferentes grupos sociais, assim
retorna o conceito de Representação Social para a Psicologia Social.

Serge Moscovici nasceu em 1928, é um psicólogo social. Atualmente, é


diretor do Laboratoire Européen de Psychologie Sociale (Laboratório Europeu da
Psicologia Social), que ele cofundou em 1975, em Paris. É também membro do
European Academy of Sciences and Arts, da Légion d'honneur e do Russian
Academy of Sciences.

Foi na obra La Psychanalyse, son image et son public, de 1961, que o


autor mencionou pela primeira vez o conceito de Representação Social,
desenvolvendo a partir deste uma psicossociologia do conhecimento.

Desta forma, o conhecimento é adquirido por meio da compreensão


alcançada por indivíduos que pensam, porém, não sozinhos, pois a semelhança
dos pronunciamentos feitos pelos indivíduos de um grupo demonstra que
pensaram juntos sobre os mesmo assuntos.

Para Moscovici (1978), as Representações Sociais são entidades quase


tangíveis. Elas circulam, cruzam-se e cristalizam-se incessantemente, por
intermédio de uma fala, um gesto, um encontro em nosso universo cotidiano,
constituindo, assim, uma modalidade de conhecimento particular que tem por
função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos.

147
A Representação Social produzida na construção do cotidiano de cada
indivíduo, a teoria das Representações Sociais, tenta entender as lutas,
batalhas, espaços, formas de comunicação desses indivíduos e o que eles
produzem de saberes no e pelo cotidiano.

A representação social é algo que vai muito além de formulações de


conceitos acerca de determinado fato, mas produções de comportamentos
embasados em experiências sociais, de forma individual e coletiva; conjunto de
conceitos construídos diante de um fenômeno social.

A teoria das Representações Sociais é uma teoria sobre a construção dos


saberes sociais (JOVCHELOVITCH, DUVEEN, 2001), entretanto, é importante
diferenciar saberes sociais de opiniões. Moscovici (1978, p. 46) descreve opinião
como sendo algo pouco estável, incidindo sobre pontos particulares. São,
portanto, características observadas mais individualmente pelo homem
enquanto que representações sociais.

Ou seja, todos os aspectos que envolvem a vida de um sujeito, inclusive


o momento histórico-cultural em que o sujeito está inserido são, de certa forma,
formadores das Representações Sociais que este formulará a respeito dos
fenômenos sociais que fazem parte do seu contexto.

Representar um objeto, para Moscovici (1978), é, ao mesmo tempo,


conferir-lhe o status de um signo, é conhecê-lo, tornando-o significante, ou seja,
tornar familiar o não familiar. Há duas formas de conhecimento que podem
explicar os conceitos de familiar e não familiar, sendo estes o de Universo
Reificado e o de Universo Consensual.

De acordo com Oliveira e Werba (2001), os Universos Reificados são


mundos restritos, onde circulam as ciências, a objetividade ou as teorizações
abstratas. Nestes, a sociedade é percebida como um sistema de diferentes
papéis e classes, cujos membros são desiguais. Já os Universos Consensuais
são as teorias do senso comum, onde se encontram as práticas do dia a dia e a
produção de Representações Sociais. No Universo Consensual a sociedade é
vista como um grupo de pessoas que são iguais, cada uma com possibilidades
de falar em nome do grupo. Este, de acordo com Moscovici (1981), estimula e
dá forma à nossa consciência coletiva, explicando coisas e eventos de tal forma

148
que sejam acessíveis a cada um do Universo Reificado das ciências e deve ser
transferido ao Universo consensual do dia a dia para, assim, ser representado.

Existem dois processos formadores das Representações Sociais, sendo


estes o processo de ancoragem e o processo de objetificação. Estes dois
processos servem para familiarizar o desconhecido.

Além disso, ancorar também significa classificar e rotular, pois implica,


muitas vezes, em um juízo de valor pois, ao ancorarmos, classificamos pessoas,
ideias e objetos, situando-os dentro de uma categoria, procurando, assim, um
lugar para encaixar o não familiar. Oliveira e Werba (2001) citam como exemplo
de ancoragem o problema da Aids que, quando surgiu, diante da dificuldade de
entendê-la e classificá-la, foi ancorada pelo senso comum como uma “peste”, ou
seja, a “peste gay”, a qual só aconteceria com estes. Esta foi a forma encontrada
para encaixar, de alguma forma, o não familiar, dando conta da ameaça que a
Aids trazia.

O segundo processo de formação das representações acontece com a


objetificação, ou seja, uma transformação do abstrato em algo quase físico,
traduzindo algo que existe no pensamento em algo que existe na natureza.
Segundo Moscovici (1981, p. 64), “objetificar significa descobrir o aspecto icônico
de uma ideia ou ser mal-definido, isto é, fazer equivaler o conceito com a
imagem”.

Desta forma, procura-se, por meio da objetificação tornar concreta, visível


uma realidade, aliando conceito com imagem, ou seja, a objetificação é a
imagem que acompanha a ancoragem, que é conceito.

A teoria das representações sociais é um importante método de estudo,


pois “[...] tem a capacidade de descrever, mostrar uma realidade, um fenômeno
que existe, do qual muitas vezes não nos damos conta, mas que possui grande
poder mobilizador e explicativo” (JACQUES, 2001, p. 31).

A Representação Social mostra-se como um conjunto de proposições,


reações e avaliações que dizem respeito a determinados pontos, emitidas aqui
e ali, no decurso de uma pesquisa de opinião ou de uma conversação pelo “coro”
coletivo de que cada um faz parte, queira ou não. Esse “coro” é a opinião pública,

149
sendo que esta recebe seu significado a partir de uma situação multi-individual,
em que os indivíduos se expressam, ou são chamados a se expressar, a favor
ou contra alguma condição específica, alguma pessoa ou proposta de
importância geral, em tal proporção de número, intensidade e constância, que
isso dê origem à probabilidade de afetar, direta ou indiretamente, a ação em
direção ao objeto referido, diferenciando-se, assim, das Representações Sociais,
as quais têm a ver com as dimensões de construção e de mudança, ausentes
na opinião pública (GUARESCHI, 1996).

Assim, a RS tem relação com a opinião pública. Porém, a Representação


Social não é mera opinião, vai além dela, pois está relacionada à avaliação do
objeto, aos sentimentos associados a ele e isso enquanto característica
produzida e compartilhada por um grupo. Entretanto, as proposições, reações
ou avaliações estão organizadas de maneira muito diversa segundo as classes,
as culturas ou grupos, e constituem tantos universos de opinião quantas classes,
culturas ou grupos existentes (MOSCOVICI, 1978).

Segundo o autor, estas proposições, reações e avaliações estão


organizadas de acordo com a cultura e a formação social de cada grupo e, a
partir disto, lança a ideia de que cada contexto social está dividido em três
dimensões: a atitude, a informação e o campo de representações ou a imagem.

A informação é a organização dos conhecimentos que o grupo possui a


respeito de determinado objeto social. Ou seja, dependendo do nível de
conhecimento do grupo, as informações a respeito do objeto serão mais
precisas, e sua representação pode diferir de um grupo com pouca, nenhuma
informação, ou com informações diferentes (MOSCOVICI, 1978).

No que se refere ao campo de representações, Moscovici (1978)


considera-o a imagem que o grupo social constrói do objeto, o modelo social
referente aos aspectos da representação do objeto.

A atitude, segundo o autor, é a tomada de posição diante do objeto, ser


favorável ou não, aceitar ou rejeitar, ou então ser intermediário, ou seja, o meio
termo entre os dois extremos.

150
A psicologia social trabalha com as representações sociais no âmbito do
seu campo, do seu objeto de estudo – a relação indivíduo-sociedade – e de um
interesse pela cognição, embora não situado no paradigma clássico da
psicologia: ela reflete sobre como os indivíduos, os grupos, os sujeitos sociais
constroem seu conhecimento a partir da sua inscrição social, cultural, etc., por
um lado e, por outro, como a sociedade se dá a conhecer e constrói esse
conhecimento com os indivíduos. Logo, como interagem sujeitos e sociedade
para organizar a realidade, como terminam por construí-la numa estreita parceria
que passa pela comunicação (ARRUDA, 2007).

11.0 A PSICOLOGIA SOCIAL E O PAPEL DO PSICÓLOGO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA

A Psicologia Social é vista como uma senhora de pouco mais de 100 anos,
cujo período mais vindouro é caracterizado pelas últimas seis décadas, sendo
sua gênese marcada por uma dupla paternidade, ora pautada na Psicologia, ora
fundamentada na Sociologia.

A Psicologia Social, apesar de apresentar um longo passado, sua história


como disciplina científica ainda é curta. As preocupações sobre a relação entre
sujeito e sociedade tiveram início com o desenvolvimento do pensamento
filosófico. No entanto, os antecedentes da Psicologia Social como disciplina

151
científica remetem à segunda metade do século XIX, momento em que a
Psicologia e a Sociologia estão se estabelecendo como disciplinas científicas,
independentes da Filosofia, influenciadas, assim como as demais ciências
humanas, pelo desenvolvimento do positivismo. É neste contexto de reflexão
acerca destas duas disciplinas que se manifestará uma perspectiva psicossocial.

Contemporaneamente a psicologia social é tida como o estudo científico


da maneira como pensamentos, sentimentos e comportamentos de uma ou mais
pessoas são influenciados pelas características de outrem. Assim, os psicólogos
sociais examinam essas questões, procuram entender como as pessoas
influenciam umas às outras e estudam fatores que determinam a interação
humana, a atração interpessoal.

Para Lane e Codó (2010, p. 31) “o psicólogo social enxerga o homem


como um ser que vivem em grupos, sociedades, culturas e organiza sua vida em
relação a outros seres humanos, influencia e é influenciado pela história, pelas
instituições e pelos comportamentos”.

Através do trabalho do psicólogo social nos auxilia a entender a necessidade


que sentimos do outro e a importância da comunicação frente ao comportamento
alheio.

Os psicólogos sociais se interessam em saber como as pessoas


influenciam umas às outras no contexto da sociedade, entender as atitudes,
como o preconceito se forma, a conformidade e saber se as pessoas se
comportam diferente quando estão em grupo ou sozinhas.

Outra abordagem que tem sido foco do psicólogo social é a atuação frente
as políticas públicas, colaborando para que as pessoas possam desenvolver e
compreender suas habilidades e utilizá-las para romper com a vulnerabilidade.
Ou seja, instrumentalizar as pessoas para que rompam com a situação de
manipulação e opressão.

152
A especialidade de Psicologia Social fica instituída com a seguinte
definição: I - Atua fundamentada na compreensão da dimensão subjetiva dos
fenômenos sociais e coletivos, sob diferentes enfoques teóricos e
metodológicos, com o objetivo de problematizar e propor ações no âmbito social.
O psicólogo, nesse campo, desenvolve atividades em diferentes espaços
institucionais e comunitários, no âmbito da Saúde, Educação, trabalho, lazer,
meio ambiente, comunicação social, justiça, segurança e assistência social. Seu
trabalho envolve proposições de políticas e ações relacionadas à comunidade
em geral e aos movimentos sociais de grupos étnico-raciais, religiosos, de
gênero, geracionais, de orientação sexual, de classes sociais e de outros
segmentos socioculturais, com vistas à realização de projetos da área social e/ou
definição de políticas públicas. Realiza estudo, pesquisa e supervisão sobre
temas pertinentes à relação do indivíduo com a sociedade, com o intuito de
promover a problematização e a construção de proposições que qualifiquem o
trabalho e a formação no campo da Psicologia Social (Resolução CFP Nº
05/2003, art. 3).

12.0 O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO

12.1 O indivíduo: ser social

153
Cada indivíduo, ao nascer, segundo Strey (2002, p. 59), “encontra-se num
sistema social criado através de gerações já existentes e que é assimilado por
meio de inter-relações sociais”. O homem, desde seus primórdios, é considerado
um ser de relações sociais, que incorpora normas, valores vigentes na família,
em seus pares, na sociedade. Assim, a formação da personalidade do ser
humano é decorrente, segundo Savoia (1989, p. 54), “de um processo de
socialização, no qual intervêm fatores inatos e adquiridos”. Entende-se, por
fatores inatos, aquilo que herdamos geneticamente dos nossos familiares, e os
fatores adquiridos provém da natureza social e cultural.

O homem é um animal que depende de interação para receber afeto,


cuidados e até mesmo para se manter vivo. Somos animais sociais, pois o fato
de ouvir, tocar, sentir, ver o outro fazem parte da nossa natureza social. O ser
humano precisa se relacionar com os outros por diversos motivos: por
necessidade de se comunicar, de aprender, de ensinar, de dizer que ama o seu
próximo, de exigir melhores condições de vida, bem como de melhorar o seu
ambiente externo, de expressar seus desejos e vontades.

154
Essas relações que vão se efetivando entre indivíduos e indivíduos,
indivíduos e grupos, grupos e grupos, indivíduo e organização, organização-
organização, surgem por meio de necessidades específicas, identificadas por
cada um, de acordo com seu interesse.

Vivemos em diversos grupos (familiares, de vizinho, de amigos, de


trabalho) nos quais interagimos e crescemos. Os mais diversos grupos sociais
influenciam na vida do indivíduo.

O indivíduo tem, para si, claras as características que o diferencia dos


demais, como seus fatores biológicos, seu corpo físico, seus traços, sua psiquê
que envolve emoções, sentimentos, volições, temperamento. Todavia, o
indivíduo, como objeto de estudo da psicologia social e da sociologia, é
considerado, segundo Ramos (2003, p. 238), da seguinte maneira:

indivíduo dentro dos seus padrões sociais, vive em sociedade,


como membro do grupo, como “pessoa”, como “socius”. A própria
consciência da sua individualidade, ele a adquire como membro do grupo
social, visto que é determinada pelas relações entre o “eu” e os “outros”,
entre o grupo interno e o grupo externo.

155
Então, quando estudamos sobre o indivíduo, percebemos a forma como
ele organiza o seu pensamento, seu comportamento. Assim, iremos concluir que
essa construção e organização ocorrem, a partir do contato que tem com o outro.
Por isso, temos a necessidade de estudar não só o indivíduo enquanto ser social,
mas este influenciado por padrões culturais diante da sociedade em que vive,
pois a cultura fornece regras específicas. Assim, para compreendermos o
indivíduo e a sociedade, precisamos entender a cultura à qual pertencemos.

12.2 Cultura

O indivíduo, enquanto ser particular e social, desenvolve-se em um


contexto multicultural, em que temos regras, padrões, crenças, valores,
identidades muito diferenciadas. Assim, a cultura torna-se um processo de
“intercâmbio” entre indivíduos, grupos e sociedades.

A partir do momento em que faz uso da linguagem, o indivíduo se encontra


em um processo cultural, que, por meio de símbolos, reproduz o contexto cultural

156
que vivencia. Strey (2002) aponta que o indivíduo tanto cria como mantém a sua
cultura presente na sociedade. Cada sociedade humana tem a sua própria
cultura, característica expressa e identificada pelo comportamento do indivíduo.
Segundo Strey (2002, p. 58), “o homem é também um animal, mas um animal
que difere dos outros por ser cultural”. Para ele, a cultura refere-se ao conjunto
de hábitos, regras sociais, intuições, tipos de relacionamento interpessoal de um
determinado grupo, aprendidos no contexto das atividades grupais.

Assim, não podemos considerar a cultura como algo isolado, mas como
um conjunto, integrado de características comportamentais aprendidas. Essas
características são manifestadas pelos sujeitos de uma sociedade e
compartilhadas por todos. Com isso, a cultura refere-se ao modo de vida total de
um grupo humano, compreendendo seus elementos naturais, não naturais e
ideológicos. Segundo Ramos (2003, p. 265), “as culturas penetram o indivíduo
[...] da mesma forma que as instituições sociais determinam estruturas
psicológicas [...] o homem pensa e age dentro do seu ciclo de cultura”.

Partindo desses princípios, devemos considerar o indivíduo como sujeito


ativo no contexto cultural. Ele tem a liberdade de tomar decisões, por meio de
novas interpretações. Ele recebe a informação e constrói, criativa e
coletivamente, um processo cultural voltado à época histórica atual que vivencia.

157
Ele mesmo constrói suas regras, por meio das atividades coletivas, podendo
alterá-las, da mesma forma que é afetado por elas. Podemos considerar a cultura
como uma herança social, que é transmitida por ensinamento a cada nova
geração.

Portanto, devemos conhecer a realidade cultural do indivíduo para


compreender suas práticas, costumes, concepções e as transformações que
ocorrem na sua vida. E é nessa realidade sociocultural que o indivíduo se
socializa. Sua personalidade, suas atitudes, opiniões se formam a partir dessas
relações sóciocultural, em que controla e planeja suas próprias atividades.

Assim, Savoia (1989, p. 55) garante que “o processo de socialização


consiste em uma aprendizagem social, através da qual aprendemos
comportamentos sociais considerados adequados ou não e que motivam os
membros da própria sociedade a nos elogiar ou a nos punir”. Daí a necessidade
de estudarmos os agentes socializados do processo de socialização.

12.3 Agentes socializadores do processo de socialização

Vimos que nós fazemos parte de diversos grupos sociais e que é por meio
desses grupos que o nosso processo de socialização ocorre. Temos, então,
como agentes socializadores, de acordo com Savoia (1989), três grupos: a
família, a escola (agentes básicos) e os meios de comunicação em massa.

O primeiro contato que o ser humano tem, ao nascer, é a família:


primeiramente, com a mãe, por meio dos cuidados físicos e afetivos, e,
paralelamente, com o pai e os irmãos, que transmitem atitudes, crenças e
valores que influenciarão no seu desenvolvimento psicossocial. Num segundo
momento, tem a interferência da escola. Geralmente, nessa fase, o indivíduo já
traz consigo referências de comportamentos, de orientação pessoal básica,
devido ao contato inicial com a família.

Já os meios de comunicação em massa são considerados como agente


socializador, diante das inovações tecnológicas na atualidade histórica, porém
nem sempre eles têm consciência do seu papel no processo de socialização e
na formação da personalidade do indivíduo. Na família e na escola, existe uma

158
relação didática e, com a TV, a relação é diferente, visto que a comunicação é
direta e impessoal (SAVOIA, 1989).

O processo de socialização ocorre durante toda a vida do indivíduo


(SAVOIA, 1989); por isso, esse processo é dividido em etapas:

• socialização primária: ocorre na infância com os agentes socializadores


citados anteriormente, que exercem uma influência significativa na
formação da personalidade social;
• socialização secundária: ocorre na idade adulta. Geralmente, nessa
etapa, o indivíduo já se encontra com sua personalidade relativamente
formada, o que caracteriza certa estabilidade de comportamento. Isso faz
com que a ação dos agentes seja mais superficial, mas abalos estruturais
podem ocorrer, gerando crises pessoais mais ou menos intensas. Nesse
momento, surgem outros grupos que se tornam agentes socializadores,
como grupo do trabalho;
• socialização terciária: ocorre na velhice. Pela própria fase de vida, o
indivíduo pode sofrer crises pessoais, haja vista que o mundo social do
idoso muitas vezes se torna restrito (deixa de pertencer a alguns grupos
sociais) e monótono. Nessa fase, o indivíduo pode sofrer uma
dessocialização, em decorrência das alterações que ocorrem, em relação
a critérios e valores. E, concomitantemente, o indivíduo, nesta fase,
começa um novo processo de aprendizagem social para as possíveis
adaptações a nova fase da vida, o que implica em uma ressocialização.

159
Todo esse processo de socialização que os seres humanos vivenciam está
ligado à cultura do indivíduo, como também a uma estruturação de
comportamentos, à medida que aprendemos e os internalizamos. Essa
estruturação e atribuição de significados ocorrem por meio da interação com os
outros. Isso faz com que criamos expectativas sobre esses comportamentos
diante do grupo social, desenvolvendo papéis sociais, pois o processo de
socialização pode ser visto também como um processo pelo qual cada indivíduo
configura seu conjunto de papéis

12.4 Papéis sociais

160
Ao nascer, já temos alguns papéis prescritos como idade, sexo ou posição
familiar. À medida que adquirimos novas experiências, ampliando nossas
relações, vamos nos transformando, adquirindo outros papéis que são definidos
pela sociedade e cultura (SAVOIA, 1989). Em cada grupo no qual relacionamos,
deparamo-nos com normas que conduzem as relações entre as pessoas,
algumas são mais sutis, outras mais rígidas. São essas normas que caracterizam
essencialmente os papéis sociais e que produzem as relações sociais (LANE,
2006).

161
Entende-se que os papéis que adquirimos nas nossas experiências e
relações vão designar o modelo de comportamento que caracteriza nosso lugar
na sociedade. Esses papéis podem ser objetivos ou subjetivos. Em relação a
isso, Savoia (1989, p. 57) assevera que

Outro aspecto do papel social é que ele pode ser objetivo –


aquilo que os outros esperam de nós, ou subjetivo -, como cada
indivíduo assume os papéis de modo mais ou menos fiel aos
modelos vigentes na sociedade. Quando esses dois aspectos não
coincidem, podem transformar-se em obstáculo na interação social.

Isso significa que a objetividade e a subjetividade se configuram como um


processo dialético de desenvolvimento da configuração social, dinâmico, e está
em constante interação na vida do indivíduo, como ser histórico, capaz de
promover transformações sociais, visto que o desempenho do papel nunca é
solitário.

Porque desempenhamos vários papéis sociais (de filha(o), pai ou mãe,


patrão ou empregado), estes podem se cruzar por meio de uma situação
divergente gerando conflito de papéis. Essas incompatibilidades podem ocorrer
por diferentes motivos, como, por exemplo, o conflito de valores, que Pisani
(1996, p. 140) cita: “um cientista pode perceber que seus valores religiosos não
se coadunam com a experiência de laboratório que precisa desenvolver”. O que
se percebe é que o conflito de papéis pode variar quanto à intensidade, diante
da importância que se dá a cada papel de conflito, o que pode provocar
perturbações na pessoa.

Além disso, dependendo do papel que o indivíduo exerce, ele adquire um


lugar na sociedade que é denominado de status, que, juntamente com os papéis
sociais, determinam sua posição social (PISANI, 1996). Então, papel é o
comportamento, a ação, enquanto o status é o prestígio que se adquire. Savoia
(1989, p. 60) afirma que “o papel é o comportamento que os outros esperam de
nós e o status é o que acreditamos ser”. Nesse sentido, os papéis que
desempenhamos e os status que acreditamos ter, diante da sociedade, explicam
nossa individualidade, nossa identidade social e consciência de-si-mesmo que

162
adquirimos, a partir das nossas relações sociais. Assunto esse que abordaremos
a seguir.

12.5 Identidade social e consciência de si mesmo

Se alguém perguntar a você sobre quem é você, o que responderia? E se


perguntassem sobre a sua identidade, como a definiria?

Procure responder esses questionamentos, antes de dar continuidade a leitura


do capítulo. E aí? Parou para pensar?

Agora pergunto: já nascemos com a nossa identidade definida?

Se procurar responder esses questionamentos, você perceberá que não é tão


simples respondê-los. Existem vários fatores que precisamos discutir e
conhecer. Então, vamos mergulhar nessas páginas que nos ajudarão não
somente a compreender os outros, mas a nós mesmos.

Dar a resposta de “quem sou eu” é fazer uma representação da nossa


identidade. Mas é preciso analisar como se dá esse processo. Muitas vezes,
tendenciamos responder a esse questionamento, falando das nossas
características físicas, sexo, características da personalidade, signo, idade,
profissão etc. Então, para entendermos esse processo de autoconhecimento, a
psicologia construiu o conceito de identidade, que para Sawaia (2006, p. 121)

163
tem “valor fundamental da modernidade e é tema recorrente nas análises dos
problemas sociais”.

Quando pensamos em conceito de identidade, logo pensamos em


imagens, representações, conceito de si mesmo, como se o indivíduo se
reconhecesse identificando traços, imagens, sentimentos, como parte dele
mesmo. Mas esse conceito é produzido a partir das relações que mantemos com
os outros (LANE, 2006).

A partir do momento em que reconheço o outro, reconheço a mim mesmo


como um ser único particular. Essa diferenciação geralmente ocorre com a mãe,
que é o primeiro “outro” com quem temos contato. Nesse momento, por meio
das relações, começamos a construir nossa identidade. E, à medida que
adquirimos novas experiências ampliando nossas relações sociais, vamos nos
transformando, adquirindo novos papéis.

Então a identidade é algo mutável em permanente transformação. É um


processo que se dá desde o nascimento do ser humano até sua morte. Por isso,
podemos dizer que a nossa identidade está em constante mudança. Lane (2006,
p. 22) enfatiza que “apenas quando formos capazes de [...] encontrar razões
históricas da nossa sociedade e do nosso grupo social que explicam por que
agimos hoje da forma como o fazemos é que estaremos desenvolvendo a
consciência de nós mesmos”. Isso nos faz entender que a consciência de si pode
alterar a identidade social, na medida em que interrogamos os papéis que
desempenhamos e suas funções históricas (LANE, 2006). Essa consciência é
reconhecer quem sou eu enquanto indivíduo, enquanto integrante de um grupo
social, a partir das relações do meu ser social. Isso só será possível, a partir do
momento em que tenho o “outro” como referência. Sawaia (2006) afirma que
essa consciência não pode ser consciência “em si”, mas para si e para o outro.

E Myers (2000) reafirma isso, quando diz que o autoconceito que o


indivíduo adquire de si mesmo decorre das experiências sociais vivenciadas, que
influem no papel que ele desempenha nos julgamentos sobre si e sobre outras
pessoas e as diversidades culturais. Nesse sentido, percebemos que a
construção da nossa identidade se da por meio das relações sociais, dos papéis
que desenvolvemos.

164
O indivíduo constrói a sua história, como um ser individualizado e, ao
mesmo tempo, social. Esse processo de transformação pode trazer angústia,
dúvidas o que pode gerar uma crise de identidade, diante da contradição que o
indivíduo vive, entre a necessidade de se padronizar para ser aceito em um
grupo e a necessidade de se destacar como único (SAWAIA, 2006). Essa crise
é geralmente percebida na transição da infância para a adolescência, em que o
indivíduo passa por diversas transformações tanto físicas, como psicológicas e
sociais. Mas isso pode ser superado a partir da tomada de consciência e das
relações que mantém com o outro.

A objetividade e subjetividade são fundamentais para o processo de construção


da nossa identidade. A experiência humana se objetiva na realidade criando
singularidades (hábitos, tradição) e as instituições são subjetivadas, por meio da
introjeção pela socialização.

A psicologia social crítica busca a compreensão da relação individual –


social, por meio dessa interação indivíduo/sociedade, visto que a identidade do
indivíduo se dá por meio dessa relação, considerando o indivíduo com a sua
história particular como um ser de transformações.

A atividade do indivíduo é a sua realização concreta, e a expressão da


sua subjetividade diante da definição papeis exercidos por ele. Ela é subjetiva
(envolve afeto de um eu individual) e objetiva (contato com o mundo exterior).
Nesse processo o indivíduo constrói o seu mundo, da mesma forma que constrói
a si mesmo, sua identidade, suas relações, suas experiências vivenciadas.

165
13.0 PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO, GRUPOS E PAPÉIS SOCIAIS

Para entendermos sobre temas emergentes em Psicologia Social é fundamental


compreendermos o processo de socialização, grupos sociais e os papéis sociais
desenvolvidos na sociedade.

As atitudes do ser humano são importantes, pois são elas que norteiam
nosso comportamento. Há a influência dos motivos, interesse e necessidades
com que nos apresentamos na situação. Este conjunto de aspectos psicológicos
permite-nos entender, atribuir significado e responder ao outro (BOCK,
FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

A partir da percepção do meio social e dos outros, o indivíduo vai


organizando as informações, relacionando-as com afetos (positivos ou
negativos) e desenvolvendo uma predisposição para agir (favorável ou
desfavoravelmente) em relação às pessoas e aos objetos presentes no meio
social (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Para a Psicologia Social, nós desenvolvemos atitudes, como crenças,


valores e opiniões, em relação aos objetos do meio social.

166
A formação do conjunto de nossas crenças, valores e significações dão-
se no processo de socialização, em que o indivíduo torna-se membro de um
determinado conjunto social, aprendendo seus códigos, suas normas e regras
básicas de relacionamento, apropriando-se do conjunto de conhecimentos já
sistematizados e acumulados por um determinado conjunto social (BOCK,
FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Existem as organizações ou elementos que servem de intermediários


entre o conjunto social mais amplo e o indivíduo. Essa intermediação é feita
pelos grupos sociais.

Assim, quando se dá esse nosso encontro, poderíamos dizer que estão


se encontrando representantes de diferentes grupos sociais: você representando
sua família, seus grupos de amigos, seu grupo racial, seu grupo religioso entre
outros. E por outro lado, nós representando nossos grupos de pertencimentos
ou de referência, que são aqueles a que pertencemos ou em que nos
referenciamos para saber como nos comportar, o que dizer como perceber o
outro, do que gostar ou não gostar (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Os grupos sociais são pequenas organizações de indivíduos que,


possuindo objetivos comuns, desenvolvem ações na direção desses objetivos.
Para garantir essa organização, possuem normas; formas de pressionar seus
elementos para que se conformem as normas; um funcionamento determinado,
com tarefas e funções distribuídas entre seus elementos; formas de cooperação
e de competição; seu líder e apresentam aspectos que atraem os indivíduos,
impedindo que abandonem o grupo (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Em relação aos papéis sociais, na sociedade há um conjunto de posições


sociais, como a médica, o professor, o aluno, o filho, a mãe, o pai, entre
outros(as), todas as expectativas de comportamento estabelecidas pelo conjunto
social para os ocupantes das diferentes posições sociais determinam o chamado
papel prescrito. Assim, sabemos o que esperar de alguém que ocupa uma
determinada posição (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Todos os comportamentos que manifestamos no nosso encontro são


chamados, na Psicologia social, de papel desempenhado. Tais comportamentos,
por sua vez, podem ou não estar de acordo com a prescrição social, isto é, as

167
normas prescritas socialmente para o desempenho de um determinado papel
(BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Os papéis sociais permitem-nos compreender a situação social, pois são


referências para a nossa percepção do outro, ao mesmo tempo que são
referências para o nosso próprio comportamento. Se no encontro social nos
apresentamos como ocupantes da posição de professores ou autores de um
livro, sabemos como nos comportar, porque aprendemos no decorrer de nossa
socialização o que está prescrito para os ocupantes dessas posições. Se formos
convidados a proferir uma palestra na sua escola, não iremos vestidos como se
estivéssemos indo para o clube (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Os diferentes papéis sociais e a nossa enorme plasticidade como seres


humanos permitem que nos adaptemos às diferentes situações sociais e que
sejamos capazes de nos comportar diferentemente em cada uma delas.
Aprender os nossos papéis sociais é, na realidade, aprender o conjunto de rituais
que nossa sociedade criou (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

14.0 PSICOLOGIA COMUNITÁRIA

A Psicologia Comunitária surge em meados da década de 60, no decurso


de um período de grandes transformações, não somente na área da Saúde
Mental, mas também na sociedade em geral. Colocaram-se novas questões
relacionadas com os problemas sociais, acrescidas de um ritmo de mudança
acelerado e abrangente o que levou a que, metodologias até aí utilizadas para a
compreensão dos fenómenos sociais, se tornassem inadequadas.

Um momento decisivo para a abordagem comunitária, foram as


propostas de mudança apresentadas pelo Presidente Kennedy ao Congresso
Americano em 1963, onde defendeu a reintegração dos doentes mentais na
comunidade e apelou a uma perspectiva preventiva do sofrimento humano e à
promoção de uma visão positiva da Saúde Mental. Este conjunto de propostas
deu origem à Lei dos Centros de Saúde Mental Comunitários, que
desempenharam um papel decisivo na criação de um novo paradigma de
intervenção na comunidade.

168
A prestação de cuidados numa base comunitária, foi inspirada
conceptualmente a partir de métodos e modelos desenvolvidos com soldados
durante a II Guerra Mundial, por exemplo, a ideia de que a ajuda deveria
localizar-se estrategicamente no local onde as problemáticas ocorrem e
proporcionada de forma tão breve, quanto possível. O sucesso alcançado na
prestação de suporte estruturado durante situações de crise, representou um
desafio claro à ineficácia anteriormente sentida em relação às crises
desencadeadas pelas doenças mentais.

A Psicologia Social Comunitária utiliza-se do enquadre teórico da


Psicologia Social, privilegiando o trabalho com os grupos, colaborando para a
formação da consciência crítica e para a construção de uma identidade social e
individual, orientada por preceitos eticamente humanos (Freitas, 1996). Assim,
visa desenvolver trabalhos capazes de contribuir para promover relações de
cooperação e solidariedade e para a construção de sujeitos mais críticos e
reflexivos, problematizadores e transformadores da realidade, utilizando-se de
métodos de inserção e atuação comunitária (Góis, 2005 & Monteiro, 2004).

Tradicionalmente, a utilização de teorias e métodos da Psicologia


Comunitária foi aplicada às populações de baixa renda. Já nas décadas de 1980
e 1990, com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), essa perspectiva
se modifica e os psicólogos passam a trabalhar também em outros dispositivos
públicos.

169
A Psicologia Social Comunitária enfatiza, em termos teóricos, a
problematização da relação entre produção teórica e a aplicação do
conhecimento; em termos de metodologia, utiliza-se, sobretudo, a metodologia
da Pesquisa Participante; e, em termos de valores, a ética da solidariedade, os
direitos humanos fundamentais e a busca da melhoria da qualidade de vida da
população focalizada (Campos, 2002).

Desse modo, a Psicologia Social Comunitária visa promover a


consciência e minimizar a alienação, procura promover a participação reflexiva
dos grupos com os quais trabalha na definição das prioridades de atuação,
planejamento, execução e avaliação de suas atividades. Para Campos (2002), a
produção teórica e prática da Psicologia Social Comunitária é marcada pela
busca do desenvolvimento da consciência crítica, da ética, da solidariedade e de
práticas cooperativas ou mesmo auto gestionárias, a partir da análise dos
problemas cotidianos da comunidade.

A Psicologia Social Comunitária tem envolvido trabalhos interdisciplinares


de modo a coletivizar e facilitar o entendimento entre a comunidade e seus
diversos aliados. Propõe trabalhar com a comunidade, incorporando seus
membros em todas as fases do trabalho. Contudo, um dos grandes desafios que
encontra atualmente é encontrar, no trabalho conjunto com esses atores sociais,

170
alternativas originais de desenvolvimento que visem à sustentabilidade humana
e social. O caminho para a construção desse desenvolvimento deve ser pautado
na realidade local e estar relacionado ao desenvolvimento pessoal e coletivo dos
moradores da comunidade.

A Psicologia Social Comunitária emerge de uma psicologia preocupada


com a cidadania e tem se constituído ao longo das últimas décadas a partir de
um esforço de intervenção com os diversos grupos sociais. Essa interação tem
se dado, de maneira geral, a partir da ênfase na autonomia e no protagonismo
das populações com as quais se tem trabalhado por maio da ampliação da
criticidade desses sujeitos em relação ao contexto e aos problemas que
apresentam, em busca da construção de um conhecimento social e comunitário.

Portanto, ao destacar a importância do papel ativo dos sujeitos na busca


de soluções para os problemas relacionados à sua realidade, parece pertinente
destacar a importância da Psicologia Social Comunitária diante a busca por
alternativas de desenvolvimento mais sustentáveis. Assim, o poder criativo e
inventivo do homem passa a ser colocado como questão chave diante da
sustentabilidade.

O psicólogo atua neste sentido como um analista-facilitador, que como um


profissional que toma as iniciativas de solucionar os problemas da comunidade.
Segundo Nisbet (1974), “comunidade abrange todas as formas de
relacionamento caracterizado por um grau de intimidade pessoal, profundeza
emocional, engajamento moral e continuado no tempo”.
Ela encontra seu fundamento no homem visto em sua totalidade e não
neste ou naquele papel que possa desempenhar na ordem social. Sua força
psicológica deriva de uma motivação profunda e realiza-se na fusão das
vontades individuais, o que seria impossível numa união que se fundasse na
mera convivência ou em elementos de racionalidade.
A comunidade é a fusão do sentimento e do pensamento, da tradição e
da ligação intencional, da participação e da volição. E Sawaia complementa: “O
elemento que lhe dá vida e movimento é a dialética da individualidade e da
coletividade.

171
A perspectiva da psicologia comunitária enfatiza que, em termos teóricos,
o conhecimento se produza na interação entre o profissional e os sujeitos da
investigação, e em termos de metodologia, utiliza-se sobretudo a pesquisa-
participante, a pesquisa-ação e a análise institucional.
Segundo William César Castilho, “a metodologia do trabalho comunitário
é válida ao passo que promove uma construção de conhecimento por parte de
intelectuais organicamente comprometidos, na qual a proposta de trabalho
comunitário pretende promover aos indivíduos procedimentos de autogestão,
desenvolvendo o sentido de cidadania neste processo. Este planejamento
desempenha papel fundamental para a conscientização que ajuda grupos e
indivíduos a identificarem as características históricas e sociais de seus
problemas e a criarem estratégias para a solução coletiva.”
Desta forma este, tipo de trabalho vai além do saber acadêmico e
científico, o saber popular ganha força e torna peça fundamental para a
elaboração de uma teoria própria das experiências cotidianas se firmam neste
âmbito.
A pesquisa-ação, segundo Nasciutti, “se define essencialmente pelo elo
entre o saber e o fazer. Ela parte de uma perspectiva epistemológica
interdisciplinar e que inclui assim diferentes saberes acadêmicos, além da
relação entre saber científico e saber popular (…) implicando como
consequência a reelaboração coletiva de aspirações e valores psicossociais, a
participação comunitária e a ação organizada.”

172
REFERÊNCIA

REFERÊNCIA:
- e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/42223/29270
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822008000300018
- https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/psicologia-
social-e-disciplinas-afins/321857-
- http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-
106X2010000200003
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-65552003000500004
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20032002000300001
- https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/psicologia-
institucional/10960
- https://www.studocu.com/pt-br/document/universidade-nove-de-julho/tecnologia-em-
comunicacao-institucional/resumos/psicologia-institucional-resumo/2591715/view
- https://revistas.ufpr.br/psicologia/article/viewFile/9447/11377
- https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/psicologia/psicologia-social-uma-analise-
critica-percepcao-outro.htm
- http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
68672019000300009&lng=pt&nrm=iso
- https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/sociologia/ideologia-ideologias-visoes-
mundo.htm
- https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/ideologia.htm
- http://www.acervofilosofico.com/alienacao-social
- https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1222.pdf
-
https://www.unitins.br/BibliotecaMidia/Files/Documento/BM_633856684394224298apo
stila_aula_2.pdf
-https://siteantigo.portaleducacao.com.br/-
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
89082015000200005
- https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/2593/3/20820746.pdf
-
https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/43250/1/Fl%c3%a1via%20Marina
%20Capa%20de%20Brito%20Lopes.pdf

173
Curso de Capacitação e Aperfeiçoamento
em Psicologia Social

Se ainda não adquiriu o CERTIFICADO de 120 HORAS pelo valor


promocional de R$ 57,00. Clique no link abaixo e adquira!

https://bit.ly/32k1opa

174

Você também pode gostar