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Giardia lamblia e giardíase

Maria de Fátima de Souza

Introdução

A primeira descrição de giárdia foi feita por Anton van Leeuwenhoek, em 1681,
observando suas próprias fezes diarreicas ao microscópio. Este parasito foi descrito com
mais detalhes por Lambl, em 1859; ou seja, quase dois séculos depois da descrição
inicial.

O parasito recebeu diversas denominações até ser inserido no gênero Giardia.


Depois disso, várias denominações também foram dadas para a espécie. Atualmente
admitem-se como sinonímia os termos Giardia lamblia, G. duodenalis ou G. intestinalis.
Nesse texto trataremos o parasito como G. lamblia. Atualmente, se reconhecem oito
genótipos dessa espécie, os quais são designados com as letras do alfabeto de A a G.

Este parasito intestinal é o agente causador da giardíase. É um ser unicelular,


flagelado, que pode parasitar o ser humano, animais domésticos e animais silvestres.
Ocorre tanto em países desenvolvidos, como em países em desenvolvimento. Nestes, a
deficiência dos serviços de saneamento básico determina incidência e prevalência muito
altas da doença; o que, em longo prazo, podem resultar em retardo do crescimento das
crianças parasitadas.

Biologia

Duas formas biológicas são encontradas no ciclo de vida de G. lamblia, o


trofozoíto e o cisto. O trofozoíto é a forma vegetativa do parasito, isto é, aquela que se
alimenta, se movimenta, se replica e vive no organismo do hospedeiro. Já o cisto é a
forma de resistência e sai do organismo do hospedeiro para o meio externo onde
permanece em forma latente até que seja ingerido por um hospedeiro.
A partir de estímulos ainda não muito bem elucidados os trofozoítos mudam sua
expressão gênica e passam a produzir uma série de substâncias, tais como a quitina, a
qual forma uma parede cística que reveste a membrana celular.

A parede cística confere resistência aos cistos de modo que estes podem
permanecer viáveis no ambiente externo por vários meses e ainda os protege na
passagem pelo estômago após ser ingerido. Os trofozoítos por não possuírem parede
cística são vulneráveis à desidratação, levando poucos minutos (máximo 30 minutos)
para serem destruídos se estiverem fora do organismo do hospedeiro.

O habitat de G. lamblia no organismo humano é o duodeno. Mas, em infecções


com altas cargas, o parasito pode ser encontrado também nas primeiras porções do
jejuno, nas vias biliares e até mesmo na vesícula biliar.

Morfologia

Os trofozoítos têm aspecto piriforme, quando vistos de frente; e medem de 10 a


20 por 5 a 15 micrômetros, no comprimento e largura, respectivamente. Apresentam
quatro pares de flagelos, dois corpos em forma de vírgula; e dois núcleos, cada um
contendo um grânulo de cromatina no centro, o cariossoma.

Os flagelos que emergem na ponta da célula (chamados de flagelos caudais)


atravessam longitudinalmente o citoplasma da célula. A porção intracitoplasmática
desses flagelos é chamada de axonema. G. lamblia não possui mitocôndria,
peroxissomos e, aparentemente, complexo de Golgi tradicional.

Essa célula apresenta uma face dorsal côncava e uma porção ventral plana. Na
porção mais larga da parte ventral encontra-se uma área ovoide que é rica em
microtúbulos, através da qual o parasito se adere às células intestinais. Essa área é
chamada de disco adesivo ou disco suctorial.

Os cistos são ovalados, medem de oito a 12 micrômetros em sua maior extensão,


apresentam grupos de axonemas no citoplasma, de dois a quatro núcleos, cujos
aspectos morfológicos são semelhantes aos núcleos da forma vegetativa; além das
estruturas em forma de vírgula. A forma infectante é o cisto tetranucleado.
Transmissão

Os cistos de G. lamblia são transmitidos pela rota fecal-oral direta ou indireta. A


infecção do hospedeiro se inicia quando o cisto tetranucleado é ingerido com água
contaminada por fezes humanas ou de animais, ou menos comumente, com alimentos
contaminados (principalmente frutas e vegetais que são consumidos crus) ou através
contato direto, isto é, pelas mãos sujas.

Resumindo...

Existem muitas evidências de que dejetos de animais e humanos


contaminam as fontes de água com cistos de G. lamblia. No entanto,
ainda não se sabe com que frequência ocorre a transmissão zoonótica.

Ciclo biológico

O ciclo é do tipo monoxeno, conforme representado na Figura 1. No hospedeiro


se passa a fase de reprodução por divisão binária dos trofozoíto. Os cistos formados no
intestino do hospedeiro são liberados com as fezes para o ambiente, onde se
disseminam e daí podem ser ingeridos pelos hospedeiros susceptíveis.
Figura 1 - Representação do ciclo de G. lamblia

Fonte: https://www.cdc.gov/parasites/giardia/pathogen.html

O desencistamento ocorre no intestino delgado, onde os trofozoítos se


colonizam, se reproduzem e aumentam sua população. O período pré patente (período
que decorre entre a penetração do agente etiológico e o aparecimento das primeiras
formas detectáveis do agente etiológico) na giardíase é de uma a duas semanas.

Patogenia e sintomatologia
G. lamblia secreta proteases que podem agir sobre as glicoproteínas da
superfície das células epiteliais do intestino e romper a integridade da membrana. Nesse
sentido, tem sido observado rompimento do epitélio intestinal e distorção das
microvilosidades no ponto de contato do disco adesivo com a membrana da célula.

Mas além da ação de enzimas, o contato do parasito com a célula do intestino


desencadeia uma resposta imunológica que ativa macrófagos, linfócitos T, linfócitos B
(estes produzem anticorpos IgA e IgE) e mastócitos (ativados por IgE). Uma vez ativados
os mastócitos produzem e liberam histamina, que causa edema da mucosa e contração
da musculatura lisa, com consequente aumento da motilidade do intestino.
Com isso, ocorre a renovação muito rápida das células responsáveis pela
absorção de nutrientes; causando má absorção principalmente de gorduras, de
vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K), algumas vitaminas do complexo B, lactose, além de
outros nutrientes. E, por conseguinte, diarreia com a presença de gordura, que é
conhecida como esteatorreia, que não é presente em todos os casos; mas que contribui
para agravamento do estado nutricional.

As manifestações clínicas na giardíase humana abrangem um amplo espectro,


variando desde queixas intestinais brandas e transitórias, auto resolutivas, até quadros
com diarreia (que pode ser com esteatorreia), cólicas abdominais e flatulência, com
duração de até dois meses, aproximadamente; outros sintomas que podem
acompanhar esse quadro clínico de curso agudo são náuseas e perda de peso.

Em pacientes subnutridos e em crianças a infecção pode assumir um curso


crônico com diarreia intermitente, perda de peso, má absorção (especialmente de
gorduras) e distúrbios no crescimento. Pode também ocorrer infecções assintomáticas
e, neste caso, os indivíduos podem ter grande importância na disseminação do parasito.
Tais diferenças podem estar relacionadas a fatores do hospedeiro, tais como,
estado nutricional, resposta imune, idade e infecções concomitantes; ou também
fatores relacionados ao parasito, tais como, diferenças na virulência e patogenicidade
da cepa.

Imunidade na giardíase

Tanto a resposta imune humoral quanto mediada por células têm sido
reportadas na giardíase humana. Evidências disso decorrem do fato que a infecção pode
ser autolimitante; e, por outro lado, indivíduos imunocomprometidos são mais
susceptíveis. Além disso, a presença de anticorpos das classes IgG e IgM anti-Giardia
têm sido detectados no soro de indivíduos com giardíase, em diferentes regiões do
mundo.
Também se reconhece a importância funcional do tecido linfoide associado à
mucosa, em função da população de células plasmáticas produtoras de anticorpos que
secretam principalmente os da classe IgA. Esses anticorpos se ligam aos trofozoítos
impedindo-os de se aderirem à mucosa.
Já a imunidade mediada por células certamente desempenha um papel
importante na mucosa, visto que os linfócitos são encontrados em grande número na
lâmina própria e dentro da camada epitelial.
No contexto da imunidade em giardíase alguns fatos têm chamado a atenção. O
primeiro refere-se à maior prevalência da infecção em crianças, em relação aos adultos
vivendo sob as mesmas conduções socioambientais. O outro refere-se ao fato de que
Giardia pode infectar o mesmo indivíduo repetidas vezes, apesar da produção de
anticorpos específicos.

Trabalhos recentes esclareceram que existem cerca de 190 genes responsáveis


pela produção das proteínas variantes específicas de superfície (PVS) em Giardia. E que
a expressão dos genes das PVS é mudada durante o processo de encistamento e
desenciatmento, bem como durante a fase de crescimento vegetativo.

Portanto, uma mesma cepa pode apresentar grande variação antigênica. Isso
ajuda a explicar porque as sucessivas infecções por G. lamblia na infância pode resultar
na aquisição de uma resposta imune mais efetiva contra o parasito quando o indivíduo
estiver na fase adulta.

Métodos de diagnóstico laboratorial

Exames parasitológicos de fezes para a pesquisa de cistos e trofozoíto são os mais


comuns em nosso meio. Como os trofozoítos são eliminados em casos de diarreia, o
exame a fresco do material fecal deve ser examinado imediatamente após a evacuação.
Esse material também pode ser fixado para a confecção e coloração de lâminas.

Para a pesquisa de cistos em fezes pastosas ou formadas podem ser utilizados


vários métodos de concentração. Dentre os quais podemos citar o método de Lutz, o
método de sedimentação por centrifugação em formol-éter; e o método de centrífugo-
flutuação em sulfato de Zinco, ou método de Faust e colaboradores.
Dentre os métodos imunológicos, o teste ELISA para a pesquisa de coproantígeno
vem sendo muito utilizado.

Epidemiologia

As águas superficiais podem ser contaminadas a partir do lançamento de esgotos


domésticos contendo dejetos humanos ou de animais, seja em áreas rurais ou urbanas.
Durante o tratamento da água, os processos de filtração se constituem barreiras
importantes para reter os cistos. Já a desinfecção com cloro, que se constitui barreira
fundamental contra vários patógenos de transmissão hídrica, é pouco efetiva contra
cistos de Giardia.

Os genótipos A e B que são comumente encontrados nos seres humanos,


também já foram reportados em caprinos, ovinos, bovinos, suínos e equinos, em
diversos países incluindo o Brasil. Desse modo, para o controle da transmissão deve se
levar em conta a distribuição dos casos humanos, mas também o manejo dos animais
nas propriedades rurais, a fim de proteger as fontes de água. O genótipo C que é típico
de cães foi recentemente identificado em humanos, em um estudo realizado em
campinas, São Paulo.

Como ressaltado anteriormente, além dos fatores ambientais, existem também


os fatores de risco referentes ao hospedeiro, dentre os quais a idade e o estado
nutriconal. Sendo as crianças mais susceptíveis que os adultos.

A prevalência da infecção por giárdia varia entre os estudos, mesmo quando se


utilizam os mesmos métodos. Pois como referido acima as condições ambientais são
fatores determinantes para a ocorrência ou não desta infecção. Para se ter uma ideia da
distribuição geográfica da infecção nos nosso país, seguem os achados de alguns estudos
sobre a frequência deste parasito em exames coproparasitológicos (Quadro 1).
Quadro 1: Frequência de G. lamblia em exames coproparasitológicos, em alguns estudos
realizados no Brasil
Faixa Característica Método de Frequência Período Local de Citação
etária da amostra estudo (%) do realização
estudo
(anos)

0a5 Cadastrados em Sedimentação 18,9 2002 Natal, RN Santos et al.


Programa Social espontânea (2003)
(SE)

1a5 Atendidos em Pesquisa em 15,5 Abr/2005- Monte Alegre, Silva (2007)


hospital público prontuário ago/2006 RN
(AHP)

0 a 10 AHP SE 42,4 2002- Cumari, GO Borges, Marciano


2008 e Oliveira (2011)

0a5 Matriculados SE 35,2 1995 - Natal, RN Souza, Moreira,


em creches 2010 Ximenes (2013)
(MC)

2a6 MC SE + Faust e 24,6 2012 Florianópolis, Santos et al.


cols. SC (2014)

5 a 15 Escolares SE 0,3 Não Flores da Cavagnolli et al.


informado Cunha, RS (2015)

Suarez-Fontes,
Fontes e Vannier-
9 a 19 Escolares SE 2,2 2008- Salvador, BA Santos (2017)
2014

Medidas de prevenção e controle da giardíase

Uma medida básica de prevenção da giardíase é a proteção contra a


contaminação dos mananciais por fezes de homens e animais. Nesse contexto se inclui
a combinação de componentes, tais como, controle da poluição, manejo da captação e
tratamento eficiente da água a ser consumida pela população humana; além de um
efetivo tratamento das águas residuais.
Outras medidas referem-se ao diagnóstico e tratamento dos infectados para
evitar o adoecimento ou o agravamento da doença e para cessar a eliminação de cistos.
Além disso, deve se investir em medidas educativas a fim de que as pessoas
tenham consciência do problema, e assim possam adotar o hábito de lavar as mãos,
sempre que necessário; lavar com água limpa os alimentos que são consumidos crus; e
utilizar água não contaminada para irrigar vegetais folhosos e outras hortaliças.
Para refletir!!!

O abastecimento de água potável é fundamental para proteger a


saúde pública. Sendo assim, perceba o desafio, a necessidade e a
responsabilidade para se proteger os mananciais em uma região semiárida
como a que está inserida nosso estado!!!

Nota sobre tratamento da giardíase

Dentre os fármacos disponíveis para o tratamento da infecção por G. lamblia


encontra-se o metronidazol. De toda forma, o tratamento medicamentoso deve ser
orientado por profissionais com formação e competência técnica para isso.

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