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Crítica ao militarismo

Alvaro Bianchi

Para existir o militantismo necessita de uma concepção de partido-como-um-exército. No


plano organizativo o militantismo exige o militarismo. A tensão psíquica e física decorrente do
ativismo frenético e irrefletido precisa ser ferreamente controlada e canalizada para os fins
desejados pelo estado-maior. Não basta o convencimento para manter o militantista em
atividade. É preciso subordiná-lo e enquadrá-lo no interior de um dispositivo ameaçador.
A necessidade manifesta-se indiscretamente. O próprio partido assim se reconhece,
confundindo a dimensão metafórica da política com a própria política. Levadas ao paroxismo,
as metáforas atestam a indiscrição. O partido deve “golpear como um exército” e “mover-se
como um homem só”. (No partido-como-um-exército as mulheres são excluídas até mesmo das
metáforas.) Os chefes veem-se a si próprios como generais da política radical e a seus seguidores
como soldados. Um exército precisa de comandantes, mas também precisa de homens
dispostos ao sacrifício.
O que caracteriza um exército é a hierarquia e a disciplina. Sua estrutura implica em uma
divisão espacial e administrativa na qual o poder é distribuído de maneira desigual: comando e
região; divisão, brigada e unidade de combate. Nessa estrutura seus integrantes são classificados
em categorias: generais, coronéis, majores, capitães, tenentes, sargentos, cabos e soldados. A
cadeia de comando é clara e conhecida de todos. Não cabe aos estratos inferiores questionar as
ordens recebidas de seus superiores, apenas executá-las. Os insubordinados não serão
perdoados.
O partido-exército reproduz de maneira particular essa estrutura espacial: comitê central,
comitê executivo, comitês estaduais, regionais e zonais, e finalmente, os núcleos ou células.
Nessa estrutura vertical as relações entre iguais estão proibidas, assim como no exército. Não há
lugar para relações horizontais de nenhum tipo. O contato direto entre os núcleos não é
permitido. Ele só pode ocorrer por intermédio de representação no organismo imediatamente
superior. A mesma lógica vertical é aplicada aos organismos intermediários. Quando a regra é
quebrada, a conspiração é denunciada.
A estrutura hierárquica concentra poder no topo. Não são apenas os recursos de poder
simbólico, como a distribuição de cargos e honrarias, aqueles que convergem para os estratos
superiores. São também, ou principalmente, os recursos econômicos, as finanças partidárias.
Nem um mísero centavo pode ficar nos organismos de base. O poder de redistribuir esses
recursos simbólicos e econômicos para os estratos inferiores é um importante mecanismo de
controle do qual os organismos superiores não podem abrir mão. São esses recursos os que
tornam possível a criação de sofisticados dispositivos de sanções e recompensas.
A disciplina é justificada como uma necessidade da própria guerra. Atacar o inimigo,
derrota-lo e exterminá-lo requer um planejamento centralizado e coordenação precisa. Parte-se
do pressuposto de que o adversário também age dessa maneira. Apenas o alto comando tem
conhecimento pleno dos objetivos e da relação entre os meios e os fins. Aos subordinados só
resta a confiança cega ou o simples medo. Defender os comandantes, custe o que custar e sem
questioná-los é o dever primeiro dos soldados e dos militantes de base. Faz sentido. Apenas os
comandantes sabem exatamente qual o plano de combate. Sem eles a própria luta perde o
sentido.
Para preservar a disciplina da tropa as dúvidas não podem ser aceitas, muito menos os
desvios e, pior ainda, a desobediência. Abaixar as armas e retirar-se é uma deserção. Recusar-se a
combater, mesmo quando se sabe que as ordens recebidas conduzirão à derrota, é um crime
que deve ser punido. Na luta política, assim como na guerra, não haveria lugar para a
espontaneidade, a imaginação ou improviso. Tais atitudes comprometeriam o plano e,
principalmente, desafiariam o poder dos comandantes. Os melhores são aqueles que cumprem
as ordens de maneira mais decidida e enérgica, aqueles que não questionam, mas obedecem.
Para que os objetivos finais sejam atingidos a autonomia dos militantes precisa ser sacrificada no
altar da burocracia.
A disciplina se mantem com uma combinação de coerção e consenso na qual a primeira
prevalece. Ela é internalizada psiquicamente como um dever militante. A suposta “moral
bolchevique” é o dispositivo interior de conformação dos sujeitos. Transformada em
imperativo moral, a política deixa de ser atividade autorreflexiva. Fraquejar favorece o
adversário e desguarnece o companheiro ao lado. Uma moral de caserna se constrói no interior
do partido. Quando esse dispositivo moral falha cabe aos mecanismos coercitivos reestabelecer
a ordem. Os balanços recorrentes, as sanções e os tribunais internos são a última trincheira da
disciplina. Não é necessário sequer que estes mecanismos sejam efetivamente mobilizados.
Basta apenas o terror que eles provocam.

***

Subjacente à concepção de partido-como-um-exército está a concepção da política como


guerra. É do general alemão Carl von Clausewitz a famosa afirmação de que a “guerra não é
nada mais do que a continuação da política com outros meios”. A fórmula já deu lugar a
muitos mal entendidos. Alguns afirmaram que Clausewitz reduzia a guerra à política,
eliminando dela as determinações culturais, econômicas ou de qualquer outro tipo. Outros que
ele havia identificado a política com a guerra transformando a primeira em um conflito cujo
único objetivo é derrotar o inimigo e, em alguns casos, simplesmente aniquilá-lo. Estavam
errados. Não apenas o general evitava tratar a guerra como um fenômeno exclusivamente
político, como nunca identificou a política à guerra. Toda guerra é um ato político, mas nem
toda ação política é uma guerra.
Quando o objetivo da política passa a ser, exclusivamente, derrotar ou aniquilar o inimigo,
ou seja, negá-lo, suprime-se o caráter dialético da política. A única contradição passa a ser
aquela que opõe uma máquina política a outra máquina que ocupa uma posição externa à
primeira. Por essa razão a negação do inimigo pode ocorrer sem que uma mudança na própria
máquina que o negou tenha lugar. Ela deve permanecer sempre na mesma condição, sempre
igual a si própria, vigilante à espreita dos novos inimigos.
O que se perde nessa concepção da política-como-guerra é a dimensão hegemônica da
política. A política não é só coerção e dominação, força e violência; ela é, também, a capacidade
de organizar o consenso e de dirigir, consentimento e persuasão. Quando o objetivo da política
passa a ser unicamente destruir toda oposição e diferença, não há aliados, apenas adversários e
inimigos, os quais são organizados em uma escala de acordo com o perigo que representam. E
como os mais perigosos são os que estão mais perto, frequentemente os únicos que poderiam
ser aliados são convertidos no “principal inimigo do partido”. Uma corrente incapaz de dirigir
seus aliados e imprimir a um bloco político uma orientação que seja percebida por todos os
participantes como uma direção comum está condenada ao isolamento e ao fracasso.

***

Não existem exércitos democráticos. Nunca existiram. Os objetivos democráticos de um


exército não fazem dele uma instituição democrática. Os fins não são idênticos aos meios. Para
ganhar a guerra civil a Rússia dos soviets dissolveu as milícias e organizou um exército regular.
A finalidade desse exército poderia ser a defesa de democracia soviética, muito embora a guerra
civil tenha provocado a própria morte dessa democracia. Mas defender a democracia não
tornava o exército democrático. Nele os generais podiam discordar entre si e discutir
publicamente diferentes estratégias militares. Não há, entretanto, notícias de que os soldados
tivessem o direito de desafiar os generais ou que esse direito pudesse se expressar na frente de
batalha.
Mesmo em seus tempos heroicos, o Exército Vermelho foi uma instituição hierárquica e
disciplinada, baseada em um certo equilíbrio entre coerção e consenso no qual predominava a
coerção. Com o Exército Vermelho nasceu também a lei que condenava à execução inimigos e
desertores. Perante o inimigo a obediência ao comandante é um imperativo. E quando este
mandasse avançar isso deveria ser feito, mesmo quando a morte fosse certa. Não há democracia
real sob o império da lei marcial.
Porque não existem exércitos democráticos não há partidos-como-um exército
democráticos. A concepção de partido-como-um-exército é antidemocrática em sua raiz. Uma
forma política antidemocrática não será nunca capaz de dar lugar a uma prática política
democrática, autônoma e emancipadora. A concepção do partido-como-um-exército é a forma
apropriada para a reprodução do militantismo e da divisão entre o trabalho intelectual e a ação
política, aquela divisão que separando teoria e prática em sujeitos diferentes separa
comandantes de soldados, chefes de militantes de base. Ela produz a heteronomia dos
militantes, subordinando-os de maneira inapelável a forças políticas que eles simplesmente não
são capazes de controlar. O militarismo é, assim, uma forma eficaz para a reprodução da
máquina burocrática; pouco ou nada mais do que isso.

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