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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Humanas


Departamento de Sociologia
Disciplina: Sociologia da Ideologia
Prof.ª: Dr.ª Maria Francisca Coelho
Aluna: Luana Marinho do Nascimento 10/0034314

Resenha – Ideologia e Terror, de Hannah Arendt

Em Ideologia e Terror, Hannah Arendt analisa os métodos de dominação do


totalitarismo que marcaram a primeira metade do século XX, quais sejam, o comunismo
(de matriz stalinista) e o nazismo. Métodos estes que se distinguem de quaisquer outras
formas conhecidas de opressão política, tais como o despotismo, a tirania e a ditadura –
fato que se manifesta no rompimento, provocado pelo totalitarismo, com todas as
tradições sociais, legais e políticas anteriormente existentes, as quais são substituídas
por instituições inteiramente novas. Os regimes totalitários passaram a “operar segundo
um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros que nenhuma das
nossas tradicionais categorias utilitárias – legais, morais, lógicas ou de bom senso –
podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever o curso de sua ação”. Nesse sentido, o
totalitarismo surge como um acidente político, como uma estrutura política
improvisada, mas como uma nova forma de governo, dotada de essência própria.
A natureza totalitária do comunismo e do nazismo, segundo a autora, se revela
em múltiplos níveis e sentidos. Socialmente, estes regimes transformam a pluralidade
dos indivíduos, membros de distintas classes sociais, em uma grande massa
homogênea, una, incumbida da realização de um desígnio maior. Politicamente, o
sistema partidário e os códigos leais cedem lugar a um movimento impessoal,
inexorável e silencioso daquela massa mesma homogênea. Internamente, o poder das
forças armadas é substituído pelo poder difuso da polícia e, externamente, as pretensões
de conquistas universais tendem a transformar o mundo em uma extensão de seu
império.
Em sua particularidade, o totalitarismo destruiu o dualismo na definição da
essência dos governos, que os repartia entre ilegalidade ou legalidade, poder arbitrário
ou legítimo. Isso porque, ao mesmo tempo em que prescinde das leis positivas – base do
poder legal –, o governo totalitário

[...] não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário, pois
afirma obedecer rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza
e da História que sempre acreditamos serem a origem de todas as leis”
[positivas]. (ARENDT, 1979, p. 513).

Com efeito, esta sorte de governo afirma obedecer, como nenhum outro, às leis
impessoais e sobre-humanas da história ou da natureza, mais legítimas e menos
imperfeitas que as leis positivas. Assim, o poder, diferentemente do caso tirânico, não é
exercido em benefício de um indivíduo só, tampouco tem em vista os interesses dos
outros indivíduos. O poder do regime existe unicamente para aplainar o caminho do
movimento pré-estabelecido da humanidade, isto é, serve à execução daquilo que se
considera ser a lei inexorável da História ou da Natureza. Embora não esteja
propriamente a serviço dos interesses dos indivíduos, a “legalidade” totalitária proclama
estabelecer o “reino da justiça na terra”, justamente por não ser “desfigurada” em
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legalidades menores, transitórias, que se moldam socialmente em critérios gerais de
certo ou errado que se aplicam à conduta humana. O totalitarismo, a humanidade deixa
de ser horizonte inicial das leis, pois ele

[...] aplica a lei diretamente à humanidade, sem atender aos problemas


e necessidades mais imediatas dos indivíduos. Ele espera que a lei da
Natureza ou da História, devidamente executada, engendre a
humanidade como produto final; essa esperança – que está por trás da
pretensão de governo global – é acalentada por todos os governos
totalitários (idem, ibidem, p. 514).

O totalitarismo não substitui simplesmente a legalidade positiva por outra, pois


rompe conscientemente com o consensus iuris. Nesse sentido, não há mais possibilidade
de se julgar moral ou legalmente, já que para tal se exige o reconhecimento, o
consentimento básico dos cidadãos com respeito à validade das normas. O indivíduo,
para sua punição ou mérito, precisa fazer parte do consenso. De modo que, no
totalitarismo, conceito de lei e de legalidade adquirem outra conotação, o que o
impossibilita de ser considerado propriamente legal ou propriamente ilegal. Com efeito,
o governante totalitário pode “[...] dispensar o consensus iuris porque promete libertar o
cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano, e promete a justiça na terra porque
afirma tornar a humanidade a encarnação da lei” (Idem, ibidem, p. 514-515, grifo do
autor). Abre-se, então, um vácuo para “humanidade”, para o pensar, para o sentir, o
desejar de cada indivíduo.
Dado que as leis positivas destinam-se, sobretudo, a estabilizar os movimentos
da humanidade, as práticas dos indivíduos, elas devem ser transitórias, eternamente
mutáveis. As “leis” totalitárias, por sua vez, são leis de movimento. Ou melhor, elas
traduzem o próprio movimento, a direção para a qual a humanidade, invariavelmente,
deve se voltar. A crença nazista na “lei das raças” é expressão da lei (do movimento
próprio) da Natureza, tal como formulada por Darwin; isto é, é a expressão da lei
natural da evolução, e, como tal, determina o extermínio de algumas raças em prol da
sobrevivência de outras. Já a crença bolchevista na luta de classes como expressão da lei
da história se baseia na noção marxiana de “uma sociedade como produto de um
gigantesco movimento histórico que se dirige, segundo a sua própria lei de dinâmica,
para o fim dos tempos históricos, quando então se extinguirá a si mesmo” (idem,
ibidem, p. 515).
Nesses sistemas de ressignificação dos indivíduos e de suas ações, os fenômenos
sociais deixam de ser vistos “como são”, e se tornam simples estágios de um necessário
desenvolvimento ulterior, regido pelas leis naturais ou histórias. Tais leis, que não são
senão as leis do movimento, se traduzem em leis de matar, e é por meio delas que o
totalitarismo toma e exerce o poder. “No corpo político do governo totalitário, o lugar
das leis positivas é tomado pelo terror total, que se destina a converter em realidade a lei
do movimento da história ou da natureza” (idem, ibidem, p. 516, grifo nosso). O terror,
no governo totalitário, deixa de encarnar o uso da força com vistas à supressão da
oposição, embora ainda seja usado para esse papel. O terror se torna total quando passa
a independer de toda oposição, reinando em absoluto quando ninguém mais se lhe
afigura como obstáculo do movimento. Aqui são neutralizadas as ações humanas, de
maneira a permitir a realização da lei do movimento, livre de qualquer interferência, de
qualquer vestígio de espontaneidade, pensamento (e, pois, liberdade) humana. “Se a
legalidade é a essência do governo não-tirânico e a ilegalidade é a essência da tirania,
então o terror é a essência do domínio totalitário. O terror é a realização da lei do
movimento” (idem, ibidem, p. 516-517, grifo nosso), que nada mais é que a própria lei
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de matar. Por meio de seu “raciocínio frio”, ele seleciona para si “inimigos objetivos”,
da História e da Natureza, que devem ser eliminados.

Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade contra os quais


se desencadeia o terror, e não pode permitir que qualquer ação livre,
de oposição ou de simpatia, interfira na eliminação do ‘inimigo
objetivo’ da História ou da Natureza, da classe ou da raça (idem,
ibidem, p. 517).

Sem ação livre, novamente, não tem sentido em se falar de culpa ou mérito. “O
terror é a legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-humana,
seja a Natureza ou a História” (idem, ibidem, p. 517).
Em um regime propriamente legal, as leis positivas exercem um duplo poder,
qual seja: de um lado, modulam (e, nesse sentido, restringem) a conduta humana,
estabelecendo fronteiras entre indivíduos, e, de outro, estabelecem canal comunicativo.

A cada nascimento, um novo começo surge para o mundo, um novo


mundo em potencial passa a existir [...]. As leis circunscrevem cada
novo começo e, ao mesmo tempo, asseguram sua liberdade de
movimento, a potencialidade de algo inteiramente novo e imprevisível
[...] (idem).

Em lugar das fronteiras e dos canais de comunicação entre os cidadãos, o terror


total

[...] constrói um cinturão de ferro que os cinge de tal forma que é


como se sua pluralidade se dissolve em Um-Só-Homem de dimensões
gigantescas. Destruir as leis que permitem a existência de um espaço
entre os indivíduos significa destruir a liberdade como realidade
política viva; pois o espaço entre os homens, delimitado pelas leis, é o
espaço vital da liberdade (idem).

A liberdade, em Hannah Arendt, pode ser concebida como a capacidade de se


mover harmonicamente na arena pública, ou ainda, como a capacidade de um mover-se,
de um agir próprio (“novo”) e harmônico, o qual necessita do espaço fornecido e
assegurado pelas leis.

O terror, portanto, como servo obediente do movimento natural ou


histórico, tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em todo
sentido específico, mas a própria fonte de liberdade que está no
nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo (idem,
ibidem, p. 518).

O terror não apenas liberta as forças motrizes da História ou da Natureza, como


também acelera sua realização, executando, sem hesitação, as sentenças de morte que as
leis proferem.
Segundo Arendt, a legalidade impõe limites à conduta humana, proscreve e
prescreve ações para manter coeso o todo social, mas jamais prescreve seu futuro. Nas
sociedades livres, sob o regime da legalidade, o “necessário movimento de um corpo
político não se encontra em sua essência, porque essa essência – novamente desde
Platão – sempre foi definida com vistas à sua permanência” (idem, ibidem, p. 518). No
governo totalitário perfeito, sob o domínio do terror total, cada ação humana se

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transforma, em última instância, em uma sentença de morte, já que se põe a serviço da
realização e aceleração do movimento das leis supra-humanas. Desta forma, o terror
total realiza um duplo papel, a saber: além de ser a essência do regime, ele figura não
como princípio de ação, mas de movimento. A ação humana, livre e consciente, torna-se
uma simples peça, um mero depositário da lógica interna do movimento.
O princípio que governa a conduta, no terror total, não é um princípio de ação,
propriamente dito, pois o totalitarismo elimina no indivíduo justamente a sua
capacidade de agir, a sua liberdade política. Nessas condições, pode-se dispensar a
deliberação e o aconselhamento quanto à “[...] conduta dos cidadãos, porque o terror
escolhe suas vítimas independentemente de ações ou pensamentos individuais,
unicamente segundo a necessidade objetiva do processo natural ou histórico” (idem,
ibidem, p. 520). Nesse sistema de dominação, o medo, provavelmente, é mais intenso
que nunca, mas mesmo ele perde sua relevância na conduta, pois não consegue mais
impedir o (inevitável) processo.
Por meio dos critérios objetivos na escolha entre vítimas e carrascos, o
totalitarismo dispensa, portanto, não apenas o medo, mas também a simpatia e
convicção. O objetivo da educação totalitária, em verdade, se trata de destruir a
capacidade de adquirir convicção. De acordo com Arendt,

[...] o totalitarismo introduziu um princípio inteiramente novo no


terreno das coisas públicas que dispensa inteiramente o desejo
humano de agir, e atende à desesperada necessidade de alguma
intuição da lei do movimento, segundo a qual o terror funciona e da
qual, portanto, dependem todos os destinos pessoais” (idem).

O mecanismo que orienta a conduta, portanto, não é um conjunto de valores,


crenças ou reflexões, mas sim o “preparo para que cada um se ajuste igualmente bem ao
papel de carrasco e ao papel de vítima. Essa preparação bilateral, que substitui o
princípio de ação, é a ideologia” (idem, grifo nosso).
Mais precisamente, em Arendt as ideologias surgem como proposições
filosóficas epistemologicamente “totalitárias”, isto é, como sistemas fechados, com
pretensões científicas, que se creem englobar e dar unidade a todo e qualquer fenômeno
empírico. “As ideologias – os ismos que podem explicar, a contento de seus aderentes,
toda e qualquer ocorrência a partir de uma única premissa – são fenômeno muito recente
e, durante várias décadas, tiveram papel insignificante na vida política” (idem, grifo
nosso). Os sistemas ideológicos não estão interessados no que “é”, tampouco no
“milagre do ser” e na potencialidade do novo que ele carrega. Uma ideologia, como a
análise do termo aponta: “é a lógica de uma ideia. O seu objeto de estudo é a história, à
qual a ideia é aplicada [...]. A ideologia trata o curso dos acontecimentos como como se
seguisse a mesma ‘lei’ adotada na exposição lógica de sua ‘ideia” (idem, ibidem, p.
521). Ela pretende explicar não apenas o passado e presente, mas também o futuro, em
virtude da lógica inerente de sua ideia.
O que torna possível o cálculo do futuro é a própria “lógica” da ideia, que não
é senão o movimento (sucessão de inferências livre de contradições) interno à própria
ideia e dispensa qualquer fator externo para colocá-la em atividade. “O racismo é a
crença de que existe um movimento da própria ideia de raça, tal como o deísmo é a
crença de que existe um movimento inerente da ideia de Deus” (idem). O movimento
histórico-social e a lógica interna da ideia se identificam na preparação ideológica do
totalitarismo.
A lógica, nessas condições, é aplicada à ideia como a fixação de um
“movimento do pensamento”, no qual a ideia, como premissa, conduz a conclusões

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necessárias. Desta aplicação resulta uma explicação (ideológica) do mundo que se
tornou útil para o governo totalitário. “A coerção puramente negativa da lógica, a
proibição das contradições, passou a ser ‘produtiva’, de modo que se podia criar toda
uma linha de pensamento e forçá-la sobre a mente, pelo fato de se tirarem conclusões”
(idem, ibidem, p. 522). As ideologias e sua Weltanschauung “[...] pressupõem sempre
que uma ideia é suficiente para explicar tudo no desenvolvimento da premissa, e que
nenhuma experiência ensina alguma coisa porque tudo está compreendido nesse
coerente processo de dedução lógica” (idem, grifo nosso). Desse modo, a visão de
mundo ideológica está sempre à salvo de críticas científicas. Segundo Arendt, o perigo
maior de se adotar tais sistemas é a troca da “[...] liberdade inerente da capacidade
humana de pensar pela camisa de força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão
violentamente quanto uma força externa" (idem).
De maneira geral, Arendt afirma que todo pensamento ideológico contém três
elementos totalitários. O primeiro se refere à sua pretensão de explicação e abarcamento
da totalidade do mundo, em todos os períodos históricos e tempos verbais. O segundo
elemento se refere ao fato de as ideologias prescindirem de todo e qualquer confronto
com a realidade fatual, empírica; em harmonia com a pretensa autossuficiência de seu
sistema lógico e por se comprometer a dar anteceder o futuro. Assim, de todo e qualquer
evento público tangível, perceptível pelos cinco sentidos, deve ser extraído, por uma
espécie de “sexto sentido”, uma realidade mais verdadeira. Este sexto sentido seria
desenvolvido “[...] por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas
instituições educacionais [e nas propagandas totalitárias], estabelecidas exclusivamente
para esse fim” (idem, ibidem, p. 523, grifo nosso). O terceiro elemento, resultante da
ligação dos dois primeiros, é a subsunção de todos os fatos à premissa da ideologia. A
história é vista como uma sucessão de deduções lógicas e necessárias, a partir da
premissa maior – a ideia. “O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um
processo puramente absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita
axiologicamente, tudo mais sendo deduzido dela” (idem, ibidem, p. 523). A mente, em
seu processo de dedução lógica, mimetiza a lei dos movimentos, “cientificamente
comprovada”.
Desse modo, as ideologias, ao naturalizarem uma representação e um ser-no-
mundo que se resume na identificação com o papel de vítima ou de carrasco, ou seja,
com o papel de ser mero receptáculo da lei do movimento, foram transformadas em
armas de matar. Elas permitiram, em outras palavras, que os governados/dominados
entrassem em “harmonia com o movimento do terror”, concretizando a eliminação das
“classes agonizantes” e das raças “indignas de viver”. Aquele que não concordasse com
os elementos do raciocínio ideológico e suas necessárias consequências, lógicas e letais,
era tido como covarde ou estúpido. “Essa lógica persuasiva como guia da ação
impregna toda a estrutura do movimentos e governos totalitários” (idem, ibidem, p.
524). E é da “natureza das políticas ideológicas” que, em razão dessa mesma força
lógica coercitiva, o pensamento ideológico termina por deglutir, ao final, a “substância
original” – exploração do proletariado e anseios nacionais da Alemanha –; de modo que
as realizações dos objetivos ideológicos deixam de se lhes corresponder.
Esta compulsão interna, racional e existencial (pois a ideologia chega a se
impregnar no conteúdo que dá sentido à vida), que harmoniza a massa com o terror
total, Hannah Arendt denomina

[...] a tirania da lógica, contra a qual nada se pode erguer senão a


grande capacidade humana de começar algo novo. A tirania da lógica
começa com a submissão da mente à lógica como um processo [um
movimento] sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus

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pensamentos. Através dessa submissão, ele renuncia à liberdade
interior [i. e., de pensar por si só], tal como renuncia à liberdade de
movimento quando se curva a uma tirania externa. A liberdade, como
capacidade interior do homem, equivale à capacidade de começar, do
mesmo modo que a liberdade como realidade política equivale a um
espaço que permita o movimento entre os homens [...]. Tal como o
terror é necessário para que o nascimento de cada novo ser humana
não dê origem a um novo começo que imponha ao mundo a sua voz,
também a força autocoercitiva da lógica é mobilizada para que
ninguém jamais comece a pensar – e o pensamento, como a mais livre
e mais pura das atividades humanas, é exatamente o oposto do
processo compulsório de dedução (idem, ibidem, p. 525-526, grifo
nosso).

O cerceamento da capacidade de sentir e de agir, que se fazem acompanhar, no


governo totalitário, da ruína das relações pessoais e do contato com a realidade,
simbolizam o triunfo da compulsão ideológica, isto é, do terror total. Os indivíduos,
massificadas, pressionados uns contra os outros pelo “cinturão de ferro” da lei do
movimento, são forçados igualmente a um insulamento solitário, a uma existência
ficcional, perdendo o contato político uns com os outros. Tais momentos, como duas
faces de uma mesma moeda, constituem a interioridade dos “súditos ideais” dessa
espécie de governo, e se mostram essenciais para a sustentação do domínio pelo terror
total.
Regimes totalitários, portanto, dependem e decorrem de duas condições
existenciais peculiares, a saber, o isolamento e sua consequente impotência. Sabe-se que
a “legalidade” totalitária suprime o espaço entre os indivíduos, no interior do qual suas
relações pessoais se concretizam. Nesse sentido, ela elimina a vida privada e a liberdade
política. Isto é, retira dos indivíduos a capacidade de sentir e de pensar criativamente –
isto é, extraindo algo de si próprio – e, consequentemente, de agir, seja por convicção
racional, seja por convicção emocional; substituídas pela mera conformação a um
movimento necessário. Em suma, na solidão pessoal totalitária, isto é, na ausência de
relação consigo (realizada no ato do pensamento), com os seus semelhantes e com a
realidade circundante; o indivíduo também se isola politicamente, pois perde a
capacidade coletiva de ação, transformação e poder, ou seja, da práxis. Com efeito, para
Arendt, a experiência humana básica que fundamenta, diariamente, o domínio totalitário
seria esta fusão, ou mesmo equivalência, entre solidão social e isolamento político.

Enquanto o isolamento se refere apenas ao território político da vida, a


solidão se refere à vida humana como um tudo. O governo totalitário,
como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a
esfera da vida pública, isto é, sem destruir, através do isolamento dos
homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como
forma de governo é novo no sentido de quem não se contenta com
esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na
solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das
mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter
(idem, ibidem, p. 527).

Privado mesmo do contato consigo, posto que lhe falta a faculdade do


pensamento, e com seus semelhantes, o indivíduo perde seu contato com a realidade e
se torna incapaz de confirmar sua identidade. Assim, ao invés de se confirmar como ser

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impermutável e inconfundível, o indivíduo é dissolvido em uma massa de autômatos,
ora carrascos, ora vítimas.

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