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[...] não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário, pois
afirma obedecer rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza
e da História que sempre acreditamos serem a origem de todas as leis”
[positivas]. (ARENDT, 1979, p. 513).
Com efeito, esta sorte de governo afirma obedecer, como nenhum outro, às leis
impessoais e sobre-humanas da história ou da natureza, mais legítimas e menos
imperfeitas que as leis positivas. Assim, o poder, diferentemente do caso tirânico, não é
exercido em benefício de um indivíduo só, tampouco tem em vista os interesses dos
outros indivíduos. O poder do regime existe unicamente para aplainar o caminho do
movimento pré-estabelecido da humanidade, isto é, serve à execução daquilo que se
considera ser a lei inexorável da História ou da Natureza. Embora não esteja
propriamente a serviço dos interesses dos indivíduos, a “legalidade” totalitária proclama
estabelecer o “reino da justiça na terra”, justamente por não ser “desfigurada” em
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legalidades menores, transitórias, que se moldam socialmente em critérios gerais de
certo ou errado que se aplicam à conduta humana. O totalitarismo, a humanidade deixa
de ser horizonte inicial das leis, pois ele
Sem ação livre, novamente, não tem sentido em se falar de culpa ou mérito. “O
terror é a legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-humana,
seja a Natureza ou a História” (idem, ibidem, p. 517).
Em um regime propriamente legal, as leis positivas exercem um duplo poder,
qual seja: de um lado, modulam (e, nesse sentido, restringem) a conduta humana,
estabelecendo fronteiras entre indivíduos, e, de outro, estabelecem canal comunicativo.
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transforma, em última instância, em uma sentença de morte, já que se põe a serviço da
realização e aceleração do movimento das leis supra-humanas. Desta forma, o terror
total realiza um duplo papel, a saber: além de ser a essência do regime, ele figura não
como princípio de ação, mas de movimento. A ação humana, livre e consciente, torna-se
uma simples peça, um mero depositário da lógica interna do movimento.
O princípio que governa a conduta, no terror total, não é um princípio de ação,
propriamente dito, pois o totalitarismo elimina no indivíduo justamente a sua
capacidade de agir, a sua liberdade política. Nessas condições, pode-se dispensar a
deliberação e o aconselhamento quanto à “[...] conduta dos cidadãos, porque o terror
escolhe suas vítimas independentemente de ações ou pensamentos individuais,
unicamente segundo a necessidade objetiva do processo natural ou histórico” (idem,
ibidem, p. 520). Nesse sistema de dominação, o medo, provavelmente, é mais intenso
que nunca, mas mesmo ele perde sua relevância na conduta, pois não consegue mais
impedir o (inevitável) processo.
Por meio dos critérios objetivos na escolha entre vítimas e carrascos, o
totalitarismo dispensa, portanto, não apenas o medo, mas também a simpatia e
convicção. O objetivo da educação totalitária, em verdade, se trata de destruir a
capacidade de adquirir convicção. De acordo com Arendt,
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necessárias. Desta aplicação resulta uma explicação (ideológica) do mundo que se
tornou útil para o governo totalitário. “A coerção puramente negativa da lógica, a
proibição das contradições, passou a ser ‘produtiva’, de modo que se podia criar toda
uma linha de pensamento e forçá-la sobre a mente, pelo fato de se tirarem conclusões”
(idem, ibidem, p. 522). As ideologias e sua Weltanschauung “[...] pressupõem sempre
que uma ideia é suficiente para explicar tudo no desenvolvimento da premissa, e que
nenhuma experiência ensina alguma coisa porque tudo está compreendido nesse
coerente processo de dedução lógica” (idem, grifo nosso). Desse modo, a visão de
mundo ideológica está sempre à salvo de críticas científicas. Segundo Arendt, o perigo
maior de se adotar tais sistemas é a troca da “[...] liberdade inerente da capacidade
humana de pensar pela camisa de força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão
violentamente quanto uma força externa" (idem).
De maneira geral, Arendt afirma que todo pensamento ideológico contém três
elementos totalitários. O primeiro se refere à sua pretensão de explicação e abarcamento
da totalidade do mundo, em todos os períodos históricos e tempos verbais. O segundo
elemento se refere ao fato de as ideologias prescindirem de todo e qualquer confronto
com a realidade fatual, empírica; em harmonia com a pretensa autossuficiência de seu
sistema lógico e por se comprometer a dar anteceder o futuro. Assim, de todo e qualquer
evento público tangível, perceptível pelos cinco sentidos, deve ser extraído, por uma
espécie de “sexto sentido”, uma realidade mais verdadeira. Este sexto sentido seria
desenvolvido “[...] por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas
instituições educacionais [e nas propagandas totalitárias], estabelecidas exclusivamente
para esse fim” (idem, ibidem, p. 523, grifo nosso). O terceiro elemento, resultante da
ligação dos dois primeiros, é a subsunção de todos os fatos à premissa da ideologia. A
história é vista como uma sucessão de deduções lógicas e necessárias, a partir da
premissa maior – a ideia. “O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um
processo puramente absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita
axiologicamente, tudo mais sendo deduzido dela” (idem, ibidem, p. 523). A mente, em
seu processo de dedução lógica, mimetiza a lei dos movimentos, “cientificamente
comprovada”.
Desse modo, as ideologias, ao naturalizarem uma representação e um ser-no-
mundo que se resume na identificação com o papel de vítima ou de carrasco, ou seja,
com o papel de ser mero receptáculo da lei do movimento, foram transformadas em
armas de matar. Elas permitiram, em outras palavras, que os governados/dominados
entrassem em “harmonia com o movimento do terror”, concretizando a eliminação das
“classes agonizantes” e das raças “indignas de viver”. Aquele que não concordasse com
os elementos do raciocínio ideológico e suas necessárias consequências, lógicas e letais,
era tido como covarde ou estúpido. “Essa lógica persuasiva como guia da ação
impregna toda a estrutura do movimentos e governos totalitários” (idem, ibidem, p.
524). E é da “natureza das políticas ideológicas” que, em razão dessa mesma força
lógica coercitiva, o pensamento ideológico termina por deglutir, ao final, a “substância
original” – exploração do proletariado e anseios nacionais da Alemanha –; de modo que
as realizações dos objetivos ideológicos deixam de se lhes corresponder.
Esta compulsão interna, racional e existencial (pois a ideologia chega a se
impregnar no conteúdo que dá sentido à vida), que harmoniza a massa com o terror
total, Hannah Arendt denomina
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pensamentos. Através dessa submissão, ele renuncia à liberdade
interior [i. e., de pensar por si só], tal como renuncia à liberdade de
movimento quando se curva a uma tirania externa. A liberdade, como
capacidade interior do homem, equivale à capacidade de começar, do
mesmo modo que a liberdade como realidade política equivale a um
espaço que permita o movimento entre os homens [...]. Tal como o
terror é necessário para que o nascimento de cada novo ser humana
não dê origem a um novo começo que imponha ao mundo a sua voz,
também a força autocoercitiva da lógica é mobilizada para que
ninguém jamais comece a pensar – e o pensamento, como a mais livre
e mais pura das atividades humanas, é exatamente o oposto do
processo compulsório de dedução (idem, ibidem, p. 525-526, grifo
nosso).
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impermutável e inconfundível, o indivíduo é dissolvido em uma massa de autômatos,
ora carrascos, ora vítimas.