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UNIFESP

Campus Guarulhos
Curso de História
Disciplina: História Medieval
Texto de Apoio
Fabiano Fernandes

A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X.

I. Introdução. Fontes, limites e opções historiográficas: O longo século X.


( 890- 1020/1030)1
Espaço: A cristandade Latina

Interpretação, periodização e interpretação tradicional. Como a comunidade dos


historiadores têm compreendido este período.

É largamente sustentado que o século X no contexto pós-romano é o período mais escasso


em termos de fontes e de informações precisas, com exceção apenas do século VII. Devido
a esta escassez, por exemplo, é comum atribuir a alcunha em língua inglesa a este período
de “dark ages” ou ainda nomeá-lo por “iron age”, com alusão específica a regressão da
escrita e ao estado “endêmico” de violência e de desmandos. Trata-se tradicionalmente o
século X como um período de desestruturação que teria dado lugar a sociedade feudal.

Nesta época é difícil para os historiadores situar eventos precisos ou uma lista de
governantes bem definidos dentro dos cânones de uma História política tradicional. Como
um todo na Europa pós-carolíngia parece ter declinado a literatura pragmática, ao mesmo
tempo em que parece ter havido uma reversão para formas simbólicas de comunicação. O
que se pode considerar com certeza é o processo que levou com que as relações humanas
deixassem pouquíssimos traços na memória escrita e o que permaneceu por escrito é
normalmente de dificílima interpretação. Mas é digno de nota, ao contrário do que
normalmente se diz o uso de formas simbólicas e gestuais de comunicação ocorreu
principalmente em regiões onde a escrita manteve certo vigor. É mais produtivo
compreender o uso de símbolos e signos como algo complementar ao uso da escrita. A
ideia de uma “civilização da gestualidade”, tão cara aos medievalistas da nova história, tal

1
REUTER. Timothy (edit.) The new Cambridge medieval history. Volume II, c. 700 - c. 900.
Cambridge, Cambridge, University Press, 1998, pp. 1-26.
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A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
qual Duby e Le Goff vem sendo colocado em xeque, em particular pela historiografia
Inglesa e Norte-Americana2.
A noção de Dark Ages é um perigoso equívoco, a nossa visão sobre esta época está
permeada de preconceitos forjados na contemporaneidade, particularmente a ideia de que a
“civilização” só é possível em formações políticas em que exista algo que nos lembre o
Estado tal qual conhecemos3.

Mas de fato existe grande escassez de fontes escritas para o longo século X. A
documentação escrita se refere normalmente a “alta política” mas, a ampliação da noção de
fontes e a própria mudança na forma de interpretação das mesmas trouxeram uma
importante revisão historiográfica que vem se aprofundando nos últimos anos.
Algumas regiões da história Franco-germânica do século X tem seus próprios narradores:
1.Widukindi de Corvey
2.Liudpatand de Cremona
3. Adalbert de São Maximum.

A parte Ocidental do antigo Império Romano foi a mais atingida pela grande diminuição de
fontes narrativas. Na mesma época tanto em Bizâncio quanto no mundo Islâmico o
processo foi inverso, uma época de multiplicação de fontes narrativas.
Novos reinos emergem no leste e encontram também seus historiadores, muitas vezes em
períodos mais tardios
1.Rus
2.Hungría
3.Boemia
4.Polônia

Na “Europa” do leste em geral os cronistas são bem tardios e muitas vezes pouco refletem
do contexto concreto de formação destes reinos. Muitas dessas fontes são produzidas por
volta do século XII e refletem mais sua época que épocas anteriores4.

A furiosa crítica positivista do século XIX deixou os historiadores pouco a vontade para
utilizar estas narrativas de caráter cronístico com “fontes primárias”. Mesmo a análise das
representações sobre o passado em fontes tardias mal começou a ser feita. A análise até o
momento tem primado por recortar citações de forma descontextualizada. Pinçando em
cada crônica elementos que comprovem esta ou aquela visão sobre o período.
Metodologicamente este é um equívoco perigosíssimo. Corre-se o risco de apena se ver
aquilo que se quer ver5.
Em geral autores do século X oferecem textos ricos com narrativas amplas apresentando
muitos detalhes.
Exs.
1. Para A Saxônia; Indurido de Corvey, Adalberto de Magdeburg e Thiems de Merreburg
2.Flodard e Richer em Reims

2
Ibidem.
3
Ibidem.
4
Ibidem.
5
Ibidem.
2
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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3.Dudon de Saint-Quentin na Normandia
4.Ademar de Chabanes e Radulfo Glaber na parte central da França atual
5.Vale destacar ainda algumas obras “coletivas” tal como a chamada crônica Anglo-
saxônica de cerca de 980
As fontes mais significativas são as vidas de santos e coleções de milagres. O século X é
considerado o “período áureo” da produção hagiográfica. Mas existem dificuldades
operacionais imensas. Muitas das fontes hagiográficas estão em sua maior parte em
edições antigas e em geral tecnicamente inadequadas. A visão “positivista” ainda esta
subjacente na abordagem de fontes hagiográficas, que são segundo alguns critérios
consideradas bastante imprecisas.
Mas mesmo nas ditas fontes historiográficas as referências devem ser analisadas com
cuidado. Existem nas cronistas inúmeros elementos de saga, de épico, de pregação de
exemplum ou mesmo de um certo “folklore”. São fontes “ricas” se levarmos em conta os
subsídios oferecidos pela antropologia e pela sociologia para o estudos destes testemunhos.
_ Mas mesmo no que se refere as fontes oficiais existem de fato muitas séries de diplomas
reais deste período em edições modernas e satisfatórias6. Em particular para os reinos
francos do leste/germânia, para Burgundía, Hungria e Itália (em particular na MGH).
_ Neste período inúmeros personagens exerceram um poder “quase real”: Arcebispos,
Duques, magistrados de uma maneira geral. Com relação a estes mal começou o
movimento de edições de cartas em edições modernas7.

A visão positivista opõem em geral:


A incerteza subjetiva presente nas fontes de natureza narrativa aos “firmes” dados que se
podem retirar de informações oficiais, supõem que podem ser retiradas da documentação
oficial “evidências” mais firmes e sólidas do que nas simples narrativas.

Algo é digno de nota: as fontes jurídicas ou de caráter análogo, tais como outros
documentos legais não são menos subjetivas. A interpretação destas fontes também é
bastante problemática. Afinal, o que não é narrativa quando tratamos de documentos
escritos?
É justamente no século X que as narrativas começam a se tornar em muitas partes da
Europa, especialmente na Francia Ocidental, mais detalhadas. Esta loquacidade tende a ser
interpretada pelos historiadores como fruto de mudanças profundas que se concentram ao
redor do ano mil -o paradigma da revolução feudal.

As fontes escritas diminuem no início do século X para irem paulatinamente aumentando


de quantidade nas décadas finais do século X e início do século XI. Esta tendência não
deve ser compreendida de forma literal.

1.Tradição das capitulares carolíngias virtualmente morre na Francia Ocidental após 884.
Na Itália após 898. Após 852 no reino franco do Oeste.
2. A Dinastia ottoniana sabia o que eram as capitulares, mas as medidas que mandaram
escrever eram muito mais pontuais.

6
Ibidem.
7
Ibidem.
3
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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3. Mesmo nas compilações realizadas ao longo dos séculos X e XI o seu uso é incerto.
Havia uma grande distância entre as questões do século X e a legislação carolíngia.
Exceção: governantes anglo-saxões na Inglaterra
4. Curiosamente imitações das capitulares aparecem em regiões que não fizeram parte do
Império Carolíngio, assim como o culto da memória do Império é mais nítido nas áreas
marginais do antigo império e fora das suas antigas fronteiras. O “mito” do império é muito
forte no século X, servindo de modelo idealizado para os novos reinos que surgem nas
fronteiras da Cristandade latina
5.Paleo imitações da legislação carolíngia podem ser encontradas nas leis da Hungria no
início do século XI
6.A Igreja também legislou menos. A tradição episcopal carolíngia deixou ecos
relativamente escassos na prática dos bispos no século X.

Após 950 atividade administrativa se intensifica no âmbito da Igreja. A legislação conciliar


da segunda metade do século X têm recebido mais atenção editorial recentemente, em
particular no que foi produzido na chamada “Paz de Deus” e “trégua de Deus”. Faltam
edições modernas dos canons utilizados. A legislação canônica está intimamente ligada ao
percurso de clérigos reformadores tal como Gerberto de Rheims e Fulbert de Chartres. O
século X é uma época de criatividade com o objetivo de alcançar a reforma local, visto que
os bispos se sentiam ainda ligados ao esforço da reforma carolíngia.

Foram elaboradas muitas cartas para servir de modelo de treinamento de clérigos dentro
dos objetivos da reforma local e episcopal. Muitos textos conciliavam poesia latina,
tradição retórica e didática com fins a melhorar a qualidade do clero diocesano

O maior problema quanto a esse período é a negligência quanto as fontes não escritas.
1.Estudo das pinturas.
2.Escultura.
3.Arquitetura.
O estudo dos manuscritos a única exceção.

Algo peculiar: A nostalgia do mundo carolíngio foi mais forte onde a presença carolíngia
foi mais fraca, tal como na França do sul atual ou nas zonas mais a leste da Germânia. No
largo arco de norte a leste da Europa o império franco apareceu como uma espécie de
modelo. Diversos “mitos” escritos e orais sobre o império e seu governo surgem ao longo
do período aqui tratado.

Quanto a uma avaliação genérica do período é preciso transcender a terminologia herdada


pelos historiadores da reforma gregoriana de meados do século XI8. Historiadores ao longo
do século XX ao se referirem a este período utilizaram os tópicos recorrentes na reforma
pontifical. A unidade interpretativa sobre o século X foi comumente construída em torno de
algumas perspectivas:

8
Ibidem.
4
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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1.A ênfase nos Abusos eclesiásticos, relatando a história da Igreja no período através das
ideias de dominação e subordinação da Igreja aos laicos. Logo, é comum caracterizar o
longo século X como uma época de mundanização da Igreja.
2.A sociedade anterior ao século XI é implicitamente compreendida como uma sociedade
arcaica que ao longo do século XI se tornou a base da “velha Europa”. Comumente é
referido que a reforma gregoriana foi o sintoma de mudanças mais gerais que tornaram a
sociedade mais racional e mais diferenciada e complexa em sua organização administrativa.
3. Do ponto de vista jurídico, administrativo e religioso o século X é de uma dinâmica
impressionante. A sua complexidade vêm sendo destaca nos últimos anos, em vez de uma
era obscura, enfatizava-se a grande inventividade de homens que se sentiam herdeiros do
Império, mas frequentemente adaptavam sua “tradição” as necessidades pragmáticas de
exercício de poderes cada vez mais regionalizados e circunscritos9.

Apesar da extrema diversidade regional alguns princípios básicos sobre as práticas de poder
podem ser deduzidos.
4. Não é casual que a tradição marxista tenha visto no século X um momento crucial na
mudança de relações escravocratas para a servidão. Além dos escravos grande parte dos
camponeses tendem a ser arrastados para as relações de servidão.
5. Nobres definiam a si mesmos em termos de parentesco extenso, mais do que uma ênfase
na descendência dinástica. As linhagens se implantaram muito lentamente ao longo do
século X.

6. O poder era exercido a partir de um centro, normalmente um domínio local, um palácio


episcopal, um palácio condal ou mesmo a partir de uma simples fortaleza senhorial.
Centros de dominação aristocrática, tal como as grandes propriedades, serviam também
como ponto de apoio para a construção da memória da família. O poder era exercido mais
no plano local, por meio de uma prática de poder mais pragmática e sem uma base de
legitimidade muito extensa.
7. A noção de Ordem pública foi esvaziada parcialmente ao longo do século X e foi a
autoridade real que mais sofreu com este processo. Mas outros poderes intermediários, tal
como arcebispos, bispos, duques e condes tenderam a assumir o papel de mantenedores do
poder público. É sobretudos do plano local que permaneceram informações mais
conclusivas devido ao relativo colapso dos poderes “centrais”. É por volta do ano mil que a
pequena unidade de comando da senhoria banal se tornou mais claramente delineada.

8. Tendência geral ao fortalecimento dos laços de homem para homem e a autoridade


legitima tende a ser mais personificada que na época anterior.
9. Emergência de uma “nova classe dominante” com uma base social mais alargada, na
qual senhores e guerreiros tendem a perceberem a si mesmos como um grupo singular e à
parte do resto da sociedade. Contudo, é lentíssimo processo de formação da cavalaria. A
formação de uma ideologia cavaleiresca no século XI vêm coroar este processo.

9
Ibidem.
5
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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10. O localismo também afeta a Igreja Institucional. O vigor não está mais ao lado dos
bispos que frequentam o palácio real, estes últimos são cada vez mais escassos na
entourage da realeza. A História do Cristianismo no século X foi de grande sucesso, a
conversão de inúmeros povos, dentre eles húngaros e normandos, explicita que a vitalidade
está também no plano regional, nos monastérios reformados cluniacenses e através do vigor
dos bispos reformadores do século X. Mas o papel dos bispos junto à realeza tendeu a
aumentar de importância

11.Os homens de Igreja tendem a enfatizar a realeza de Cristo e os modelos neste período
são cristocêntricos. Consideram que o rei terrestre deveria se espelhar no rei celeste, logo,
reis deveriam se sacrificar até o extremo sofrimento pelo seu povo e uma certa
radicalização da função ministerial de poder de épocas anteriores. O Pode real muitas vezes
revestido de caráter messiânico e era comum a preocupação com o anticristo e a crença em
que se vivia no último e quarto império. O último Império do mundo (o dos imperadores
saxões da dinastia ottoniana) segundo as profecias viria a estabelecer a paz vencendo todos
os inimigos de Cristo, seguido pelo reinado do Anticristo, que seria vencido na segunda
vinda de Cristo. Essa perspectiva era forte entre eclesiásticos, particularmente entre os
monges que na espiritualidade dos leigos tiveram uma imensa influência nesta época10.
12. A monarquia podia assumir a forma de Império. Os limites entre império e monarquia
não eram claros e os reis da Francia do Ocidental tenderam a não reconhecer a soberania
dos imperadores do antigo reino da Francia Oriental. No espaço da antiga Francia Oriental
o projeto ottoniano de renovação do império estava ancorado nos desígnios da reforma
eclesiástica e tinha uma forte dimensão escatológica. A expansão para leste e a associação
do Império à conversão de povos pelas armas eram centrais para a legitimação do império
ottoniano11.
13. A partir de 888 dos antigos reinos carolíngios surgiram em suas subdivisões novos
reinos em três grandes blocos: Francia Ocidental, Francia Oriental e uma “esquartejada”
lotaríngia. Em todos eles havia a tendência a fragilização do poder “central”. Os reis em
geral não tinham muito o que oferecer em termos de pilhagem e primeiros carolíngios
haviam feito seus vassalos e oficiais líderes regionais muitos poderosos. Nos primeiros
decênios do século X a realeza tanto na parte Ocidental como Oriental do Império estava
extremamente frágil. Em aparente paradoxo é a aristocracia que melhor sustenta o poder
real. A ideia de que cada aristocrata fazia parte da “comunidade de reino” foi fundamental
para a realeza. Ideia básica: concebia-se que havia uma dinastia real legítima e era “natural”
que em torno desta se organizasse a classe governante. Observa-se o papel mais ativo dos
magnates como conselheiros e eleitores dos reis. O exemplo clássico a eleição de Hugo, o
Capeto com rei da Francia Ocidental (rei de 987 a 996).

◊◊◊◊

O século X têm de fato suas particularidades. A diversidade é regra e as generalizações da


parte do historiador se tornam ainda mais perigosas do que as realizadas para épocas

10
Ibidem.
11
Ibidem.
6
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
anteriores. O fato é que a interpretação sobre o século X está normalmente imersa nas
tradições nacionais de cada historiador. E, como dispomos de um espaço e de um tempo
reduzido de discussão nos utilizaremos em particular da tradição historiográfica francesa,
não como um “artigo de fé”, mas como um movimento inevitável de adequação aos limites
possíveis de nosso próprio “tempo didático”.
Nos dedicaremos em particular ao estudo do da Francia Ocidental dos últimos carolíngios e
dos primeiros capetíngios, cujo processo de transformação culmina em uma nova ordem,
em que os poderes principescos para se fortalecer competem pelo acumulo de senhorios e
fortalezas, gerando uma realidade política ainda mais complexa, tal qual representada no
mapa abaixo:

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A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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Capturado In http://www.shadowedrealm.com/maps/political/view/france

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A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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II. A feudalidade na Francia Ocidental pós carolíngia

Por volta de 1020 Ademar de Cabbanes ao traçar retrato de Guilherme V, o Grande, Duque
de Aquitânia e Conde de Poitiers (995-1030) afirma que o mesmo:

“Dava a impressão de ser um rei antes do que Duque, tanto que ele era ilustre e havia
honra.”
Atributos do Duque segundo Ademar de Cabannes:
1) generosidade.
2) cuidado em proteger as igrejas, os mais fracos e sobretudo os monges.
3) piedade.

Forte permanência do modelo real na ideologia principesca. O príncipe, tal como o rei,
deveria manter a Pax Christiana.

Em inícios do século XI o príncipe “reina” no seu principado, mas não governa com a
autoridade de um Carlos Magno.
Existe um contraste entre ideologia e prática do poder.

Fundamental: A sociedade Feudal gerou mecanismos de regulação para manter as


hierarquias de poder, justificar a dominação dos poderosos e limitar as violências.

A) Espaços e poderes.

Para entender as transformações políticas ocorridas nos séculos X e XI não basta apenas
renunciar ao paradigma da revolução feudal.

Paradigma da revolução Feudal, proposto, dentre outros autores, por George Duby:

_Entre 980 e 1030 ocorreram transformações que arruinaram o


sistema político carolíngio e a ordem que o sustentava. Logo o
Feudalismo representou uma ruptura com relação a sociedade e a
ideologia da época anterior.

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A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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A partir de certa leitura de Regine Le Jan12 identificamos a co-existência de um segundo
paradigma onde valoriza-se mais a lenta evolução das estruturas políticas carolíngias que
desembocou no Feudalismo clássico, tal qual tratado pela historiografia francesa das
décadas de 60 até a década de 80. O paradigma da segmentação valoriza mais as
permanências na sociedade pós carolíngia e na gênese da sociedade feudal.

_O processo político que levou ao feudalismo foi uma lenta


adaptação da ordem política carolíngia por cerca de dois
séculos. Existem fases de aceleração e afrouxamento que
variaram de região para região. Mas a lógica do sistema feudal
está diretamente geminada na lógica do sistema carolíngio de
poder.

A construção de castelos transformou a paisagem política e o modo de exercício de poder.


No fim do século IX as novas “invasões” de nórdicos, húngaros e incursões muçulmanas
cooperaram para a proliferação de novas estruturas defensivas. Em fins do século X cessou
a opressão dos “invasores” , mas não a construção de castelos.

Observação:
_Muitos castelos foram feitos de muralhas de terra, bem como surgiram torres e cercas de
madeira. Em alguns casos construía-se uma torre de madeira bem simples em uma pequena
elevação de terra, o que era suficiente para se impor diante de pequenas aldeias rústicas. Os
castelos de pedra eram mais raros e construídos geralmente pelos grandes príncipes tais
como condes e duques. Os castelos de pedra eram quase que intransponíveis e a construção
de grandes fortalezas demandava milhares de horas de trabalho e mão-de-obra
especializada. A construção e grandes fortalezas é, paradoxalmente, um indício do
crescimento econômico e demográfico do século X, época nomeada pela historiografia
tradicional, de forma algo simplificadora, como o “século de ferro”13. Para o século X as
fontes são escassas, mas parece-me provável que a despeito das guerras e destruições, a
manutenção do vigor do poder principesco permitiu que o crescimento econômico e
demográfico que estava latente no mundo carolíngio se desenvolvesse lentamente, até ficar
mais explícito nas narrativas monásticas do século XI.

_levando-se e conta que a maioria das grandes fortalezas permaneceu ligada direta ou
indiretamente ao poder principesco torna-se necessário relativizar a ideia de Guy Fourquin

12
CONTAMINE, Philippe (dir.) Histoire de France politique. Le Moyen âge. Le roi, L’Eglise, Les Grands,
Le people. 481-1514. Paris, Seuil, 2002, pp. 119-170.
13
Por vezes está expressão não está explícita, mas está subentendida ou traduzida em outras
expressões. A idéia do século X como uma época de prova está, por exemplo, no próprio título der uma obra
clássica tal com a de BARRACLOUGH, Geoffrey. The Crucible of Europe. The ninth and tenth centuries in
european History. California, University of California Press, 1976.
10
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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de que houve uma fragmentação do poder principesco em pequenas unidades chamadas de
senhorio castelão14.

Após 930-940 o movimento de construção de castelos amplia-se. Do século X até finais do


século XI o número de fortalezas se multiplica por quatro.
Fortalezas construídas em locais estratégicos no alto de montanhas, encruzilhadas de
caminhos terrestres ou lacustres. Efetivamente, a proliferação de construções gera uma
redistribuição de poderes.
CASTELO SE TORNA A VIGA MESTRA DO SISTEMA DE PODER.

Mas o desenvolvimento do senhorio castelão é, em certa medida, consequência lógica do


sistema carolíngio onde:

O direito de fortificação era uma regalia e tudo que se referia a defesa estava, em tese,
ligado a autoridade pública. Nem todos os castelos deram origem ao senhorio castelão.
Mas qual fosse a relação do senhor castelão com o poder principesco, o poder público
por excelência era uma atribuição do poder Condal, ao menos no século X. Logo, era
legítimo que os príncipes controlassem e, ou estreitassem seu controle sobre os
detentores oficiais ou oficiosos de fortalezas. Na prática as diversas taxas cobradas em
nome do imperador ou do rei continuaram a ser nominalmente cobradas em nome dos
condes e dos duques, que lançaram diversos expedientes para controlar os segmentos
de poder que se agrupavam no em torno de sua “órbita”.

Daí pode-se falar em segmentação, ao invés de fragmentação, está última ideia supõem
uma perda real de autoridade por parte dos príncipes que em muitas regiões do Ocidente
medieval sequer chegou a acontecer ao menos no período de 877 até 980.
O aspecto central do senhorio castelão a partir de finais do século X era a apropriação da
Alta Justiça (crimes de sangue e multas maiores que sessenta soldos). Grande parte dos
camponeses não tinha condição de comparecer no tribunal do Conde, apenas no tribunal
local.
As antigas subdivisões de administração judicial do poder condal, vicariatos, cessam
praticamente de existir.

14
Tradicionalmente de forma esquemática divide-se o poder senhorial em senhorio fundiário, poder
sobre a terra, o senhorio familiar, o pagamento efetuado por servos e seus dependentes a determinado senhor
em reconhecimento de um certo grau de dependência e o senhorio banal. Este último era normalmente
exercido em uma área espacial mais restrita, o comandante do castelo tomava para si a responsabilidade de
manter a paz e a justiça em determinado território e utilizava-se a intimidação explícita de seu poder militar
para garantir o fluxo regular de pagamentos. Era a presença concreta do senhor castelão e de sua equipe de
ministeriales, sergentes e, ou cavaleiros que tornava o senhorio incômodo, inconveniente na medida que
havia um estreito controle em uma área restrita sobre prestações que eram mais regularmente cobradas. O
senhorio castelão se estendia sobre todos que habitassem próximo a fortaleza e não fosse clérigo ou cavaleiro.
Logo, grande parte dos camponeses e dos pequenos burgos que cresciam à sombra de abadias e fortalezas
estavam ligados a uma intrincada rede de poderes que se superpunham e oneravam a maior parte da
população. Cf. DUBY, Georges. Guerreiros e Camponeses. Os primórdios do crescimento econômico
europeu, Séc. VII-XII. Lisboa, Editorial Estampa, 1978.
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A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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Argumentos para compreender continuidades entre época carolíngia e o senhorio castelão:
1. Nobres carolíngios já asseguravam a proteção armada dos camponeses que viviam
em seus domínios.
1.2 Poder nobiliárquico assentava-se na hereditariedade e na autoridade conferida pela
possessão de terras fiscais.
A manutenção de um séquito armado era fator de prestígio e meio efetivo de atuação da
nobreza.
1.4. Na prática, a forma de governo na época carolíngia já era descentralizada. Os missi
dominici15 apenas tentavam contrabalançar a realidade concreta do exercício local de
poder pelas famílias de nobres locais. Era um governo baseado na “negociação” e não
na pura imposição jurídica tal qual poderíamos crer a partir de uma leitura superficial
das capitulares e dos concílios.
1.4.1. Os missi das primeiras décadas do reino franco eram enviados no número de dois
ou três, normalmente acompanhados por um secretário. Os missi geralmente tinha
competências que se complementavam e vigiavam-se mutuamente, cada “equipe” era
em geral mista, composta por um leigo e um clérigo. O papel principal quase sempre
cabia a um clérigo, visto que quando se tratava de analisar casos de atos administrativos
e malversações era mais instruído e, portanto, mais eficaz. Em principio, a missão dos
missi era limitada no espaço e no tempo, não tendo nenhum direito a renovação de sua
missão. O missus é o portador da “graça” real, logo, sua palavra deveria
instantaneamente ter credito como a palavra do próprio rei16.
1.4.2 A missão não era remunerada e o missus não tinha sequer o direito de hospedar-se
à custa do rei nas casas dos domínios reais. Os condes deveriam oferecer pouso e
comida para esses enviados. As missões tinham grandes ganhos informais, falar em
nome do rei traz benefícios oficiosos que eram usufruídos, tais como presentes,
cobravam por dispensas de serviço nos exércitos e aceitavam de bom grado a oferta de
presentes17.
1.4.3 A partir de 802, no contexto de uma grande assembleia que tinha como objetivo
uma reforma geral de governo, foi publicado modificação na regulamentação dos missi.
Estes últimos se tornam representantes permanentes do imperador junto aos arcebispos
e Condes. Doravante, os missi não são mais escolhidos dentre os vassalos diretos da
casa imperial não “casados” que estavam oferecendo determinados serviços nos
palácio, mas sim dentre os mais notáveis, aqueles que a fortuna ou a fidelidade já
provada já garantiam que a missão seria corretamente cumprida.
1.4.4. Bispos e abades desempenham um papel crescente enquanto missi, a tal ponto
que não causou nenhum espanto o papel de bispos e abades na defesa local, tal como no
cerco de Paris pelos Vikings, ocasião em que a defesa foi liderada pelo bispo de Paris.
No século IX os missi passaram a atuar em circunscrições territoriais mais estáveis,
calcadas na maioria das vezes nas províncias eclesiásticas sem atingir, todavia, toda a
extensão de uma província episcopal. Áreas de atuação do missus eram a missiaticae
que foram concretamente constituídas em algumas áreas de grande concentração de

15
FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo, Estação Liberdade, 2005, pp. 292-302.
16
Ibidem.
17
Ibidem.
12
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
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missi tal qual parte da antiga Francia, na Borgonha e em boa parte da fronteira da
Bretanha18.
1.4.6 Balanço: a preocupação em definir e redefinir a função dos missi expressa,
sobretudo, o quanto é grande a força do poder local. A estabilidade do período do
reinado de Carlos Magno foi uma situação de exceção, onde diversos fatores se
associaram para uma paz relativa entre as diversas umidades regionais e na relação com
outros povos que orbitavam nas fronteiras do império, tal qual os normandos.
1.4.7 Um outro instrumento de governo que expressa ao mesmo tempo o vigor e a
fragilidade da dinastia carolíngia era emissão de capitulares. Após as assembleias gerais
do populos francorum, ou seja, dos leigos e clérigos poderosos, expediam-se textos que
divulgavam em um latim simples as decisões e leis emitidas pelo rei em conselho. As
capitulare ou capitularium ou capitular reuniam um conjunto de pequenos parágrafos,
artigos, chamados de capita, ou seja, capitula. A expressão capitular entrou
definitivamente em uso em 750 na chancelaria dos reis lombardos e foi provavelmente
por empréstimo que este tipo de texto passou a ser utilizado no reino Franco. Capitular
designa de início uma forma de redação e não um ato jurídico. A capitular era
simplesmente a recapitulação e a formulação das disposições aprovadas na assembleia
verbalmente por aclamação. O ato jurídico é a decisão tomada pelo rei tornada pública
na assembleia19. O rei frisava que a decisão deveria ser tomada após o anúncio. Mas
existiam algumas dificuldades práticas;
1.Alguns artigos eram redigidos antes da assembleia para facilitar a declaração das
decisões
2. Nem todos entendiam latim, logo, textos lidos eram traduzidos oralmente na língua
românica ou tedesca. As leis que chegavam a maior parte das pessoas expressavam a
vontade soberana, mas não a realidade concreta do que era vivido. As adaptações para
as línguas vernáculas já expressam um nível de interpretação.
3. Os missi e bispos eram encarregados de apresentar estas leis em algumas localidades,
mas tinham de necessariamente resumir o texto conforme a possibilidade de
entendimento do público. Normalmente o que chegava até as elites de cada condado era
um arrazoado das ordens gerais. O missi reuniam os grandes de uma localidade e
faziam uma alocução e comentavam o texto na assembleia local. Nessa reunião eram
solicitadas explicações das particularidades da lei, o que levava com que o poder central
efetuasse posteriormente um aditamento por escrito das leis20.

Nada garante que as leis fossem cumpridas na íntegra. Quanto aos arranjos dos
poderes locais e quanto a frágil atuação dos missi muitas vezes o poder real pouco
podia fazer, inclusive no tempo de Carlos Magno. Neste sentido, o recurso a
vassalização dos homens livres, sobretudo os nobres em armas era algo
perfeitamente lógico. Por entre as declarações de soberania imperial, as

18
Ibidem.
19
Ibidem.
20
Ibidem.

13
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
afirmações categóricas das leis, nas frestas da preocupação sistemática com a
liturgia pode-se perceber que o que realmente conta é o poder dos grandes, suas
terras e seus exércitos.

O feudalismo vem estabelecer regras mais claras nas relações entre os poderosos,
sobretudo quando o poder de supervisão geral do Império se esbate em guerras civis
intestinas, que só beneficiam os “senhores da guerra”.
Os nobres carolíngios partem para um sistema descentralizado de exercício de poder,
sem que isso signifique necessariamente uma situação de ruptura para aqueles que
estavam submetidos a esses poderes. Provavelmente, para grande parte dos camponeses
as mudanças foram bem lentas, já que estavam sob o poder dos poderosos já na época
carolíngia.
Ordem carolíngia: baseada na capacidade de organizar a circulação de honras, riquezas
e impor a todos a fidelidade.
Ocidente Medieval “pós-carolíngio”: sistema de poder entre os poderosos continuou
baseada na competição em torno da circulação de honras e riquezas. Mas os termos
das relações de troca são alterados no fim do século VIII, cessam conquistas, o que
ocasiona uma aceleração no processo de patrimonialização das honras nas famílias
aristocráticas, sobretudo na segunda metade do século IX.

A partir da patrimonialização das honras a relação entre as famílias aristocráticas com o


poder foram profundamente transformadas, cada linhagem passou a se organizar em
torno de uma honra onde se enraizaram e o poder condal, de função, tornou-se
lentamente uma espécie de título que delineava a posição de uma determinada família
em uma determinada hierarquia de poderes.

A partir da segunda metade do século IX crise da ordem carolíngia libera forças até
então contidas. Os senhores começam a estabilizar as fidelidades multiplicando os
feudos de reprise como forma de estreitar laços. Torna-se comum que homens livres
ligados a atividades militares entreguem seus alódios e os retomem com um acréscimo
significativo, totalizando um feudo.

A sociedade feudal está baseada em acordos bilaterais e a sociedade aristocrática se


feudaliza também em sua base.
Feudum/ feodum_ termo latinizado do germânico feo, significa presente, o dom que
constrange de forma mais definitiva. Presente que constrange e obriga a servir.

Honras se tornam fundamentais para o prestígio das grandes famílias aristocráticas. A


“segmentarização” de poderes locais não faz estourar o condado. Os condes não são
privados de suas prerrogativas, sobretudo em matéria judicial.

O conde se destaca menos pela função de regalia, que foi delegada ao castelão, do
que pela sua capacidade de aglutinar recursos, vassalos e prestígio.
PODER CONDAL depende de sua capacidade de se impor em uma relação de força
que lhe é quase sempre favorável, pois dispõem, de grande número de castelos. Desde
o período carolíngio conde só era limitado pela proliferação de senhorios imunes. O
poder condal saiu relativamente fortalecido da crise do império carolíngio pois soube se
14
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
utilizar de regras e códigos já existentes, que se tornaram preponderantes em uma
sociedade praticamente privada de um poder central.

Cada principado (condados e ducados) era composto de um conjunto aglomerado de


poderes locais, direitos sobre funções episcopais, abaciados, direitos sobre castelos,
florestas, caminhos e etc...

Todo principado estava exposto a forças centrífugas que suscitam tensões, conflitos e
violências. A despeito disto, príncipes com vastos recursos se articulam inclusive com o
poder religioso, favorecendo a reforma da Igreja, indiretamente legitimando sua própria
esfera de autoridade na esfera do sagrado. É em parte a estreita ligação com a fundação
de mosteiros, construções religiosos, através do enterro ad sanctos que se constrói uma
determinada memória dinástica, que por sua vez contribui para a consolidação do poder
determinadas famílias. O modelo que inspira os príncipes está calcado no da realeza
carolíngia. Duques e Condes passam a atribuir-se o dever de defesa do povo cristão
diante dos novos “invasores” e a tarefa da manutenção da paz e da concórdia entre os
seus vassalos.
Alguns condes lançam aos poucos um controle mais estreito sobre o espaço através da
criação de novas circunscrições administrativas denominadas castelanias (não confundir
com o senhorio castelão).
Ex. Balduíno IV (938-1035) e Balduíno V (1035-1067) de Flandres criam castelanias
onde colocam castelões escolhidos na pequena aristocracia local. Enfeudam a função,
mas não o castelo e o território da circunscrição territorial21.
Os castelões flamengos, nomeados pelo conde exercem em nome do poder condal:
1) Poderes de polícia
2) Poderes militares
3) Atribuições judiciárias

Um agente dominial do Conde reside no castelo de cada castelania e controla paralelamente


as rendas das terras do condado, isto dificulta a apropriação por parte do castelão dos
poderes sobre a terra que estão sob a alçada direta do conde.

Logo, a proliferação de castelos ocorreu também em benefício do poder principesco, que


vinha se constituindo desde os primeiros carolíngios. A sociedade feudal constitui um
reajustamento, mas não uma ruptura em grau absoluto com relação ao período
carolíngio. Daí a necessidade de abordarmos os mecanismos de produção e reprodução
de poder da época carolíngia, visto que é sobre tudo neste âmbito que encontraremos
“pistas” sobre a formação da sociedade feudal.

21
CONTAMINE, Philippe Op.cit., pp. 119-170.

15
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
B) Poder, hierarquias e ideologia na sociedade carolíngia

O que (re) produz a hierarquia em uma determinada sociedade? Tentaremos delinear alguns
dos principais fatores que eram levados em conta no contexto do Império franco da segunda
metade do século IX e no decorrer do século X.

Resumo dos modelos principais de produção de hierarquias:

1. Modelo marxista: centraliza a produção de hierarquias na organização econômica,


definida pelas contradições entre dominantes e dominados.
2. Modelo funcional: compreende a produção de hierarquias como consequência
inevitável da divisão do trabalho.
3. Modelo de mercado: leva em conta a oferta e demanda de atividades, com as
respectivas remunerações materiais e simbólicas.

Nenhum dos três modelos reflete a complexidade da estratificação social na Alta Idade
Média.

Hierarquia é produto das representações coletivas de uma sociedade que estabelece normas
de estratificação. Qualquer conceituação no que se refere a Alta Idade Média Ocidental
deve ser provisória e posta em prática em pesquisas concretas.

Hierarquia_ palavra de origem grega, hieros,_ imediatamente nos remete a um determinado


sistema de ideias e valores que distingue e diferencia, mas que também unifica as partes em
um todo para legitimar a superioridade de uns sobre os outros.

Hierarquia permite englobar, possibilita que determinados grupos consolidem sua


legitimidade em uma determinada sociedade. Neste sentido a hierarquia é tanto produto
quanto produtora de uma determinada ordem social. A hierarquia supõe, antes da coerção, a
autoridade.

Hierarquia pode ser abordada em três principais vetores:

1 Analisar o sistema de ordenamento e seu impacto sobre o “modo de produção social” da


hierarquia

16
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
2. Descrever a hierarquia de status, de honras, de riquezas determinando o grau de
hierarquização de uma determinada sociedade.
3. Pesquisar como o sistema de trocas permite redefinir em permanência o plano da
hierarquia, ou seja, explicar a mobilidade social.

Tentaremos apresentar em linhas gerais um pouco dos três movimentos no que se refere a
Sociedade Feudal e, para tal, discutiremos algumas das principais características
ideológicas da sociedade carolíngia, suas transformações e continuidades no decorrer do
século IX e X.

Importante; Hierarchia é um conceito explicativo e não uma realidade absolutamente


concreta, inclusive, no contexto da latinidade, raramente o termo foi utilizado até cerca de
800. Qualquer apreciação sobre o processo de hierarquização deve levar em conta a
dinâmica das relações, que pode conforme o contexto negar ou reafirmar uma determinada
ordem pré-estabelecida. Logo, o nosso ponto de questão reside na compreensão das
permanências e rupturas que ocorrem no final do período carolíngio.
As hierarquias são produto e produzem sistemas de poder, mas estamos falando de dois
níveis diferentes de compreensão. Existe uma certa dissonância entre representações sobre
a sociedade e prática cotidiana do poder.

A tradução de uma obra em grego do Pseudo-Denis, o Aeropagita22, foi um marco, no


referido texto se dá bastante destaque a ideia de uma hierarquia celeste e eclesiástica23. Na

22
Até hoje é misteriosa a identidade daquele que compôs o chamado corpus aeropagiticum ou
Dyonisiacum. Este suposto autor foi mencionado pela primeira vez pelos monofisitas severianos e pelo bispo
de Éfeso, Hipácio, no encontro entre católicos calcedonenses e monofisitas severianos em 532 em
Constantinopla. Na disputa os monofisitas severianos se apoiaram no pseudo Aeropagita enquanto que os
católicos e Hipácio duvidaram da autenticidade do suposto autor. “ Dionísio Aeropagita” In Dicionário
patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis, Editora Vozes, 2002.
23
O tratado intitulado Da hierarquia celeste_ Da hierarquia eclesiástica - era atribuído a Dyonisos o
Aeropagita que era identificado com um mártir cristão da evangelização da Gália romana. Dinis, era
considerado equivocamente como um dos discípulos de S. Paulo. O cerne da idéia do tratado propunha que
Deus é luz. Desta luz inicial, incriada e criadora, participaria cada criatura. Por sua vez, cada criatura recebe e
transmite a iluminação divina segundo a sua capacidade, segundo o lugar que ocupa na escala dos seres,
segundo o pensamento de Deus que a cada um hierarquicamente colocou. Proveniente de uma irradiação, o
universo é um fluxo luminoso que desce em cascatas e a luz que emana do ser primeiro instala no seu lugar
imutável cada um dos seres criados. Mas essa luz une a todos através de laços de amor, irriga o mundo todo e
estabelece na ordem a coesão. Todo ser ou objeto criado reflete mais ou menos este fluxo de luz, esta
irradiação por uma cadeia contínua de reflexos, retornado para o foco primeiro de irradiação. O ato luminoso
da criação institui por si mesmo uma subida progressiva de degrau em degrau para o Ser invisível e inefável
de que tudo procede. Tudo regressa a este grande ser por meio das coisas visíveis, que conforme estejam nos
níveis ascendentes de hierarquia, refletem crescentemente a luz incriada. Vale lembrar que o amor pelas
pedrarias, do esmalte, do cristal e de todas as matérias translúcidas, tão comum entre os chefes bárbaros
encontrava a partir desta teoria sua justificação. DUBY, Georges. O tempo das catedrais. A arte e a
sociedade. Lisboa, Imprensa Universitária/ Editorial estampa, 1988, pp. 106 e 107. Vale mencionar ainda
que o “fausto” da liturgia da primeira idade feudal, em particular da beneditina cluniacense, está também
diretamente ligada ao impacto desta obra nos meios eclesiásticos. Esta perspectiva está também nos valores
da aristocracia carolíngia e pós-carolíngia, tendo em vista que poder-se-ia fundamentar a autoridade da
mesma sem manter necessariamente uma dependência tão estreita da realeza. Concomitantemente, o
17
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
obra Da hierarquia eclesiástica, escrita em data indeterminada apresenta-se como exemplo
concreto o caso específico do governo de um Bispo, chefe visível da hierarquia eclesiástica
que transmite a iniciação aos membros da ordem inferior que, por sua vez, a transmitem às
ordens mais baixas. Estas últimas podem voltar-se para o alto, mas estão estritamente
ligadas a uma cadeia que se desenvolve de cima para baixo. Nos escritos do pseudo-
Aeropagita o verdadeiro chefe da hierarquia eclesiástica é Jesus , do qual o bispo é símbolo.
A hierarquia da Igreja, segundo referido autor, ocupa um lugar intermediário entre a
hierarquia celeste e a hierarquia legal24.

1.A noção de ordem e hierarquia no mundo carolíngio.

A noção de Ordem social estava parcialmente calcada no modelo da harmonia dos planetas
largamente divulgado na tradição antiga, reinterpretados pelos padres da Igreja. Santo
Agostinho , em particular, fez da ordem o motor e regulador do universo divididos em duas
partes: a ordem celeste e a ordem terrestre. Nesta cosmogonia a Igreja é o corpo de Cristo e
os fiéis são parte desse corpo. Todos os cristãos, todos que receberam o batismo e que
aderiram a doutrina da Igreja estão unidos por um mesmo parentesco batismal25.

A estrutura binária de harmonia de mundo conjuga-se com uma hierarquia de ordens que
opera com uma classificação que divide a sociedade basicamente entre leigos e clérigos.
Os pensadores carolíngios, tal como Jonas de Orleans, Rabano Mauro e Hincmar de
Reims26 buscaram ordenar a sociedade ao desenvolver a noção mais englobante de ecclesia.
A cristandade27 passa a ser compreendida com uma estrutura orgânica que deveria incluir
todas as formas de organização social que deveriam ser integradas ao sistema de
representação da sociedade cristã.

Foi justamente a expansão política carolíngia e a criação de um império franco, antes


mesmo da coroação imperial, que formou o quadro político-religioso unificador de
hierarquias. Diferentes poderes e as hierarquias paralelas foram unificadas permitindo que a

pensamento de Dinis pseudo-Aeropagita veio em favor, por um outro víeis, aos desígnios da realeza feudal,
afinal o rei dos últimos carolíngios e dos primeiros capetíngios, a despeito de ter seu poder concreto limitado
diante do fortalecimento dos poderosos, estava ainda mais próximo desta luz primeira não criada, grau na
hierarquia reforçado pelo santo crisma da unção.
24
No pensamento do pseudo Aeropagita existe basicamente três funções da pacificação, da iluminação
e da iniciação. Os iniciadores estão divididos em bispos, sacerdotes e ministros e as três ordens de inciados
estão divididos, de cima para baixo, em purificados, iluminados e perfeitos. “ Dionísio Aeropagita” In
Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis, Editora Vozes, 2002.
25
26
Hincmar de Reims (806-882) foi destinado originalmente para a vida monástica e foi introduzido na
abadia de Saint-Denis sob a orientação do abade Hilduíno. Por volta de 822 foi para a corte do Imperador
Luís , o piedoso. Após a morte de Luís, o piedoso em 840 recebeu os abaciados de Notre-Dame e de
Compièngne de Carlos o Calvo, rei da Francia Ocidental. Em 845 foi nomeado arcebispo de Reims e estreitou
cada vez mais seus laços com o projeto político da dinastia carolíngia.
27
Compreendemos por Cristandade o sistema único de legitimação entre e Igreja e Estado que não
deve ser confundido simplesmente com o cristianismo, religião propriamente dita. Cf. GOMES, Francisco
José Silva. “A Igreja e o Poder: Representações e Discursos”. In: RIBEIRO, Maria Eurídice de Barros
(Org.). A Vida na Idade Média. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997
18
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
concepção de Dinis, o pseudo-aeropagita fosse tão bem acolhida como modelo ideológico
por setores do clero, em particular por Hincmar.
Para Hincamar, do ponto de vista ideológico a construção política carolíngia era um
Imperium Christianum com uma mesma fé, uma mesma Igreja, um mesmo império.
Definia a societas como uma sociedade de cristãos submetidas a autoridade de Deus e a do
rei, da mesma forma seus membros deviam estar submetidos aos demais responsáveis
(inclusive clérigos) pela salvação dos fiéis e pelo bem estar do reino.
A hierarquisação da sociedade carolíngia é anterior a coroação, podemos apresentar alguns
fatores:
1) A generalização do regime Senhorial que pelo menos desde o século VIII fez entrar na
dependência de um dominus um grande número de homens livres, submetendo-os a
encargos novos e, ou cada vez mais pesados. A paisagem refletia parcialmente essa
hierarquização, tendo em vista que no povoamento de numerosas regiões ficava claro o
contraste entre aldeias de camponeses e os estabelecimentos aristocráticos ao redor dos
quais construíam-se as casas de dependentes.
2) A hierarquização do sagrado que se traduzia pela doação de numerosos lugares de culto
para os grandes monastérios reais, por vezes, para igrejas episcopais - este processo é
sensível pelo menos desde os anos 760.
3) Por conseguinte, a aristocracia passa a se articular de forma mais coerente, em particular
no nível superior dos proceres. Os agrupamentos de parentesco também se hierarquizam
contribuindo assim para a estabilidade do sistema carolíngio por volta de 800, contanto que
a fidelidade dos potentes fosse assegurada.
4) Desde os anos 780 é nítida a hierarquização de funções e serviços. De um lado, na
hierarquia eclesiástica na qual podemos tomar como exemplo o fortalecimento dos
arcebispos em relação aos bispos. De outro, nas terras conquistadas a hierarquia civil franca
substituía a ordem antiga, fosse pela mera substituição de governantes anteriores, tal como
no caso da Itália lombarda, fosse pela criação de uma realidade completamente nova, tal
qual no caso da saxônia. A partir de fins do século VIII existia uma vontade consciente de
se criar uma hierarquia de serviços integrando os privati homines. Por exemplo, para os
exércitos as capitulares classificavam os homens livres em função de sua fortuna, ainda que
isto não tenha tido praticamente nenhum efeito prático é um indício importante.
_Carolíngios tiram o essencial de seus princípios de governo do Antigo testamento e da
tradição da antiguidade romana.
_A idéia de pietas é reapropriada, a ideia de respeito das tradições ancestrais e mais a
tradição vétero-testamentária dos reis de Israel. Modelos de Melquisedeque, David e
Salomão são reapropriados.
_Na época de Carlos magno predomina o modelo de David, rei poderoso e pecador. No
tempo de Carlos o Calvo orei tende a ser confundido com Salomão, rei que se distinguia
pela sapiência, virtude que no século IX era confundida com piedade. Carlos, o Calvo
chegou a ser nomeado como o novo Salomão.
_A dinastia carolíngia tende a fortalecer a tradição cristológica de poder, Luís , o Piedoso,
chega a ser nomeado como miles Christi em uma obra de Rabano Mauro.
Imperador/rei é tratado como um reflexo de Cristo triunfante, responsável pela manutenção
da harmonia entre a esfera celeste e terrestre.
_Cabe ao poder Imperial assegurar a paz , proteger os órfãos, as viúvas, os fracos e a Igreja.
Estes valores serão absorvidos no contexto da sociedade feudal.

19
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
A ideia de ordens torna-se importante no decorrer do século IX. Segundo alguns setores
eclesiásticos a sociedade cristã estaria dividida entre monges, padres e leigos e, portanto,
cada cristão deveria viver e se sujeitar as regras de sua ordem. Tal ordem não é funcional,
tal qual será a representação sobre a sociedade feudal, dividida entre oratores, bellatores e
laboratores. A ideia de ordem carolíngia é profundamente religiosa.
O cerne ideológico do projeto político carolíngio é a busca do bem comum que se pode
esperar da manutenção da paz e da justiça; este mesmo argumento será utilizado pelos reis
da época Feudal, em particular do século XI em diante. Impor a paz e a ordem pública é
algo considerado como atributo primordial e sagrado dos reis, teremos a oportunidade de
aprofundar está questão mais adiante.
_ Mas em paralelo a estes princípios se consagra a ideia de que o Imperador não pode
governar o povo cristão sem o conselho dos grandes. Esta lógica também estará presente na
lógica da sociedade feudal, o senhor só toma decisões importantes com o conselho dos
seus vassalos.

As sociedades da Alta Idade Média são competitivas e o “capital” material e simbólico dos
indivíduos e dos grupos deve ser defendido, negociado e colocado em uma hierarquia que é
permanentemente renegociada. O poder real estabelece sua autoridade por meio de bens
materiais e simbólicos oferecidos à competição, tal como honras, terras fiscais, bens
preciosos e casamentos. Por meio da atuação do poder soberano se estabelecem padrões de
conduta, regras, “etiquetas” que formam um mecanismo de regulação social entre os grupos
dominantes.

Enquanto o poder soberano tiver o que oferecer do ponto de


vista material e simbólico a sua autoridade permanece
praticamente “intocada”. Caso contrário, é instaurada uma
crise no sistema de circulação de honras e riquezas que passa a
ser operado autonomamente pelos seus beneficiários anteriores,
no caso estabelece-se a lógica “feudal” de poder. Está lógica está
baseada nos valores da sociedade aristocrática carolíngia, mas
autonomiza-se e prescinde de um poder de supervisão superior,
instaura-se um sistema de auto-regulação, inclusive da
violência.

III. Poder, laços familiares e reprodução de hierarquias sociais na sociedade


feudal.
A desestruturação do quadro político religioso carolíngio permitiu que determinados
aspectos na organização das relações de poder entre os poderosos alcançassem grande
destaque, sobretudo a partir do século X.
A função reguladora dos conflitos sociais já não era exercida por um poder central que se
pretendia forte. Já não cabia ao rei ou imperador a possibilidade prática de buscar o
consenso de seus fiéis e de zelar pela paz no povo cristão. Foram sobretudo as grandes
20
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
famílias que se beneficiaram da desestruturação do Estado carolíngio, a
regionalização do poder que caracteriza o Ocidente medieval na Alta Idade Média se
aprofunda, o que nos faz lembrar da ideia atualmente corrente na historiografia
francesa de que o século VIII foi, em certo sentido, um momento de exceção para
formas de exercício de poder que tendiam no Ocidente, já de longa data, a
descentralização.
Alguns fatores foram muito importantes para a auto-regulação das relações sociais:

1. A fidelidade dos parentes. É fundamental o papel dos laços de parentesco para


o desenvolvimento de forças hierárquicas que tendem a substituir as estatais. A
aristocracia reforça os agrupamentos horizontais que desde o período carolíngio
asseguravam a segurança dos indivíduos. Fora do senhorio castelão o
constrangimento feudal existe apenas de forma atenuada e fragmentária. No
século X não existe propriamente uma hierarquia de serviços e o conde não
se impõe de forma instantânea como o senhor principal de outros grandes
senhores. Logo, as relações de parentesco natural e artificial tem um papel de
peso na estruturação da sociedade28.
2. As relações de reciprocidade. As grandes famílias tendem a criar uma rede
intrincada que substitui parcialmente uma supervisão de cunho estatal. A
sociabilidade passa a ter uma função reguladora acentuada por meio de códigos
perfeitamente integrados, utilizados como forma de atenuação de conflitos,
permitindo não somente criar e reforçar laços sociais, mas determinando o lugar
de cada um nas audiências judiciárias, nos banquetes, festas, caçadas. Estes
ambientes de convivência privada tinham uma ampla influência nos
posicionamentos políticos e reforçavam as hierarquias feudais29.
3. As redes de parentesco davam uma certa segurança para indivíduos, mas não
estabilizavam absolutamente as relações de poder entre as grandes famílias. Até
o século XI as relações de parentesco eram em geral cognáticas e apenas as
famílias principescas tenderam a se organizar de forma linhagística. O poder
de um determinada linhagem se dava pela capacidade de alinhar em seu entorno
as linhagens dos ramos mais novos da família e dos cognatos30.
4. Nas famílias principescas a linhagem principal utilizava diversos meios para
consolidar suas posições e reter as funções mais importantes. Por exemplo, a
linhagem principal reservava para si bispados e abaciados e oferecia a função
em castelos para parentes mais afastados31.
5. Na família principesca todo um trabalho de construção de memória vêm reforçar
a dominação da linhagem principal pelo desenvolvimento da consciência
dinástica que esta ligada as necrópoles familiares.

28
CONTAMINE, Philippe. Op.cit., pp. 119-170.
29
Ibidem.
30
Ibidem.
31
Ibidem.
21
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
6. A generalização de um sistema antroponímico reserva aos primogênitos os
nomes destinados à herança do nome familiar. Este processo se aprofunda
sobretudo no século XI.
7. Fora dos meios principescos o sistema linhagístico apenas se delineia. No que se
refere as linhagens mais modestas o rompimento com a estrutura cognática
inicia-se apenas a partir da segunda metade do século XI.
8. Nas genealogias dos senhores castelões é possível perceber que estes são
frequentemente parentes das grandes linhagens.

As uniões hipogâmicas reforçam o sistema de fidelidades e favorecem uma certa


mobilidade social, mas também reforçam o poder das famílias mais poderosas.

Linhagens e parentelas se entrecruzam, se “cavalgam’ por meio de alianças que


asseguram melhor o equilíbrio que o simples juramento de vassalidade para com o
senhor.

A Igreja tende a restringir os graus de parentescos que tornavam um casamento legítimo,


logo, isto colaborava para que filhos segundos não se estabelecessem socialmente. Portanto
existia um conjunto de homens treinados, de famílias importantes ou não, dispostos a fazer
fortuna “pelas próprias mãos”, já que a eles não era destinado casamentos ou mesmo um
feudo importante.
Os ramos secundários de uma família colocavam–se a serviço de seus familiares ou de
outros senhores, configurando uma relação de tensão e competição por feudos e benefícios.
Eram os grandes senhores os principais beneficiários deste sistema de circulação de honras
e riquezas. Já que era destes que dependiam a distribuição de feudos e benefícios para os
homens de guerra.

A) Amigos e inimigos.

Visão jurídico- política tradicional:


1.Vassalo deve ao senhor auxílio e conselho
2.Senhor deve ao vassalo proteção e auxílio

Teremos a oportunidade de discutir melhor os aspectos jurídico-políticos e ritualísticos do


feudalismo. Mas já podemos antever que a realidade concreta era bem mais complexa. que
o juramento vassálico propriamente dito.

Aspectos mais gerais na gênese do feudalismo

1. Amizade se identificava com a parentela na medida que supunha uma reciprocidade


total entre pessoas que tinham uma origem ou qualidade semelhante. Mas fora do

22
A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
círculo de parentesco próximo a ligação familiar tende a ser vista apenas como uma
ligação “natural” que não obriga praticamente a nada32.
2. A amizade e a vassalidade são importantes para equacionar relações que serão
consideradas de partida com relativamente desiguais. A amizade cria um laço
“artificial” de reciprocidade e “igualdade”33.
3. A Reciprocidade. Toda oferta deve dar lugar a uma retribuição equivalente.
Presentes, alianças de casamentos, feudos em troca de serviços são exemplos do
sistema geral de trocas que tecia a malha das redes sociais. Mas toda ofensa
também dava lugar a uma violência legítima executada por sua parentela ou
vassalos34.
4. Entre todos os conflitos do século X um dos mais dramáticos era o que opunha os
monges aos seus “inimigos” laicos durante longo tempo. Estes conflitos eram
tratados nas crônicas como um suposto “desregramento” característico da era
feudal. Mas as coisas não eram assim tão simples, na verdade boa parte dos
conflitos originava-se na atitude dos herdeiros que se julgavam lesados pelas amplas
doações de seus antecessores. Parentesco e laços de fidelidade eram
considerados laços estruturais, mas a amizade era apenas um laço que não
supunha a hereditariedade35.
5. Amizade é um laço contratual que não é transmissível após a morte do doador,
torna-se necessário criar um novo laço com os herdeiros. Daí os conflitos servem
como forma de promoção de novos laços de amizade dos descendentes dos
doadores com os monges. Dois argumentos são utilizados pelos contendedores: de
um lado, familiares afirmam que os direitos de herança não prescrevem, do outro, os
monges afirmam que qualquer doação ao santo patrono é também uma doação a
Deus, logo é algo feito eternamente36.
6. Após fase acesa de conflitos são estabelecidas novas relações de compromisso.
Parentes raramente renunciam a querela, mas comumente renunciam a exigência da
devolução dos bens anteriormente concedidos. Frequentemente os leigos renunciam
as querelas para entrarem na fraternidade dos monges, ou seja, pela ligação artificial
com estes e com o santo patrono e para que seja garantida a família o prestígio
advindo da inumação nas necrópoles monásticas37.
7. A querela é instrumento que permite a renovação dos laços de amizade mediante
arbitragens que permitem o restabelecimento da paz. Normalmente o árbitro é de
fora: um bispo, um abade vizinho ou mesmo um grande senhor. A partir do século
XII o rei tende a se colocar como árbitro das disputas entre nobres e instituições
eclesiásticas38.
8. Todo ato jurídico na sociedade feudal supõe um rito. A paz selada era seguida da
doação de esmolas para o mosteiro. Da mesma forma as relíquias eram trazidas em
seus relicários para o momento de selamento da paz. Qualquer juramento já era
considerado de antemão como algo sagrado e sob a presença miraculosa dos

32
Ibidem.
33
Ibidem.
34
Ibidem.
35
Ibidem.
36
Ibidem.
37
Ibidem.
38
Ibidem.
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A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes
vestígios dos santos, considerados amigos de Deus, a sacralidade do ato de jurar era
acentuada39.

Linhagens principescas do século X utilizam-se de diversos meios para reforçar o seu


poder:
1.Princípio linhagístico tende a deixar para os filho mais velho as honras principais das
famílias, configurando o que os especialistas chamam de “ topolinhagem”.
2. Os filhos mais novos passam a ocupar funções importantes nos monastérios e
bispados.
3.O casamento das filhas, excluídas das heranças serve para reforçar o poder de
influência de determinada linhagem.

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REUTER. Timothy (edit.) The new Cambridge medieval history. Volume II, c. 700 - c.
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39
Ibidem.
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A época Carolíngia e a formação da sociedade feudal, Séculos IX e X. Texto de apoio.
Fabiano Fernandes

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