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DIGITAL DEVIL STORY:

MEGAMI TENSEI
- A Ressurreição da Deusa -
DIGITAL DEVIL STORY:
MEGAMI TENSEI
- A Reencarnação da Deusa -
Autor: Aya Nishitani
Ano: 1996

Tradução: Mangekyou54

Nerd, Uai! Vídeos, Games e Tradução


(www.nerduai.blogspot.com.br)
Prólogo
Prólogo: Capítulo 1

Essa história aconteceu dezoito anos atrás, quando a maioria das


pessoas nem sabia da existência da internet, e computadores pessoais
eram vistos como equipamentos secundários.
Na cidade de Kuniritsu, satélite de Tóquio, havia uma escola
chamada Jusho. Tudo começou nessa escola, quando um dia um aluno
alto entrou correndo na sala, como se estivesse atrasado para a aula.
- Nakajima é você?
O aluno parou na frente da carteira de Akemi Nakajima, um belo
rapaz que se destacava entre os outros da classe, e bateu na mesa como
que para ameaçá-lo.
- Sim, sou eu...
Ignorando a vibração repentina que a mesa transferiu para o seu
corpo, Nakajima se levantou resolutamente e olhou o colega nos olhos.
Era Hiroyuki Kondo, o capitão do clube de karatê e uma espécie de
“chefe” entre os alunos da escola. No passado, ele fez mais de um aluno
que ousou se opor a ele mudar de escola – normalmente por meios
violentos. Mas Nakajima nunca tinha interagido com Kondo antes. De
fato, ele nem conseguia imaginar o que poderia ter feito para deixá-lo
tão bravo.
“O que ele quer? Eu não fiz nada.”
Nakajima respirou fundo e começou a abrir sua delicada boca
para falar. Naquele momento, ouviu um sorrisinho contido atrás de si.
Virando a cabeça, Nakajima viu uma garota encantadora, uma que
quase nem parecia ser uma simples estudante, olhando para ele como
um gato cujo olhar é inocente e ao mesmo tempo cheio de malícia. Era
Kyoko Takamizawa, uma das suas colegas de classe. E de repente,
Nakajima entendeu tudo.
- Espera!
No mesmo instante em que Nakajima falou, um punho atingiu o
seu estômago. Sem chance sequer de gritar, Nakajima caiu de joelhos,
enquanto Kondo deu sequência ao soco com um chute baixo. Esse foi
seguido por mais dois chutes, um no peito e o outro um pouco abaixo
do estômago – planejados cautelosamente, aplicados com força o
bastante para ferir gravemente, mas não nocautear o alvo. Os colegas
de classe de Nakajima, temendo serem envolvidos, começaram a sair
da sala um a um.
- Me escute... – Nakajima tentou ao máximo protestar, mas sua
voz foi silenciada quando o pé de Kondo veio voando até a sua boca, e
suas lágrimas e saliva espirraram pelo chão.
- Não quero ouvir suas desculpas. Você tem que aprender o que
acontece com quem importuna a Kyoko.
Kondo chutou Nakajima nas costas, fazendo-o cair com o rosto
no chão. Kyoko, que o tempo todo ficou vendo ele ser surrado, se
ajoelhou na frente dele e tocou seu lábio superior com o dedo
indicador.
- Ele tem uma cara que até parece uma mulher, e ainda teve a
audácia de tentar me beijar!
- Mentirosa...
Na verdade, foi Kyoko quem tentou beijá-lo, mas Nakajima a
recusou. Com o orgulho ferido, Kyoko usou Kondo, que sempre foi
louco por ela, para se vingar. Mas Nakajima não tinha nenhum amigo
para comprovar a história. O único que ainda estava na sala era seu
colega Kenichi Takai, e mesmo assim só olhava de canto,
aparentemente não tendo coragem para impedir Kondo.
Levantando Nakajima do chão facilmente com a mão esquerda,
Kondo enfiou a mão direita em seu estômago de novo. Era uma dor que
parecia que o seu coração estava sendo arrancado, e Nakajima tentou
gritar. Mas, sem fôlego, ele não conseguia nem inalar nem exalar, e
tudo que saiu dos seus lábios feridos foi um grunhido patético.
Nakajima sempre foi uma espécie de dissidente solitário, nunca
prejudicando nem brigando com ninguém, então nunca tinha levado
uma surra dessas antes. E pensar que era por um motivo idiota como
rejeitar uma garota! As sensações combinadas de dor, raiva e
humilhação consumiram Nakajima, e a ferida na sua mente começou a
sangrar gota a gota. Vendo-o assim, Kyoko olhava Nakajima com uma
expressão de puro êxtase nos olhos, e riu alto. O som da sua risada
estridente reverberando pela sala de aula perfurou os tímpanos de
Nakajima e ecoou no seu crânio, despertando lá no fundo uma emoção
que ele jamais tinha vivenciado.
“Desgraçada... Você vai ver... Você não vai se safar dessa...”
Os olhos de Nakajima se acenderam com um olhar feroz e
violento que ele nunca tinha demonstrado antes.
- Que olhar é esse?
Kondo se assustou por um instante com o olhar de Nakajima, e
como que bravo consigo mesmo por titubear, deu outro soco no rosto
dele. Ao som do dente de Nakajima quebrando, Kyoko disse:
- Ei, acho que já está bom.
Ela disse de modo a dar a entender que tinha perdido o interesse
naquilo. Era a voz de uma mulher suja, covarde, preocupada apenas
consigo mesma. Se Nakajima apanhasse mais, ela correria um sério
risco de ser considerada responsável.
- Ei, que sortudo você! Parece que vai sobreviver. Tenho que
admitir que estou surpreso com como você é fraco. Bater em você foi
só desperdício de energia. – contorcendo a boca num sorriso, Kondo
jogou o corpo de Nakajima no chão como se fosse um boneco de pano.

Uma hora depois, depois de finalmente conseguir se mexer,


Nakajima chegou à estação ferroviária Chuo-sen com a ajuda de
Kenichi Takai.
- Por que não sentamos? – enquanto apoiava Nakajima, Takai
balançou a cabeça na direção de dois bancos vazios um ao lado do
outro?
- Hã? Ah, claro.
Nakajima desmontou no banco e olhou para a frente
resolutamente, o tempo todo se arrependendo do dia em que se
matriculou naquela escola.
O Colégio Particular Jusho tinha fama e prestígio, e todo ano mais
de vinte dos seus alunos eram admitidos na Universidade de Tóquio.
Mas todos que tinham algum conhecimento de como a escola
funcionava tinham de admitir a extrema estratificação entre os alunos.
A escola era dividida em duas categorias: os “comuns” e os
“talentosos”, que tinham acesso a instalações melhores, um currículo
melhor, materiais de ensino melhores, e em geral eram muito mais
favorecidos. Os “talentosos”, que eram apenas cerca de 20% do corpo
estudantil, eram sempre alvo da inveja e desprezo dos demais. Com
tamanha diferença de tratamento entre os alunos, os incidentes
violentos causados por essa inveja eram, de certo modo, inevitáveis.
Nakajima e Takai faziam parte dos talentosos. Com seu corpo
esguio e aparência delicada, se Nakajima trocasse seu uniforme por um
feminino, poderia facilmente se passar por uma bela adolescente. A
aparência de Takai, por outro lado, era quase que o completo oposto.
Ele tinha um corpo rígido e dedos grossos devido ao exercício do Judô,
que praticava desde o ensino fundamental. Mas sua personalidade não
era tão forte quanto a sua aparência, e quando ele colocava seus óculos
de armação verde, quase parecia uma criança.
- Aquele Kondo, ele parecia ainda pior que o normal hoje... –
Takai falou quase que pedindo desculpas; ele se sentia um pouco
culpado por não intervir e ajudar Nakajima.
Nakajima levantou uma sobrancelha e respondeu sem
entusiasmo:
- A energia dele dobra quando está perto de uma mulher.
- Mas o que alguém como a Kyoko está fazendo na classe dos
talentosos afinal? Além do mais, é óbvio que você nunca daria em cima
dela.
- Na verdade, foi o contrário.
- Então foi a Kyoko que foi rejeitada... – Takai comentou como se
de repente tudo fizesse sentido. Muitas garotas se interessavam por
Nakajima, mas até agora nenhuma tinha conseguido chamar a atenção
dele. Vendo essa indiferença, Takai sempre imaginou que Nakajima
devia ser extremamente exigente com mulheres.
Os dois se sentaram um ao lado do outro em silêncio enquanto o
trem passava pela estação de Musashi-Sakai. Takai olhou longamente o
perfil de Nakajima. Entre os alunos da classe dos talentosos, as notas
de Nakajima não eram particularmente altas. Ao contrário de Takai,
que tirava boas notas em praticamente tudo, Nakajima só era bom
mesmo em matemática e ciência. Nas artes mais liberais, o único tema
em que ele demonstrava grande potencial era História Geral. Ele não
era muito bom atleta também. Mas quando o assunto era
computadores, ninguém na escola chegava sequer perto de ser tão bom
quanto Nakajima – nem mesmo os professores. Takai achava que
provavelmente não havia ninguém tão bom quanto Nakajima nessa
área em todo o Japão, muito menos na escola. Os jogos que Nakajima
programava em questão de dias eram fantásticos. Por mais populares
que fossem, os jogos comerciais pareciam simplesmente chatos depois
de jogar um de Nakajima. Às vezes o rosto de Nakajima parecia mesmo
o de um louco quando ele se debruçava sobre um dos terminais
desenvolvendo programas na sala de informática da escola, com seus
dedos voando pelo teclado.
“Se eu sou um prodígio, então Nakajima deve ser um gênio
formado.”, pensou Takai consigo mesmo enquanto voltava seu olhar
para a paisagem do lado de fora da janela.
- Demônios, hein...? – as palavras escorregaram da boca de
Nakajima de repente.
- Hã?
- Não, nada.
- Você disse...?
Enquanto Takai buscava as palavras para dizer alguma coisa, o
trem chegou à estação Nishi-Ogikubo.
- Tchau.
Nakajima começou a descer as escadas da estação com os
ombros curvados e uma expressão de meditação no rosto.
- Nossa, no que será que ele está pensando? – Dando as costas a
Nakajima, Takai se espalhou pelos dois bancos agora vazios do trem.
Prólogo: Capítulo 2

Atrás do distrito comercial, um outdoor com os dizeres “Tudo à


Venda” chamava a atenção num edifício recém-construído. Nakajima
caminhava em linha reta, olhando para baixo e movendo os lábios
continuamente. Para qualquer transeunte, ele pareceria um estudante
comum, perdido em concentração para tentar memorizar algo para
uma prova. Mas as poucas pessoas que ouviam um fragmento das
palavras que ele estava falando se viravam e o direcionavam um olhar
de suspeita. Isso porque elas pareciam um recital baixo e hostil de uma
magia negra, e isso não é exatamente algo que se espera ouvir de um
estudante do ensino médio. Uma flor de cerejeira caiu de um muro de
concreto próximo e encostou na bochecha de Nakajima, mas ele a
ignorou e continuou andando, com os olhos fixados no chão. Quando
finalmente olhou para cima, ele estava na frente de um edifício
residencial excepcionalmente alto. Colocando a chave eletrônica na
fechadura, as portas de vidro automáticas se abriram com um som
pesado. A entrada do prédio era decorada com um extravagante
mármore canadense, mas ainda parecia um tanto artificial. Uma vez lá
dentro, Nakajima respirou fundo e endireitou o corpo.
Nakajima entrou no elevador e apertou o botão do 13º andar.
Com a mudança na pressão atmosférica, seu corpo começou a tremer,
lembrando-o do desagradável acontecimento da tarde. Uma placa de
cobre com a palavra “NAKAJIMA” estava fixada na porta do
apartamento 1302. Nakajima tocou a campainha, mas ninguém
atendeu. Deixando escapar um suspiro, destrancou a porta.
Abrindo a porta e entrando, Nakajima tirou os sapatos, jogou
num canto qualquer e foi para o banheiro. O lábio ferido do rosto no
espelho inchou como um balão, e estava um tanto desagradável de se
olhar. Sua bochecha esquerda também tinha um hematoma amarelado.
Depois de se olhar um pouco no espelho, Nakajima abriu a torneira e
molhou o rosto. Voltando à sala de estar e desabando no sofá, percebeu
um bilhete na mesa de canto.
“Vou demorar numa reunião. Esquente o jantar no micro-
ondas”...
Nakajima amassou o bilhete sem terminar de ler.
- Se vai usar a mesma desculpa velha, devia tirar uma cópia de
uma vez.
Depois que o pai de Nakajima foi transferido para a sede da
empresa em Los Angeles, sua mãe ficou cada vez mais envolvida com o
seu trabalho de designer. Às vezes ela só chegava em casa de
madrugada. Ao imaginar o rosto da mãe, a raiva contida de Nakajima
de repente se acendeu. Bem naquele momento, o telefone tocou. Claro
que devia ser a mãe dele. Deixando o telefone tocar, Nakajima abriu a
porta do seu quarto.
O quarto de Nakajima era um tanto lúgubre, sem um único
enfeite ou pôster na parede. Excetuando a parede da janela, todas as
outras eram cobertas de grandes estantes que iam até o teto. As
estantes tinham revistas de anime e mangás, como era de se esperar do
quarto de um estudante, mas um canto parecia decididamente fora de
lugar. Aquela estante estava cheia de livros sobre magia e feitiçaria,
com títulos como “O Livro dos Mortos” e “Manuscritos Pnakóticos”.
Sobre a sua mesa de metal havia um computador totalmente equipado,
e ao seu lado um livro de referência em magia chamado “A Teoria do
Novo Amanhecer Dourado”. Pela aparência desgastada da capa de
couro, ficava claro que o livro era muito usado.
Nakajima puxou a cadeira e sentou na frente do monitor. Ligando
os alto-falantes, a voz de David Coverdale preencheu a sala. Os dedos
de Nakajima começaram a voar pelo teclado.
> LIST
Inserindo o comando, um programa muito longo rolou pela tela.
Acompanhando a lista do programa com olhos afiados, Nakajima
começou a digitar as teclas num ritmo fluente.
Nakajima começou a se interessar por magia quando teve a
oportunidade de ler “A Teoria do Novo Amanhecer Dourado”. Apesar
de o livro ter uma linguagem superficial e, logo, a interpretação ser
difícil e pouco produtiva, Nakajima leu até o fim. Embora o mundo da
magia tivesse um apelo por abrigar um lado obscuro e sinistro,
também demonstrava um realismo racional e científico. Enquanto relia
passagens que lhe pareciam estranhas pela segunda ou terceira vez,
Nakajima chegou a uma repentina percepção que foi quase uma
epifania.
A teoria da magia e a teoria da computação eram
surpreendentemente semelhantes.
À primeira vista, os dois mundos pareciam não ter nenhuma
relação. Todavia, as semelhanças entre eles foram descobertas tanto
por pesquisadores da magia quanto pelos da tecnologia de informação
muito antes de Nakajima. Charles Feed, um professor do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts, famoso pelo seu estudo de inteligência
artificial, foi um deles. Nakajima logo se tornou membro do seu grupo,
o JSI (Jardim Satânico Internacional), e durante os últimos meses, se
dedicou a desenvolver um programa para evocar demônios, uma ideia
que ele mesmo desenvolveu.
E estava quase completo.
Nakajima já tinha terminado a raiz do programa. Tudo que
precisava fazer agora era adicionar algumas subrotinas e ele estaria
pronto. Mas até ontem, Nakajima tinha reservas quanto a concluir o
projeto. Se a sua teoria estivesse correta, o programa sem dúvidas
traria um demônio ao mundo. Mas até agora, Nakajima não tinha
nenhum motivo específico para evocar um demônio; ele nem saberia o
que fazer com ele. Mas os eventos do dia lhe deram um objetivo
simples e claro.
- Sinto muito, mas você vai ser cobaia de uma pequena
experiência.
Nakajima começou a criar as últimas subrotinas.
- O endereço de dados 3780-3990 acessará as pernas de sapo. É
só colocar isso no buffer e, antes do resultado ser exibido, recitar o
feitiço. "Yod, Dur, Dawr, Set". O que será que esse feitiço significa?
Pegando o modem transmissor, Nakajima ligou para Arkham,
Massachusetts, para se conectar com o servidor do JSI. Quando a
conexão foi estabelecida, a tela do computador se encheu com a
imagem do demônio Lúcifer. Conectando à inteligência artificial, Craft,
e explicando a situação, ele perguntou sobre o feitiço. O inglês de
Nakajima não era particularmente bom, então várias vezes a única
coisa que aparecia na tela eram pontos de interrogação.
> OK, I UNDERSTAND.
Finalmente Craft parecia ter entendido. Nakajima perguntou à IA
o que o feitiço significava.
> PERHAPS IT'S ONLY A COUNTER?
A resposta de Craft indicava que o feitiço provavelmente era
apenas um contador de tempo.
> THANK YOU, CRAFT.
Encerrando a conexão com o JSI, Nakajima retomou a tarefa de
programar as subrotinas. Duas horas depois, houve uma batida na
porta do quarto.
- Pode entrar. – com um leve indício de irritação na voz,
Nakajima respondeu à batida sem tirar os olhos da tela.
- Você jantou?
Nakajima não respondeu, e apenas continuou digitando no
teclado.
- Meu Deus, o que aconteceu com a sua boca? – a mãe de
Nakajima se agachou perto dele para olhar bem o seu rosto.
- Bati de cara na trave enquanto jogava futebol. – Nakajima parou
de digitar e olhou para sua mãe. Ele era muito parecido com ela, que
era uma bela mulher com um rosto esguio. Quando eles estavam
juntos, não era incomum serem confundidos com irmãos. Quanto à
educação do filho, ela era muito conservadora; queria que ele fosse
para a Faculdade de Medicina da Universidade Keio. Claro que o
registro acadêmico dele estava fraco demais para isso acontecer.
- Não é melhor colocar algum remédio?
- Está tudo bem, mãe. Não é nada sério.
Irritado pela sua programação ser interrompida, Nakajima
digitava aleatoriamente no teclado.
Bip. O computador fez um ruído estranho e uma mensagem de
erro apareceu na tela. Como que percebendo que seu filho não ia lhe
dar nenhuma atenção, a mãe de Nakajima saiu do quarto, como que
desistindo.

Na mesma noite, às três da manhã.


- Pronto, terminei! – Nakajima se levantou empolgado da cadeira.
> RUN
O HD começou a emitir um zumbido, e letras bizarras piscaram
na tela. Mas em menos de cinco minutos, a tela mostrou uma
mensagem de erro e travou.
> OUT OF MEMORY
Se não havia memória suficiente para o programa,
provavelmente ou era porque o programa em si era pesado demais ou
porque incorporava mais variáveis do que a máquina podia lidar.
- Não importa. Um computador caseiro não conseguiria rodar um
programa como esse mesmo. Se eu usar o computador ligado ao
servidor da escola, deverá ser memória mais que suficiente.
Os olhos de Nakajima brilhavam de ansiedade.
Prólogo: Capítulo 3

Na mesma semana, às 19h do sábado, o professor Iida, que


estava de plantão à noite, percebeu que havia alguém na sala de
informática e abriu a porta.
- Quem está aqui a essa hora?
Ao ouvir a voz dele, um aluno se ergueu de detrás de um dos
terminais, seu rosto brilhando estranhamente com a luz emitida pelo
monitor. Iida ficou mais calmo.
- Ah, é você, Nakajima. O que faz aqui com todas as luzes
apagadas?
O registro acadêmico de Nakajima estava longe de ser perfeito,
mas a sua genialidade o fez cair no agrado dos professores de
matemática e ciências e ganhar a confiança deles.
- Meus programas não estão funcionando como quero. Mas estou
quase acabando as correções. – a voz de Nakajima parecia levemente
metálica, como que ajustada ao barulho das máquinas.
- Você sabe que fico muito feliz com o seu entusiasmo, mas
também sabe que precisa pedir permissão antes se quiser usar essa
sala assim tão tarde. Sorte sua que fui eu quem te achou, senão as
coisas podiam ficar complicadas. – repreendendo Nakajima, Iida
acendeu as luzes.
- O que é isso?! – a voz de surpresa de Iida ecoou pela sala agora
iluminada. Uma grande figura geométrica estava desenhada no chão
em giz branco e vermelho, com a cadeira de Nakajima situada no
centro.
- É o Selo de Salomão.
- Salomão? Parece coisa de ocultismo. – Nakajima não prestou
atenção ao sarcasmo de Iida, enquanto seus dedos deslizavam pelas
teclas do terminal. No mesmo momento, o computador do servidor,
localizado na sala de máquinas adjacente, separada por grossas
paredes de vidro, começou a funcionar.
- Ótimo, consegui remover todos os bugs. Está pronto!
Depois de enviar um comando para a impressão do conteúdo da
lista do programa, Nakajima se levantou e se virou na direção de Iida.
Seus olhos femininos de amêndoa emitiam um brilho diabólico. A
ferida no lábio causada pela briga com Kondo já tinha sarado, mas a
empolgação reabriu o corte, e um filete de sangue fresco molhou sua
mandíbula. O olhar de Iida ficou grave.
- Certo, Nakajima, quer me explicar exatamente que tipo de
programa você está rodando no computador da escola? E sem
permissão, diga-se de passagem?
Nakajima arrumou a franja e respondeu com indiferença:
- Eu desenvolvi um programa que evocará demônios. Esse
hexagrama está aqui para me proteger deles. Em poucos momentos,
um demônio vai aparecer. Professor, você devia entrar também. Caso
contrário, pode ser feito em pedaços.
Por um instante, Iida ficou boquiaberto, mas logo lançou um
olhar severo em Nakajima.
- Você ficou louco?
- Quem ficou louco, eu ou essa escola? Professor, olhe bem para
mim. Esse machucado na minha boca, a contusão no meu rosto. Eu
levei uma surra do Kondo do clube de karatê. Kyoko Takamizawa é tão
culpada quanto. A escola simplesmente deixa animais selvagens como
eles andarem soltos, e não faz absolutamente nada para contê-los. Não
importa o que aconteça comigo na sala de aula, os professores e alunos
simplesmente fingem que nada aconteceu. A violência que acontece
nessa escola é clara como o dia, mas ninguém é punido. E vocês,
professores, se escondem e ficam esperando esses alunos se formarem.
Fechando os olhos, esperam a calamidade passar sozinha. Afinal, são só
dois ou três anos. Mas eu só vou ser estudante uma vez. Não vou mais
deixar eles fazerem o que querem. Eu vou evocar um demônio e
executar esses insetos irritantes. – Nakajima falava com cada vez mais
fervor e seus ombros se erguiam e baixavam em ressonância com sua
respiração abafada.
Nakajima deu as costas ao chocado Iida e voltou ao teclado.
> RUN
Quando o último comando foi exibido no monitor, a fita
magnética do computador do servidor começou a girar. Iida tentou
gritar para Nakajima parar o computador. Mas no instante em que
abriu a boca, uma brisa gelada tomou conta dele, cobrindo os seus
braços de arrepios.
- Evocar demônios com um computador... Que conceito! – Iida
contorceu seus lábios num sorriso para esconder o medo.
- A teoria da computação e a teoria da magia têm muitas coisas
em comum. Aposto que a primeira pessoa que elaborou os princípios
da computação foi um alquimista ou cabalista. Poucos sabem disso,
mas coisas como feitiços, sacrifícios e círculos taumatúrgicos são muito
fáceis de converter em formato binário. Evocar um demônio é
basicamente transferir a matéria que o compõe do Mundo Atziluth
para o mundo real, Assiah, e um computador é um mecanismo perfeito
para facilitar isso.
Enquanto Nakajima explicava sua teoria, o ar frio girava em
torno de Iida quase como uma criatura viva, e um odor bizarro
penetrou em suas narinas. As luzes da sala se apagaram, mergulhando
tudo em escuridão, restando apenas o barulho das máquinas. O
computador começou a emitir um ruído baixo.
"Yod, Heh, Vav, Heh." Para os ouvidos de Iida, o ruído parecia
palavras de verdade.
- Yod, Heh, Vav, Heh. – enquanto murmurava em sincronia com o
computador, Nakajima continuou a digitar comandos no teclado com
uma velocidade inacreditável. Logo a sala inteira começou a tremer
como um terremoto, e as janelas começaram a trincar. Ao mesmo
tempo, Nakajima inseriu seu comando final.
> KILL! HIROYUKI KONDO, KYOKO TAKAMIZAWA!
Iida não gostava de alunos como Hiroyuki Kondo e Kyoko
Takamizawa. Na verdade os odiava. Mas sentia ainda mais repulsa pela
maneira com a qual Nakajima pretendia se livrar deles.
- Pare com essa tolice. Se você quiser, eu mesmo posso assumir a
investigação do incidente e fazer Kondo ser expulso. Mas pare de fazer
isso!
Andando com dificuldade na sala que tremia, Iida tentava
desesperadamente alcançar o interruptor de energia do computador.
Para impedi-lo de interferir, Nakajima agarrou o braço dele com uma
força que ninguém sequer imaginaria que ele tinha capacidade de
manifestar. Enquanto os dois lutavam, o tremor começou a diminuir.
As luzes fluorescentes se acenderam e clarearam a sala, enquanto o ar
gélido ao redor do corpo de Iida se dissipou.
- Onde você foi?! Por que não aparece? Demônio, você vai me
abandonar?
Gritando, Nakajima correu para o teclado.
> KILL! KILL!
Mas a fita magnética do computador servidor começou
lentamente a parar de girar. Abrindo nervosamente a lista do
programa, Nakajima escaneou os detalhes da execução com olhos
desesperados e ficou imóvel, como se de repente toda a sua vitalidade
tivesse sido sugada.
- O meu programa era perfeito. Não havia um só bug nele. Então
por que o demônio se foi antes de aparecer? Ele devia ter aparecido
bem aqui! – deixando a tela do programa aberta, Nakajima saiu
correndo da sala de informática como que em transe. Vendo a cena
ainda incrédulo, Iida finalmente se recompôs e desligou a energia do
computador.
- Acho que é verdade o que dizem sobre haver uma linha tênue
entre genialidade e insanidade. Mas esse foi um terremoto e tanto... –
murmurou Iida, como que tentando esquecer a horrível experiência.
Prólogo: Capítulo 4

Na semana seguinte, Iida levou a turma de Akemi Nakajima e


Kyoko Takamizawa para uma aula de matemática na sala de
informática. Talvez por ele ter estado lá para testemunhar o fracasso
da evocação, Nakajima olhava para Iida com um olhar desafiador. Até
agora, ele nunca teria agido assim. Tentando ao máximo ignorá-lo, Iida
continuou a aula.
- Agora vocês farão uma prova no computador, mas não se
preocupem, as notas não serão consideradas. O objetivo dessa prova é
fazer vocês conhecerem melhor quaisquer pontos fracos que possam
ter através da interação com o computador. Comecem inserindo os
comandos assim que eu der o sinal.
Todos os alunos se concentraram na tela e começaram a
responder as perguntas, enquanto os computadores diligentemente
registravam as respostas.
“Quando o uso da tecnologia no ensino se popularizar, tudo
ficará bem mais fácil para nós, professores. Por outro lado, do jeito que
as coisas estão, pode chegar o dia em que nem precisarão mais dos
professores...” - Iida observava a classe tranquilamente enquanto
ponderava.
De repente, como que vinda das profundezas da própria terra,
uma voz funda, retumbante, ecoou pela sala de informática.
"Yod, Heh, Vav, Heh."
A fita magnética do computador do servidor começou a girar
violentamente e as telas dos computadores da sala começaram a
oscilar. Cores sinistras e imagens estranhas brilhavam na tela, e
símbolos estranhos, vagamente semelhantes a letras, apareciam e
desapareciam. Os alunos não disseram nada, mas continuaram fixados
nas suas telas, como que hipnotizados.
- Nakajima, isso é coisa sua, não é? Olha, não tem nada demais
numa travessura aqui e ali, mas tudo tem limite! – contorcendo o rosto
durante a bronca, Iida começou a caminhar em direção à cadeira de
Nakajima, mas assim que começou a andar, um aluno da primeira fila
esticou a perna no caminho, fazendo o professor tropeçar e cair
desajeitadamente. Enquanto Iida tentava se levantar, outros dois
alunos pularam nas suas costas, prendendo-o no chão e segurando os
seus braços nas costas.
- O- O que vocês estão fazendo?! Parem com isso agora mesmo! –
acuado pela repentina hostilidade dos seus alunos, Iida se esforçava
para erguer a cabeça. Os outros alunos, observando com olhos
congelados como que num transe, se levantaram dos seus assentos.
Três deles saíram da sala de aula, e os outros começaram a cercar
Kyoko Takamizawa.
Completamente pálida, Kyoko olhava sem palavras enquanto
seus colegas de classe a cercavam. Seus olhos de gato estavam cheios
de medo, seus lábios tremiam embora estivessem fechados como se
tivessem sido colados. Um aluno de óculos enormes colocou a mão no
seu peito, e como que libertada de uma maldição, Kyoko pulou da
cadeira.
- Fique longe de mim, idiota! – Kyoko gritou desesperadamente,
sacando um canivete escondido entre o seu polegar e dedo médio.
- Pare, Takamizawa! Corra! – a voz trêmula de Iida ecoou pela
sala de aula. Mas Kyoko apenas lançou um olhar de rabo de olho para
seu professor imobilizado e cravou o canivete no aluno que a havia
tocado. Os óculos do aluno voaram, e sua bochecha cortada começou a
espirrar sangue fresco. Mas o aluno não titubeou nem um instante ou
sequer tentou limpar o sangue, se agarrando obstinadamente à perna
esquerda de Kyoko.
- Me solte, idiota! – o canivete abriu a têmpora do aluno, e então
afundou no seu braço ensopado de sangue, quebrando em dois.
Aproveitando a surpresa de Kyoko, outro aluno agarrou sua perna
direita, e os dois, agora segurando as duas pernas dela, levantaram os
braços, elevando-a ao ar e pendurando-a de ponta-cabeça. Sua saia caiu
até a altura da cintura, revelando suas pernas brancas. Miyuki Kanno,
uma das garotas mais bonitas da escola, perdendo apenas para Kyoko,
foi até ela, colocou o rosto entre as pernas de Kyoko e mordeu sua
virilha. Se inclinando para trás com a dor, Kyoko tentou revidar,
balançando os braços como um animal numa armadilha, seus cabelos
esvoaçando violentamente, mas vários alunos se ajoelharam ao lado da
sua cabeça e começaram a torcer seu pescoço.
- Parem! Parem com isso!
Enquanto Iida gritava com lágrimas nos olhos, uma voz fria falou:
- Professor, é tarde demais. – Nakajima, que estava no seu
computador digitando comandos o tempo todo, olhou para Iida com
um sorriso sarcástico no rosto.
- Aah...
Com um grito seco, as pernas de Kyoko convulsionaram duas ou
três vezes. Sem sequer tentar limpar o sangue do seu rosto, Miyuki
olhou para cima e os dois alunos que seguravam Kyoko no ar soltaram
suas pernas. Quando o corpo contorcido e sem vida de Kyoko caiu ao
chão, o círculo de alunos começou a se dissipar, deixando só ela para
trás.
Quase que na mesma hora, a porta se abriu, e os três alunos que
tinham saído antes entraram, trazendo Kondo consigo. Ao saber que
Kyoko estava sendo agredida verbalmente pelos seus colegas, Kondo
veio decidido a dar uma lição aos “sabe tudo” da classe dos talentosos.
Mas a sala estava em completo silêncio, e o que ele viu foi
completamente diferente do que esperava. Os três alunos levaram o
perplexo Kondo até o centro da sala e se afastaram rapidamente.
- Oh, meu Deus...
Vendo o cadáver de Kyoko, Kondo ficou chocado e as palavras lhe
faltaram por um momento. Os estudantes na sala de aula o cercaram,
como que para fechar uma possível rota de fuga. Naquele momento,
Kondo provavelmente poderia ter escapado se tivesse pensado
friamente. Mas com sua mente confusa graças ao choque e a raiva,
Kondo não percebeu o quão ruim era a situação na qual se encontrava.
- Seus desgraçados, o que vocês fizeram... Quem matou a Kyoko?!
Com seu corpo tremendo de raiva, os olhos de Kondo, ardendo
de raiva, se voltaram para os alunos. Mas os alunos normalmente
pacíficos, que costumavam fugir se Kondo simplesmente olhasse para
eles, não mostraram o menor sinal de medo, apenas devolvendo o duro
olhar.
Havia algo verdadeiramente estranho acontecendo ali.
Naquele momento, ele ouviu um gemido. Olhando na direção da
voz, Kondo viu Nakajima ao lado de Iida, pressionando a cabeça do
professor no chão com o pé.
- Nakajima...?
Não imaginando sequer por um momento que um nerdzinho
engomado fosse capaz de algo assim, Kondo ficou completamente
abalado. Iida juntou toda a força que conseguiu para chamar por ele:
- Kondo, fuja! Eles estão loucos!
Voltando à realidade com a voz do professor, Kondo urrou como
um animal selvagem e correu para cima de Nakajima. Mas antes que
pudesse chegar até ele, uma dúzia de alunos pulou nele e o derrubou
no chão. Lutando com toda a sua força, Kondo derrubava os alunos que
o agarravam, socando e chutando todos que se aproximavam. Mas
mesmo com as testas abertas e as costelas quebradas, os alunos se
levantavam do chão como se não sentissem dor alguma, e continuavam
a se agarrar ferozmente em Kondo. Um deles pegou o monitor de um
computador e o acertou com toda a força na cabeça de Kondo. Ele ficou
zonzo com a pancada e começou a cambalear, e naquele instante, os
alunos o derrubaram no chão de novo e imobilizaram seus membros.
- Merda, me soltem! Eu vou matar vocês!!
Vendo Kondo se debater inutilmente contra os colegas, tentando
se libertar, o belo rosto de Nakajima se converteu num sorriso frio.
- Na verdade, o único que vai morrer aqui é você. Eu preferia que
a Kyoko te executasse, mas como pode ver, ela já morreu. Então eu vou
fazer a gentileza de deixar a Miyuki fazer isso. Você devia me
agradecer.
Com a mão no queixo como que em profundo pensamento,
Miyuki se ajoelhou perto de Kondo e aproximou seu rosto do dele. Sua
boca ainda estava coberta do sangue de Kyoko. Seu hálito quente
acariciou a bochecha dele. O corpo de Kondo se enrijeceu e tremeu um
pouco, e naquele instante a faca na mão de Miyuki brilhou e se cobriu
de vermelho. Um grito borbulhante escapou da traqueia decepada de
Kondo, e com os olhos ainda abertos, sua cabeça se dobrou para trás
com um ruído enojante.
- Agora, professor... – Nakajima se abaixou e olhou no rosto de
Iida – O que o senhor achou disso? Viu só? A minha experiência de
evocar um demônio não foi um fracasso. Naquele dia, um demônio de
fato apareceu, dentro do computador do servidor. Nós só não
percebemos. Ontem, quando eu estava tendo aula aqui na sala de
informática, o demônio me enviou uma mensagem: "KILL!
ENTENDIDO" Ele não tem como sair do computador, então usou
hipnose para controlar a classe. A propósito, professor, eu prometi
entregar três almas ao demônio. A da Kyoko, a do Kondo e mais uma...
Por um instante, os olhos de Nakajima expressaram uma emoção
que parecia ser pena. Mas, como que para contê-la, ele mordeu os
lábios e se levantou.
- E- Espere, por favor...
Enquanto Iida se debatia e se contorcia desesperadamente, dez
alunos começaram a caminhar pela sala, se aproximando dele
lentamente.
Capítulo 1:
A Noite do Demônio
Capítulo 1-1

Depois de muitos dias de chuva, o Sol finalmente mostrou o rosto


numa manhã de junho. A água lamacenta que formava poças na rua
refletia seus raios como pequenos espelhos. Yumiko Shirasagi cerrou
um pouco os olhos e olhou para o prédio de três andares da escola, que
oscilava como uma miragem envolto no mormaço criado pelo vapor da
água que evaporava.
Yumiko Shirasagi.
Seu corpo comprido e esguio fazia sua imagem parecer adequada
ao seu nome, que significava “Garça Branca”. Seus curiosos olhos
castanhos, que refletiam o seu afiado intelecto, bem como seu nariz
escultural, lhe davam todas as qualidades de uma beldade natural. Por
outro lado, sua propensão a travessuras fazia com que ela não fosse
considerada tão madura quanto se espera de uma veterana do ensino
médio.
A transferência de Yumiko para essa escola foi muito repentina.
Há dois meses o seu pai, que trabalhava como representante de uma
empresa de eletrônicos, tinha sido transferido de uma filial em
Sapporo para a matriz, em Tóquio. Sendo a filha de um assalariado,
Yumiko estava acostumada a ter de se mudar, mas essa era uma época
ruim para isso: no fim do semestre ela enfrentaria os exames de
admissão da faculdade. Ela queria passar o seu último ano do colegial
com os amigos que tinha feito, e era difícil abrir mão disso. Mas depois
de pensar bastante, a família decidiu se mudar toda junta,
principalmente devido à insistência da sua mãe de que era “perigoso
você ou seu pai morarem sozinhos”. Mas meros dois dias após ser
transferida para o Colégio Jusho, Yumiko rapidamente começou a se
arrepender de ter dado ouvidos à mãe.
“Não gosto do clima daqui.”
O exame de admissão de Yumiko na escola demonstrou que suas
habilidades a colocavam entre os melhores dos “talentosos”. Seus pais
ficaram muito aliviados e felizes com suas notas, mas Yumiko sentia
que essa escola tinha uma frieza estranha que era difícil de explicar.
Sua antiga escola em Sapporo também tinha muito prestígio, mas não
havia essa separação escancarada entre “talentosos” e “comuns”, e os
alunos de lá pareciam simplesmente desfrutar mais das suas vidas de
estudantes.
Em completo contraste, os alunos do Colégio Jusho pareciam
velhos que tinham desistido da vida. Os talentosos simplesmente
cumpriam o currículo como máquinas, como se fossem programados
para passar no exame de admissão da faculdade. E muito embora a
classe dos comuns tivesse seus próprios alunos brilhantes e talentosos,
muitos deles tinham perdido a vontade de se dedicar por causa da
maneira como eram desfavorecidos pela administração. Todos sabiam
seu lugar na organização, e ninguém tentava quebrar o molde.
Pensando bem, ela mesma ainda não tinha dito uma única
palavra além da sua apresentação formal para a classe. Isso por si só já
era difícil para Yumiko, já que ela nunca foi quieta. Mas ela não sentia
nenhuma hostilidade específica para com ela, nem por parte dos
alunos, nem dos professores. A questão era que a turma inteira era
assustadoramente quieta, como que reprimida por algum tipo de força
invisível. Durante os períodos livres, nenhum dos colegas de classe de
Yumiko direcionou uma só palavra a ela.
“Se você ficar popular demais logo de cara, as pessoas vão
começar a te observar, e você não vai querer isso, né?” Foi isso que sua
mãe disse em tom de brincadeira quando Yumiko mencionou a questão
e, brincadeira ou não, o comentário feriu seu orgulho.
No pátio da escola, o sino tocou.
Respirando fundo e juntando toda a sua força, Yumiko caminhou
lentamente para o prédio da escola.

O primeiro período do dia era com aula de japonês clássico.


A professora, Ohara, era uma beldade. Ela não usava muita
maquiagem, provavelmente devido às regras do trabalho, mas sua
altura, estilo e seu rosto, que era atraente até aos olhos de outras
mulheres, eram de beleza tal que ela provavelmente poderia se passar
por modelo. Mas a voz seca e sem entonação com a qual ela lia o texto,
combinada com a maneira monótona de traduzir o clássico para o
coloquial com a qual ela conduzia a classe, jamais poderia ser
considerada atraente, nem para um elogio falso. Yumiko estava
tentando segurar seus bocejos a aula toda.
- No Ise Monogatari, há um poema tanka: “Nas Montanhas Izu de
Suruga, eu não lhe encontrarei, nem em realidade, nem em sonho”. Ele
já caiu três vezes no exame de admissão da Universidade Keio, e
também no da Univerdade de Waseda, então é melhor decorá-lo. –
ignorando todo o significado cultural do poema, Ohara começou a falar
de exames de admissão.
“Todo o romance e o místico do Ise Monogatari... Narihira de
Ariwara deve estar se revirando no túmulo.”
Ficando completamente irritada com a aula, e à beira de ser
engolida pelo sono, Yumiko percebeu um som rítmico atrás de si,
parecido com batidas numa pasta de plástico. Olhando na direção, ela
viu um belo rapaz sentado um pouco atrás dela, digitando no teclado
de um notebook em cima da mesa. Ela lembrava que o nome dele era
Akemi Nakajima. Yumiko foi apresentada a ele junto com todos os
outros alunos no dia anterior, mas seus nomes e rostos acabaram se
misturando, então ela não lembrava bem de todos. Mas tanto a
aparência quanto o nome de Nakajima eram muito femininos, então ela
acabou gravando a imagem dele. Embora ele a tivesse ignorado
completamente quando ela o cumprimentou pela primeira vez.
“Bom, ele está obviamente ignorando a aula. Ele é diferente!” -
por alguma razão, Yumiko sentiu afinidade por esse colega de classe -
“Não parece que ele está jogando. Está mexendo com programação?”
Como que descansando um pouco, Nakajima esticou as costas e
olhou um pouco para cima. Seus olhos de amêndoa olharam ao redor, e
inesperadamente o seu olhar encontrou o de Yumiko.

Depois do sucesso com o programa de evocação de demônios,


parece que a natureza de Nakajima mudou até a raiz. Ou talvez a sua
verdadeira natureza diabólica, antes selada, tenha simplesmente se
revelado e consumido o antigo Nakajima. Dois meses atrás, o seu lindo
rosto só mostrava fraqueza, mas agora emanava uma poderosa aura de
puro ego. Mas o que surpreendeu Yumiko quando seus olhares se
encontraram não foi a sua presença poderosa, e sim outra coisa.
Déjà vu.
“Não reparei nisso ontem, mas acho que já vi esse cara em algum
lugar. Parece que foi há muito tempo. Puxa, onde será que foi?” – um
sentimento parecido com medo correu pelo corpo de Yumiko.
Apesar de Yumiko estar olhando para ele, Nakajima não
demonstrou interesse nela e voltou a digitar roboticamente no
computador. Como que olhando para um abismo sem fim, Yumiko foi
consumida por uma estranha sensação de perda.
- Srta. Shirasagi, para onde está olhando? – a voz levemente
irritada de Ohara trouxe Yumiko de volta à realidade. Olhando para a
frente, ela percebeu que o poema tanka escrito em giz branco no
quadro negro estava cheio de marcações em vermelho e amarelo.
- O que o termo “utsusu” indica nesse tanka? Explique. – Yumiko
sentiu o olhar de todos os alunos da classe caindo sobre ela, como que
a testando. O som seco de Nakajima digitando monotonamente – e
descaradamente – no teclado era o único ruído na sala.
- Sim, senhora. Indica o nome do lugar, Uzu, e ao mesmo tempo o
significado da própria palavra “utsusu”, que é “realidade”. – a voz de
Yumiko parecia levemente nervosa. Mas a pergunta de Ohara era
extremamente fácil, especialmente para alguém como Yumiko, que
almejava ser uma historiadora literária.
- Vejo que você estudou bem, Srta. Shirasagi. Mas às vezes o que
eu digo também pode ser útil. – Ohara fez uma expressão um pouco
mais leve com o comentário sarcástico. A tensão momentânea na sala
se dispersou, e, como que levados pelo sorriso de Ohara, todos os
alunos homens sorriram. Yumiko ficou com a sensação de que a turma
inteira estava debochando dela.
O sino tocou.
- Com licença, professora. – Nakajima chamou pela professora,
parando-a quando ela estava prestes a sair. Ohara deu meia volta, seus
olhos claramente cheios de apreensão. Yumiko percebeu o estranho
relacionamento entre os dois.
“A professora está com medo do Nakajima?”
- Professora, você vem hoje à noite como combinado, certo? –
Nakajima continuava sentado à sua mesa, ainda digitando
concentradamente no computador.
O rosto de Ohara pareceu ficar levemente vermelho.
- Sim. Nos encontramos na sala de informática... – ela respondeu
delicadamente. Nakajima sorriu, fez que sim e acenou para ela.
Observando os dois com surpresa, para Yumiko o
comportamento de Nakajima pareceu como se ele estivesse dizendo:
“Boa menina, agora pode ir”. Mas esse estranho relacionamento entre
professor e aluno não parecia incomodar nem um pouco os colegas de
classe, que se preparavam indiferentes para a próxima aula.
Cheia de curiosidade, Yumiko esperou Ohara sair da sala e foi até
a mesa de Nakajima.
- Ei, Nakajima-kun... – Yumiko o chamou sem saber bem o que ia
dizer.
Nakajima olhou para ela com olhos fulminantes. Ao ser olhada
por aqueles olhos estranhamente perfurantes, Yumiko sentiu
novamente aquela impressão de déjà vu.
“Tenho certeza que te conheço de algum lugar. De onde será?” –
embora fosse isso o que Yumiko queria perguntar, esse tipo de
pergunta provavelmente só o deixaria sem graça. Yumiko lutou para
tentar descobrir o que fazer com essa nova e estranha sensação.
- Sabe... – Nakajima abriu a boca e falou como se se dirigisse a
uma criança - É melhor você ficar longe de mim.
- Não, eu... – com essa resposta, Yumiko não soube mais o que
dizer. Numa mesa mais atrás, o rosto sério e os movimentos de mão de
um outro aluno indicaram para Yumiko que ela provavelmente devia
deixar Nakajima de lado.
O sino tocou. O professor de física do segundo tempo de aula
tinha entrado na sala em algum momento e já estava sentado à mesa
do professor.
“Pode me ignorar se quiser. Eu quero saber o que você está
escondendo, e vou descobrir.” Voltando à sua mesa e engolindo os
pensamentos e sensações borbulhando dentro de si, Yumiko deu uma
pequena mordida no seu lábio inferior.
Capítulo 1-2

Mais tarde, às 19h daquele dia, Yumiko estava escondida nas


sombras do pátio da escola, vigiando cautelosamente a sala de
informática. Um vento desconfortavelmente quente soprava,
carregando consigo enxames de insetos irritantes que se recusavam a
deixá-la em paz. A Lua cheia se mostrou em meio a um buraco nas
nuvens, iluminando o prédio quadrado que abrigava a sala de
informática.
“Me sinto uma idiota. Uma veterana do ensino médio brincando
de detetive!” – Yumiko sorriu um sorriso amargo enquanto observava
cautelosamente a vazia sala de informática. Ela se perguntava por que
estava ali fazendo aquilo.
Yumiko tinha certeza de que Nakajima disse “hoje à noite”. Não
era normal um aluno chamar uma professora para a sala de
informática no meio da noite. Claro que não era da conta dela o que os
dois iam fazer lá. Mas ao ver o caminhar quase embriagado de Ohara
quando ela saiu da sala de aula, Yumiko ficou muito brava, consumida
pela vontade de descobrir qual era a relação entre os dois. Por isso ela
se escondeu ali a tarde toda.
Seria amor à primeira vista?
Não, isso era uma conclusão precipitada demais.
É, com certeza...
Yumiko não podia negar que Nakajima tinha algo único, mas
também não conseguia deixar de pensar que o que a atraía nele era
algum tipo de conexão mais profunda, algo mais que o típico “amor ou
ódio”.
Os ponteiros do relógio marcaram 21h, e bem quando Yumiko
estava prestes a cair no sono, a silhueta de uma pessoa passou pela
janela do corredor e entrou na sala de informática. O corpo de Yumiko
enrijeceu de nervosismo. Uma luz se acendeu dentro da sala de
informática, e pelo vidro da janela, as silhuetas de várias pessoas se
locomovendo pela sala se tornaram visíveis. Mas antes que o coração
de Yumiko sequer tivesse a chance de começar a acelerar, a sombra de
um homem muito grande se aproximou da janela, e num instante,
todas as cortinas foram fechadas.
Parecia que Nakajima e Ohara não eram as únicas pessoas que
iam se encontrar ali. O mistério se tornou ainda maior, e Yumiko,
tomada pela curiosidade, decidiu sair dos fundos do pátio e chegar
mais perto da sala de informática para ver melhor.
Enquanto Yumiko saía do seu ponto de observação, Ohara se
aproximou furtivamente da sala de informática, abriu a porta devagar
e entrou. A sala estava muito bem iluminada, e três alunos vieram
cumprimentá-la. Os três estavam vestidos com mantos negros; um
deles carregava uma bandeja de prata e os outros dois carregavam
espadas e castiçais. A mesa no centro da sala, que normalmente
abrigava vários computadores, havia sido removida, e no seu lugar
estava um sofá de couro. Akemi Nakajima estava sentado no sofá, em
profunda meditação. Um grande círculo dividido em doze seções, como
um horóscopo, fora desenhado no chão, com o sofá situado no centro.
Em quatro lugares dentro do círculo havia símbolos astrológicos
representando a Lua, o Sol, Marte e Plutão.
- Olá. Seja bem-vinda. – percebendo a chegada de Ohara,
Nakajima parou sua meditação e se levantou lentamente. Quando se
afastou do sofá, as várias correias presas às pernas, braços e assentos –
cintas evidentemente feitas para prender uma pessoa – ficaram
claramente visíveis. Porém, mesmo vendo isso, Ohara não demonstrou
nenhum sinal de medo. Na verdade, ela pareceu até se acalmar um
pouco. Sorrindo e fazendo que sim com a cabeça, Nakajima ordenou
que os três alunos apagassem as luzes da sala e acendessem as velas.
Eles seguiram as ordens obedientemente. Como que movida pela aura
misteriosa que a sala agora escura emanava, Ohara se ajoelhou no chão
na frente de Nakajima.
A mão branca, quase translúcida, de Nakajima tocou a bochecha
corada de Ohara.
- Calma, relaxe. Em poucos minutos, o demônio Loki chegará.
Loki é conhecido pela sua beleza e astúcia. Perfeito para você,
professora. – Nakajima falou com uma voz elegante e doce, capaz de
derreter o coração de qualquer pessoa. Enquanto sua mão deslizava da
bochecha de Ohara para o seu pescoço, a respiração dela ficava funda e
pesada.
- Está na hora de ligar o computador do servidor. Não precisa se
preocupar, professora. Tenho certeza de que você vai satisfazer o
demônio... – cochichando no ouvido de Ohara, Nakajima se afastou e
inseriu um comando no terminal mais próximo. Do outro lado da forte
parede de vidro, os rolos de fita magnética lentamente começaram a
girar. Nakajima pegou seu notebook e digitou um comando rápido.
Uma névoa branca saiu da tela de cristal líquido e começou a se
espalhar até escapar pelas frestas da porta. Assim que desapareceu de
vista, o grunhido baixo de uma besta ressoou pelo corredor do lado de
fora, suficiente para enviar tremores de medo às profundezas da mente
de todos que o ouviram. Era Cérbero, um demônio digital evocado do
mundo Atziluth e materializado por Nakajima. Ele seria o guardião da
cerimônia daquela noite.
Enquanto isso, os três alunos na sala levaram Ohara até o sofá e a
prenderam firmemente usando as cintas de couro.
- Vamos, controle sua respiração. Concentre seu espírito e chame
o demônio do mundo Atziluth.
Clic, clic.
Como que impaciente, o barulho do disco rígido do computador
do servidor ecoou pela sala.
- A Lua e Marte estão em lados opostos, bem como o Sol e Plutão,
formando a Grande Cruz nos céus. Nenhuma noite poderia ser tão
perfeita quanto esta para evocar um demônio. – falando como que
conjurando um feitiço, Nakajima pegou um mecanismo semelhante a
um capacete na sala de máquinas e o colocou na cabeça de Ohara.
Era um modem de ondas cerebrais. Ele digitalizava as ondas
cerebrais humanas, e servia como interface para se comunicar
diretamente com o computador. Dois longos fios se conectavam à parte
de trás do modem, um vermelho e um preto. O fio vermelho se ligava
ao computador do servidor, e o preto a um dos terminais da sala.
Nakajima inseriu um comando no terminal e as fitas magnéticas
começaram a girar rapidamente. O corpo de Ohara começou a se
contorcer um pouco, como se sua consciência já estivesse se
dissolvendo dentro do servidor. Um aroma picante se expandiu de
repente, envolvendo-a. Os rostos dos três alunos que observavam a
cerimônia se iluminaram de admiração.
“Yod, Heh, Vav, Heh.” No instante em que a voz baixa e rouca
ecoou da sala de máquinas, Ohara soltou um grito e começou a
contorcer o corpo. Enquanto ela continuava a gritar
intermitentemente, seus olhos se arregalaram de medo, olhando vazios
para o espaço. O sofá começou a escorregar pelo chão enquanto Ohara
se debatia, como que tentando escapar de alguma coisa, esticando os
fios conectados ao modem na sua cabeça.
As tiras de couro raspavam contra seus punhos, rasgando a pele
e escurecendo ainda mais as cintas negras com a tintura vermelha do
sangue. Mas a expressão de pânico no rosto de Ohara logo se dissipou,
seu rosto ficou calmo e ela fechou os olhos. Sua boca abriu um grande
sorriso, muito embora seu lábio inferior ainda estivesse sangrando
onde ela mordeu antes.
- Vejo que você conseguiu seduzir Ohara, Loki. Agora, o que vai
fazer com ela? – Nakajima olhou para a tela do computador conectado
ao modem.
O modem de ondas cerebrais havia interpretado os pensamentos
e sensações de Ohara, os digitalizado e enviado para o mundo que o
Loki virtual tinha criado no servidor. Pode-se dizer que a dor anterior
tinha sido apenas uma reação temporária de rejeição autônoma de
quando seu sistema nervoso digitalizado entrou em contato com o do
demônio.
Nakajima olhou a tela do computador, na esperança de ter um
vislumbre do mundo que estava sendo inserido no córtice visual de
Ohara. De repente, o rugido violento do Cérbero ecoou lá fora, no
corredor. Reagindo a um gesto de Nakajima, os dois alunos que
carregavam espadas começaram a avançar em direção à porta.

Pouco depois que Ohara entrou na sala de informática, Yumiko


foi dos fundos do pátio da escola até o corredor que conectava o prédio
dos clubes com o da escola principal. Ela caminhou lentamente pelo
corredor, usando a pouca luz da lua como guia. Por uma fresta nas
cortinas das janelas escuras, uma pequena luz oscilante era visível,
provavelmente de velas.
“Pare com essa bobagem. Vamos pra casa, tomar um banho e
esquecer tudo isso.” Os instintos normais de Yumiko tentavam
fervorosamente persuadi-la. Mas hoje era outra Yumiko quem estava
no comando.
“Do que você tem tanto medo? Essa é a nossa chance de
descobrir a verdade sobre o Nakajima!” – como todas as outras garotas
da sua idade já tinham feito pelo menos uma vez, Yumiko obedeceu à
sua voz mais ousada e curiosa. Da sala de informática, ela podia ouvir o
som de um grito distante, quase como um soluço. No instante em que o
coração de Yumiko começou a acelerar, de repente algo saltou na
escuridão na frente dela, antes que ela tivesse chance de reagir.
A Lua apareceu entre as nuvens, iluminando a forma de uma
besta horrível. Seu corpo era maior até que o de um leão, e a sua boca
enorme – que parecia ocupar praticamente metade do seu corpo –
tinha duas fileiras de longas e afiadas presas. Seus olhos olhavam para
Yumiko, brilhando como uma chama, e os chifres metálicos na sua
cabeça se mexiam, como que para não deixar a menor mudança ao
redor passar despercebida. Seus ombros grandes e corpo esguio
tinham listras como as de um tigre, e seu rabo, aparentemente muito
pesado, era coberto de escamas como de serpentes.
Era o demônio digital Cérbero. Soltando um bafo que fedia a
carne e sangue sobre a pasma Yumiko, a besta rugiu. O estômago de
Yumiko embrulhou tanto que ela sentiu como se fosse vomitar os
próprios intestinos, e sua visão ficou borrada. Incapaz de resistir ao
choque, desmaiou.

Yumiko acordou com a sensação de um estranho calor e o som


incessante de gemidos. A área ao redor estava escura e carregada, e a
única coisa que ela sentia era uma das suas bochechas tocando o chão
frio.
- É mesmo! Aquele monstro!
Quando Yumiko se levantou, Ohara, presa a uma cadeira de
couro, entrou no seu campo de visão. Ela estava usando um capacete
estranho e ofegando. Ao lado dela, Nakajima olhava uma tela de
computador com um sorriso sinistramente frio no seu belo rosto.
- Nakajima-kun... – quando Yumiko expressou sua surpresa,
alguém agarrou seu ombro direito. Yumiko engoliu as palavras ao
olhar para trás.
Atrás dela estava Kenichi Takai. Normalmente Takai era dócil e
razoável, mas agora ele a olhava com olhos vazios, quase como que
possuído por alguma coisa, e Yumiko certamente não achava que ele
sabia onde estava ou sequer podia reconhecê-la. Além dele, havia
outros dois alunos vestidos com mantos negros na sala, ambos imóveis
e com olhares de sonâmbulos.
Naquele momento, a respiração pesada de Ohara ficou mais
forte. Arfando e contorcendo o corpo furiosamente, ela emitia uma
aura medonha que parecia capaz de poluir a alma de qualquer um que
se aproximasse.
Yumiko gritou:
- O que é isso?! O que você fez com a professora?!
Takai tentou imobilizar Yumiko no chão, mas Nakajima levantou
a mão rapidamente para impedi-lo. Ao sinal dele, a mão forte de Takai
se afastou mecanicamente do ombro de Yumiko.
- Você é Yumiko Shirasagi, não é? Venha dar uma olhada nisso. É
fascinante.
Quando se levantou, Yumiko percebeu que parte da sua saia
estava rasgada, como se um cachorro a tivesse mordido. Naquele
momento, ela percebeu que a besta que vira antes era bem real.
Nakajima apontou para a tela do terminal conectado ao modem
em Ohara. A tela exibia uma magnífica estátua de bronze de um jovem,
como as antigas esculturas gregas. Não, não podia ser uma escultura. A
imagem divinamente linda se movimentava calmamente, como se
tivesse recebido o sopro da vida. A tela deu um zoom no rosto e depois
do peitoral do jovem. Seu rosto demonstrava um intelecto além de
qualquer coisa que um humano podia sonhar em ter, e seus olhos
penetrantes pareciam dois buracos negros que absorveriam qualquer
coisa que os vislumbrasse.
- É o demônio Loki. – Nakajima falou no ouvido de Yumiko.
- Isso é só computação gráfica, não é? – os olhos de Yumiko
continuavam grudados na tela.
- Se eu pudesse criar um demônio tão realista assim em
computação gráfica, nem precisaria ir à escola. Não, esse é um demônio
de verdade. Embora eu imagine que você não vai acreditar nisso.
Loki flexionava seus músculos na tela. Eram de um negro
reluzente, e cobertos de escamas. Naquele momento, Yumiko percebeu
que os gemidos de Ohara estavam em perfeita sincronia com os
movimentos de Loki. No instante seguinte, ela percebeu o que isso
significava e engasgou.
- É isso mesmo. A professora Ohara e Loki estão se divertindo um
pouco juntos. No mundo virtual, é claro. – por alguma razão, Nakajima
proferiu as palavras como se estivesse levemente nervoso.
Ohara estava cada vez mais perto do orgasmo. Seus seios
inchados, cobertos de suor, eram visíveis pela blusa aberta. Seu corpo
tinha aceitado o demônio invisível por completo no mundo virtual.
Naquele momento, Yumiko percebeu uma fraca neblina flutuando
aproximadamente na região dos seios de Ohara. A densidade da
neblina aumentava cada vez mais, e um fedor insuportável atacou suas
narinas. Aparentemente confuso, Nakajima se ajoelhou na frente de
Ohara com seu notebook numa mão, digitando no teclado enquanto
balançava um bastão sensor ao redor. Quando Ohara soltou um último
suspiro e perdeu a consciência, a neblina azul se dissipou.
Nakajima soltou um profundo suspiro de alívio. No rosto dele,
Yumiko sentiu um titubear da sua confiança normalmente sólida como
pedra.

Nakajima não era um mago. Se fosse, decerto saberia o quanto


era importante definir um objetivo e a duração do serviço ao negociar
um contrato com um demônio.
Mas Nakajima pulou essa parte. Quando Loki transformou
Kondo, Takamizawa e Iida em pedaços sangrentos de carne, ele
desenvolveu a ilusão de que havia se tornado um grande regente ou
coisa do tipo.
O poder de Loki era tremendo. Pegando o respeito subconsciente
que os alunos e professores tinham por Nakajima e o alimentando com
o seu poder, ele fez os homens o obedecerem e as mulheres caírem de
amores. Para um estudante até então ignorado, era um sonho se
realizando.
Loki exigia o sacrifício de mulheres. As oferecidas a ele gemiam,
se contorciam e por fim chegavam ao orgasmo. Talvez lá no fundo,
Nakajima sentisse uma satisfação sadista em violar mulheres. Mas ele
sempre pensou que o que acontecia não era real, já que só acontecia no
mundo virtual.
Loki não podia escapar do computador. A menos que alguém
usasse o computador mais poderoso do mundo, a imensa quantidade
de dados que seriam necessários para dar forma a ele seria impossível
de processar. Ele só podia agir dentro dos limites do software que
Nakajima programou. Então o que era aquela neblina azul que
apareceu em volta de Ohara...?
- Nakajima-kun, você está com medo de alguma coisa, não está? –
a voz de uma mulher interrompeu seus pensamentos.
Nakajima lembrou que estava falando com Yumiko sobre o que
estava fazendo.
“O que eu estava pensando? Eu não devia ter dito tudo aquilo pra
ela.” - fixando o olhar em Yumiko, Nakajima deu um passo à frente. Por
um instante, os olhos de Yumiko pareceram brilhar em vermelho, e
Nakajima foi envolto em escuridão. Um estranho mundo ilusório se
descortinou diante dele.

Várias montanhas rochosas de um marrom avermelhado se


erguiam até os céus, com nem um único feixe de grama crescendo
nelas. Como que costurada a fio entre as traiçoeiras montanhas, uma
pequena trilha se estendia até onde a vista alcançava. Um rapaz corria
desesperadamente pela trilha, batendo os dentes e exalando baforadas
que pareciam as de um dragão. Ele vestia uma túnica branca sem
mangas, tinha os longos cabelos presos num rabo de cavalo, e
enquanto seus pés pisavam o chão poeirento, o colar de joias curvas no
seu pescoço balançava. Ele estava vestido como alguém de tempos
muito antigos.
Mas o rosto do rapaz definitivamente era o de Akemi Nakajima.
Gotas de suor escorriam pela sua bochecha, arrastando a sujeira
consigo.
- Meu esposo, por que me abandonastes? Izanagi, por quê...? –
uma triste voz cheia de miséria chegou aos ouvidos do rapaz.
Instintivamente, ele diminuiu a velocidade. Parecia que sua cabeça
estava tentando se virar sozinha. Mas o rapaz mordeu forte os lábios,
saltou um tronco no caminho e continuou a correr. A mulher atrás dele
o perseguia quase se arrastando, seus pés cobertos de sangue dos
ferimentos sofridos do chão de pedras pontiagudas. Seus longos e
graciosos braços albinos se esticavam como que tentando inutilmente
encurtar a distância entre ela e o rapaz. Seus longos cabelos negros e
sua voz desesperada eram carregados pelo vento.
Mas o rosto por baixo daqueles cabelos estava podre e
decomposto, e as cavidades oculares, completamente vazias. Larvas
rastejavam no espaço entre carne e osso, e quando ela parava para
respirar, sulcos carnosos escorriam das suas bochechas como larvas.
Seus lábios haviam apodrecido e caído e, com seus dentes expostos
rangendo de frustração, ela emitiu um grito estridente.
Com o grito da mulher, um relâmpago púrpuro atravessou as
nuvens carregadas no céu e atingiu uma formação rochosa próxima.
Uma criatura apavorante apareceu no lugar onde o raio caiu. Era uma
mulher enorme, tão grande que parecia que ia tocar as nuvens, com
uma pele viscosa esverdeada, algo parecido com a pele de um sapo. A
mulher se interpôs no caminho do rapaz, abrindo os braços como que
para impedi-lo.
- Yomotsu-Shikome, saia do meu caminho! – quando o jovem
gritou, o pescoço flácido da mulher balançou como uma bola de geleia,
e ela grunhiu, com uma voz hedionda:
- PARE.
Vendo o jovem continuando a seguir em frente, Yomotsu-
Shikome deu um passo em direção a ele. Quando seus pés magros e
retorcidos tocavam o chão, a terra tremia com um grande estrondo.
Sem titubear um só instante, o rapaz encarou a forma gigantesca maior
que um colosso na sua frente, tirou um pente vermelho que prendia
seu cabelo, quebrou um dos seus dentes e jogou na mulher. O dente do
pente se cravou no seio exposto de Yomotsu-Shikome, e o rosto feio da
mulher de repente se contorceu numa expressão de dor. Como se todo
o seu corpo estivesse sendo afetado por algum forte veneno, ela
apertou o peito com a dor e vomitou uma bile xaroposa pelo chão.
Mesmo assim, ela tentou se agarrar no rapaz, mas seu corpo
convulsionou furiosamente e ela caiu de cara no chão, fazendo a
própria terra tremer.
Enquanto o rapaz passava delicadamente ao lado do enorme
corpo, o som da triste voz soou em seus ouvidos mais uma vez.
- Por favor, espere, Izanagi...

- Nakajima-kun, o que houve? – de repente recobrando a


consciência com alguém chamando o seu nome, Nakajima viu Yumiko
Shirasagi olhando para o seu rosto de perto com um olhar perplexo.
Seus olhos estavam repletos de medo e pena.
Mas o que foi que aconteceu? Essa alucinação tinha alguma coisa
a ver com o Programa de Evocação de Demônios? Ou então... Por um
momento, Nakajima se perdeu nos olhos de Yumiko. Mas seu orgulho
excessivamente rígido não permitiria que ele demonstrasse mais
fraquezas para ela.
- Esqueça, vá embora daqui. – as palavras de Nakajima foram
curtas e frias, como que tentando abafar a situação. Yumiko parecia
querer dizer alguma coisa, mas não estava disposta a contrariá-lo, e
então obedeceu.
- De todo modo, tenho que descobrir o que era aquela neblina. –
se recompondo, Nakajima ligou o modem e conectou ao computador
do JSI.
HELLO NAKAJIMA, WHAT'S UP?
Recebendo a mensagem de boas vindas de Craft, Nakajima
removeu o disco rígido e inseriu em outro computador customizado,
contendo um tradutor automático equipado com um banco de dados
de 50 mil termos relacionados a magia e ocultismo. Claro que foi o
próprio Nakajima que o criou.
> UM VAPOR ESTRANHO APARECEU EM VOLTA DO SACRIFÍCIO.
ESTOU ENVIANDO UMA ESTIMATIVA BÁSICA DA SUA FORMA E
COMPOSIÇÃO. TENTE ANALISÁ-LO PARA MIM.
Os dados armazenados no computador de mão foram
imediatamente para Massachusetts através da internet. Nakajima
bateu os dedos na mesa impacientemente por um minuto... Dois
minutos. Cinco minutos depois, Craft finalmente enviou sua análise.
VOLUME E MASSA SUGEREM UM CONTEÚDO ECTOPLASMÁTICO
CINCO VEZES ACIMA DO NORMAL. A JULGAR PELA SITUAÇÃO NA
QUAL SE MANIFESTOU, A PROBABILIDADE DE O VAPOR SER O
PRÓPRIO LOKI É ALTA.
> NÃO INCLUÍ NENHUM COMANDO QUE PERMITIRIA A LOKI SE
MANIFESTAR. ALÉM DISSO, O COMPUTADOR DA ESCOLA NÃO SERIA
CAPAZ DE EXECUTAR ALGO DESSA ESCALA.
PELOS DADOS ENVIADOS, NÃO POSSO FORNECER UMA
RESPOSTA EXATA. A ÚNICA CERTEZA É QUE O DEMÔNIO QUE VOCÊ
EVOCOU PARA DENTRO DO COMPUTADOR É COMO UMA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL DE NÍVEL GÊNIO. NÃO PODE SER
DESCARTADA A POSSIBILIDADE DE QUE ELE TENHA ENCONTRADO
UMA MANEIRA DE SE MANIFESTAR POR CONTA PRÓPRIA.
> OBRIGADO, CRAFT.
Enviando a mensagem de despedida, Nakajima encerrou a
conexão.
“Não posso acreditar que Loki pode ter encontrado uma maneira
de se manifestar por conta própria. Mesmo assim, é melhor eu começar
a trabalhar em algo que possa usar para controlá-lo por completo.”
Pensando em mil coisas, Nakajima caminhou até a janela e olhou
para o infinito negro do céu.
Capítulo 2:
Transferência
Capítulo 2-1

Era meia-noite em Marunouchi. Edifícios de janelas escuras se


destacavam na paisagem. Não se podia ver uma só alma nas calçadas
sob as fileiras de árvores ginko, e a única presença era a de mariposas
atraídas pelas luzes dos postes, balançando suas pequenas formas sem
raciocínio. O bairro comercial estava tão quieto que quase se podia
ouvir os insetos batendo nas lâmpadas.
Mas o silêncio lá fora aparentemente não fazia diferença para as
grandes firmas que carregavam o peso da economia nos ombros.
Mesmo agora, ainda havia luzes acesas no 12º andar do prédio da
Mitsune Productions. A Terceira Divisão de Exportação era
responsável por todos os negócios com a Europa. Restavam apenas
duas semanas até agosto, quando o Ato de Regulamentação de
Importação de Eletrônicos entraria em efeito. Numa corrida de última
hora para queimar todo o estoque, o departamento estava trabalhando
em capacidade máxima até altas horas.
Inevitavelmente ficando cansadas, algumas pessoas tiravam
cochilos no sofá, enquanto outros tinham saído para comer nas lojas de
ramen próximas à estação de Tóquio. Inoue esfregou os olhos pesados
enquanto inseria as exportações previstas para o dia seguinte na
estação de trabalho online que o conectava com o sistema da filial no
exterior. Mas com os óculos de armação de metal cobertos de marcas
de dedos, ele estava muito diferente do homem elegante que
costumava ser.
- Quanto falta? – Hashiguchi, que estava dormindo no sofá,
acabara de acordar e chamou por Inoue. Sua voz claramente esboçava
um bocejo.
- Não deve demorar muito agora. Só faltam os eletrônicos de
lavanderia que serão enviados para a França. – usando uma chapa de
vinil como leque, Inoue jogava ar no peito através da sua camisa de
gola V.
- Então, em quanto as exportações aumentaram? – esfregando os
olhos, Hashiguchi olhava para a tela por trás de Inoue.
- Aproximadamente 200% em relação ao ano passado. Me
assusta pensar que tudo isso pode acabar sendo barrado.
- Algo assim é de se esperar. Afinal, em duas semanas, nós vamos
fazer 90% das exportações do ano passado inteiro.
- O chefe e os outros estão demorando demais. Como podem
demorar tanto comendo um ramen? Aposto que pararam em algum
lugar pra beber.
- Por que você não descansa um pouco? Eu assumo o seu lugar
por enquanto. – Hashiguchi deu um tapinha no ombro de Inoue e
sorriu amigavelmente.
- Obrigado. – quando Inoue levantou e começou a se espreguiçar,
o computador apitou. O LED que indicava transferência de dados da
sede nacional se acendeu.
- O que será que eles querem assim tão tarde? – disse Hashiguchi.
- Ah, com certeza querem parte pouco do nosso estoque reserva.
Claro que como estamos todos focados na exportação, esse não é lá o
melhor momento pra isso. – já se preparando para dormir, Inoue não
tinha outra desculpa para inventar.
- Não precisa ficar bravo com eles... Os caras do escritório central
também estão trabalhando nessa hora amaldiçoada, como nós.
Enquanto repreendia o colega, Hashiguchi ativava o modo de
recebimento de dados do computador. A lista de enumerações
desapareceu, e a tela ficou toda verde. Normalmente, nessa hora o
número de identificação da pessoa que estava enviando os dados seria
exibido na tela. Mas ao invés disso, a tela estava mudando de cor sem
parar e mostrando símbolos desconhecidos e estranhos.
- Que diabos é isso? – letras estranhas rolavam pela tela, mas os
dois não tinham como saber que era hebraico antigo. Agora a tela
mostrava a imagem de uma estátua de um homem.
- Esses caras são uns idiotas pra ficar fazendo essas brincadeiras
a essa hora da noite. – olhando desinteressadamente para a tela de
rabo de olho, Inoue acendeu um cigarro.
Talvez fosse por causa da fumaça do cigarro, mas os dois homens
não perceberam o cheiro forte que começou a se espalhar pela sala. De
todo modo, especialmente pra um trote, essa estátua misteriosa era
uma CG muito bem feita. Um corpo com uma simetria de uma antiga
escritura grega. Cabelos negros compridos. Lábios rosados vívidos. E
seus profundos olhos negros expressavam uma crueldade penetrante.
- Não que isso importe, mas isso é CG de alto nível. – disse
Hashiguchi.
- É CG? Parece até uma foto. – enquanto Inoue olhava a tela mais
de perto, o cheiro desagradável de cigarro tomou conta da sala.
- Ops, desculpe. – enquanto Inoue voltava sua atenção para
apagar o cigarro, o homem na tela sorriu e apontou para Hashiguchi.
Seu dedo era curvado na ponta, de modo que quase parecia uma garra.
Hashiguchi estava fascinado com o gráfico. Era tão realista que parecia
impossível algo assim rodar no computador extremamente básico da
firma.
Mais ou menos nessa hora, Hashiguchi percebeu que a tela
parecia que estava úmida, como se estivesse coberta de uma camada
de condensação. Quando tentou limpar a tela com a mão, sentiu algo
grudar nela, e deu um pulo para trás com o susto. Algo gelatinoso
estava escorrendo dos seus dedos, e ao balançá-los, uma substância
viscosa e nojenta caiu ao chão.
- Argh! O que é isso?!
Se virando para ver do que Hashiguchi falava, Inoue levou um
susto e ficou imóvel, chocado. Por baixo da camada de gelatina rósea,
uma rede de veias esverdeadas se espalhava, e a coisa inteira pulsava
como um órgão arrancado do seu dono. O repugnante pedaço de carne
fez um som de esguicho quando começou a se aproximar dos dois
homens. Se afastando, Inoue esbarrou numa cadeira e acabou
vomitando.
- Inoue! Se recomponha! – agarrando o braço do colega para
fazê-lo andar, Hashiguchi correu para a porta. Quando parou para abri-
la, a bolha gelatinosa disparou tentáculos cobertos de um líquido
grudento e viscoso como uma geleia vermelha, e num instante agarrou
as pernas dos dois homens.
- Merda! – com um grito, Hashiguchi agarrou pastas e o telefone
da sua mesa – qualquer objeto ao seu alcance – e começou a jogá-los no
atacante, e, como este não demonstrou medo, pegou uma cadeira,
levantou sobre a cabeça e arremessou com toda força na coisa. Mas a
pele da bolha gelatinosa simplesmente puxou a cadeira de aço para
dentro do seu corpo, onde foi rapidamente dissolvida bem na frente
dos olhos de Hashiguchi.
Tum, tum.
Hashiguchi já não sabia mais se o som que ouvia era o seu
próprio coração batendo ou se era o pedaço de carne pulsando.
Quando recuperou o raciocínio com uma sensação estranha emanando
do seu pé, Hashiguchi percebeu que toda a sua perna direita estava
encoberta pela bola de carne rosa. Ele tentou gritar, mas o pânico selou
sua garganta e não conseguiu nem falar.
Rápida e ambiciosamente, a bolha negra começou a puxar o
corpo de Hashiguchi para dentro do seu. Ele não sentia dor. Como que
afundando em lama quente, só havia uma sensação infinita de perda, a
sensação de uma morte iminente.
“Socorro...” – não conseguindo mais falar, Hashiguchi se debatia
como que tentando encontrar alguma coisa em que se segurar, e
naquele instante, a bolha espremeu seu tronco com uma força incrível.
A força foi tamanha que os olhos de Hashiguchi saíram voando
das suas cavidades, e num instante suas costelas quebradas
destroçaram seus órgãos internos. O sangue que saiu em jatos do seu
corpo foi absorvido pela bolha. Só a cabeça de Hashiguchi ainda estava
para fora do amontoado de carne, e agora tentáculos rosas começavam
a sair pela sua boca aberta e suas cavidades oculares.
Inoue, que agora era a única pessoa no chão deserto da sala, mal
podia acreditar que a morte horrenda de Hashiguchi era real. Com sua
capacidade de pensar racionalmente completamente perdida, ele
atacava loucamente o tentáculo agarrado à sua perna com uma caneta,
como que tentando desprendê-lo, e naquele momento sentiu alguém
olhando para ele e ficou paralisado.
Em algum momento, a massa gelatinosa tinha desenvolvido um
olho. Sinistro e cheio de malícia, ele olhava para Inoue. O tentáculo
subia lentamente o seu corpo, da perna ao peito.
Vendo o próprio corpo ser sugado para dentro da grotesca massa
de protoplasma, Inoue teve uma espécie de estalo. Tomado por uma
onda de loucura, soltou uma risada aguda que mais parecia uma
epifania. Bem naquela hora, o elevador fez um barulho, a porta se
abriu, e seus colegas de trabalho voltaram do descanso.
- O que deu nesses caras? Do que estão rindo tanto?
- Aposto que ao invés de trabalhar, estão é vendo TV. – sem a
menor ideia do que estava acontecendo, os homens se entreolharam,
inadvertidos da carnificina na qual estavam prestes a entrar.
Capítulo 2-2

Nessa mesma hora, Nakajima estava na sala de informática do


Colégio Jusho, sentado na frente do computador do servidor, que
estava conectado com o exterior via modem, tentando falar com Loki.
- E então, como foi? A experiência de movimento deu certo?
- Suponho que seria mais adequado dizer que mostrou alguns
resultados. Pelo menos até certo ponto. – a voz baixa e funda que saía
dos alto-falantes fazia Nakajima tremer do começo aos pés. Nakajima
não sabia que Loki já tinha adquirido a habilidade de se manifestar
fisicamente. Ele pensava que “resultados até certo ponto” significava
que Loki podia existir dentro de outro computador como uma
inteligência artificial independente.
- Bom, então acho que você não tem escolha a não ser reconhecer
como a minha tecnologia é boa.
- Se é isso que você quer pensar, fique à vontade. Só vou dizer
que ainda estamos muito longe da perfeição.
- Bom, isso era de se esperar. Ao se enviar tanta informação
assim de uma vez só, é muito provável haver perda de dados. – suor
escorria da testa de Nakajima, onde os fones de ouvido do microfone se
prendiam às suas têmporas. Nakajima continuou a falar com ar de
calma e desinteresse, mas seu corpo inteiro, duro de tensão,
demonstrava a inquietude da sua mente.
“O que vai acontecer se Loki conseguir se manifestar?” –
Nakajima se perguntava, ignorante da verdadeira situação – “Não, isso
é possível. Veja só, ele está me obedecendo fielmente nesses testes da
teoria da transferência de demônios.”
Teoria da Transferência de Demônios.
Adquirir a habilidade de se locomover livremente pela Terra é
algo que todos os demônios desejam desde o início dos tempos, não
apenas Loki. Desde os tempos antigos, os lugares em que um demônio
pode se manifestar na Terra sempre foram extremamente limitados.
Além disso, uma vez que um demônio é de fato evocado, só pode
manter sua forma dentro de um raio de alguns quilômetros do ponto
onde foi chamado. Pode-se dizer facilmente que esse é o único motivo
de a Terra ter sobrevivido por tanto tempo sem sofrer uma invasão de
demônios.
Nakajima tinha criado uma tecnologia que virou o que até então
era senso comum no mundo dos demônios de cabeça para baixo. A
tecnologia digitalizaria um demônio e o transferiria para outros
computadores através da internet. Se aperfeiçoada, essa tecnologia
removeria as restrições físicas do movimento dos demônios na Terra.
Nakajima achava que sua experiência finalmente tinha dado
frutos. Ele foi ingênuo na sua linha de pensamento. Pra começar, ele
era só um estudante comum que nunca tinha tido contato com um
demônio antes, e de cara já estava lidando com um demônio superior e
absurdamente poderoso como Loki, o que poderia muito bem causar
uma tragédia. Ainda assim, pode-se dizer que ele estava sendo
prudente só de perceber o perigo que Loki podia representar se
conseguisse a habilidade de se manifestar.
“Eu posso acabar tendo que evocar outro demônio poderoso do
Mundo Atziluth que possa fazer frente a Loki.”
Incapaz de conter seu desconforto, Nakajima começou a
ponderar essa alternativa ainda mais perigosa, quando uma voz surgiu
de repente nos alto-falantes.
- Me dê Yumiko Shirasagi.
- O quê?!
- Me dê Yumiko Shirasagi.
- Não! Não posso fazer isso! – no instante em que ouviu o nome
de Yumiko, Nakajima se alterou. Até ele ficou surpreso com a própria
reação.
- Garoto, com quem você pensa que está falando?! – a voz de Loki
demonstrava uma ira jamais vista antes. A máquina emitiu um ruído
estranho, e faíscas voaram de onde os cabos se ligavam nela.
- Tudo bem, tudo bem, calma... – Nakajima cedeu à ameaça de
Loki sem resistência alguma. Indignado consigo mesmo, Nakajima
mordeu o lábio, com força quase que suficiente para produzir sangue, e
uma imagem do rosto de Yumiko planou na sua mente. Novamente, ele
foi sugado para uma ilusão.

O rapaz já não via mais as enormes montanhas rochosas e o céu


azul. Seus olhos pequenos estavam completamente fixados na trilha à
sua frente. Seus lábios queimados da cor da terra estavam cobertos por
uma crosta vermelha e preta. Seus pés estavam roxos e inchados, com
pedaços afiados de rochas cravados neles. Mas o som dos suspiros se
aproximando por trás dele faziam seus pés feridos acelerarem o ritmo
ainda mais.
- Izanagi, por que você não espera? É por que eu fiquei hedionda?
Você me prometeu, quando eu entrei no Yomi, que me traria de volta
de qualquer jeito! Era mentira? Eu nunca correria de você, não importa
o que acontecesse!
- Me perdoe... – como que tentando fugir do medo e da culpa, o
rapaz rangeu os dentes e acelerou o passo. Mas a tenacidade da mulher
estava lentamente diminuindo a distância entre eles. As lágrimas da
mulher, escorrendo dos olhos de pálpebras podres, caíam ao chão
junto com seus cabelos enquanto ela gritava.
- Izanagi...!
Quando ela gritava, o buraco na sua bochecha ficava cada vez
maior, até que os seus molares ficaram completamente expostos. Logo
a trilha terminou, e o rapaz pôde ver um enorme pântano à sua frente.
- Consegui voltar a Toyoashihara... – seus lábios tremiam de
alívio. Abrindo bem os braços, o rapaz respirou fundo o ar úmido,
suspirou, se virou e sentou.
Por um tempo, ele contemplou a forma grotesca da mulher que o
perseguia, mas então balançou a cabeça tristemente e fechou os olhos.
O rapaz começou a meditar. Quando a mulher ficou dentro do
alcance do arremesso de uma pedra, seu corpo pareceu flutuar
levemente por um momento, e então houve uma grande ondulação na
atmosfera. Como se um grande poder invisível tivesse sido liberado, a
terra tremeu, e a fissura que apareceu diretamente abaixo do rapaz se
espalhou para as montanhas ao redor, e incontáveis rochas começaram
a rolar pela trilha. Quando a mulher parou, uma pedra gigante se
prendeu na trilha diante dos seus olhos, selando-o.
- Izanagi! Eu irei atrás de você! Mesmo que leve centenas de
milhares de anos! – o som dos gritos amargos da mulher ecoava de trás
da enorme pilha de terra.
- Me perdoe, Izanami... – tapando os ouvidos com as mãos, o
rapaz avançou pelo pântano, os enormes bambus se estendendo muito
acima da sua cabeça.

Quando se recobrou do transe, Nakajima saiu desanimado da


sala de informática, e alguns minutos depois, como que esperando ele
sair, uma sombra negra se esgueirou pelo corredor e entrou na sala. As
duas mãos tatearam a escuridão, procurando algum interruptor de
energia, e logo a luz de um monitor estava iluminando dedos num
teclado.
Eram dedos brancos e finos. Logo eles pararam de se mover, ao
som intimidador de uma voz pesada.
- Ohara. – foi o que a voz disse – Estou te mostrando a lista do
programa de transferência que Nakajima desenvolveu. Consegue usá-
lo?
- Acho que sim, mas não todas as funções.
- Está ótimo. Não há necessidade de usar muito da tecnologia. Se
eu puder me locomover e assumir forma física, posso conquistar o
mundo Assiah sozinho.
- Você vai conseguir. – o microfone captou a frase empolgada.
Capítulo 3:
Possessão
Capítulo 3-1

Quando se deparam com algo incompreensível, as pessoas têm a


tendência de inconscientemente evitar pensar a respeito. Ou então
tentam racionalizar o que viram numa tentativa de aliviar a ansiedade.
Yumiko fez a mesma coisa quanto à sua experiência com a
evocação do demônio na sala de informática.
Naquela noite, Nakajima disse que evocou um demônio usando o
computador. Mas ao pensar bem a respeito, não havia nenhuma prova
concreta de que o que ela viu era mesmo um demônio. Com uma boa
habilidade com gráficos de computador, aqueles efeitos podiam ser
feitos facilmente. Quanto àquela fera demoníaca, Yumiko só o viu por
um instante. Era muito mais provável que fosse apenas um cachorro
grande que Nakajima havia deixado de guarda, e o medo e a surpresa
de Yumiko a engambelaram, fazendo-a imaginar um monstro
apavorante. Nakajima pode até ser um louco capaz de qualquer coisa,
mas a cerimônia toda pode não ter passado de algo que ele e seus
seguidores inventaram. Nakajima provavelmente só estava liderando
alguma espécie de clube de magia ou ocultismo.
Conforme os dias foram passando sem intercorrências, foi assim
que Yumiko começou a pensar na experiência. A classe dos “talentosos”
do Colégio Jusho ainda não era um lugar onde ela se sentia totalmente
à vontade, mas pelo menos ela conseguiu fazer alguns amigos e se
divertir como uma garota normal da sua idade.
Mesmo assim, não havia dúvida de que Nakajima parecia ter
algum tipo de autoridade sobre a escola. Ultimamente ele passava todo
o seu tempo enfiado na sala de informática, e raramente aparecia nas
aulas. Ela só o via quando eles tinham aula na sala de informática, e
mesmo assim ele ignorava a aula completamente, mexendo no seu
computador o tempo todo.
Fosse como fosse, com certeza havia algo errado. Mas sempre
que Yumiko tentava falar sobre Nakajima com seus amigos, eles se
afastavam ou mudavam de assunto. Mas não parecia que eles não
gostavam de Nakajima. O silêncio deles parecia mais uma espécie de
medo ou respeito, como se não pudessem encontrar as palavras certas
para usar ao falar de uma pessoa tão importante.
“Bom, que se dane. Não tem nada a ver comigo mesmo...”
Embora Yumiko conseguisse explicar a situação dessa maneira
para si mesma, não conseguia deixar de ficar agitada sempre que
lembrava do ocorrido.

Era uma manhã de julho, perto do início das férias de verão.


Yumiko atravessava a rodovia entre a Estação Kuniritsu e a
Universidade Hitobashi toda manhã para chegar à escola. Os galhos das
árvores se esticavam até o limite para suas folhas absorverem a luz do
Sol, e enquanto caminhava sob as filas de árvores ginko de folhas
desbotadas, Yumiko esfregou os olhos sonolentos e pensou no
telefonema que recebeu na noite anterior.
Aconteceu quando ela estava lavando a louça depois do jantar.
Sua mãe atendeu o telefone casualmente, e pouco depois a chamou.
- Yumiko, é alguém chamado Yamanaka. Você já arranjou um
namorado?
- Yamanaka...? – enquanto vasculhava a mente, se perguntando se
tinha algum colega com esse nome, Yumiko se dirigiu ao telefone.
- Com certeza deve ser alguma mensagem da escola. –
improvisou Yumiko. Ainda pensando em quem poderia ser, ela
demorou um pouco para atender.
- Alô, aqui é a Yumiko.
...
O som de uma respiração fraca era tudo que se podia ouvir do
outro lado.
- Alô?
- Não saia de casa a partir de amanhã. – de repente, uma voz
apressada soou no ouvido de Yumiko. Por um instante, ela pensou que
a voz parecia a de Nakajima, mas não tinha certeza.
- Alô, quem é?
- Ele está atrás de você. É melhor você sumir por uns tempos. – o
tom de voz era de urgência. Mas isso só deixava tudo mais suspeito, e
enquanto Yumiko tentava decidir como responder, percebeu que sua
mãe tinha parado de lavar as louças e a estava observando com um
olhar suspeito.
- Podemos conversar sobre isso amanhã, na escola. – disse
Yumiko calmamente.
Houve um barulho brusco quando o telefone foi desligado do
outro lado.
- O que foi? - perguntou a mãe de Yumiko.
- Nada. Às vezes, ser popular é um saco. - distraindo sua mãe com
uma resposta ininteligível, Yumiko tentava se lembrar melhor da voz
de Nakajima.

Estudantes de jeans azuis e camisas brancas passavam por


Yumiko, discutindo seus planos para as férias de verão. Um deles, que
carregava um violão na mão esquerda, esbarrou nela.
- Ah, desculpa! - quando Yumiko olhou para ele, o estudante
sorriu timidamente para ela, mas ela simplesmente o ignorou e olhou
para o outro lado.
"Pode mesmo ter sido o Nakajima..."
Yumiko não teve certeza na hora, mas pensando melhor depois,
ela ficou com uma forte impressão de que a pessoa misteriosa que a
ligou era Nakajima.
Mas se era assim, o que ele estava tentando dizer? A voz no
telefone parecia muito séria. Estava cheia de desespero, quase como
alguém tentando escapar de um perseguidor.
O que poderia ter acontecido com ele?
Depois do telefonema, Yumiko tentou se preparar para a aula do
dia seguinte, mas, mesmo tentando se concentrar nos livros, ela
continuava projetando o olhar de Nakajima enquanto olhava as
páginas, e não absorvia nenhuma informação. Não apenas ela não
conseguiu estudar, mas, pensando sem parar no telefonema, Yumiko
mal pregou o olho. Ela estava até com dor de cabeça de tanto sono.
Yumiko virou à esquerda depois da Universidade e cruzou os
portões da escola. Naquele instante, um arrepio subiu pela sua espinha
e ela ficou toda arrepiada. Se perguntando o que tinha acontecido, ela
olhou ao redor e percebeu que Ohara a estava olhando pela janela da
sala dos professores. Seus olhos profundamente negros emanavam
algo de sinistro, quase sobrenatural até, e observavam cada
movimento de Yumiko. Absorta no olhar, Yumiko começou a andar
desconcertada, e um estudante de bicicleta esbarrou nela.
- Ei, cuidado! - a bicicleta acelerou e o estudante desapareceu ao
longe.
Se recompondo, Yumiko olhou novamente para a janela da sala
dos professores, mas Ohara não estava mais lá. Enquanto a infinidade
de alunos adentrava a escola, alguns se viravam e olhavam sem
entender para Yumiko, que estava parada como um poste no meio do
pátio.
"O que você está fazendo? Nem parece você!" - se repreendendo,
Yumiko correu para dentro da escola.
Capítulo 3-2

Yumiko correu até a sala de aula e conseguiu se sentar antes do


sinal tocar. Logo depois a professora Ohara entrou na sala com o seu
rosto calmo de sempre. Yumiko a viu daquele jeito descontrolado
naquela noite na sala de informática, mas mesmo antes disso, as duas
nunca se deram bem. Olhando para baixo, como que para não fazer
contato visual com ninguém, Ohara instruiu os alunos a irem para a
sala de informática.
"A sala de informática para uma aula de literatura japonesa
clássica? O que ela pretende fazer lá?"
Pela experiência de Yumiko, o sistema de informática do Colégio
Jusho só era usado para ciências, matemática e inglês. Por que eles
precisariam de computadores para uma aula de literatura?
Não prestando atenção na dúbia Yumiko, os colegas de classe
fecharam os livros e se levantaram, deixando as canetas nas mesas.
Yumiko instintivamente olhou para trás para ver se Nakajima estava
na aula, mas a mesa dele estava vazia, e parecia que ele nem tinha
chegado na escola ainda.
"Ele está atrás de você. É melhor você sumir por uns tempos." De
repente, Yumiko lembrou das palavras da misteriosa conversa por
telefone na noite anterior. Uma gota de suor frio escorreu pelo seu
pescoço.
- Tudo bem, Yumiko? - o chamado da sua amiga, Miyuki Kanno, a
tirou do transe. Os grandes olhos negros de Miyuki brilhavam de
maneira incomum.
- Ei, Yumiko, nada de matar aula, heim?
- Não, é que não estou me sentindo bem.
- Vamos, vamos! - Miyuki estava estranhamente entusiasmada,
agarrando Yumiko pelo braço e a levantando da cadeira. Naquele
momento, Ohara se aproximou das duas.
- Srta. Shirasagi, você parece pálida. Quer descansar um pouco na
enfermaria? - ela falou de um jeito que parecia gentil até demais.
- Está tudo bem, professora. Eu vou ficar por perto pra garantir
que nada aconteça! - com um gesto grandioso, Miyuki deu um tapinha
no ombro de Yumiko. Os outros alunos ignoravam a conversa e
continuavam saindo da sala. Mas Yumiko sentiu que havia algo
estranho no modo como eles estavam andando.
"Eles não estão normais!"
Um arrepio correu pela espinha de Yumiko, e Miyuki apertou a
mão dela com mais força.
- Eu estou bem, Miyuki. Posso andar sozinha. - apesar das
palavras confiantes, a voz de Yumiko estava trêmula. Ela estava
determinada a se soltar de Miyuki e sair correndo assim que saísse da
sala de aula, mas no instante em que colocou o pé do lado de fora, uma
multidão de alunos homens a cercou.
- Vamos, vamos. - apressando Miyuki, Takai olhava para
nenhuma direção específica. Quando se deu conta, Yumiko estava no
meio de um círculo de colegas de classe. Miyuki continuava a segurar
firmemente o braço dela. Seu corpo delicado ocultava uma força
absurda.
- Por favor, me solte. - quando Yumiko abriu a boca para gritar,
um lenço foi enfiado na sua boca. Os estudantes andavam em fila pelo
corredor, circundando Yumiko caso ela tentasse escapar.

Uma vez que toda a turma entrou na sala de informática, Ohara


rapidamente fechou a porta.
Click.
Como se o barulho da tranca fosse um código, os alunos pararam
de se mover. Finalmente livre das mãos de Miyuki, Yumiko correu os
olhos pela sala e deixou escapar um grito contido.
Era igual àquela noite!
Não havia mesas ou cadeiras na sala de aula. Nakajima estava
sentado num sofá de couro no meio da sala. Havia uma pontada de
pena e remorso no rosto dele quando ele olhou para Yumiko.
- Nakajima, por quê...? - os lábios de Yumiko se moveram como
que implorando uma explicação.
Olhando diretamente para Yumiko, Nakajima se levantou
lentamente e apontou para o sofá em que estava sentado.
- Hoje esse é o seu lugar. - essa frase dita num murmúrio
perfurou a alma de Yumiko. Os eventos daquela noite ressurgiram
nitidamente na mente dela.
- Não, não! - abalada, Yumiko não conseguiu ficar de pé e caiu de
joelhos no chão. Os muitos arranhões no chão de linóleo só
contribuíam para fazê-la lembrar daquela noite. Naquela noite,
Nakajima disse que ofereceu Ohara a um demônio. Aquilo foi real? E
agora ela ia ser a próxima oferenda? Incapaz de fugir ou chamar ajuda,
Yumiko começou a soluçar, e suas lágrimas escorriam pelas bochechas
e caíam ao chão.
Grandes saltos negros de vinil pisaram nas lágrimas de Yumiko,
que se acumulavam no chão. Olhando para cima, Yumiko viu Ohara a
olhando com um sorriso sinistro no rosto.
- Não há nada a temer. Vamos, levante-se. - segurando a mão
dela, Ohara falou com uma voz calma e doce.
- Não! Não! - Yumiko balançou a cabeça violentamente, e olhou
para Nakajima como que procurando uma salvação.
- É tarde demais agora. Não tem outro jeito. - Nakajima falou
como se estivesse tentando convencer a si mesmo, e Yumiko ouviu em
desespero. Os olhos pequenos de Nakajima se voltaram para o
computador do servidor do outro lado da placa de vidro, e as fitas
magnéticas começaram a girar. Como que em sincronia com a fita, o
monitor na frente deles piscou em cores brilhantes.
- Preparem o sacrifício. - não houve hesitação na voz de Nakajima
quando ele deu a ordem. Yumiko viu vários alunos se aproximarem
para levá-la até o sofá. Porém, no instante seguinte, um tremor
repentino os impediu.
PAREM.
Uma voz solene e penetrante ecoou.
- Por que você os impediu, Loki?! - perdendo a calma com o
acontecimento inesperado, Nakajima agarrou o microfone, suas mãos
cobertas de suor frio.
- Eu não preciso mais da sua ajuda. - disse Loki.
- O quê?!
- Você não entende, Nakajima? Eu já tenho a habilidade de me
materializar no mundo Assiah por conta própria.
Os olhos de Nakajima se encheram de surpresa quando o
monitor que mostrava Loki de repente começou a emitir uma neblina
azul. Exatamente ali, uma ruptura dimensional entre o mundo humano
e o dos demônios estava começando a se formar. Emanando uma luz de
cores vibrantes como uma aura, a atmosfera se contorceu e pesou
estranhamente, e um ar gelado tomou conta do lugar.
Yumiko só se levantou e observou o nevoeiro crescer,
boquiaberta. Ela provavelmente estava paralisada de medo com os
eventos inacreditáveis que aconteciam diante dos seus olhos. A neblina
se condensou lentamente, e começou a se concentrar numa forma
vagamente definida, como um holograma. Lentamente, a forma se
solidificou. A luz que dançava entre o nevoeiro gelado se transformou
num longo cabelo negro, e a forma de um lindo rosto ganhou uma pele
de bronze, cujos profundos olhos negros se voltaram para os
estudantes na sala.
- Yod, Heh, Vav, Heh. - numa língua antiga, Loki declarou a
própria divindade. Ohara, que em algum momento tinha se ajoelhado
diante dele, uniu as mãos, olhou para ele com admiração e falou as
mesmas palavras, como que adorando a um deus todo-poderoso.
"E pensar que Loki tinha afetado Ohara tanto assim..." -
incapacitado, Nakajima só olhava para Loki e Ohara.
"Eu devia ter considerado a possibilidade disso acontecer.
Preciso encontrar um ponto fraco, e rápido!"
Nakajima apontava freneticamente um sensor conectado ao seu
computador para Loki, já quase que completamente materializado.
Conectando ao servidor do JSI, enviou os dados do demônio que o
sensor captou para a inteligência artificial Craft. Enquanto isso, Loki
estendeu a mão para Yumiko, que estava dura de medo. Seu corpo de
bronze nu era perfeitamente simétrico, quase como o grego Apolo, e
seu peito musculoso era coberto de escamas negras. Seus olhos negros,
nos quais ninguém jamais poderia identificar alguma emoção, a
paralisaram.
- Venha aqui. - apontando seu dedo-garra para Yumiko, Loki deu
a ordem numa voz baixa e fria. Yumiko olhou para Nakajima em busca
de ajuda, mas ele mal olhou para ela e continuou conversando com a
inteligência artificial.
Nakajima sabia que não teria chance se tentasse enfrentar Loki
diretamente. Mas Loki provavelmente não podia se arriscar a fazer
alguma coisa com ele enquanto ele tivesse controle do ambiente
virtual. Nakajima sabia que precisava encontrar urgente algum ponto
fraco em Loki, enquanto ainda tinha a chance. Ele também deduzia que
Loki não podia sair do campo magnético gerado pelo computador.
Mas quando Yumiko tentou fugir, um som estranho emanou dos
braços de Loki. Por um momento pareceu que eles estavam começando
a derreter, e então de repente se transformaram em enormes massas
disformes de protoplasma. Das pontas, surgiram vários tentáculos que
se envolveram nos braços e pernas de Yumiko, como um chicote.
- Não! Pare! - os tentáculos que prendiam a trêmula Yumiko a
levantaram no ar, puxando-a em direção à massa. Um novo tentáculo
rosa surgiu e se agarrou ao corpo de Yumiko, e o líquido emanando da
sua membrana derreteu suas roupas, entrou em contato com a sua pele
agora exposta e começou a se espalhar pelo seu corpo esguio.
> CRAFT, DEPRESSA!
Tapando os ouvidos para não ouvir os gritos de Yumiko,
Nakajima digitava freneticamente. Finalmente o LED de transferência
de dados piscou e Craft enviou uma resposta.
> DE ACORDO COM OS DADOS ENVIADOS, A SUBSTÂNCIA
GOSMENTA É COMPOSTA DE 58% DE ÁGUA E 17% DE ECTOPLASMA.
A MATÉRIA RESTANTE NÃO É NATIVA DO PLANETA E NÃO PODE SER
ANALISADA.
> JÁ HOUVE ALGUM CASO DE ALGUMA MATÉRIA SEMELHANTE
TER SIDO ENCONTRADA ANTES?
> SIM. NESTE SÉCULO, UMA MATÉRIA SEMELHANTE FOI
ENCONTRADA NUM TEMPLO MAIA E EM NOVA HAMPSHIRE.
> QUAL É O PONTO FRACO?
> IMPOSSÍVEL FORMULAR UMA HIPÓTESE, OS DADOS SÃO
INSUFICIENTES. PORÉM, A MATÉRIA ENCONTRADA SOB O ALTAR NO
TEMPLO MAIA EVAPOROU QUANDO ENTROU EM CONTATO COM
UMA TINTA FEITA DE SULFETO DE MERCÚRIO.
> SULFETO DE MERCÚRIO? OU SEJA, UMA MISTURA DE
MERCÚRIO E ENXOFRE. MAS EU NÃO TENHO TEMPO PARA
ENCONTRAR UMA COISA DESSAS. ME DIGA COMO INIBI-LO AGORA!
> INFELIZMENTE NÃO HÁ DADOS SUFICIENTES PARA
OFERECER UMA RESPOSTA.
Irritado por Craft pedir mais dados, Nakajima socou o teclado.
Naquele momento, uma estranha voz ofegante quebrou a linha
de pensamento de Nakajima. Olhando ao redor, ele viu que Ohara
estava se contorcendo aos pés de Loki, nua da cintura para cima e
abraçando os seios. Nakajima não deixou de perceber o fato de que
uma parte da sua pele, logo abaixo dos seios, estava brilhando. Ele
relatou a situação imediatamente para Craft e perguntou o que estava
acontecendo.
> A CONCLUSÃO MAIS PROVÁVEL É QUE ELA ESTÁ GRÁVIDA
COM O FILHO DO DEMÔNIO. SINTOMAS PARECIDOS FORAM
RELATADOS NA EUROPA NO PASSADO.
"Isso é impossível! Ohara só fez sexo com Loki num mundo
virtual. Será que...?" - pensando nas terríveis possibilidades, Nakajima
se encolheu de medo. Será possível que Loki já tinha se materializado
outras vezes antes e ele nunca percebeu? Enquanto isso, como que em
ressonância com os grunhidos de Ohara, todo o corpo de Loki começou
a se transformar em algo bizarro. Exceto pelo rosto, toda a sua pele
ficou rosa, e como se a sua estrutura molecular tivesse mudado
completamente, começou a secretar uma substância viscosa.
- Aah...
Deixando escapar um grito de prazer, Ohara arrancou as roupas
e se agarrou nas pernas de Loki. O corpo dele começou a balançar
como uma geleia e começou a envolvê-la. Fossem os deuses do Monte
Olimpo ou os monstros de Hades, muitos seres de outras realidades
tiveram seus corações roubados pela beleza e tentação sexual das
fêmeas humanas. Muito provavelmente, mesmo um demônio tão
poderoso quanto Loki não conseguia deixar de ficar excitado com a
ideia de acasalar com duas lindas mulheres.
Deixando seu lindo rosto como estava, ele começou a se
transformar numa massa cilíndrica de carne da qual saíam incontáveis
pequenos tentáculos. O protoplasma rosa começou a brilhar e o
movimento do tentáculo que segurava o corpo de Yumiko ficou mais
forte e violento.
Yumiko perdeu toda a vontade de resistir e acabou por desmaiar,
deixando seu corpo vulnerável. Loki começou a puxar o corpo de
boneca para dentro do seu. Mas ele não percebeu que Ohara estava
olhando furiosamente para Yumiko enquanto ela era envolvida pelo
protoplasma.
Muitas mulheres não conseguiam resistir à tentação dos
demônios e se apaixonavam loucamente por eles depois de fazer sexo
com eles uma vez, mesmo que os repudiassem normalmente. Para
Ohara, que se entregou de corpo e alma a Loki, vê-lo fazer sexo com
uma das suas alunas na frente dos seus olhos era uma humilhação
intolerável. Quando o corpo de Yumiko já estava dentro de Loki quase
até a altura do peito, Ohara ficou louca de ciúmes, agarrou a cabeça
dela e começou a torcê-la.
- Aah! - o corpo de Yumiko se contorceu de dor, e seu corpo
convulsionou de agonia.
- Pare! Pare! - gritando desesperado, Nakajima correu até ela,
mas foi atingido violentamente no rosto por um grosso tentáculo.
Arremessado contra a parede, sua visão escureceu por um instante, e
quando ele finalmente conseguiu se levantar do chão, o corpo de
Yumiko não mostrava sinais de vida; sua cabeça estava virada ao
contrário e seus olhos estavam abertos e cheios de pânico.
No alto do pilar de carne, o rosto de Loki assumiu uma expressão
de surpresa, olhando com descontentamento para Ohara, agora dentro
do seu corpo. Mas estando mais próximo e mais acostumado com ela,
ela era provavelmente mais importante que Yumiko. Loki levantou seu
tentáculo e jogou o corpo de Yumiko no chão.
Nakajima se encheu de arrependimento.
"Por que eu não a avisei direito naquela noite? Se eu não tivesse
dado aquele telefonema idiota e sim contado tudo a ela, isso nunca
teria acontecido. Eu matei Yumiko Shirasagi!"
Não apenas ele nunca pensou que Loki teria descoberto como se
materializar, mas também nunca imaginou que Ohara poderia matar
Yumiko. Mas agora o corpo sinistro de Loki estava aqui no mundo
Assiah e a inocente Yumiko estava morta.
E ele só ficou olhando, sem fazer nada.
Mordendo os lábios instintivamente, Nakajima percebeu uma
fraca luz avermelhada na sua visão periférica e levantou a cabeça. O
corpo de Loki tinha se espalhado por toda a sala de informática, que
agora parecia uma floresta de protoplasma. Os tentáculos rosas
pulsavam e se contorciam, agarrando os alunos hipnotizados e
puxando-os para dentro do corpo de Loki, onde eram consumidos um a
um. Mas a luz vermelha que chamou a atenção de Nakajima estava
além da carnificina. Próximo à entrada da sala, a atmosfera estava
permeada de vermelho, brilhando como a aurora.
"Uma distorção dimensional! Não pode ser... Outro demônio além
de Loki?!" - mas enquanto Nakajima estava distraído, vários tentáculos
prenderam suas pernas.
- Loki, o que você está fazendo?! - Nakajima não podia acreditar
que Loki o atacaria, e seu choque e surpresa foram até o âmago da sua
alma.
- Aposto que você pensou que estava seguro enquanto tivesse o
controle do computador. Mas essa mulher pode substitui-lo facilmente.
Agora que eu posso aparecer no mundo Assiah, suas habiliddades não
apenas não são mais úteis, mas sim um incômodo. - como que para
apoiar as palavras de Loki, Ohara riu dentro do seu corpo.
Nakajima imediatamente agarrou seu notebook e inseriu o
comando para evocar Cérbero. Da tela de cristal líquido, uma névoa
branca invadiu a sala.
- Vá, Cérbero!
Como que em resposta ao grito de Nakajima, a neblina
rapidamente se solidificou e, como que impaciente para tomar forma
completamente, atacou Loki.
- Você é uma fera do mundo dos demônios e está do lado de um
humano?!
Uma baforada de chamas voou da boca cheia de presas, e Loki
soltou um grunhido que fez a própria terra tremer. Desviando
agilmente de um tentáculo que emitia um ruído estridente, o demônio
Cérbero mordeu a sua base e o arrancou do corpo de Loki. O sangue
roxo de Loki jorrou e derreteu o piso de linóleo. Com os dois demônios
proferindo rugidos como trovões, rachaduras tomaram conta das
janelas de vidro, e o teto e as paredes começaram a desmoronar.
Mesmo lutando ferozmente, Loki se recusava a soltar Nakajima.
- Cérbero, aqui!
Quando Cérbero pulou no ar em resposta ao comando de
Nakajima, foi finalmente pego por um tentáculo que se amarrou em
volta do seu corpo. Mas sua cauda se dividiu ao meio e se tornou duas
serpentes, que levantaram suas cabeças e arrancaram fora o tentáculo
que o segurava. Livre de Loki, Cérbero pulou nos tentáculos que
seguravam Nakajima numa tentativa de salvá-lo.
Como que para frustrar o esforço da criatura, Loki movimentou
seu tentáculo e bateu a cabeça de Nakajima no chão. O impacto foi
quase que suficiente para quebrar o seu crânio, e a consciência de
Nakajima se esvaiu enquanto o sangue escorria do corte na sua testa,
seu campo de visão sendo tingido de vermelho. Com a visão distorcida,
a luta feroz do Cérbero parecia uma ilusão distante.
"Então esse é o destino patético do mágico..."
Enquanto sua consciência desaparecia e ele se preparava para
morrer, lembranças daquelas ilusões estranhas de antes apareceram
espontaneamente num canto da mente de Nakajima.
O que era aquilo? A mulher naquelas imagens chamou aquele
homem que era idêntico a ele de "Izanagi". Tinha alguma coisa a ver
com a história de Izanami e Izanagi da mitologia japonesa?
"Mesmo que eu soubesse, que diferença faz agora?"
Murmurando consigo mesmo, Nakajima fechou os olhos, como
que aceitando o seu destino.
Naquele momento, sem que ninguém percebesse, o coração da
aparentemente morta Yumiko começou a bater bem fraco.
"Yumiko! Yumiko!" - uma voz gentil estava chamando o seu
nome.
"Quem é? É você, mamãe?" - Yumiko perguntou instintivamente
em sua mente.
Como que reconhecendo que ela tinha acordado, a voz parou
brevemente, e então começou a falar de novo do seu jeito doce.
"Levante-se, Yumiko."
Yumiko não estava ouvindo os rugidos dos demônios e nem o
barulho da sala de aula sendo destruída. Na verdade, ela não lembrava
de nada da experiência horrível pela qual passou. Tudo que ela podia
ouvir era a voz da mulher. Abrindo um pouco os olhos, Yumiko
percebeu que a voz estava vindo da aurora vermelha na área distorcida
no ar.
Através da aurora, podia se ver a imagem de um campo calmo.
Arrozais cujas sementes ainda não foram colhidas. Colinas cobertas da
grama do verão. E grupos de grandes rochas, simples e misteriosas ao
mesmo tempo.
Yumiko já tinha visto aquela paisagem antes.
"Não é a tumba de Asuka Ishibutai...?" - quando o pensamento
passou pela sua cabeça, a voz da mulher falou de novo.
"Quando você foi Izanami numa vida anterior, era assim que a
chamava."
"Vida anterior? Izanami...? Quer dizer a deusa da mitologia
japonesa?"
Yumiko estava confusa com as palavras repentinas. Mas o que a
voz dizia parecia carregar o peso de uma verdade inegável.
"Levante-se, Yumiko. Este espaço no ar está conectado com
Asuka, onde eu descanso. Pegue Nakajima - não, o seu amado Izanagi -
e venha até mim."
No instante em que ela se levantou para obedecer à voz, os gritos
furiosos de Loki e os rugidos de Cérbero tomaram conta dos ouvidos
de Yumiko, trazendo-a de volta à realidade. Dominada por uma tontura
repentina, ela caiu ao chão imediatamente de novo. Mas quando
sangue escorreu até a sua cabeça e ela viu Nakajima caído no chão, foi
tomada por um senso esmagador de dever.
"Eu tenho que salvá-lo!"
Era um sentimento maior que amor ou amizade, algo mais
próximo a instinto. Era uma emoção poderosa, como se o rapaz
chamado Akemi Nakajima fosse literalmente parte dela, e que se ela o
perdesse ali não haveria mais sentido em continuar existindo. Sem
nenhuma ideia de como salvá-lo, ela se levantou e apertou os punhos, e
a voz ecoou de novo.
"Eu vou entrar no seu corpo por um momento para que você
possa usar o meu poder. O poder de queimar tudo para o que olhar
apenas com a sua vontade. Oro para que o seu corpo aguente a
pressão."
Um raio ofuscante pulsou no feixe dimensional, e um poder puro
como o qual Yumiko nunca tinha sentido tomou conta do seu corpo.

- GYAAH!
Um grito bizarro fez Akemi Nakajima recobrar a consciência.
Abrindo os olhos, ele viu que o tentáculo de Loki estava se
retorcendo sobre sua cabeça, enegrecido e emitindo um cheiro de
carne queimada. Lutando contra a dor de ter a cabeça rachada,
Nakajima se levantou. Pilares de chamas saíam de vários pontos do
corpo de Loki, e seus tentáculos torrados balançavam pelo ar como
ondas, todos emanando a mesma fumaça e o cheiro de carne queimada.
Além disso, Yumiko, que ele achava que estava morta, estava
lutando contra ele. Chamas surgiam onde quer que ela olhasse. Na
Europa medieval, quando o uso de magia estava no auge, a habilidade
era chamada de combustão espontânea.
- O que está acontecendo...? - Nakajima olhava sem palavras para
Yumiko, que estava usando um poder que ele nunca poderia imaginar
vê-la controlando. Mas logo Nakajima percebeu que o rosto dela estava
estranhamente pálido, e seu corpo inteiro estava tremendo. Só com a
força da sua vontade, Yumiko estava canalizando o imenso poder de
Izanami, e seu corpo estava chegando perto do limite que podia
aguentar.
Enquanto isso, sob o intenso ataque da chama, Loki ejetou Ohara
de dentro do seu corpo e começou a conjurar um feitiço num ritmo
sinistro. O protoplasma rosa começou a se condensar, retornando à
forma do jovem de pele bronze que Loki assumiu no começo.
Yumiko canalizava sua vontade desesperadamente e tentava
incinerar Loki com o poder de Izanami, mas as chamas simplesmente
se dispersavam sem deixar rastro ao entrar em contato com a pele de
bronze, sem o menor sinal de algum efeito. Mas Loki não mexia um
centímetro e simplesmente ficava parado, como que esperando ela
gastar toda a sua energia. Uma onda de exaustão tomou conta do corpo
de Yumiko, e sua visão começou a nublar. Justo quando ela achou que
ia cair de joelhos, incapaz de aguentar o esforço, a voz ecoou mais uma
vez.
"Depressa, pegue Nakajima e fuja!"
Com a coragem restaurada pela voz, Yumiko correu até
Nakajima, mas escorregou e caiu. Todavia, determinada a não
demonstrar nenhuma fraqueza, ela imediatamente olhou para cima e
encarou Loki. Ao ver a determinação dela, alguma coisa despertou na
alma cheia de desespero de Nakajima. Desde que ele apanhou por
causa de um mal entendido bobo e tomou a decisão de evocar um
demônio, Nakajima selou suas emoções, mas naquele instante elas
voltaram, e ele sentiu um tipo de amor que nunca tinha vivenciado
antes.
"Eu não posso morrer! Tenho que viver, por ela!"
A tontura de Nakajima se dissipou. Ele correu os olhos
rapidamente pela sala. Em algum momento, Ohara, ainda nua, tinha ido
até um terminal de computador e começado a digitar alguma coisa. Ela
estava longe de ser tão hábil como Nakajima, mas era claramente
acostumada a usar um computador. Quando Nakajima percebeu que
Ohara estava salvando as mudanças de dados que ocorreram quando
Loki se materializou, entendeu imediatamente as ações peculiares dele.
O motivo de Loki estar se mantendo perto do terminal era quase
que sem dúvida porque não estava completamente confiante na
própria materialização. Era muito provável que essa forma
protoplásmica fosse resultado de um bug na transferência de dados.
Loki devia estar testando como usar essa forma. Ele provavelmente
não sabia o que aconteceria se tentasse sair do campo magnético
gerado pelo computador. Era muito possível que ele tivesse
conseguido a liberdade de existir fora das limitações digitais, mas
ainda havia o risco de se aniquilar completamente. Para garantir,
Ohara estava salvando todos os dados.
Assim que percebeu isso, Nakajima decidiu que podia escapar se
tentasse agora. Usando seu notebook para rapidamente reevocar
Cérbero, que fora derrotado em batalha e agora estava caído ao lado
dele como se estivesse morto, Loki percebeu o movimento de Nakajma.
Loki não podia deixar Nakajima escapar de jeito nenhum. Ele
sabia tudo sobre ele. Mesmo sabendo do perigo, Loki pulou em cima de
Nakajima, se afastando do computador.
- Nakajima, cuidado! - Yumiko se levantou desesperadamente.
Naquele momento, tudo ficou vermelho, e os lábios de Yumiko
proferiram palavras que ela mesma não imaginava dizer.
- Para trás, demônio!
Por um momento, Izanami tomou o corpo de Yumiko
completamente e liberou toda a sua energia. Uma coluna de chamas
irrompeu na testa de Loki, no único ponto em que seu corpo ainda
estava em forma gelatinosa. Loki soltou um grunhido como o de uma
fera enraivecida, e Yumiko, na verdade Izanami, agarrou o corpo de
Nakajima e avançou para a aurora.
Surpreso e enfurecido, Loki soltou um rugido e foi atrás dele. Por
um instante, seu corpo oscilou como uma miragem e sua pele de
bronze ficou quase transparente. Números corriam freneticamente
pelo monitor do terminal, e Ohara olhava para a tela sem saber o que
fazer.
Mas, alguns instantes depois, o computador parou de aquecer e
Loki voltou à forma normal. Pouco antes dos raios da aurora
envolverem Yumiko e Nakajima, balançando como que carregados pelo
vento, Loki avançou com suas garras sobre os dois.
Suas longas garras perfuraram fundo o pescoço de Yumiko e a
cortaram até o meio das costas, e sangue fresco jorrou do ferimento.
Mas assim que a aurora envolveu os dois, eles começaram a
desaparecer imediatamente. A única coisa que restou para trás no
espaço onde a aurora estava foi o sangue de Yumiko, e a sala tremeu
com o grito angustado de Loki, agora completamente materializado.
Capítulo 4:
Seguindo em Frente
Capítulo 4-1

Estava garoando na região de Asuka desde a noite anterior. Lá,


amontoados antigos de cedros bloqueavam a luz do Sol, tornando a
montanha Ayakashi escura mesmo durante o dia. Uma estátua que
lembrava um macaco nas profundezas da montanha - colocada lá há
eras, antes mesmo da era Tenbyo no século XVIII - olhava para o céu
com os seus grandes olhos que ocupavam quase metade do seu rosto.
A chuva que caía sobre a estátua pareceu ser tingida de
vermelho, e começou a oscilar, apesar do vento estar calmo.
Imediatamente algo como uma aurora apareceu entre dois troncos de
árvores muito antigas, cobertos de lodo. Esse fenômeno, chamado
"Ayakashi" pelas pessoas de Yamato, era a origem do nome da
montanha. A aurora aumentou em densidade, emitindo um festival de
luzes brilhantes na montanha normalmente escura. Uma rajada
repentina de vento jogou a chuva de lado, e quando a própria aurora
pareceu balançar, as silhuetas de duas pessoas apareceram em pleno
ar.
Num instante, as duas silhuetas tomaram forma e caíram na
grama abaixo. Tão rápido quanto apareceu, a aurora perdeu a luz e
desapareceu. Como se nunca tivesse estado lá, a garoa cobriu
novamente a área onde ela flutuou um momento antes.
De acordo com as tradições do povo local, os deuses de Yamato
usavam esse "Ayakashi" para viajar para a China e a Índia. Os humanos
desafortunados que inadvertidamente entravam nele desapareciam e
nunca mais eram vistos de novo, então as pessoas eram proibidas de se
aproximar. Izanami com certeza usou esse poder para salvar Nakajima
e Yumiko.
Sentindo o vento calmo batendo na pele e a chuva fria na
bochecha, Nakajima abriu os olhos. Ao lado dele, mergulhada nas
folhas, estava a seminua Yumiko.
"Onde estamos?"
Sem soltar a mão de Yumiko, Nakajima olhou os arredores com
cautela. O mundo que ele tinha visto além da aurora era um de campos
e colinas verdejantes, mas os dois estavam agora numa floresta escura.
Mas de todo modo, estavam salvos. Isso, claro, só graças à coragem e o
poder fantástico de Yumiko. Se perguntando como aquele rosto doce
podia esconder o poder para enfrentar um demônio de igual para igual,
Nakajima pôs a mão na bochecha dela.
Mas a bochecha de Yumiko estava dura e fria, quase como se ela
fosse uma boneca de gelo. Tentando se convencer de que era por causa
da chuva, Nakajima tirou a camisa e a colocou em Yumiko. Mas quando
colocou a mão atrás do delicado ombro dela, a mão voltou coberta de
bolas negras de sangue. Olhando timidamente para as costas dela,
Nakajima teve de conter a ânsia de gritar alto.
Do ombro direito até a cintura, as costas de Yumiko foram
completamente estripadas, até seus ossos estavam visíveis. Só por
tentar agarrá-la, as garras de Loki causaram um ferimento horrível.
Como que acordando de um sono profundo, Yumiko abriu os olhos. Sua
expressão calma e pura não escondia a dor do ferimento quando ela
olhou para Nakajima e murmurou:
- Sinto muito.
...
Nakajima não soube como responder e simplesmente abraçou
Yumiko. Ele é quem devia estar se desculpando. Ouvir Yumiko dizer
isso para ele doía muito mais que se ela o tivesse condenado. Mas as
palavras de Yumiko tinham outro significado. Ela murmurou no ouvido
de Nakajima:
- Sinto muito... Acho que não vou sobreviver a isso. Mas você vai
desejar me trazer de volta?
- O que você está dizendo?! Você não vai morrer só por causa
desse ferimento! Aguente firme!
- Não é só por causa desse ferimento nas minhas costas. Izanami
já tinha me avisado. Eu usei o poder de Izanami para enfrentar Loki.
Mas o poder dela era forte demais para mim...
- Izanami?
Nakajima ficou chocado com as palavras que saíram de repente
da boca de Yumiko. Com o seu conhecimento de magia e mitologia, ele
pôde entender o significado do que ela disse, mesmo que vagamente.
Ao mesmo tempo, entendeu o motivo das estranhas visões que teve em
diversas vezes.
Eles estavam repetindo a história da mitologia japonesa. Para
trazer de volta a sua falecida esposa Izanami, Izanagi, o pai dos deuses,
desceu ao mundo do Yomi. Mas quando chegou lá, Izanagi olhou para
sua esposa, que havia se tornado hedionda, quebrando um grande tabu
ao fazê-lo. Então ele foi forçado a abandoná-la e fugir de volta para a
superfície.
- Ela me disse que eu sou a reencarnação de Izanami. E que se
você quiser que eu volte à vida, deve levar o meu corpo até a tumba
dela e colocá-lo na câmara ao lado de onde ela está enterrada. Se você
fizer isso, eu voltarei à vida, e desta vez nós poderemos viver juntos. -
dizendo isso, Yumiko começou a tossir violentamente. Nakajima
limpou o sangue que ela cospiu.
- Yumiko, não fale assim. Você não vai morrer. Nós vamos viver
felizes para sempre. - Nakajima nunca tinha se aberto para uma mulher
antes, mas com essa declaração explícita dos seus sentimentos, o rosto
pálido de Yumiko esboçou um sorriso.
- Obrigada. Não me abandone no meio do caminho como Izanagi
fez...
Yumiko fechou os olhos e, como se fosse dormir, deu seu último
suspiro. Abraçando seu corpo e acariciando seu cabelo molhado, uma
emoção forte se acendeu em Nakajima. Exceto por aquelas visões, ele
nunca teve nenhum contato com Izanami. Mas ele acreditava
completamente no que Yumiko disse. Ou talvez o mais correto fosse
dizer que ele decidiu acreditar nela. Afinal, ele evocou Loki, os deus das
lendas nórdicas. Nakajima não fazia ideia de como o mecanismo da
reencarnação funcionava, mas se a Izanami dos mitos japoneses
realmente existiu, ele ia encontrá-la.
- Espere só um pouco. Prometo que vou te trazer de volta.
Deitando o corpo de Yumiko com cuidado, Nakajima pegou o
notebook caído ao seu lado e apertou o botão de ligar. Felizmente,
parecia estar funcionando.
"Se pelo menos eu conseguisse evocar o Cérbero..."
Quando a neblina branca saiu da pequena tela de cristal líquido,
Nakajima deu um suspiro de alívio. O demônio eletrônico se
materializou e rugiu, e olhou para o seu mestre com fogo nos olhos.
Mas os ferimentos que recebeu na luta com Loki privavam Cérbero do
seu vigor normal. Parecia até que o próprio corpo dele tinha ficado um
pouco menor. Provavelmente levaria pelo menos alguns meses para
ferimentos tão sérios se curarem. Talvez fosse possível curá-lo
corrigindo erros nos dados que o comprimiam dentro do computador.
Mas Nakajima nunca tentou fazer alguma coisa assim antes. Mesmo
que tentasse, não era algo que ele conseguiria resolver em um ou dois
dias, e Nakajima não tinha esse tempo. Acariciando o focinho de
Cérbero como que para encorajá-lo, Nakajima colocou o corpo de
Yumiko nas costas dele e começaram a caminhar.
Depois de dez minutos seguindo uma trilha natural, eles
emergiram das árvores. Além de uma descida íngreme coberta de
grama, havia uma pequena cadeia montanhosa cercada pela neblina
formada pela umidade no ar. À direita havia uma grande tumba de
pedra, e atrás dela se erguiam montanhas que emitiam uma aura
esverdeada.
"Aquela é a Montanha Tono e aquilo é uma tumba Ishibutai.
Então aqui deve ser Asuka."
O cenário diante de Nakajima era idêntico às fotos num livro de
História Antiga que ele vivia folheando quando criança. Talvez fosse
verdade que uma deusa antiga os tinha chamado até as montanhas de
Asuka, que estavam intimamente ligadas aos mitos japoneses. Mas
como ele poderia encontrar a tumba de Izanami sem nenhuma pista?
Como que para encorajar Nakajima, que estava com um olhar de
desesperança, a fera demoníaca ao seu lado deixou escapar um
grunhido baixo.
- É, tem razão, Cérbero. Isso pode funcionar...
Respirando fundo, Nakajima fechou a mão direita em punho e
cravou o pulso numa das presas da fera. Num instante, uma dor aguda
correu pelo seu braço, e sangue fresco escorreu da ferida. Para
encontrar a localização da tumba de Izanami, Nakajima tentou usar o
próprio sangue para criar um círculo taumatúrgico. Mas quando o
sangue caiu no chão lamaçento, a chuva simplesmente o carregou,
distorcendo a forma do círculo. Apesar de se sentir mal com a perda de
sangue, Nakajima tentou desenhá-lo de novo.
Embora fosse versado em teoria da magia, Nakajima sempre
dependeu de computadores até agora, e essa era a sua primeira
experiência tentando conjurar um feitiço sozinho. Mas não havia
hesitação no rosto dele. Não podia haver ambiguidade ao se evocar um
feitiço. Ele tinha certeza de que não havia nada que não podia fazer
após ter dominado a teoria a tal ponto. Determinando a direção do
Ishibutai e da Montanha Tono, ele usou o programa de astrologia do
seu notebook para determinar a posição das estrelas e a fase da Lua e
usou os dados para desenhar o círculo. Completando-o e sentando no
centro, Nakajima murmurou:
- Izanami, por favor me diga onde está.
Nakajima fez um sinal com as mãos e começou a meditar. Ele
estava longe de ter algum poder psíquico, mas seus sentimentos por
Yumiko e o campo magnético único do Monte Ayakashi o colocaram
facilmente em transe. Nakajima se concentrou no fio prateado do
destino que o conectava a Yumiko. O fio que ele visualizou começou a
brilhar. Entrando num estado de profunda meditação, Nakajima tentou
superimpor o fio imaginário no cenário do mundo real. Suas
sobrancelhas franziam enquanto ele focava seu espírito ao máximo.
Finalmente, na imagem que visualizou, ele pôde ver claramente o fio de
prata mergulhando em dois pequenos montes de terra.
"Deve ser ali que está a tumba de Izanami."
Acordando da meditação, Nakajima se levantou e procurou por
algo no cenário que se aproximasse ao que viu no transe.
- Ali está! Aquela é a tumba de Izanami! - Nakajima gritou alto.
Os dois montes de terra ficavam num ponto que formava um
triângulo perfeito entre o Ishibutai e a Montanha Tono. Naquele
momento, talvez atraídas pelo cheiro de sangue, várias moscas se
amontoaram ao redor de Yumiko e pousaram no seu ferimento.
Afastando-as com irritação, Nakajima a levantou e colocou nas costas
de Cérbero.
Capítulo 4-2

Aproximadamente ao mesmo tempo, na sala de informática


agora dizimada, Ohara conversava com Loki através do computador.
Mesmo após conseguir se materializar por completo, Loki parecia
preferir ficar dentro do computador em forma digital - provavelmente
era menos incômodo.
- Maldito Nakajima... Ele fugiu até Asuka.
- O que deseja que eu faça? Devo enviar meus alunos atrás deles?
- Não. Eu mesmo vou. - a voz de Loki estava cheia de resolução.
Ele entendia perfeitamente que a tecnologia revolucionária de evocar
demônios com computadores estava a par com a tecnologia de armas
nucleares. Se ele conseguisse dominar a técnica de transferência de
dados que Nakajima desenvolveu, conquistar o mundo humano seria
mais que apenas um sonho distante.
Mas o mesmo valia para os outros demônios. Para impedir que a
tecnologia caísse nas mãos de outros demônios, garantindo assim sua
superioridade absoluta no mundo Assiah, Loki não podia deixar
Nakajima viver.
Loki tinha servos que podiam ser chamados de espiões - moscas.
Moscas eram algumas das poucas criaturas que podiam viajar
livremente entre os mundos Assiah e Atziluth, e Loki não só tinha a
habilidade de se comunicar com elas, como também sentir tudo que
elas vivenciavam como se estivesse lá em pessoa. E através delas, Loki
descobriu que Nakajima estava em Asuka.
- Certo...
Ohara inseriu um comando no computador. Talvez só fosse parte
do banco de dados de Nakajima, mas apareceram na tela os telefones
de vários bancos na região de Kinki. Ohara rolou a tela e abriu um
mapa do Japão, contra-referenciando-o com os números de telefone.
- Acho que esse Banco Kangyo em Inai será o melhor.
- Certo. Então me mande para lá.
Enquanto a fita magnética começava a girar furiosamente, a tela
foi tomada de cores brilhantes. Ligando o modem, Ohara digitou
cautelosamente o número do Banco Kangyo.
Capítulo 4-3

Afundando os tênis no cascalho, o andarilho de Asuka continuava


seguindo a trilha. Os rostos de todos os turistas por perto mostravam
irritação com a chegada indesejada da chuva. Cérbero cruzava as
colinas em altas velocidades, enquanto Nakajima carregava o corpo de
Yumiko com dificuldade nas costas. Mas a cena extremamente anormal
não parecia incomodar os turistas.
- O que foi isso?
- Devem estar gravando um filme.
As vozes despreocupadas foram ficando para trás. Nakajima
então chegou às colinas que viu na sua visão. Ele não sabia que essa
colina de 200 metros de altura era uma tumba Kofun conhecida como
Monte Shirasagi. O Monte Shirasagi era grande para uma tumba Kofun,
e era envolto em mistério. Ninguém sabia se a tumba foi feita ali por
escolha deliberada ou para aproveitar a formação natural, muito
menos quem estava enterrado lá ou quando ela foi construída. Mas era
contado na tradição oral que uma mulher foi enterrada ali, e alguns
daqueles que estudavam o texto histórico "Gishi-Wajin-den"
afirmavam que era o túmulo de Himiko, a antiga rainha de Yamato. Nos
dias modernos, mais de metade do Monte Shirasagi tinha sido
transformado em campo de plantio, e da área original da tumba, só
restava uma única câmara de pedra.
À medida que Cérbero subia a colina, seu movimento ficava
visivelmente mais lento, e os espasmos da sua respiração difícil
podiam ser sentidos nas suas costas. Assim que o que parecia ser a
entrada da câmara funerária apareceu, Cérbero finalmente parou.
Nakajima desceu, deixando apenas Yumiko nas costas da fera. E como
se seus nervos sobrecarregados finalmente tivessem chegado ao limite,
as pernas de Cérbero titubearam e ele caiu ao chão. Talvez seus
ferimentos da batalha com Loki tivessem piorado, ou talvez o próprio
Monte Shirasagi causasse dor ao animal, mas fosse como fosse, ele não
conseguia dar mais um só passo, colocando a língua para fora e
deixando escapar um grande suspiro de cansaço. O fogo nos seus olhos
tinha se apagado.
- Você se saiu bem, Cérbero. Pode voltar. - Nakajima não teve
escolha que não devolver o demônio digital ao computador.
Capítulo 4-4

Naquele mesmo momento, na sede do Banco Kangyo em Inai,


quatro funcionárias estavam no escritório inserindo as transferências
do dia no sistema de computador. Nenhuma das quatro sequer olhava
para os teclados. Seus olhares eram direcionados apenas aos moniores
ou aos números nos papéis.
- Por que é sempre o meu computador que trava?! - uma das
funcionárias se levantou irritada da cadeira.
Seu nome era Yoshie Mida. Ela já trabalhava no banco há dois
anos e era brilhante, mas um pouco temperamental, com uma
personalidade enérgica. Yoshie deu uma olhada nos monitores das
outras, mas parecia que ela era a única com o problema. A tela estava
completamente preta e não reagia a nenhum comando do teclado.
- Isso não acontece às vezes quando enviamos dados para a
central? - Yuko Shimamura, cuja aparência e personalidade eram o
completo oposto de Yoshie, olhou para ela sem para de inserir seus
dados. Yuko trabalhava na empresa há um ano a mais que Yoshie e por
isso tinha uma espécie de autoridade informal.
- É impressão minha então? Bom, acho que vou fazer um chá
enquanto isso.
Enquanto Yoshie caminhava insatisfeita para a porta da sala,
uma neblina azul começou a sair da tela atrás dela. Um cheiro
almiscarado começou a permear a sala, mas, entretidas no trabalho,
nenhuma delas pareceu perceber. A neblina azul começou a coagular e
tomar forma atrás da cadeira em que Yoshie estava sentada. Cansada
de toda a digitação, Yuko parou para esticar os braços. Uma estranha
substância gelatinosa se agarrou ao pescoço dela.
- Yoshie, para com isso.
Bocejando e virando a cadeira, Yuko se encontrou frente a frente
com o rosto de bronze de Loki sobre um bizarro pilar de carne
gelatinosa. Ela tentou gritar, mas descobriu que suas cordas vocais
estavam congeladas e não conseguia emitir nenhum som. O tentáculo
do demônio avançou e esmagou o crânio de Yuko, fazendo um barulho
alto. Do pescoço para cima, Yuko não era nada mais que um pedaço
grotesco de carne desfigurada. Enquanto as outras duas mulheres
ainda estavam paralisadas de medo, outros tentáculos as agarraram e
puxaram para dentro do corpo do demônio.
Atrás de Loki, houve o som de porcelana quebrando. Yoshie tinha
voltado com o chá e deixou a bandeja cair ao ver o inacreditável banho
de sangue no qual entrou. O tentáculo de Loki perfurou o seu
estômago. Calor subiu pelo seu peito junto com a sensação de algo
grudento, e no instante seguinte uma dor insuportável tomou conta
dela, quando o sangue fresco jorrou da pele rasgada.
- O que está havendo?! - ouvindo os barulhos estranhos dentro
da sala, um funcionário carregando vários papéis abriu a porta. Loki
impiedosamente jogou a cabeça decapitada de Yoshie no peito dele
com uma força incrível.
- Agh!
Jogado violentamente contra a parede, o homem mal conseguiu
procurar o alarme de emergência e pressioná-lo com a pouca força que
tinha antes de perder a consciência.
O som estridente do alarme ecoou pelo prédio. Em meio ao
barulho, Loki completou calmamente a sua transformação na sua
forma humana de bronze, e voltou seus olhos negros para Asuka.
Capítulo 4-5

Após devolver Cérbero ao mundo dos demônios, Nakajima


carregou Yumiko nas costas e chegou à câmara funerária de pedra do
Monte Shirasagi. Mas quando viu a pequena sala através da passagem
Kumazasa, não conseguiu evitar de fazer uma expressão de decepção.
A câmara funerária fora escavada verticalmente no solo, com uma
abertura de cerca de 90 centímetros de largura e altura. Mas as
paredes da câmara em si tinham apenas alguns metros no máximo.
Nakajima tinha de se curvar para conseguir ficar em pé. Parecia
pequeno demais para ser a entrada de uma tumba Kofun. Izanami
estava ali mesmo?
"Não entre em pânico. Esse tipo de câmara deve ter algum tipo
de truque ou passagem secreta, alguma coisa." - tentando se confortar,
Nakajima desceu até a câmara.
A sala era permeada por um ar gelado, e as paredes de basalto
brilhavam, cheias de umidade. Nakajima colocou Yumiko no chão
cautelosamente. Um sapo que estava observando esse estranho intruso
de um dos cantos da câmara coachou e deu um pulo para trás.
Sentando no chão de pedra, Nakajima entrou em transe para tentar se
comunicar com Izanami. Mas ele tinha muito pouca experiência nesse
tipo de coisa. Talvez fosse por causa da ansiedade, mas a imagem não
se formava na sua mente, e só o que ele conseguiu foi fazer o tempo
passar. Franziu as sobrancelhas em frustração.
- Não consigo sentir nada, apesar de provavelmente estar muito
mais perto de Izanami que antes. Izanami, me responda. Como posso te
encontrar?
Como que respondendo à pergunta murmurada, toda a câmara
começou a tremer. As pedras nas paredes começaram a rangir, e um
pouco de sujeira caiu do teto. Tossindo, Nakajima inconscientemente
aproximou o corpo de Yumiko do seu.
- Izanami, me responda, para que eu possa reviver Yumiko! -
como se estivesse conjurando um feitiço, Nakajima repetiu as mesmas
palavras várias e várias vezes.
Logo o tremor parou e, como se estivesse perguntando algo, o
coachar do sapo ficou mais alto. Quando Nakajima se virou e olhou na
direção dele, seus olhos brilharam de empolgação com o que viu. O
tremor abriu um buraco entre as pedras da parede, de modo que uma
pintura vermelha nas pontas delas ficou claramente visível. Se
aproximando do espaço entre as marcas, Nakajima pôde sentir ar frio
correndo. Enfiando os dedos na abertura, Nakajima desencaixou as
pedras uma a uma, revelando um túnel grande o suficiente para uma
pessoa entrar. O túnel era levemente inclinado para baixo,
prosseguindo ainda mais fundo na terra.
O poço estava completamente escuro, mas não havia hesitação
para Nakajima. Usando a camisa para amarrar Yumiko e o computador
no seu corpo, Nakajima deitou de bruços e começou a rastejar no
buraco. A sensação de tocar uma superfície fria como mármore
entregava que a estrutura foi feita por humanos. Tomando cuidado
para não escorregar, Nakajima começou a descer com cuidado em
direção à escuridão desconhecida.
Capítulo 4-6

Enquanto isso, Loki tinha saído do Banco Kangyo e estava no


topo de Tonomine, de onde podia ver toda Asuka. Abaixo dele estavam
os grupos de megálitos da região. Com a garoa batendo no rosto, Loki
abriu a boca. Sua garganta se expandiu bizarramente e sua língua
começou a vibrar. A frequência extremamente alta do seu tom de voz
era inaudível para os humanos, mas, como que atraídos pelo som,
incontáveis pontos negros do tamanho de grãos de arroz cruzaram a
chuva num instante e chegaram até ele. Era um exército de moscas sob
o comando de Loki. Tomando o cuidado de não encostar nele, elas
voavam ao redor dos seus ouvidos e cada uma cochichou alguma coisa
para ele.
Depois de ouvir toda a informação, Loki ordenou às moscas:
- Certo. Vão! - e elas voltaram aos seus postos.
Passando a mão no ferimento na sua testa, Loki olhou para o
monte Shirasagi.
- Nakajima... O que você pretende fazer aí?
Ele sabia que Nakajima não fugiu para Asuka por poder dele.
Também não foi o poder de Yumiko que os levou lá. Uma mulher
humana nunca teria poder suficiente para ferir um demônio. Muito
provavelmente um deus ou demônio japonês a possuiu e os levou para
Asuka. E era seguro assumir que era uma criatura bastante poderosa.
- Não importa quem seja, não vou deixar escapar. Vou esmagá-lo
como um inseto! - disse Loki, começando a descer o declive para o
Monte Shirasagi.
Capítulo 5:
Espada de Fogo
Capítulo 5-1

A caverna era uma descida leve, mas parecia que não tinha fim.
Enquanto o som da sua respiração cansada ecoava pelas paredes, a
entrada acima ficava cada vez mais distante. As reverberações quase
faziam parecer que Yumiko, amarrada nas costas de Nakajima, estava
respirando, e várias vezes ele parou para conferir.
Mas os ombros do cadáver estavam moles como sempre, e ao
parar, Nakajima só detectava o cheiro de morte.
Seu senso de passagem do tempo tinha se perdido há muito. O
túnel era tão comprido que ele quase chegou a achar que chegaria ao
centro da Terra. Os braços e pernas de Nakajima estavam acabados por
conta do esforço de suportar o peso de dois corpos, e ele tinha a
sensação de que cairia e rolaria até o fundo se se distraísse por um
único momento. Com dificuldade, Nakajima tirou os sapatos e as meias
e continuou descendo com os pés descalços. Assim ele teria mais
certeza de onde estava pisando. Se ele estivesse sozinho, talvez
preferisse se jogar no poço de qualquer jeito. Mas se o corpo de
Yumiko fosse danificado, tudo seria em vão. De repente, Nakajima não
sentiu nada debaixo dos pés.
- Agh!
Esticando os braços desesperadamente para tentar agarrar o
nada, uma sensação de perda, medo e desespero correu pelo corpo
dele. Um instante depois, ele bateu dolorosamente contra uma
superfície dura de pedra. Ele caiu dois ou três metros. Se movendo
inconscientemente para proteger o corpo de Yumiko, os ombros e as
costas de Nakajima sofreram um impacto maior do que deveriam e,
sem forças, ele perdeu a consciência.

Havia uma luz fraca e uma brisa calma. Com o frio acariciando
sua bochecha, Nakajima abriu os olhos pesados. Um pouco à frente,
estava o corpo imóvel de Yumiko. Ele se sentia leve, e não parecia ter
algum osso quebrado. De fato, embora estivesse ferido, não era nada de
preocupante. Reunindo as forças e se levantando, Nakajima respirou
fundo. À medida que seus olhos foram se acostumando com a
escuridão, o lugar foi ficando mais visível.
E que lugar misterioso era! Nakajima se encontrava numa
espécie de praça esculpida num vale subterrâneo. As paredes ao redor
eram todas vermelhas. Numa delas, a cerca de três metros de altura,
havia uma abertura. Muito provavelmente, foi o buraco por onde
Nakajima caiu. Estando no subsolo, devia haver um teto visível, mas ao
olhar para cima, as paredes simplesmente continuavam até as pedras
vermelhas desapareceram na escuridão. Em frente à praça, um
caminho estreito se estendia até onde não se podia mais ver. Seria o
caminho para a câmara funerária de Izanami? Ao contrário do buraco
por onde ele caiu, essa parecia ser uma trilha subterrânea natural.
Nakajima se lembrou da cena das visões que teve de ser perseguido
pela mulher em decomposição.
De repente, Nakajima se deu conta de uma coisa. A tintura
vermelha usada nas antigas tumbas japonesas era a base de mercúrio.
Ele então se lembrou das palavras de Craft.
Quando exploradores encontraram um material que
aparentemente era parte do corpo de um demônio num templo maia,
ele evaporou ao entrar em contato com a tinta a base de mercúrio
deles. Em outras palavras, essa tumba foi feita especificamente para
afastar demônios. Recuperando a coragem ao perceber isso, Nakajima
pegou o corpo de Yumiko e avançou pelo vale vermelho. Mas o
problema é que Nakajima desde o começo nunca teve muito fôlego. Em
menos de dez minutos, suas pernas estavam exaustas. Seria
interessante ter a ajuda de Cérbero, mas ele não queria explorar mais o
demônio já tão ferido. Além do mais, esse lugar estava longe de ser o
mais apropriado para ele, com as paredes literalmente cobertas de
repelente de demônio.
Com a respiração pesada de cansaço, Nakajima prosseguiu pelo
caminho para a câmara funerária. O suor escorrendo da testa para os
olhos embaçava a sua visão, e cada passo exigia todo o esforço de que
ele era capaz. Nakajima balançava a cabeça de um lado para o outro
para clarear a visão, e logo percebeu uma silhueta branca na sua visão
periférica.
- Quem está aí?!
Olhando melhor, ele reparou que era mais de uma silhueta. Na
verdade, eram várias, mas nenhuma dava o menor sinal de movimento.
Se aproximando de uma cautelosamente, Nakajima viu que era uma
múmia esbranquiçada, com a cabeça tombada para o lado e as órbitas
oculares vazias encarando o espaço. Fosse o poder do sulfeto de
mercúrio ou o frio da câmara subterrânea, o corpo fora protegido da
decomposição natural. A região do peito tinha um grande buraco, que
parecia ter sido aberto propositalmente. Olhando ao redor, parecia que
as várias múmias estavam espalhadas sem nenhuma ordem específica.
A julgar pelas roupas, pareciam ser pessoas de muitos períodos de
tempo diferentes. Uma usava trajes primitivos, outra parecia estar
usando um chapéu eboshi dos samurais da era Kamakura, e outra
parecia um plebeu da era Edo. Muitas tinham indícios dos seus ossos
terem sido esmagados por grandes mandíbulas ou as gargantas
cortadas. Poucas pessoas chegariam a um lugar desses por acidente;
muito provavelmente eram ladrões que vieram aqui para saquear a
tumba Kofun. Quem foi então que fez isso com eles?
De repente, o som de um grito bizarro atingiu os ouvidos de
Nakajima.
- YAAH! GLULULU!
Parecia que a voz estava vindo de longe, mas as reverberações
estranhas produzidas pelas paredes do lugar tornavam difícil
identificar a distância do som. Nakajima olhou de relance para os
corpos estraçalhados das múmias. Se o guardião da tumba que
massacrou impiedosamente esses possíveis ladrões ainda estivesse
patrulhando o caminho para a câmara funerária...
Enquanto Nakajima pensava, esse mesmo guardião surgiu de
trás de uma grande pedra e pulou na frente dos olhos dele.
- Yomotsu-Shikome! - gritou Nakajima.
A imagem feroz da mulher monstro das visões estava gravada na
mente de Nakajima. Mas a Yomotsu-Shikome que estava diante dele
era muito mais grotesca que a que ele viu. Ela tinha quase que
exatamente o dobro da altura dele. Suas pernas retorcidas e
amareladas jorravam uma gosma branca, e a barriga inchada acima
delas chamava atenção como a de uma mulher grávida. O manto que
ela vestia era quase cômico de tão pequeno, e o comprimento nem
chegava a cobrir os seus seios, que eram caídos até a altura do umbigo.
Suas mãos gordas tremiam, grossas de gordura. Seu rosto era quase
que idêntico ao de um sapo verde, e quando ela respirava, dois cortes
parecidos com guelras no seu pescoço se expandiam, expondo a parede
de carne interior. Seus longos cabelos negros só contribuíam para
deixar a sua aparência ainda mais sinistra.
Yomotsu-Shikome deu um passo à frente. Quando o olhar de
Nakajima e o dela se encontraram, ele colocou Yumiko com cuidado no
chão, limpou o suor frio das mãos na calça e pegou o notebook.
- Cérbero, por favor venha aqui.
Antes que a névoa que saía da tela de cristal líquido sequer
pudesse tomar forma, desapareceu com um latido fraco.
Aparentemente a tintura desses corredores realmente selava os
demônios.
Yomotsu-Shikome esticou suas mãos tortas em direção ao
aterrorizado Nakajima. Se afastando no último minuto, Nakajima
escorregou e caiu. Ele tentou se levantar desesperadamente, mas as
grandes mãos já o tinham agarrado. A longa língua de Yomotsu-
Shikome lambéu os lábios, e o seu bafo horrível atacou os sentidos de
Nakajima.
- Izanami, você vai me abandonar depois de eu ter vindo até
aqui?! - gritou Nakajima instintivamente.
Por alguma razão, no instante em que ouviu Nakajima gritar, a
mulher monstro começou a agir de maneira estranha. Boquiaberta, ela
olhou para Nakajima com uma expressão vazia, a hostilidade tendo
desaparecido completamente. Seu olhar correu ao redor, e então se
fixou no corpo de Yumiko, caído num canto. Uma expressão de respeito
se formou em seu rosto.
- Izanami...
Titubeando um pouco, Yomotsu-Shikome falou o nome quase
que em reverência. Colocando Nakajima no chão, a mulher monstro
andou desajeitadamente até Yumiko e a pegou como se estivesse
lidando com um objeto frágil.
- Ei, espere! O que você vai fazer com a Yumiko?!
Lançando um olhar de desaprovação para Nakajima, Yomotsu-
Shikome balançou a cabeça como que dizendo para ele a seguir, e
avançou pela rota subterrânea, carregando Yumiko nos braços.
Capítulo 5-2

Enquanto isso, Loki tinha entrado rapidamente no Monte


Shirasagi e agora estava diante da passagem por onde Nakajima caiu.
- Você não perde por esperar, Nakajima. Logo eu profanarei a sua
preciosa mulher diante dos seus olhos antes de te devorar inteiro. -
com um sorriso depravado no rosto, Loki se transformou numa bolha
amorfa e deslizou pelo túnel.
Loki desceu em meros minutos a passagem que Nakajima levou
horas para superar. Logo a bolha de carne fez um barulho de esguicho
quando caiu no chão de pedra da praça diante da trilha para a câmara
funerária. Naquele instante, sua membrana externa soltou um chiado e
começou a derreter, soltando fumaça.
- Maldição!
Loki rapidamente se transformou de volta no seu corpo de
bronze e, se ajoelhando no chão, soltou um uivo horrendo. Muito
provavelmente ele fora afetado pela reação química que aconteceu
quando o seu corpo protoplásmico entrou em contato com o sulfeto de
mercúrio. Mesmo agora, a única parte gelatinosa do seu corpo,
localizada entre os olhos, se contorcia e pulsava.
Rangendo os dentes e se erguendo, Loki olhou solenemente para
a trilha para a câmara funerária.
Capítulo 5-3

Enquanto isso, Nakajima tinha chegado ao fim da trilha, seguindo


Yomotsu-Shikome. Diante dele estava uma câmara funerária. Só podia
ser o lugar onde Izanami jazia.
"Eu finalmente cheguei aqui..."
A câmara em si não tinha porta, mas havia um símbolo prateado
brilhante na entrada que dava a impressão de estar protegendo o
interior. Lembrava um pouco o Selo de Salomão.
Yomotsu-Shikome moveu a cabeça como que para apressá-lo.
Quando Nakajima ia entrar, ela colocou Yumiko no chão com cuidado
para ele carregá-la.
- Você não vai entrar?
Quando Nakajima falou, a mulher monstro o olhou como que
tomada por medo, ou talvez surpresa ou admiração. E de repente,
Yomotsu-Shikome enfiou seu longo braço na boca, até a garganta. Seu
pescoço verde se dilatou e ela vomitou violentamente. Um cheiro
horrível subiu da bile, e Nakajima virou o rosto instintivamente.
Yomotsu-Shikome, por outro lado, pegou duas esferas azuis no meio do
vômito e as entregou a Nakajima. Embora não estivesse com muita
vontade de pegá-las, ele não queria ignorar a gentileza da criatura, e
fez uma careta ao aceitar o presente.
As pedras cobertas de gosma eram muito leves e cabiam
perfeitamente na mão dele.
- O que é isso?
Em resposta à pergunta de Nakajima, a mulher gigante fez um
movimento de encontro das suas mãos magras.
- Eu tenho que bater uma na outra?
Yomotsu-Shikome fez que sim com a cabeça algumas vezes,
franziu os olhos e abriu um pouco a boca. Aquilo foi um sorriso?
Nakajima começou a sentir um pouco de empatia pela criatura.
Bem naquele momento, um grito ecoou pela área, vindo da
entrada da trilha. Yomotsu-Shikome estremeceu de surpresa. Olhando
para trás várias vezes com um olhar de arrependimento, ela começou a
voltar pelo caminho.
Se inclinando para Yumiko não cair das suas costas, Nakajima
limpou as esferas que a mulher monstro lhe deu nos bolsos e bateu
uma na outra com força. Uma luz laranja voou em todas as direções,
mas fora isso, nada de mais pareceu acontecer. Elas deviam ser usadas
em algum tipo cerimônia, talvez? Incapaz de encontrar uma resposta,
Nakajima colocou as duas esferas no bolso e ficou olhando para o
símbolo no chão.
A câmara funerária em si tinha um leve cheiro de flores. Havia
dezenas de potes da altura da cintura de Nakajima empilhados por
toda parte. Olhando dentro deles, ele pôde ver um pouco de óleo no
fundo. Parece que era o que emitia o cheiro de flores. Provavelmente
era algum tipo de bebida oferecida a Izanami. Pouco à frente dele havia
um esquife branco. Sobre ele, pó espalhado na forma de uma cruz. Não,
na de uma pessoa deitada de bruços.
Capítulo 5-4

Ao mesmo tempo, Yomotsu-Shikome apressava o passo, sentindo


uma nova presença após ter levado Nakajima até a câmara funerária.
Como ela raramente demonstrava qualquer tipo de emoção
externamente, era difícil saber se ela estava surpresa ao receber tantas
visitas de uma vez, mas nos milhares de anos durante os quais ela
protegeu a santidade da tumba Kofun, nunca antes aconteceu de
aparecerem dois indivíduos ali no mesmo dia. Finalmente ela se
deparou com Loki no meio do corredor e esticou os braços magros o
máximo que pôde para bloquear a passagem dele.
- RAUIERE! - Yomotsu-Shikome tentou dizer algo a ele numa
língua esquecida. Ela podia sentir que esse invasor tinha um poder
muito diferente e muito maior que os ladrões de tumbas que
apareciam por ali. Se possível, ela queria repeli-lo sem ter de lutar.
Pego de surpresa, Loki parou e fixou seus olhos profundamente
negros em Yomotsu-Shikome, como que medindo o poder dessa nova
intervenção. E então começou a avançar calmamente, com um sorriso
arrogante no rosto. Se movimentando tão rápido que nem foi possível
ver, o punho de Loki se chocou contra o ombro de Yomotsu-Shikome.
Sem ter chance sequer de gritar, a mulher monstro foi arremessada
contra a parede violentamente.
- Você achou mesmo que podia me impedir? - Loki provocou
Yomotsu-Shikome assim que ela conseguiu se levantar de novo.
Ainda tentando se recuperar, Yomotsu-Shikome avançou sobre
Loki, berrando ameaças. Mas Loki nem mesmo tentou se esquivar, e
simplesmente agarrou o braço da mulher que avançava ferozmente e o
quebrou ao meio. Num instante, o braço de Yomotsu-Shikome foi
arrancado do cotovelo para baixo, e sangue fresco jorrou do ferimento.
Percebendo que não tinha chance de derrotá-lo com força bruta, a
mulher monstro fez uma investida suicida contra Loki, tentando
esmagá-lo com o seu peso absurdo, e, surpreso, ele não conseguiu
desviar quando se deu conta do que ela pretendia. Mas mesmo o
ataque tendo sido bem-sucedido, as garras de Yomotsu-Shikome não
conseguiram penetrar a pele de bronze de Loki quando ela tentou
rasgar sua garganta, fazendo apenas arranhões inofensivos.
Quando Loki cravou suas garras no peito de Yomotsu-Shikome e
arrancou seu coração, jogou a mulher monstro para o lado como se não
fosse nada, enquanto ela disparou um horrível grito de morte. Loki
então continuou seu caminho como se nada tivesse acontecido.
- Izanami... Izanami....
Os tristes gritos de Yomotsu-Shikome logo ficaram mais quietos
que a brisa gentil que soprava pelo corredor.
Capítulo 5-5

Embora tivesse chegado à câmara funerária de Izanami,


Nakajima não tinha ideia de como fazer contato com ela. Um arrepio
gelado desceu pela sua espinha, e quando olhou para trás, sem saber o
que tinha acontecido, se deparou com Loki, que estava logo na entrada
da câmara. Incapaz de fazer um só ruído, Nakajima só ficou parado,
grudado onde estava.
- Ora, que bom ver que você vai bem. - Loki cruzou os braços
calmamente enquanto falava.
Protegendo o corpo de Yumiko atrás de si, Nakajima observava
Loki cautelosamente para ver o que ele ia fazer. Se quisesse, Loki
poderia acabar com ele facilmente agora que estava indefeso. Então
por que ele não estava tentando entrar na câmara funerária?
Logo os olhos de Nakajima captaram o símbolo prateado cravado
no chão na entrada da câmara. O hexagrama estava impedindo Loki de
entrar - era a única explicação possível. Talvez tendo percebido o que
Nakajima estava pensando, Loki começou a falar com ele num tom
coercivo.
- Nakajima, não há razão para ter medo de mim. Se juntar forças
comigo novamente, você poderá dominar o mundo humano!
- Ha! Você acha que isso vai funcionar depois que você tentou me
matar? Pra começo de conversa, eu não fugi de você. Vim até aqui para
trazer Yumiko de volta à vida. Agora vá embora e não me atrapalhe.
- Você quer reviver a mulher? Então por que não me pede? Seria
extremamente simples te ensinar a arte de devolver alma.
A arte de devolver alma era um feitiço para reviver os mortos.
Mas mesmo que o feitiço pudesse recuperar completamente o corpo de
uma pessoa, não podia recuperar a alma.
- A arte de devolver alma? Você está mesmo sugerindo que eu
substitua a alma pura de Yumiko pela de um demônio?!
- Você disse "pura"? - deixando escapar um risinho, Loki abriu
bem seus grandes olhos negros, como que para coagir Nakajima. - Que
palavra peculiar de se ouvir na boca de um humano que juntou forças
voluntariamente com um demônio. Olhe nos meus olhos! - a voz de
Loki emanava um poder que era difícil de contrariar. Olhando
instintivamente nos olhos do demônio, Nakajima engasgou com a cena
horrível que viu nas profundezas deles.
Incontáveis pessoas com as cabeças empaladas e decepadas por
tentáculos de demônios. Olhos apodrecendo e caindo dos globos
oculares. Rios de sangue fresco. Hiroyuki Kondo, Kyoko Takamizawa e
várias mulheres que ele nunca tinha visto antes olhavam para
Nakajima, com ódio e revolta nos olhos. Ele quase podia ouvir os gritos
angustiados deles.
- Olhe bem, Nakajima. Foi você quem quis tudo isso. Não foi
ninguém menos que você que me chamou aqui no Mundo Assiah. - a
risada forte de Loki cortou fundo a alma de Nakajima. Mas o fraco
cheiro das flores impediu o rapaz de desmoronar completamente.
- O mínimo que eu posso fazer agora é trazer Yumiko de volta à
vida.
- Sem usar a arte de devolver alma, o que um mero humano pode
fazer para reviver os mortos?
- Você tem total razão ao dizer que eu não posso fazer nada
sozinho. Mas o espírito de Izanami, que descansa nessa câmara
funerária, vai realizar o meu desejo.
- Quanta bobagem! - Loki riu de novo. Mas seus lábios estavam se
contorcendo de uma maneira estranha. Mesmo com a proteção da sua
rígida pele de bronze, a tintura vermelha estava começando a consumir
o corpo do demônio pouco a pouco.
- Então muito bem. Se esse cadáver é tão importante para você,
acho que eu tenho que fazer alguma coisa. - em dado momento, a
risada de Loki se transformou num rugido de ódio. Seus ollhos negros,
cheios de indignação, se voltaram para o corpo de Yumiko. De repente
um vapor branco começou a subir do corpo dela, e um cheiro horrível
de podridão atingiu as narinas de Nakajima.
- Pare! - tentando protegê-la do olhar de Loki, Nakajima correu
até Yumiko. Mas quando colocou a mão no pescoço dela, ela voltou
coberta de pele apodrecida e molhada com sulcos corporais. Não
conseguindo se controlar, Nakajima vomitou na mão coberta de
líquidos. Nesse momento, o pescoço de Yumiko se inclinou numa
posição peculiar e seus olhos caíram nos globos e rolaram pelo chão,
deixando uma trilha de sangue. Onde seu nariz outrora esteve não
havia nada mais que um buraco com alguns pedaços de carne. Seus
cabelos se desprenderam do crânio podre e caíram no chão. Os lábios
apodreceram e os dentes se espalharam por toda parte. Olhando para
ela sem reação, Nakajima estava cada vez mais assustado. Sua mão
começou a se mexer lentamente, sozinha. Com o corpo inteiro
ensopado por um suor frio, Nakajima se afastou dela.
- Por que você está fazendo isso comigo? Por favor, me deixe
morrer! - Yumiko então se levantou - Por favor, me mate... - falando
indistintamente, Yumiko se aproximou de Nakajima. A cada passo que
ela dava, um pote quebrava, e o óleo do interior escorria pelo chão.
Seus dedos, agora apenas ossos já que a pele tinha apodrecido,
agarravam o ar, tentando tocar a mão de Nakajima.
Tendo perdido completamente qualquer capacidade de reação,
Nakajima balançava as mãos violentamente como que para manter
Yumiko longe, e recuava cada vez mais para o fundo da câmara. Lenta,
mas certamente, como que puxada por um fio invisível, ela chegava
cada vez mais perto dele. Por mais horrenda que ela estivesse,
Nakajima nunca faria algum mal a Yumiko, e quando não tinha mais
para onde recuar na câmara funerária, colocou a mão no esquife de
granito, pegou um pouco de pó e jogou nela.
Os curandeiros antigos usavam pó para afastar espíritos
malignos, e talvez houvesse uma memória disso alojada em algum
lugar nas profundezas do subconsciente de Nakajima. Quando o pó
entrou em contato com o óleo que escorria dos potes quebrados, voou
de volta para o ar, apesar de não haver o menor sinal de alguma brisa,
e começou a se reunir e formar uma imagem, que até parecia um
holograma. Quando a mão estendida de Yumiko estava prestes a
agarrar o pescoço de Nakajima, seu corpo foi envolvido numa explosão
de vermelho.
A magia que controlava seu cadáver como uma marionete foi
quebrada. O poder saiu do corpo de Yumiko, e ele desmoronou no
chão.
- Que bom que você conseguiu, Nakajima. - Nakajima saiu do
transe de desespero quando a doce voz disse o seu nome. Com olhos
cheios de bondade, uma mulher idêntica a Yumiko olhava para ele.
Não, talvez fosse só a sua silhueta que era parecida com a de Yumiko.
Sua pele branca como a neve, que não revelava a divindade que ali
habitava, reluzia com um leve brilho fluorescente, e seus olhos
castanhos emanavam uma luz que indicava uma sabedoria claramente
diferente da de um humano.
- Izanami... - de repente, Nakajima se pegou se ajoelhando.
Fazendo que sim com a cabeça, a deusa se voltou para Loki.
- Demônio, volte para o seu mundo! - sua voz era dura e fria.
Loki sorriu sarcasticamente, mas seu rosto não conseguia esconder sua
preocupação.
- Você parece ser um dos Kunitsukami de Yamato. Por que está
indo tão longe para ajudar esses humanos?
- Porque essa garota é a minha reencarnação.
- Sua reencarnação?! - Loki abriu os braços de uma maneira
exagerada - Que seja então, você pode ficar com a garota. Em troca, eu
fico com o garoto. Com certeza para ele também será vantajoso juntar
forças comigo. Eu prefiro evitar confrontos desnecessários.
Nakajima observava a conversa dos dois sem reação.
- Você só está com medo que algum outro demônio faça uso de
Nakajima e o conhecimento que ele possui. - ao dizer isso, Izanami
cerrou os olhos e olhou para o peito de Loki. Uma luz vermelha
explodiu no peito dele, e Loki foi jogado para trás com a força da
explosão. O poder de combustão espontânea que ela estava usando era
muitas vezes mais forte que o que usou quando possuiu Yumiko.
- Então essa é a sua resposta?! - furioso, Loki se levantou
rapidamente e encarou Izanami do outro lado da entrada da sala. Mas
independente do que fizesse, ele não podia atravessar aquele símbolo
de prata. Por outro lado, o poder de Izanami também não estava
causando nenhum dano sério a ele. Mas quando os olhares dos dois se
cruzaram, a expressão da deusa mudou. Naquele momento, Nakajima
viu a forma de uma silhueta branca refletida nos olhos negros de Loki.
"Eu já vi isso antes...!"
O que os olhos de Loki refletiam não era a Izanami que estava
diante dele, mas ela como um cadáver hediondo perseguindo o homem
que amava.
- Olhe bem, Izanami. - a voz sibilante de Loki abalou a resolução
da deusa - Meus olhos são como um espelho que refletem os seus
medos mais profundos. Quanto mais você olhar para eles, mais os seus
próprios medos a enfraquecerão. Devo admitir que você é um tanto
assustadora. É difícil de acreditar que essa é a sua verdadeira forma. -
como que para adicionar brasa à fogueira que Loki estava acendendo,
apareceu a imagem de mais uma pessoa, a do jovem Izanagi, fugindo
apavorado da horrenda Izanami que o perseguia.
- O seu amado te abandonou por causa da sua feiúra? Que
patético. Heh, heh, heh.
- Seu verme... - perdendo o controle com a humilhação, Izanami
começou a andar na direção de Loki, como se atraída por um ímã.
- Não, Izanami! Se sair da câmara funerária, você ficará à mercê
de Loki! - com as palavras de Nakajima, Izanami se forçou a parar, mas
uma sombra negra se ergueu atrás dela.
A mão esquerda de Loki estava se movimentando de maneira
rítmica. Quando Izanami se deu conta de que era uma magia para
controlar os mortos, já era tarde demais. O corpo de Yumiko tinha se
levantado e empurrou Izanami por trás, jogando a deusa para fora da
câmara funerária. Tomando o cuidado de não cruzar a sua linha de
visão letal, Loki jogou Izanami ao chão e segurou seus braços por trás,
imobilizando-a no chão.
- Isso foi fácil demais! Que tolice uma mera mulher como você
tentar me enfrentar! - as partes do corpo de Loki que estavam fazendo
contato com Izanami começaram a passar para a forma de
protoplasma rosa.
- Kunitsukami de Yamato, vou inserir em você o filho de um
demônio!
Com um fedor que parecia capaz de poluir até a mais pura das
substâncias, a bolha repulsiva começou a se espalhar pelo corpo de
Izanami. Ela olhou para Nakajima, como que pedindo ajuda. Mas o que
ele, desarmado, poderia fazer contra um demônio capaz de imobilizar
uma deusa? Num esforço desesperado, Nakajima inseriu um comando
no seu laptop. Embora a tentativa de evocar o demônio eletrônico
tenha fracassado na trilha anterior, a poderosa aura da câmara poderia
servir como um catalisador para trazer o poder dele de volta. Como
que em resposta às orações de Nakajima, Cérbero apareceu na câmara
e disparou um rugido que fez todas as paredes tremerem,
posicionando-se para a batalha.
- Cérbero, resgate Izanami!
O resultado da batalha era óbvio antes mesmo de começar.
Mesmo que Cérbero estivesse na sua melhor forma, Loki estava em
outro nível de poder, e Nakajima já sabia qual seria o resultado da luta.
Além disso, a fera já estava ferida e cansada, e isso estava mais que
evidente. Mesmo assim, Cérbero pulou determinadamente na direção
de Loki. O instinto da fera provavelmnente já a tinha alertado de que o
único ponto fraco desse inimigo terrível era a área protoplásmica na
sua testa. Desviando dos tentáculos de Loki, Cérbero cravou as garras
das suas robustas patas frontais na testa de Loki, se afastou com um
salto e avançou de novo, repetindo o padrão de ataque sem titubear.
Tentando evitar esses ataques com uma mão enquanto usava a outra
para manter Izanami imobilizada, Loki estava tendo mais problemas
com Cérbero do que esperava.
Loki não estava prestando nenhuma atenção em Nakajima. Se ele
conseguisse aproveitar essa chance para acertar o ferimento na testa
dele, talvez conseguisse resgatar Izanami. Se pelo menos ele tivesse
algum tipo de arma... Nakajima começou a vasculhar a câmara
desesperadamente, rezando para encontrar alguma coisa que pudesse
usar.
Bem naquele momento, Izanami deu um grito. Preocupado,
Nakajima se virou e a viu se contorcendo de dor, ainda sob o jugo de
Loki. Mas seus olhos não demonstravam nenhum medo, e parecia até
que ela estava secretamente tentando dizer algo a ele.
"O que é que você quer me dizer?"
Instintivamente, Nakajima começou a andar na direção dela.
Como que para avisá-lo, a deusa olhou para ele e gritou:
- Depressa! O fogo!
Por um instante, Loki se distraiu com as palavras de Izanami e
olhou na direção de Nakajima, mas naquele momento, Cérbero
aproveitou a oportunidade e fez um corte na sua testa, chamando sua
atenção novamente.
"Fogo? Como assim fogo?"
Num momento de epifania, Nakajima lembrou das duas esferas
que Yomotsu-Shikome lhe deu. Rezando para que elas fizessem alguma
coisa, ele bateu uma na outra. Duas, três vezes, tímidos fogos de
artifício voaram, mas fora isso, nada de mais aconteceu.
"É isso mesmo que Izanami quer...?" - as mãos de Nakajima
começaram a suar de preocupação.
Mas os fogos de artifício produzidos pela colisão das esferas
nessa tentativa desesperada atearam fogo no óleo espalhado pelo chão.
Numa grande explosão, as chamas subiram e formaram um círculo no
ar. No centro das fortes chamas vermelhas, a forma de um rosto
humano se formou.
- Hi-no-Kagutsuchi...
Era o deus do fogo, Hi-no-Kagutsuchi, a quem Izanami deu à luz
pouco antes de morrer. Apesar de ninguém tê-lo ensinado esse nome,
Nakajima simplesmente soube. Instintivamente Nakajima estendeu a
mão direita para dentro das chamas que planavam no ar. Girando
como um redemoinho, as chamas de Hi-no-Kagutsuchi pintaram uma
espiral no ar ao se enrolarem no braço esticado de Nakajima.
Nakajima mordeu o lábio e tentou resistir ao calor. Não era como
a sensação de ter a pele queimada, mas sim uma dor como se carne e
ossos estivessem fervendo em contato com as chamas, queimando de
dentro para fora. Então o braço envolto em chamas emitiu um grande
raio de luz. Era tão ofuscante que até Loki e Cérbero tiveram de parar
sua batalha por um momento.
Esfregando os olhos atordoados, Nakajima percebeu que na sua
mão, erguida em direção ao teto, estava uma espada que emitia um
brilho vermelho. Um poder avassalador, diferente de qualquer coisa
que ele já tinha vivenciado, corria pelo seu corpo.
Sem hesitar, Nakajima pulou para fora da câmara funerária. Com
a espada emanando uma aura inimaginável, os movimentos de Loki
titubearam por um instante. Sem perder tempo, Cérbero ergueu suas
garras e atacou, e quando Loki tentou afastá-lo com a mão, deixou o
rosto vulnerável.
Nakajima manuseou a espada com toda a força que tinha.
Instintivamente Loki soltou Izanami e tentou cobrir a testa com sua
mão direita, mas Nakajima a decepou e afundou a espada na testa de
Loki.
- GYAAAH!
O grito de Loki fez toda a câmara tremer. Levando a mão
esquerda à testa, a espada ainda cravada lá, Loki caiu de joelhos. Em
instantes, o corpo de bronze do demônio sofreu uma transformação.
Com um som desagradável de esguicho, a pele caiu e a espada
empalada caiu ao chão. O corpo inteiro de Loki se transformou numa
bola de carne indefinida, ondulante.
Ainda surpreso com o poder inesperado que ele mesmo usou,
Nakajima viu quando uma parte da massa instável de carne começou a
pulsar. De repente, como se fosse uma forma de vida independente, um
coração verde pulou da massa protoplásmica e caiu no chão. Com o
sangue verde que bombeava, começou a desenhar uma estranha figura
no chão. Ao fazer isso, o ar pareceu se distorcer um pouco em volta da
figura que o coração estava desenhando.
- Aquilo é Loki! Nakajima, não deixe o demônio escapar!
Se recompondo com a voz de Izanami, Nakajima rapidamente
pegou a espada de Hi-no-Kagutsuchi do chão e a cravou no coração de
Loki antes que ele pudesse escapar para o espaço distorcido.
Após um instante de silêncio, o coração explodiu como um balão
furado. A massa indefinida de carne parou de pulsar.
O silêncio foi quebrado no instante seguinte, quando a câmara
subterrânea começou a tremer violentamente e a desmoronar. Ainda
segurando a espada, Nakajima rastejou até a câmara funerária,
tentando não ser atingido pelas pedras que caíam. Os potes quebraram
um depois do outro, espirrando mais óleo pelo chão. Sem lugar em
meio ao caos, o doce cheiro das flores desapareceu da sala.
- Yumiko...
Enquanto Nakajima tentava voltar até o corpo da jovem moça,
sua consciência se esvaiu.
Epílogo
Tum, tum.
Algo estava pulsando. Era um ritmo fraco, mas com certeza
estava lá. Nakajima já tinha acordado. Ele havia sentido um calor
agradável, e queria permanecer imerso em sono um pouco mais. Mas,
como que de repente atingido por uma onda de sentimentalidade, ele
abriu os olhos lentamente. Descobriu que seus braços estavam em
volta de Yumiko. Uma fragrância doce emanava do corpo dela.
- Yumiko... - disse Nakajima, hesitante.
Ela não respondeu. Mas com certeza tinha voltado à vida. Sua
boca, antes rígida e fria, tinha voltado à sua adorável forma original, e
seus lábios levemente abertos se mexiam discretamente enquanto ela
respirava. Seus olhos agora tinham sobrancelhas bem delineadas, e
suas bochechas estavam coradas.
A impaciência de Nakajima foi apaziguada por uma presença
superior.
- Não se preocupe. Logo ela vai acordar.
Se virando, Nakajima viu Izanami pairando acima dele. Embora
seu cabelo estivesse maculado com sangue verde, seu belo e radiante
rosto, repleto de bondade, acalmou a alma dele. A deusa falou
novamente:
- Eu cuidarei dela por um tempo. - Nakajima ficou confuso com a
frase - Não será muito tempo. Só até ela ficar forte o bastante para
poder enfrentar demônios.
- Enfrentar demônios? Mas Loki está morto!
A deusa se aproximou, pegou a mão de Nakajima e olhou nos
olhos dele. Naquele instante, uma luz branca tomou conta do espaço na
frente dos olhos dele, e toda a cor desapareceu do seu campo de visão.
- Veja essa cena, Nakajima. - com um tom cheio de preocupação, a
voz de Izanami indicava a gravidade da situação.
Enquanto os dedos de Izanami tocavam as mãos de Nakajima,
uma imagem se formou em meio ao espaço branco. Na sala de
informática do Colégio Jusho que Nakajima conhecia tão bem, Ohara
estava sentada num terminal, falando desesperadamente:
- Loki, por que você não responde?!
Agarrando o microfone enquanto gritava com a tela vazia, Ohara
tinha uma expressão de loucura. Ligando e desligando o computador
várias vezes, ela tentou rodar o programa de evocação de demônios.
Mas as fitas magnéticas do servidor continuaram imóveis. Só o barulho
do ar condicionado perturbava o silêncio da sala de computação.
- Ooh... - Ohara caiu de joelhos, segurando a barriga. Seu rosto
estava magro e seco. Como que um sinal de que estava carregando o
filho de um demônio dentro de si, escamas começaram a crescer em
volta do seu pescoço.
- Não chute! - murmurou Ohara para a nova vida que crescia
dentro dela.
Enquanto Ohara continuava a digitar no teclado com um olhar
desesperado no rosto, as fitas magnéticas começaram a girar, como
que debochando do seu esforço.
- Loki, é você?! - os olhos de Ohara brilharam. Ela agarrou o
microfone com força - Eu estava preocupada com você, Loki!
Com as palavras de Ohara, as fitas magnéticas começaram a girar
mais devagar, como que hesitando. Quando Ohara se afastou um
pouco, intrigada, uma voz baixa e rouca ecoou nos alto-falantes.
- Eu sou Set. É você quem me chama?
- Set? Quem eu procuro é Loki. Loki, por favor, responda! Onde
você está? - a voz histérica de Ohara ecoava pela sala de informática.
- Meu nome é Set. É muita insolência me chamar pelo nome de
outro...

Quando Izanami soltou as mãos de Nakajima, a imagem se


desfez, e em seu lugar um espaço lúgubre se descortinou diante dos
seus olhos. Suor escorria pelo pescoço dele.
- Set?! Ele é o deus mais poderoso das lendas egípcias! - a voz de
Nakajima era trêmula.
- E não é só ele. Muitos demônios sentiram o caminho que você
abriu para o mundo deles, inflamando sua ambição de conquistar o
mundo humano. Há mais do que alguns demônios interessados em
formar uma aliança com você... - a voz de Izanami era rígida e cheia de
pesar.
Tentando afastar qualquer hesitação da sua mente, Nakajima
fechou os olhos e falou:
- Tudo isso é culpa minha, e eu tenho que colher as sementes que
plantei. Minha missão agora é encontrar um jeito de fechar o caminho
para o mundo dos demônios e fazer isso.
- Muito bem. - a expressão de Izanami ficou um pouco mais leve
Será difícil, mas estou confiante de que os seus esforços serão
recompensados. Eu não posso descer ao mundo material por conta
própria, então não posso lutar ao seu lado. Mas eu lhe darei Hi-no-
Kagutsuchi. Ele é um deus que lhe emprestará um grande poder na
forma de uma espada de fogo quando você estiver em perigo. O poder
de Hi-no-Kagutsuchi é uma força a ser reconhecida mesmo entre os
deuses de Yamato, e com certeza lhe será útil.
Enquanto ouvia as palavras de Izanami, Nakajima não conseguia
deixar de sentir ansiedade quanto à ainda adormecida Yumiko. Talvez
Izanami soubesse o que ele estava sentindo, já que a deusa colocou as
mãos no ombro dele com gentileza.
- Eu emprestarei o meu poder a essa jovem. E quando ela tiver
ficado forte o bastante para se defender sozinha, eu a devolverei a
você. Você vai esperar por ela, não vai? - sem esperar a resposta,
Izanami virou as costas para Nakajima.
- Logo um mensageiro do Yomi virá buscar a sua amiga.
Aproveitem o breve reencontro até lá. - com um sorriso, Izanami se
deitou novamente no esquife. Desaparecendo como que se dissolvendo
em pleno ar, só ficaram para trás cinzas numa forma humana.
- Izanami... - enquanto Nakajima ainda processava a imagem de
ver uma deusa desaparecer diante dos seus olhos, uma voz familiar
veio ao seu encontro.
- Nakajima, você cumpriu a sua promessa! - ao se virar, ele viu
Yumiko olhando para ele, seus olhos de cor de chocolate cheios de
doçura. Delicada e pura, ela pulou nos braços de Nakajima.
Fim?

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