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Resumo: O estudo do direito processual deve partir do ordenamento constitucional, pois as pre-
visões constitucionais, hierarquicamente superiores, conferem unidade ao sistema jurídico. É o
direito processual, como instrumento, que deve assegurar o exercício regular das funções do Estado
e conferir efetividade às garantias constitucionais, eleitas democraticamente. Só haverá processo
justo se esse for compreendido através dos ditames constitucionais, através do devido processo
legal. Somente a partir desse princípio fundamental é que se efetivarão os demais princípios cons-
titucionais processuais, tanto no aspecto procedimental como no substancial. A partir de tal enten-
dimento, tem-se que acesso à justiça não significa mera disponibilidade ao cidadão de um instru-
mento processual; mas implica, necessariamente, um procedimento que atenda ao devido processo
legal. Disso se infere que não haverá justiça se não houver respeito às garantias constitucionais
processuais do cidadão em juízo.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Devido processo legal. Garantias constitucionais processuais.
Princípios constitucionais processuais.
Abstract: The study of the processual Law must start from the constitucional order, because the
constitutional predictions, hierarchically superior, award unity to the legal system. It is the proces-
sual Law, as an instrument, that must assure the State’s functions’ regular exercise and award effec-
tiveness to the constitutional warranties, democratically elected. The process will be fair only if it is
included among the constitutional ditames. The acess to the Justice does not mean mere availability
of a processual instrument to the citizen; it implies, necessarily, a procedure that answers to the due
legal process. Only based in this fundamental principle will be put in effect the others processuais
constitutionals principles, as much in the procedural aspects as in the substantial ones. From this it
infers that it will not have justice if there is no respect to the processuais constitutional of citizen
in judgment warranties.
Key Words: Access to the justice. Due legal process. �������������������������������������������
Processuais constitutional warranties. Pro-
cessuais constitutional príncipes.
* Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Especialista em Direito Civil
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Professora de Direito Civil e Estágio II (Processo Civil) da Faculdade de Direito
da Universidade de Passo Fundo.
funcionando como um sistema de freios ceu que “a norma constitucional não tem
perante o sistema infraconstitucional. existência autônoma em face da realidade.
Por tais motivos, o processo, além A sua essência reside na sua vigência, ou
de ser compreendido simplesmente como seja, a situação por ela regulada preten-
instrumento técnico, deve ser entendido de ser concretizada na realidade”. (1991,
através dos valores constitucionais. O pro- p.14)
cesso deve ser estudado segundo um enfo- Foi com a Constituição de 1988 que
que constitucional, associando-se a teoria se marcou o campo do moderno Direito
constitucional à prática processual, pois Processual Civil brasileiro. Nenhuma das
tem como tarefa a busca da justiça e o efe- cartas políticas anteriores havia traduzido
tivo cumprimento das garantias expressas igual preocupação com as garantias das
na Constituição, dentre elas, a garantia do partes na seara civil. Com ela surgiu o cha-
acesso à justiça. mado “direito processual contemporâneo”,
expressão que quer significar a inegável li-
1. A constitucionalização do processo gação existente entre o estudo do processo
civil
e as normas constitucionais com que aque-
A idéia de Constituição originou-se le se relaciona.
como uma forma de organização de uma A vontade da Constituição deve ser
comunidade. Qualquer comunidade polí- honestamente preservada, mesmo que,
tica, qualquer sociedade, tem de ter uma para isso, tenha-se de renunciar a alguns
Constituição para sua organização. As benefícios, ou até a algumas vantagens jus-
primeiras constituições no século XVIII, tas. “Quem se mostra disposto a sacrificar
basicamente em 1787 e 1791, trouxeram a um interesse em favor da preservação de
idéia de poder constituinte, um poder com um princípio constitucional, fortalece o
supremacia hierárquica em relação a todos respeito à Constituição e garante um bem
poderes jurídicos e públicos. Então, a par- da vida indispensável à essência do Esta-
tir da Assembléia e de um estudo sobre o do, mormente ao Estado democrático”.
processo democrático - fruto da expressão (HESSE, 1991, p.22)
da soberania popular - surgiram normas É a Constituição que confere unida-
fundamentais que vinculam tanto o go- de de sentido ao ordenamento jurídico, o
vernante quanto os governados, incluin- qual representa todo um sistema ordena-
do, neste rol, o próprio legislador. Desse do, harmônico e hierarquizado de normas,
processo, resultou um documento formal, princípios e valores que regulam a condu-
fruto do poder constituinte, cujo intento ta jurídica das pessoas enquanto inseridas
foi inserir todas as normas materialmente numa sociedade. É nela que estão as linhas
constitucionais, ou seja, todas as normas gerais para guiar o ordenamento jurídico,
fundamentais à organização do Estado em a atividade estatal e social, no sentido de
sociedade. Assim, ao poder constituinte, promover o bem-estar individual e cole-
atribuiu-se a tarefa de constituir o Estado. tivo dos integrantes da comunidade que
Em decorrência, à Constituição deve soberanamente a estabelece. (GUERRA
ser atribuída força superior, devendo ser FILHO, 2000. p. 16)
interpretada como hierarquicamente supe- Sobre essa superioridade da Consti-
rior a qualquer outra norma e ter uma força tuição perante as demais normas que com-
normativa. Konrad Hesse, ao escrever A põem o ordenamento jurídico como um
força normativa da Constituição, reconhe- todo, Rogério Lauria Tucci e José Rogério
Cruz e Tucci (1989, p. 1) afirmam que re- principialista” (FREITAS, 2004, p. 183).
pousam na Constituição numerosos dispo- Na medida em que a Constituição se trans-
sitivos e institutos de processo civil, pois, forma em força ativa, devem suas tarefas
como lei suprema que é, situa-se no ponto ser efetivamente realizadas e estar presen-
culminante da hierarquia das fontes do di- tes na consciência geral - particularmente,
reito, contendo fundamentos institucionais na consciência dos principais responsáveis
e políticos de toda a legislação ordinária. pela ordem constitucional -, não só a von-
A Constituição estabelece o processo tade de poder (Wille zur Macht), mas tam-
justo, ou seja, estabelece princípios, nor- bém a vontade de Constituição (Wille zur
mas e valores para assegurar a devida so- Verfassung) (HESSE, 1991, p. 19). Cabe
lução jurisdicional de conflitos, para asse- a todos essa tarefa de efetivar a Constitui-
gurar um acesso qualitativo à justiça e uma ção, de orientar a própria conduta segundo
efetiva tutela jurisdicional constitucional. a ordem nela estabelecida, de identificar
A supremacia da Constituição deve ser as- a vontade de concretizar essa ordem e ter
segurada, no entanto, não basta a disposi- consciência da vontade da Constituição.
ção de meios para se ter o acesso à justiça A tarefa do hermeneuta, além de aten-
de forma quantitativa; deve-se assegurar a der às previsões constitucionais e o limite
justiça processual, ou seja, um acesso qua- das meras necessidades de estar em conso-
litativo à justiça, que efetive as garantias nância com as suas previsões, adentra nos
processuais constitucionais, em especial o limites da moral e da ética. Isso porque,
devido processo legal. conforme assevera Moacyr Caram Júnior
A tarefa de efetivar a superioridade (2001, P. 67), os preceitos de ordem cons-
constitucional e de assegurar uma devida titucional trazem em seu bojo não simples
solução jurisdicional, que atenda ao devi- regras de condutas, mas verdadeiros con-
do processo legal, também cabe ao herme- ceitos, dogmas ou posicionamentos axio-
neuta, que, por sua vez, deve valer-se da lógicos. A Constituição é a garantia mais
Lei Maior para interpretar, especialmente efetiva de que os direitos e as liberdades
diante da colisão de um texto legal com um não poderão ser jamais ofendidos1 e de que
princípio. Neste caso, conforme doutrina o processo judicial será instrumento efeti-
Couture, o hermeneuta resolve “por el pre- vo do sistema jurídico, devendo respeitar
dominio del principio, ya que él es la re- as garantias constitucionais.
velación de una posición de carácer gene- O direito constitucional, como já
ral, tomada a lorgo del conjunto constante advertia Enrico Tullio Liebman (1962, p.
de soluciones particulares”. (COUTURE, 149) em 1962, representa o centro da uni-
1979, p. 55) dade jurídica, o tronco comum do qual os
Assim, por ser a Constituição um vários ramos partem, a linfa vitale dos mais
reflexo da sociedade, - eis que todas as variados direitos. O direito constitucional
classes sociais são representadas na sua regula a formação das leis, derivando todas
elaboração - as normas devem ser interpre- as normas. O direito constitucional regula,
tadas de forma a interagir com o normativo em seus aspectos fundamentais, as pesso-
maior. Por outro lado, qualquer inconstitu- as, os grupos sociais e os poderes públicos
cionalidade, formal ou material, “apresen- na sociedade legalmente constituída, de
ta-se como grave e inaceitável violação, forma que o Código de Processo Civil é a
antes de tudo, à sistematicidade da Cons- regulamentação da garantia de justiça con-
tituição em sua característica estrutura tida na Constituição.
justiça vem sempre ligada à de igualdade, “Ogni persona ha diritto a che la sua
“a balança de pratos nivelados”. (1936, p. causa sia esaminata equamente, pubbli-
289) camente ed entro un termine ragionevole
A problemática do acesso à justiça da un tribunale indipendente e imparziale,
não pode ser estudada nos acanhados limi- costituito per legge, il quale deciderà sia
tes do acesso aos órgãos judiciais. O aces- delle controversie sui suoi diritti e doveri
so não se identifica com a mera admissão di carattere civile, sia della fondatezza di
ao processo, ou a possibilidade de ingresso ogni accusa penale che le venga rivolta. La
em juízo (DINAMARCO; CINTRA; GRI- sentenza deve essere resa pubblicamente,
NOVER, 1998, p.33), ou seja, não se trata, ma l’accesso alla sala d’udienza può essere
apenas, de possibilitar o acesso, mas esse vietato alla stampa e al pubblico durante
acesso deve ser qualificado, possibilitando tutto o parte del processo nell’interesse
que os cidadãos se defendam adequada- della morale, dell’ordine pubblico o della
mente. De fato, como afirmam Mauro Ca- sicurezza nazionale in una società demo-
ppelletti e Bryant Garth (1988, p. 10 e ss), cratica, quando lo esigono gli interessi dei
o direito ao acesso efetivo tem sido pro- minori o la protezione della vita privata
gressivamente reconhecido como sendo de delle parti in causa, o nella misura giudi-
importância capital entre os novos direitos cata strettamente necessaria dal tribunale,
individuais e sociais, uma vez que a titula- quando in circostanze speciali la pubblicità
ridade de direitos é destituída de sentido na puó pregiudicare gli interessi della giusti-
ausência de mecanismos para sua efetiva zia”9.
reivindicação. O ‘acesso’ não é apenas um Nessa perspectiva, os Juizados Es-
direito social fundamental, mas, também, peciais são considerados um notável meio
o ponto central da moderna processualísti- de acesso à justiça. Todavia, um acesso
ca, cujo estudo pressupõe um alargamento somente quantitativo, não qualitativo; um
e um aprofundamento dos objetivos e mé- procedimento, do ponto de vista consti-
todos da moderna ciência jurídica. tucional, especial para o cidadão comum,
É o entendimento também de José diferenciado dos demais.
Rogério Cruz e Tucci (1999, p. 9), que, ao A Defensoria Pública também traduz
discorrer sobre as dilações indevidas no um exemplo de efetivação dessa garantia.
processo, afirma não bastar que se assegure Além de propiciar o acesso à justiça por
o acesso aos tribunais e, conseqüentemen- meio da assistência jurídica para quem
te, o direito ao processo; delineia-se ina- comprova insuficiência de recursos para
fastável, também, a absoluta regularidade tanto, também efetiva a garantia de assis-
desse direito ao processo, com a verifica- tência judiciária.
ção efetiva de todas as garantias resguar- De outra banda, como bem observa
dadas ao consumidor da justiça e dentro Bezerra ao discorrer sobre o acesso à jus-
de um tempo justo para a consecução do tiça numa visão sociológica, o processo
escopo que lhe é reservado. tem, sobretudo, função política no Esta-
A Convenção Européia para Prote- do social. Por isso, deve ser organizado,
ção dos Direitos Humanos e Liberdades entendido e aplicado como instrumento
Fundamentais reconhece, em seu art. 6°, de garantia constitucional, assegurando a
parágrafo 1°, que a justiça que não cumpre todos pleno acesso à tutela jurisdicional,
suas funções dentro de um prazo razoável como uma das vias de acesso à justiça que
é, para muitas pessoas, uma justiça inaces- há de se manifestar sempre como atributo
sível: de uma tutela justa.
empírico e adequado a qualquer ato jurídico, dadão” são aqueles que os franceses elevaram
seja demandando uma relação congruente en- ao nível constitucional, previstos na Declaração
tre a medida adotada e o fim que ela pretende dos Direitos do Homem e do Cidadão; os “di-
atingir. Terceiro, como diretriz que exige a rela- reitos fundamentais” são os direitos do homem
ção de equivalência entre duas grandezas”. “O jurídico, institucionalmente garantidos e limita-
postulado da proporcionalidade aplica-se nos dos no espaço e tempo. (2001, p.114)
casos em que exista uma relação de causalidade 9
A Convenção Européia para Proteção dos
entre um meio e um fim concretamente percep- Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais
tível. A exigência de realização de vários fins, conta, atualmente, com a ratificação de 43 pa-
todos constitucionalmente legitimados, implica íses, sendo que a Rússia (05.05.1998), a Geór-
a adoção de medidas adequadas, necessárias e gia (20.05.1999), o Azerbaijan (15.04.2002) e a
proporcionais em sentido estrito” (p.121). Armênia (26.04.2002) foram os últimos quatro
5
Na visão de Maria Rosynete Oliveira Lima, países a apoiarem. Disponível em http://www.
com arrimo em EMILIOU, Nicholas (The dirittiuomo.it/Convenzione/convenzione2.htm.
principle of proporcionality in european law, Acesso em: 21 out. 2003: Toda pessoa tem di-
London, Kluwer Law international, 1996. p. reito que sua causa seja examinada eqüitativa
39), a proporcionalidade diz respeito a uma e publicamente, dentro de um tempo razoável
comparação entre duas variáveis: meio e fim, e de um tribunal independente e imparcial, es-
de acordo com padrões de adequação, necessi- tabelecido por lei, o qual decidirá, quer sobre
dade e proporcionalidade strictu sensu, os quais a determinação dos seus direitos e obrigações
proporcionam uma avaliação objetiva entre as de caráter civil, quer sobre o fundamento de
ferramentas utilizadas e os fins perseguidos qualquer acusação em matéria penal dirigida
pelo ato. Enquanto a proporcionalidade traba- contra ela. O julgamento deve ser público, mas
lha com componentes objetivos, na razoabilida-
o acesso à sala de audiência pode ser proibido
de as variáveis são subjetivas, englobam todas
à imprensa ou ao público durante a totalidade
as circunstâncias do caso. A razoabilidade não
ou parte do processo no interesse da moral, da
tem como requisito uma relação entre dois ou
ordem pública ou da segurança nacional numa
mais elementos, mas representa um padrão de
sociedade democrática, quando assim exigem
avaliação geral. (1999, p. 282).
os interesses dos menores ou a proteção da vida
6
A evolução histórica apresentada a seguir tem
privada das partes no processo, ou na medida
por base, entre outras, a doutrina de Paulo Ce-
julgada estritamente necessária pelo tribunal,
zar Pinheiro Carneiro (2000) e a doutrina de
quando em circunstâncias especiais a publici-
José Carlos Moreita Alves (1999).
7
O autor ainda refere que o Código de Hamu- dade pudesse ser prejudicial para os interesses
rabi continha o texto: “Em minha sabedoria eu da justiça. (Tradução nossa).
os refiro para que o forte não oprima o fraco e
10
V. CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO,
para que seja feita justiça à viúva e ao órfão. Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 17.
Que cada homem oprimido compareça diante ed. São Paulo: RT, 1998.
de mim, como rei que sou da justiça. Deixai ler
11
V. RIO GRANDE DO SUL. Extinto Tribunal
a inscrição do meu monumento. Deixai-o aten- de Alçada do Rio Grande do Sul. Processo nº
tar nas minhas ponderadas palavras. E possa o 190021428 de 19/04/90, Processo nº 190009365
meu monumento iluminá-lo quanto à causa que de 19/04/90, Processo nº 1900033118 de
traz e possa ele compreender o seu caso”. 10/04/90.
8
Na concepção de Bezerra, os “direitos natu-
12
Para Bezerra, o acesso à justiça pode ser ana-
rais”, como o nome indica, são inerentes ao in- lisado em diversos aspectos, em várias pers-
divíduo e anteriores a qualquer contrato social, pectivas: “De fato, o estudo do acesso à justiça
conferidos pela própria natureza do homem; os terá conotações diferenciadas, conforme seja
“direitos do homem” atendem ao caráter uni- feito por um leigo, um jurista dogmático, um
versal dos direitos naturais, válidos para todos sociólogo, um filósofo ou um político”. (2001,
os povos e em todos os tempos; “direitos do ci- p.124)