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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO MULTIDISCIPLINAR
DEPARTAMENTO DE LETRAS

ANA CAROLINA DOS S. R. NASCIMENTO


PAULO HENRIQUE PORTUGAL

ANÁLISE LITERÁRIA SOBRE AUTO DA ÍNDIA DE GIL VICENTE

Nova Iguaçu, RJ
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO MULTIDISCIPLINAR
DEPARTAMENTO DE LETRAS

ANA CAROLINA DOS S. R. NASCIMENTO


PAULO HENRIQUE PORTUGAL

ANÁLISE LITERÁRIA SOBRE AUTO DA ÍNDIA DE GIL VICENTE

Primeira avaliação submetida à Profª. Juliana Mariano,


para obtenção de nota na disciplina Literatura
Portuguesa I, no curso de Licenciatura em Letras/
Espanhol da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ/IM). 2021.1

Nova Iguaçu
2021
SUMÁRIO

1. Introdução ........................................................................................................................... 4
2. A configuração satírica no teatro vicentino e em o Auto da Índia ................................. 5
3. Entre o crítico e o cômico: relações em Auto da Índia .................................................... 5
4. Gil Vicente e a contemporaneidade brasileira: entre literatura e sociedade ................ 7
5. Referências Bibliográficas ................................................................................................. 8
1. Introdução
A presente dissertação tem por objetivo apontar os aspectos cômicos e críticos
presentes na peça Auto da Índia de Gil Vicente. O literato inaugura uma nova forma de
produção teatral, levando a caricatura como destaque frente a tradição de enfoque ao retrato
social como mimese representativa artística. Gil Vicente é uma personalidade social expoente
no que diz respeito à configuração social da época, estando presente em um momento
histórico de fortes ebulições sociais, traz para sua narrativa aspectos históricos e sociais
expressos em um nível milimetricamente estético que resulta, além de uma caricatura biforme
— crítica e cômica — em uma construção a qual denuncia e, ao mesmo tempo, viabiliza
padrões de condutas sociais corretas com intuito de facultar um caminho alternativo as ações
criticadas como nos indica Bernardes:
“[…] encontramos nas peças de Gil Vicente,
sobretudo se as considerarmos enquanto conjunto
articulado, a identificação de disfunções que
podem ser corrigidas e a indicação dos caminhos
que se podem seguir para alcançar essa
correção.” (BERNARDES, 2021, p.280).

É importante atentar-se para não reproduzir um anacronismo ao se analisar


criticamente a referida peça, já que é possível, a partir desta, enxergar reflexões sociais e
construções literárias que carregam em seu cerne a mesma essência das obras vicentinas
(BERNARDES, 297). Outrossim, é importante destacar que a mesma aborda aspectos da
sociedade portuguesa da época pouco comuns em outros textos de seu meio, o que de fato
confere sua particularidade frente outras produções de sua época (BERNARDES, 280), as
quais podem, portanto, proporcionar a falsa percepção de que algumas das críticas feitas pelo
autor e aqui discutidas tratam-se de anacronismo.
Desse modo, a partir dos apontamentos supracitados pretende-se, em primeiro lugar,
dar a conhecer e reflexionar sobre a sátira, e, por conseguinte, a farsa, gênero satírico do qual
o Auto da Índia se compõe. Em um segundo lugar, abordar e refletir a biformidade cômica e
crítica, além do encadeamento performativo dos personagens, mostrando a pluralidade
presente na produção e, por fim, contemplar uma reflexão crítica através de uma comparação
literária e social com intuito de mostrar a presença da obra de Gil Vicente, assim como, as
denúncias sociais as quais o autor se debruçava, na configuração hodierna da sociedade
brasileira.

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2. A configuração satírica no teatro vicentino e em o Auto da Índia
Como é próprio do gênero desta peça —farsa — a sátira se faz presente de forma
ambígua como exposto em “A sátira no teatro de Gil Vicente”:
“No primeiro caso, a tónica satírica parece
inerente ao próprio género. De tal modo que
quando somos colocados perante o Auto da Índia
imediatamente nos perguntamos sobre quem
mais recai a intenção satírica: se sobre
Constança, que dissimuladamente engana o
marido, subvertendo deveres morais decisivos, se
sobre o pescador que embarca para o Oriente
m o v i d o p e l a a m b i ç ã o d e e n r i q u e c e r. ”
(BERNARDES, p. 281)

Dessa maneira, não sendo possível, portanto, estabelecer quem — o marido ou a


esposa — ou que — a busca por riquezas materiais, o adultério matrimonial, a sensualidade
feminina etc — é objeto de crítica principal na obra. Cremos que tal ambiguidade relacionada
ao foco seja propósito da parte do autor, pois a mesma se reforça pelo título do texto, que
causa a falsa primeira impressão de que a obra trata da viagem às “Índias”, enquanto há, não
só pouca menção a esta viagem, mas também um grande destaque sobre questões relativas à
Constança.

3. Entre o crítico e o cômico: relações em Auto da Índia


Refinando análises sobre o Auto da Índia, competia à mulher o papel de submissa e
devota ao marido e aos deveres do lar, mas poderia ser livre, erótica e dona e consciente de
seu poder, ainda que fora dos olhos do cônjuge e da sociedade — transgressora dos valores
sociais da época (BRITO, p.86). A comicidade na obra faz constante uso desta consciência de
poder da mulher e do espaço por esta utilizado — longe do marido. E é aqui onde a obra
inicia sua caricatura biforme — criticidade-comicidade — quando logo na cena de abertura
Constança chora pela possibilidade do marido não ir mais à Índia, pois do contrário poderia
revelar seu poder, sua sensualidade realizada pelo adultério.
Este aspecto biforme da obra é constante em seu desenvolvimento, como quando,
ainda antes da confirmação da viagem de seu marido, a Ama roga, em oração a Santo
Antônio, que o sonho que teve seja um bom presságio e que este se realize:
“Vai a Moça e fica a Ama dizendo:
AMA A santo António rogo eu
Que nunca mo cá depare:
Não sinto quem não s'enfare
De um diabo Zebedeu.
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Dormirei, dormirei,
Boas novas acharei.
São João no ermo estava,
E a passarinha cantava.
Deus me cumpra o que sonhei.
Cantando vem ela e leda.”
(VICENTE, I, 37-46).

Assim, Gil Vicente critica a blasfêmia feita pela Constança ao mesmo tempo que usa
o ato como um recurso cômico, que se potencializa quando a Moça volta com a notícia da ida
do marido e conta a Ama de forma que a notícia merece prêmio por ser tão boa:
“MOÇA Dai-me alvíssaras, Senhora,
Já vai lá de foz em fora.
AMA Dou-te ũa touca de seda.
MOÇA Ou quando ele vier,
Dai-me do que vos trouxer.
AMA Ali muitieramá!
Agora há-de tornar cá?
Que chegada e que prazer!
MOÇA Virtuosa está minha ama!
Do triste dele hei dó.”
(VICENTE, I, 47-56).

Tal aspecto prossegue na obra como quando esta mesma ama, infiel e subversiva,
representa o papel de fiel, submissa e simplória quando participa do jogo de cortejo com o
Castellano.
Por outro lado, o autor também trata deste aspecto biforme no que diz respeito ao
papel de Lemos na peça. Ao mesmo tempo que é feito crítica aos escudeiros portugueses no
geral, de que apenas gozavam do seu status social e em nada contribuíam ao corpo social
português (RAMOS, p.42), este se humilha diante de Constança para uma vez mais gozar da
subserviência que nada dá em troca, apresentando-se em ambas as relações como um puro
sujeito passivo que só busca o ganho — com a Ama e com a sociedade portuguesa. Junto a
isso, critica-se o papel desta mulher como controladora de toda a situação que, novamente, é
utilizada como recurso cômico, ao fazer o mesmo papel que fez com o Castellano, a falsa
casta e correta esposa.
Cabe ainda ressaltar que Gil Vicente compõe uma trama em Auto da Índia em que
alguns dos personagens apresentam uma pluralidade performativa como a Ama. Para além dos
limites críticos e cômicos, o autor explora as várias performances miméticas tendo como base
a realidade portuguesa da qual fazia parte. Neste jogo de caricaturar, Constança apresenta-se
em um primeiro momento como uma esposa fiel que quer que o marido se afaste para poder

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passar a performar a amante astuta que deseja viver os prazeres da carne desprezando a
aliança matrimonial em função da ausência e, logo, solidão deixada pelo marido. Além disso,
também age como articuladora e gestora de um uma tríade amorosa em que os homens que
participam — Marido, Castellano e Lemos — não são conscientes da presença do(s)
“outro(s)” apesar de em alguns momentos da produção quase se encontrarem. Justamente pelo
manejo da situação e ações pensadas rápida e ardilosamente, a Ama acaba por gerir sem
maiores problemas os vários relacionamentos dos quais faz parte.
“LEMOS Quem tira àquela janela?
AMA Meninos que andam brincando,
E tiram de quando em quando.
LEMOS Que dizeis, senhora minha?
AMA Metei-vos nessa cozinha,
Que me estão ali chamando.
[…]
AMA Calai-vos, muitieramá,
Até que meu irmão se vá;
Dissimulai por i entanto,
Ora vistes o quebranto?
Andar, muitieramá.
LEMOS Quem é aquele que falava?
AMA O castelhano vinagreiro.”
(VICENTE, III, 245-250, 255-261)

Por fim, vemos ainda um quarto posicionamento desta personagem que é o pesar pela
volta do marido e o retorno ao enlace matrimonial em função da dependência financeira
existente entre Constança e seu marido. É possível perceber esse aspecto através da análise
de Brito:
“Finalmente, após três anos de liberdade, a ama recebe a notícia da chegada do
marido e explode de raiva, sabendo que, a partir daquele momento, estará perdendo
muito do espaço conquistado. Porém, ao perceber que ele está com muito ouro, muda
completamente de comportamento. Volta a ser um simulacro de si mesma, através de
mentiras, representando o papel de esposa fiel, dizendo ter vivido chorando a
saudade do marido, sempre enclausurada, separada do mundo. Essa descrição da
mulher sem marido revela o perfil de um tipo de mulher que ainda se mantinha
absolutamente dependente do homem, sem criar condições para ter sua própria vida,
seu próprio espaço.” (BRITO, p.86)

4. Gil Vicente e a contemporaneidade brasileira: entre literatura e sociedade


Antes de qualquer pontuação retomamos aqui a importância de localizar todos os
desencadeamentos em seus devidos espaços e tempos para não se interpretar as seguintes
reflexões como um todo anacrônico. Dessa maneira, conduzimos o leitor aqui a fazer um
olhar panorâmico que contempla o passado e reflete o presente de maneira a poder, não só
enxergar suas influências, mas também mais seus novos “moldes”. Passeando pelo contexto

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propriamente literário e/ou expandindo olhares para os relacionamentos e posições sociais da
atualidade, é importante sempre levar em consideração as disposições históricas,
antropológicas e sociais de cada fenômeno abaixo detalhado.
Gil Vicente foi uma personalidade tão singular em seu tempo que inspirou produções
atuais como o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1927-2014), em que novamente a
comicidade é articulada de modo crítico para denunciar aspectos de condutas sociais que não
correspondem ao que socialmente se convencionou como correto. Como Dora, que galantea
com diversos homens ao longo da peça, estando longe do marido, quando, na verdade, se
espera da personagem uma conduta de uma mulher fiel ao seu cônjuge já que estão em um
enlace matrimonial. Além disso, é importante refletir acerca dos questionamentos sociais
levantados na produção vicentina, como a posição da mulher que é sempre subjugada ao
marido em função da submissão financeira, elemento que inviabilizava, e muitas das vezes
segue inviabilizando, um cenário social de independência financeira feminina. Estes são
alguns apontamentos que denotam o caráter singular da sátira trovadoresca de Gil Vicente e
seus ecos no tangente a literatura e a sociedade hodierna.

5. Referências Bibliográficas
BERNARDES, José Augusto. A sátira no teatro de Gil Vicente. IN: BERNARDES, José
Augusto Cardoso (coord.) CAMÕES, José (coord.) Gil Vicente: compêndio. Coimbra: [s.n.].
615 p. ISBN 978-989-26-1547-9.

BRITO, Iremar Maciel. Jogos femininos no Auto da Índia. IN: Idioma, 21. Rio de Janeiro:
Centro Filológico Clóvis Monteiro – UERJ, 2001 (http://www.institutodeletras.uerj.br/
revidioma/21/idioma21_a11.pdf), p. 82-7.

FRAZÃO, Dilva. Gil Vicente: Dramaturgo e poeta português. In: EBIOGRAFIA.


EBiografia. [S. l.], 7 maio 2020. Disponível em: https://www.ebiografia.com/gil_vicente/.
Acesso em: 29 out. 2021.

RAMOS, Noémio. Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 e Sobre o Auto da Índia. Faro —
Algarve, Lisboa: Inês Ramos, 2010. 55 p. ISBN 978-972-990008-2.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

VICENTE , Gil. Auto da India. Biblioteca Digital. Coleção Clássicos da Literatura


Portuguesa. Editora Porto. [S. l.]
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