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KELSEN E A TEORIA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

HUMPTY DUMPTY

Samuel Moreira Gouveia *

Pretende-se tratar, no presente ensaio, da relação entre “validade” e


“interpretação autentica”, elaborada por Hans Kelsen (1999) no último capítulo da
segunda edição da Teoria Pura do Direito. Com base nas elaborações críticas
realizadas por Troper (1981), se lançará a hipótese da impossibilidade jurídica ao
erro pelas Cortes Supremas, tomadas como intérpretes autênticos.
Tal assertiva se sustenta pelo fato que, uma vez estando no cume da
hierarquia judiciária, as Cortes Supremas possuiriam total liberdade jurídica na
criação de normas (entendidas como significação de textos) e na estipulação da
força normativa de diferentes textos. Essa liberdade jurídica decorreria da
capacidade de tais cortes prolatarem decisões irrecorríveis juridicamente. Ainda, a
mencionada liberdade se agudizaria pelo fato de que, entre os textos interpretados
pelas Cortes Supremas, encontram-se aqueles que prescrevem a sua própria
competência. Não raro, tal liberdade na atividade interpretativa seria direcionada no
sentido do aumento de poderes (i.e. competência), como no caso Marbury versus
Madison decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, ou na decisão Liberté
d'association, do Conselho Constitucional francês.
Se neste caso, uma eventual “norma fundamental” não pode mais ser
considerada como base para tomada de decisão na criação de normas jurídicas –
visto que a liberdade das Cortes Supremas decorre da inexistência de norma
reguladora e/ou sancionadora de suas decisões -, este espaço “fundante” não pode
ficar vago. Não é fortuito que teorias tão díspares como as de Troper (1981), Van
Hoecke (2002) ou mesmo a elaborada por Hart (2012) pressuponham uma
racionalidade fundada, cada uma a seu jeito, na pluralidade de atores.
A visão de um intérprete supremo e livre, no cume da ordem jurídica
hierarquizada passa a dar lugar a concepções de sistema jurídico como “rede”, além
da instituição de outras instâncias normativas. A sugestão que se trata
presentemente é que tal desenvolvimento decorre da percepção de impossibilidade
do uso da linguagem na forma de uma prática totalmente autônoma do âmbito social
(linguagem privada), sublinhada já na segunda filosofia analítica, principalmente nas
Investigações Filosóficas de Wittgenstein (1986).
Para o filósofo austríaco, o sentido de uma palavra ou de um enunciado é
estabelecido pelo seu uso em um determinado jogo de linguagem - mediado por
regras pragmáticas – o que pressupõe a pluralidade de atores. Em contraposição
aos jogos de linguagem, as práticas autônomas seriam aquelas cuja normatividade
não depende de nada além dela mesma, o que asseguraria sua correção. Esta seria
a posição das Cortes Supremas como intérpretes autênticos no modelo kelseniano,
sintetizada pela famosa afirmação do juiz Jackson, da suprema corte norte-
americana: “Nós não somos a última instância porque somos infalíveis, mas somos
infalíveis porque somos a última instância” (opinião concordante no caso Brown
versus Alle, 344US 443-1953).

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Doutorando pela Université Paris Ouest, em cotutela com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Endereço eletrônico: samuel_gouveia@yahoo.com.br.

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Contudo, ao invés de garantir a correção no processo de produção de
significação – i.e. de criação de normas -, a liberdade das práticas autônomas
destrói a probabilidade de tal correção, porque estar correto perde sua força, quando
a possibilidade de estar incorreto desaparece. Para Medina (2007, p. 164), “(…) o
argumento de Wittgenstein sugere a diferença entre parecer correto e ser correto
requer a possibilidade de negociação e correção mútua, que para tanto deve haver
diferentes centros de avaliações normativas”. As regras do jogo se desmoronam
quando o que conta como correto não pode ser contestado, quando o “ser” e o
“parecer” correto se confundem.
Pretende-se, portanto, demonstrar que, no sentido observado por Kelsen, as
Cortes Supremas se apresentariam como uma espécie de Humpty Dumpty,
personagem criado por Lewis Caroll (1986). Assim como o personagem, as Cortes
Supremas poderiam escolher livre e aleatoriamente o significado das palavras
utilizadas, entretanto, sem conseguir nada comunicar, haja vista a falta de
normatividade. Se sugere, portanto, que o paradigma kelseniano contrapõe a ideia
de jogo de linguagem, na forma entendida por Wittgenstein, a qual se utiliza
presentemente como paradigma crítico. Assim o é, visto que na concepção
wittgensteiniana, toda instância discursiva deve conter a possibilidade da incorreção
na sua pluralidade de núcleos normativos. Deve conter, sobretudo, a possibilidade
de negociações normativas, em um processo dialético de contestação e justificação -
possibilidade esta, eclipsada na análise kelseniana.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CARROLL, Lewis. The Complete Illustrated works of Lewis Carroll. Londres:


Bounty Books, 1986.
HART, Herbert Lionel Adolphus. The Concept of Law. 3ª ed. Oxford: Oxford
University Press, 2012.
KELSEN, Hans. Théorie Pure du Droit. Paris: L.G.D.J., 1999.
MEDINA, José. Linguagem: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre : Artmed,
2007.
TROPER, Michel. Kelsen, la théorie de l’interprétation et la structure de l’ordre
juridique in Revue Internationale de Philosophie. Paris, nº 138, 1981, p. 518-529.
VAN HOECKE, Mark. Law as communication. Oxford: Hart Publishing, 2002;
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell
Ltd, 1986.

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