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“DE SAPO A PRÍNCIPE”

TRABALHANDO AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM


CARMEN SILVIA CARVALHO

Há muitos anos atuo como psicopedagoga e como assessora da


área de Português em escolas da rede pública e particular. Como
assessora, posso, ao estar ao lado dos professores, acompanhar a
angústia que as crianças que têm comportamentos inadequados, ritmo
mais lento de trabalho e dificuldade para aprender geram nos
professores e o quanto é difícil saber o que fazer e como lidar com
elas em sala de aula.
Ao mesmo tempo, meu trabalho como psicopedagoga me
permite entrar na alma dessas crianças e desses adolescentes e
compreender o que se passa dentro deles, acompanhar suas
angústias e compreender como sentem o modo como nós, os adultos,
ensinamos e lidamos com eles. A conclusão que tirei a partir desses
anos de trabalho nesses dois campos é a de que os dois se desejam:
os professores querem muito “dar conta” dessas crianças e
adolescentes, e eles, querem muito ser bem sucedidos. No entanto,
nem sempre um sabe como atingir o outro. Quantas vezes as crianças
e jovens pedem ajuda de formas inadequadas e, quantas vezes, vejo
educadores escolherem caminhos de ajuda que não os levam ao fim
que desejam! Por essa razão, ao escrever esse texto, meu desejo é
poder construir uma ponte, estabelecer um diálogo entre o educador e
seus aprendizes.
A escolha desse título - De Sapo a Príncipe – retirada da idéia
dos Contos de Fadas, justifica-se porque, na verdade, o desejo de

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todo educador é que essas crianças que estão “encantadas” tornem-
se “príncipes”, superem suas dificuldades e que nós possamos ter o
prazer de vê-las crescendo felizes e aprendendo muito. Neste
momento, em que a educação está voltada para a importância da
inclusão, essa discussão torna-se ainda mais relevante. Nem sempre,
porém, sabemos como incluí-los.

Quem são os alunos “sapos”?

Para começar é preciso explicitar o que estou chamando de


alunos “sapos”. Eu os organizei em três grandes grupos.
No primeiro estão os alunos que têm atitudes que incomodam
o educador, não necessariamente problemas de aprendizagem –
alguns até aprendem e tiram nota - mas sua postura é difícil de
administrar. Às vezes porque são alunos dispersivos (são os
“viajantes”: o corpo está na classe, mas a cabeça sabe lá Deus por
onde anda). Estes, ficam quietos, mas, sua dispersão, impede a troca
necessária à aprendizagem, e nos deixam de mãos atadas. Outros
nos incomodam por não entregarem as tarefas: estão sempre
devendo, nunca acompanham o pedido dos professores, perdem as
coisas, nunca estão com o material, o lápis e a borracha desaparecem
e isso gera dispersão.
Há os que dificultam a dinâmica por terem uma relação de
dependência muito grande, não conseguem fazer nada sem
perguntar: é assim? É desse jeito? É isso que você queria? E esta
repetitiva de estar sempre solicitando a confirmação do professor...

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Imagine como coordenar o atendimento a tantos se não houver
alguma independência?
Outros nos incomodam porque não estão preocupados em fazer
a tarefa, copiam dos amigos, estão ali sempre procurando o outro.
Esta atitude não só os impede de aprender, como também gera no
educador uma sensação de estar sendo enganado. Muitos
professores lêem essa atitude de copiar em uma perspectiva moral,
como se o aluno estivesse querendo enganá-lo, fazê-lo de bobo, e
isso desperta nele um sentimento difícil de ser vivido, às vezes até de
raiva. Há também os que são agitados. São os alunos bagunceiros,
estão sempre criando um clima de confusão dentro da sala. São
muitas vezes até engraçados, afetivos, mas o professor tem que
cuidar dessa agitação, como é que vai dar a aula!
Outros nos incomodam porque são agressivos, parece que
estão sempre se defendendo, qualquer coisa que o professor faça ou
fale, eles têm sempre uma resposta ou uma atitude negativa. Há os
que são agressivos para com o professor, outros o são para com os
colegas. São rudes ao falar e às vezes batem. Em geral essas
crianças e jovens são os mais difíceis de lidar dentro da sala de aula,
além de, freqüentemente, gerarem um sentimento de rejeição no
professor e na maior parte dos colegas. Há também alunos que são
grosseiros para lidar com os colegas ou com o professor... Não é
bem uma agressividade, mas é uma grosseria, uma falta de
sensibilidade, de respeito no trato com os outros, e isso acaba
incomodando na dinâmica da sala de aula.
Alguns incomodam porque querem ser o centro das atenções:
parece que estão o tempo inteiro fazendo alguma coisa para chamar a

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atenção da classe para eles e o professor acaba perdendo o grupo,
porque ele é o centro e não aquilo que está sendo trabalhado.
Há também os que quebram coisas, rasgam, entregam os
trabalhos sujos e amassados. Essas atitudes costumam ser sentidas
pelos professores como pouco caso para com a tarefa, para com
aquilo que estão ensinando. É como se a agressão para com o
material fosse uma agressão a eles.
Há outros que nos incomodam porque são mentirosos; o
professor sabe que eles não assumem as coisas que fazem e essa
sensação que a mentira gera - de estar sendo enganado - é algo que
mexe profundamente com o adulto. Há também os que somem com
coisas, com coisas dos colegas, lápis, borracha, lanche...e criam com
isso situações difíceis dentro da sala de aula.
Há ainda os preguiçosos. São displicentes, nunca se
interessam, não querem fazer nada, e o professor preparou tanto, fez
tantas atividades, empenhou-se e aquela displicência, aquele pouco
caso, faz com que o educador sinta como uma troca desigual: ele
oferece o seu melhor para os alunos e recebe o desinteresse em
troca. São coisas difíceis de lidar.
Tem alunos que nos incomodam porque criam mal estar com
perguntas, com colocações indevidas: eles falam com os colegas,
fazem um comentário que cria um “clima“ dentro da sala de aula.
No segundo grupo temos alunos que podem não ter atitudes ou
problemas de disciplina, mas que também nos incomodam porque
erram demais e o professor está lá, empenhado, tentando ensinar,
falando, explicando, dizendo de outro modo, mas parece que não
aprendem, que erram sempre e o professor não sabe o que fazer para

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transformar aquele erro. Esses alunos geram, muitas vezes, um
sentimento de impotência no educador.
Há alguns cuja letra é ilegível: não se consegue ler o que eles
escrevem e isso nos dá a sensação de pouco caso, de que eles fazem
de qualquer jeito...
Há alunos que não querem escrever: escrevem apenas o
mínimo, são monossilábicos. O professor faz uma pergunta e a
reposta é sim, não, talvez. O educador empenhou-se, pesquisou, pede
ao aluno que registre e esse registro vem sempre aquém do esperado.
Isso gera uma sensação de frustração muito grande!
Outros ainda, incomodam porque respondem qualquer coisa:
parece que nem pararam para pensar. E isso é como se fosse uma
negação daquilo que o educador está oferecendo, quer dizer, o
professor preparou a sua melhor aula, está ensinando o melhor do que
sabe, e o aluno responde de qualquer jeito: é como se ele estivesse
negando todo aquele empenho do professor.
Alguns alunos incomodam porque eles nunca entendem o que
professor explica: eu não entendi e você já explicou e eu ainda não
entendi! Chega uma hora em que o professor já não sabe o que fazer:
já explicou de todas as formas que sabia e a repetição daquele não
entendi, não entendi, acaba afligindo.
Há os que deixam quase tudo em branco. Fazem tudo pela
metade, tudo aos pedaços e também é difícil lidar com eles.
Tem os que rasgam tudo ou rabiscam os trabalhos. Entregam
o caderno e está tudo amassado, tudo sujo, ele rabisca, é de uma
aparência feia aquilo que ele traz, gerando uma sensação de pouco
caso.

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Há um terceiro grupo que incomoda por terem ritmo diferente.
São lentos demais, estão sempre atrasados para fazer as tarefas,
copiar da lousa, terminar a lição. Acabam deixando as atividades
incompletas, porque o professor precisa seguir o ritmo da classe e não
pode parar todos para esperar aquele mais lento.
Pelo menos alguns alunos com algumas dessas características
eu acredito que cada professor tenha hoje ou já tenha tido dentro da
sua sala de aula. Com freqüência há alunos que apresentam duas ou
mais dessas características ao mesmo tempo.
Esses alunos, esses sapinhos que estão aí, instalados nas salas
de aula, são muito difíceis de lidar, principalmente pelos sentimentos
que mobilizam no professor. Se vocês pararem para observar a sala
dos professores na hora do intervalo, verão de quem mais se fala. É
dos sapos. Os educadores acabam falando tanto deles porque, como
querem transformar essas atitudes, querem transformar essa situação
e não conseguem, o sentimento que se instala é o de incompetência,
de eu não sei o que eu faço, de irritação muitas vezes...E o professor
fala com o outro para ver se alguém dá uma luz, descobre algo que
transforme essa realidade.
Para podermos pensar, porém, o que fazer com essas crianças
em sala de aula é preciso primeiro compreender porque eles agem
dessa forma.

O que mobiliza essas crianças e adolescentes


a agir assim?

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Quando um aluno lida com a aprendizagem dessa forma,
quando age dessas maneiras, vocês já pararam para pensar o que ele
conquista, o que ganha? Pense antes de continuar sua leitura.

Na verdade ele só consegue conquistar coisas difíceis de serem


vividas: conquista atenção (mas é uma atenção negativa, não de
admiração ou respeito, como a que as pessoas desejam), ele ouve
repreensão, muitas vezes é rejeitado pelo grupo, sente-se inseguro do
amor do outro, tira nota baixa, é censurado em casa, leva castigo dos
pais, leva castigo na escola, marca vermelha, suspensão, enfim, uma
que age dessas maneiras só atrai para si coisas negativas. São todas
difíceis, coisas ruins para eles próprios. Por quê então? Por que agem
assim se isso não é bom, quer dizer, por que alguém iria querer atrair
para si todas essas reações das pessoas que a cercam, dos adultos,
se não são coisas gostosas de serem vividas? Essa que é a pergunta
que sempre me fazia.
Tenho 26 anos de atendimento psicopedagógico. Nesses anos
todos o que pude observar é que, apesar de serem atitudes tão
variadas, na verdade são manifestações diferentes de duas grandes
razões interligadas: o medo de errar e o sentimento de autoimagem
negativa. São vários os fatores que geram os dois, mas,
independentemente das razões, esses alunos acabam achando que
são maus, incompetentes como pessoas e como alunos e suas
atitudes estão nuclearmente ligadas à questão da autoimagem e do
medo de errar.

O medo de errar

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Em nossa sociedade o erro é visto como algo muito negativo,
como a ausência de um conhecimento ou de uma competência e, por
isso, quando ocorre gera um sentimento de menos valia: “Olha, você
pensou que fosse capaz disso, mas se errou é porque você não é tão
competente como pensava, não é capaz do que imaginava ser”. O
erro vem com um peso muito grande de negação, acompanhado de
sentimento de frustração, de incompetência. E é dessa forma que o
aprendiz sente cada vez que é corrigido, e a constância do errar vai
produzindo essa autoimagem cada vez mais rebaixada. Fica muito
difícil para o aluno viver essa sensação constante de não dou conta,
não dou conta, não dou conta... Ele passa a achar que não dá conta
mesmo. E quando ele começa a se enxergar assim, já entra nas
situações de aprendizagem como um perdedor.
Aprender é entrar no desconhecido. Só se aprende o que ainda
não se sabe. Toda situação de aprendizagem implica, portanto,
defrontar-se com o novo, com aquilo que ainda se vai desvendar.
Nessa medida, entrar no desconhecido significa abrir a perspectiva de
errar, exatamente porque é desconhecido, porque ainda não se sabe
antecipar, porque ainda não se tem clareza do que está por trás
daquela porta, ainda não se passou por ela. Portanto, aprender
significa necessariamente ter que lidar com a perspectiva de errar. E
se não se pode errar, como se pode aprender? Se ao errar há um
sentimento de incompetência, então não há como passar por esta
porta. E se, ao se tentar passar - porque aprender é inevitável,
aprender é o próprio movimento da vida - há um erro e, junto com ele,
o sentimento de incompetência, há também um sofrimento: a

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experiência de estar sempre errando leva à idéia de que não se é
bom, de que não se é capaz.
Quando a criança vai desenvolvendo esse sentimento de
autoestima rebaixada, aparece também uma angústia muito grande
que a faz lidar de diferentes maneiras com ele, dependendo do seu
temperamento, do nível de rebaixamento dessa autoestima, que são
as manifestações que citei acima e que os professores convivem
dentro da sala de aula.

Como funciona esse mecanismo?

A situação da aprendizagem é complexa e o processo do


aprender passa por algumas etapas.
Todas as pessoas vivem um estágio meio complicado no seu
processo de aprendizagem. Ele é como a montagem de um quebra-
cabeça: começa-se observando suas peças, embora não se tenha
ainda idéia de como elas se encaixam. Gradativamente vai-se
conseguindo perceber os encaixes até se conseguir formar todo o
quebra-cabeça. Esse tempo de descoberta - de como as peças se
encaixam - é um tempo de muita incerteza interna: ora há a sensação
de entendimento, ora a de não entendimento, de que ainda faltam
coisas para serem entendidas, e isso é desconfortante.
O professor ao começar a explicar um novo conceito, por
exemplo, introduz dados, informações, como se fossem as peças do
quebra-cabeça. Ocorre que o aluno que já estava achando que não ia
dar conta porque pensa que não entende nada, porque se sente burro,
ao entrar neste processo de aprendizagem sente-se mais inseguro

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que os demais. Neste primeiro momento ninguém ainda está entendo
direito, mas ele pensa que apenas ele não está compreendendo e
vive essa situação como uma confirmação de seus medos. Esse
sentimento gera angústia e ele deixa de olhar para fora, de prestar
atenção na aula e começa a focar dentro de si, iniciando um
monólogo: “Está vendo como você não entende nada, não adianta
você prestar atenção, você é burro”. Esse primeiro momento é de
dispersão. Ele vai para outro mundo, tentando fugir daquela sensação
desagradável.
O professor continua a desenvolver a aula e as peças do quebra-
cabeça estão começando a se encaixar para o restante da classe,
mas não para aquele aluno que esteve “viajando”. O professor, ao
perceber sua dispersão procura chamá-lo, atraí-lo para a aula com um
comentário, uma pergunta, e ele volta a focar na aula. Mas, como
esteve ausente, perdeu o fio do raciocínio, não compreende o que é
explicado. Nessa hora ele observa que os outros estão entendendo,
só ele que não. Sua angústia piora e começa um segundo momento,
que é físico. O professor está explicando e ele começa a bater o lápis
na carteira, olha para o lado, provoca o outro, deixa cair algo no chão,
anda pela sala... é uma agitação física constante. Muitas crianças
neste estágio são diagnosticadas como TDAH. Como ele sempre se
agita, o professor já sabe que isso vai acontecer e chama sua
atenção. Ele pára e volta a ficar atento. Mas agora já não consegue
entender mesmo e não agüenta a confirmação da própria
incompetência.
Isso gera um nível de angústia tão alto que fica difícil suportar,
gerando um terceiro momento: é como se um ruído estivesse em seu

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ouvido, e ele precisasse cessá-lo. Ele precisa emudecer o professor,
fazê-lo parar de explicar. Como vai fazer isso? Provoca o colega ao
lado, chamando-o por um apelido que ele sabe que vai provocar
reação; joga uma bolinha de papel na cabeça da colega; pega o lápis
do colega ao lado sem pedir licença; puxa o caderno do outro para
fazer um rabisco; coloca, “sem querer”, o pé na frente daquele que
está passando, fazendo-o cair e gera aquele caos dentro da sala de
aula... O professor tem que parar de dar aula para organizar o caos.
Esse aluno emudeceu ou não o professor? Com certeza emudeceu. E
como o professor reage? Para a aula, dá o maior sermão nesse aluno,
dizendo o quanto ele desrespeita os colegas, a sala de aula, faz
anotações, manda para fora, para o orientador, ou seja, confirma que
ele é mesmo tudo aquilo que pensa de si.
As nossas atitudes nesse momento confirmam tudo que está lá,
dentro dele. Como há uma confirmação, cada vez a convicção de que
ele é “ruim” é maior. Como a convicção é maior, o tempo de
suportabilidade da angústia diminui. Este ciclo é cada vez mais rápido
e ele se torna aquela criança que de um ano para o outro vai ficando
mais indisciplinada, mais agressiva, parece que não transforma e, se
transforma, é para pior, vai ficando cada vez mais intenso. O aluno
dispersivo em um ano, torna-se o agitado no ano seguinte, o
bagunceiro no outro ano, o agressivo depois, o que evade da escola
mais adiante. Há alunos que percorrem os três momentos várias
vezes por dia, enlouquecendo os professores.
Como eles nos incomodam, produzem a rejeição. E o
mecanismo é muito complicado: como se sentem “porcaria”, acham
que não merecem coisas boas, porque coisas boas são para pessoas

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legais, quem não é bom não merece receber coisas boas. Desejam o
amor, mas provocam o afastamento. E nós, sem percebermos,
lidamos com suas atitudes confirmando o que pensam sobre si
mesmos, confirmando a rejeição que já fazem de si. Têm atitudes que
afastam os outros deles, e nós temos atitudes que os afastam de nós.
Outra forma que as crianças usam com muita freqüência para
lidar com esse medo de errar e com a autoestima rebaixada é
“controlar as variáveis”. Como esse outro grupo de alunos atua? Se
o aluno está com a autoestima muito rebaixada e não acredita que
aquilo que pensa é bom, começa a duvidar do próprio pensamento.
Imaginemos uma atividade dada em classe, por exemplo, na qual
devem ser respondidas 10 questões. Ele lê a primeira, pensa, pensa,
e apaga, apaga. As crianças desse grupo são exímios apagadores. Às
vezes erram a última palavra da linha e apagam a linha toda. Olham
muito para o lado, estão sempre controlando o que acontece ao seu
redor. Quando percebem que o amigo já está na quarta pergunta e ela
ainda está terminando a primeira, a angústia aumenta. Na medida em
que duvidam mais de que conseguirão, apagam mais, controlam mais,
retomam mais vezes o que já fizeram. Quando ainda estão
escrevendo a terceira questão, alguns começam a entregar a tarefa.
Nesse momento desistem e entregam o trabalho incompleto.
Esses são os alunos lentos, aqueles que os professores ficam
desesperados porque seu tempo é diferente dos demais, quer dizer,
necessitam de um tempo que nem sempre o professor pode dar. Essa
incompletude da tarefa gera uma angústia muito grande no educador.
E, ao ler o trabalho, o professor escreve: “Esforce-se mais”. Como
psicopedagoga, se pudesse riscava essa expressão do vocabulário de

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todos os professores, porque ela significa “se você se esforçar,
necessariamente terá um bom produto... se você não tem um bom
produto é porque não se esforçou o suficiente”. Quem disse que isso é
verdade? Quem disse que todas as vezes em que há esforço, a
pessoa consegue aquilo que deseja? Isso não é verdade. A medida do
esforço não é a medida do sucesso! Não que, para se ter um bom
produto, não tenha que haver empenho e esforço, mas essa condição
é necessária, mas não suficiente. Explico.
Um exemplo pessoal: na minha juventude, como todos os
adolescentes daquela época, queria aprender a tocar violão. Acontece
que não tenho ritmo algum, desafino até para tocar a campainha das
casas! Minha vizinha dava aula de violão e comecei a ter aulas com
ela. Como queria muito tocar bem, treinava muito, todos os dias.
Quando achei que já estava tocando muito bem, resolvi fazer uma
surpresa para os meus pais e convoquei a família para um recital:
ninguém reconheceu a música de tão fora de ritmo... foi o maior
fracasso que vocês puderem imaginar!
Em compensação, eu tinha um primo que nunca havia tido uma
aula de violão, tirava as músicas de ouvido e tocava
maravilhosamente. Hoje em dia ele é maestro. Quem se esforçava
mais, eu ou o meu primo? Ele não precisava treinar para tocar uma
música bonita: era um dom. Ele tocava! Simplesmente ele tocava...
Não dava para comparar o meu produto com o do meu primo. Nem o
esforço: o meu esforço era muito maior do que o dele.
Quando um aluno se esforça muito para fazer algo e o produto
não corresponde à expectativa do outro e esse outro ainda lhe diz “se
esforce mais”, a sensação é terrível: “Eu dei o melhor de mim. Se foi

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pouco, eu não tenho mais para dar...” e o desejo é de abandono da
tarefa, como fiz com o pinho. Se este tipo de aluno deixa uma
atividade incompleta não é porque não houve esforço, ele deu a alma.
O que lhe faltou foi crença em si, foi acreditar em sua capacidade. O
professor nunca vai conseguir entrar na alma de uma criança para
saber o grau de esforço que fez para chegar àquele produto. Por isso,
nunca deveriam escrever “se esforce mais” porque corre o risco de
estar dizendo: ”olha, o que você tem para me oferecer é menos do que
desejo”.
Outro modo de manifestar essa autoestima rebaixada é
esconder o que pensa e sabe. Nesse caso, a criança pensa: “Se eu
sou ruim, se aquilo que eu tenho para dizer não é bom, não quero que
você descubra. Eu escondo de você o que está dentro de mim”. E
como escondem? Eles têm algumas atitudes: alguns são
monossilábicos na oralidade, na escrita ou nos dois: “eu digo o
mínimo, para revelar o mínimo. Assim você não descobre as coisas
que quero manter escondidas, porque acho que não são boas,
interessantes ou inteligentes”. Ninguém gosta de mostrar aquilo que
pensa que não dá conta. Isso é humano. Gostamos de mostrar para o
outro aquilo que acreditamos que fazemos bem. Então, se o aluno
acha que o que tem para dizer não é bom, ele não diz. Escreve muito
pouco ou então obedece desobedecendo, que é outra atitude que ele
assume.
Como se obedece, desobedecendo? O professor quer que
escreva, ele escreve, só que escreve de uma maneira que não seja
lido (a letra é um garrancho ilegível, ou pequena demais). O professor
quer que faça a lição, ele faz, só que não aprende porque faz de

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qualquer jeito. Obedece, desobedecendo, que é outra forma de lidar
com seu desejo de se esconder.
Existem ainda outras formas. Uma delas, por exemplo, é o aluno
desistir antes de tentar. Isso é bastante comum. E nós, adultos,
fazemos isso também. Quando estamos com muito medo de não
conseguir algo, arrumamos uma desculpa para que aquilo não
aconteça. Desistimos antes de tentar.
Para exemplificar vou contar uma situação vivida com uma aluna
minha e que ilustra bem essa forma das crianças lidarem com o medo
de não conseguir fazer algo. Trabalhava com a Bia. A Bia era uma
menina de nove anos de idade que, por uma série de razões, tinha
desistido de aprender e não queria mexer com nada que tivesse algo a
ver com inteligência, só queria fazer coisas de crianças de três anos.
Nós já trabalhávamos há algum tempo e a situação era complicada.
Ela era muito inteligente, só que tinha plena certeza da sua
incompetência. Um dia aceitou jogar pega-varetas. Pega-varetas é um
jogo cheio de estratégias e que permite um excelente trabalho de
matemática, mas a Bia não queria jogar assim, ela queria jogar como
crianças pequenininhas jogam. Soltamos as varetas, eu tirei, ela tirou,
eu tirei, ela tirou. Tirei muitas varetas e então vi a Bia olhar para as
minhas varetas e desmontar o jogo. Não falei nada, soltamos as
varetas novamente e eu, intencionalmente, joguei muito bem, para
ganhar dela. Ela olhou e desmontou o jogo. Minha hipótese estava
confirmada. Ainda em silencio soltamos novamente as varetas.
Enquanto ela jogava falei:
- Bia, você reparou que a gente não consegue jogar nenhuma
partida até o fim? O que será que está acontecendo? Você sabe?

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Ela virou os olhinhos para cima e, na maior simplicidade,
respondeu que não sabia. Disse-lhe, então:
- Eu estou aqui pensando se o que está acontecendo não é o
seguinte: você olha, vê que tenho muitas varetas, fica duvidando que
possa ganhar de mim, desmonta o jogo e ninguém fica sabendo quem
ganhou e quem perdeu. Você acha que isso pode ter sentido?
- É, quem sabe...
- Então quero deixar uma coisa bem clara – disse-lhe - quem
duvida que você possa ganhar de mim no pega-varetas é você,
porque eu não tenho a menor dúvida de que você é capaz! Sei que
você é capaz de jogar de igual para igual comigo... Aliás, te desafio a
jogar uma partida até o final. Você acha que você agüenta esse
desafio?
Ela pensou um pouco e respondeu:
- Está bem, vamos lá.
Continuamos a jogar, ela ganhou e ficou muito feliz por
conseguir ganhar. Jogamos outra partida, ela ganhou novamente.
Jogamos uma terceira partida, eu ganhei. Ela agüentou perder porque,
logo da primeira vez que ia desmontar falei: “Bia, até o fim!!!” E ela se
segurou e agüentou perder sem desmontar o jogo. Quando jogávamos
a quarta partida, falei para ela:
- Bia, eu estava aqui pensando se isso que aconteceu no
pega-varetas não acontece com outras coisas na sua vida, assim,
coisas que você tem tanta certeza que não vai dar conta que
“desmonta antes de tentar”!
Ela era muito engraçada, pôs a mão na cintura e falou:

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- Quem foi que contou para você que rasgo a lição de casa
quando não sei fazer?
Ninguém tinha contado. Não sabia que ela fazia isso. Seu
pensamento era o seguinte: “Estou tão cansada de fracassar, tenho
tanta certeza de que vou fracassar novamente, que é melhor destruir a
situação do que viver o fracasso. Assim não vou saber se dava conta
ou não daquela lição.” Ela faz a mesma coisa que fez com o pega-
varetas!
São aquelas crianças que repetidamente, por exemplo, não
fazem a lição e estão sempre justificando que foi a mãe que derrubou
molho de tomate, o cachorro pegou a folha, o irmãozinho... Está claro
que o que estão contando não é verdade e o professor escuta todas
essas desculpas como uma mentira do ponto de vista moral. Essa
criança é mentirosa, ela pensa que me engana?, pensam. E fica muito
bravo, porque o sentimento é de julgamento moral daquela mentira.
Gostaria que compreendessem que essas crianças agem dessa forma
somente porque não agüentam mais fracassar. Falar a verdade é
correr o risco de perder o pouco de sentimento de que ela tem valor
para o professor.
Outra forma comum de se lidar com a autoestima rebaixada,
com esse medo de errar, é não entrar em contato verdadeiro com
os objetos de conhecimento. Nesses casos, os alunos estão sempre
na superfície. Uma delas é estarem com os pensamentos em outro
lugar: Eu estou aqui, mas a minha cabeça não. Como eu estou em
outro lugar, eu não vivo a angústia de não estar entendendo.
Outros brincam. Geralmente esses alunos são muito simpáticos,
amigos de todos, mas estão sempre fazendo “gracinha”. Não são

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agressivos nem indisciplinados, mas estão sempre fazendo uma
piadinha, um comentário aqui, uma coisinha ali, e nunca estão de
verdade com a alma na situação.
Há ainda outras formas de manifestação, mas a maioria dos
sapos já está incluída aqui, nesses modos de se lidar com seu
sentimento de incompetência, com seu medo de errar. Podemos ver
que, apesar de tão diferentes, todas têm a mesma raiz, a
autoimagem rebaixada.
Cabe agora uma pergunta: Por que as crianças ficam com essa
autoestima tão rebaixada? Quais são as causas mais freqüentes para
isso acontecer?

O que gera autoestima rebaixada?

Quando a criança nasce não tem noção de quem é. Vai construir


sua autoimagem a partir das trocas que fizer com seu meio, com as
pessoas e experiências de sua vida. Antes de saber quem é, vai
imaginar ser quem as pessoas com quem convive disserem que é, em
palavras e atitudes. Nessa medida, a família e a escola são dois
espaços de convívio de extrema importância na constituição dessa
identidade.
Nessa medida, muitas formas de interação na família contribuem
para essa visão da criança de si mesma. Pais muito punitivos, por
exemplo, geram autoestima rebaixada. A criança ainda não conhece o
mundo e suas regras. Ser curiosa é da natureza da criança nessa
busca de conhecer o mundo. A vida da criança pequena é um
aprender a cada segundo! Se quando tenta fazer alguma coisa é

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punida por não ter agido como esperavam, passa a ter medo de agir,
acredita que nunca faz nada “certo”, que está sempre decepcionando
seus pais. Esse medo de errar leva-a a parar de arriscar. E se não se
pode errar, não pode aprender. No entanto, desobedeceu sem se dar
conta disso. E porque se acreditam más e incompetentes,
desenvolvem essas atitudes reativas. É importante observar que essa
punição pode ser física ou verbal. Quando é física, é mais evidente.
Mas há pais que passam mensagens de menos valia para seus filhos
no modo como falam com eles: Só podia ser você! Você não
consegue fazer nada de bom? Vá para o quarto pensar, você está de
castigo.
Na escola é semelhante. A criança está aprendendo a escrever e
erra, isto gera punição: risco vermelho, perde pontos, notas baixas.
Escreve o que realmente pensa e compreende e é punida. Ela escreve
uma palavra com 10 letras. Escolhe 9 letras com acerto e 1 errada. Os
9 acertos não anulam 1 erro, mas 1 erro anula os 9 acertos e ela
pensa que não sabe nada.
O inverso também é verdadeiro. Às vezes o pai e a mãe
superprotegem os filhos. A superproteção é diferente da proteção,
porque proteger é bom, superproteger é que não é. Para deixar claro o
que estou dizendo vou comparar abandonar, proteger e superproteger.
Abandonar é cobrar um resultado do outro sem ter ensinado, sem
que ele esteja preparado para atingir. Quantas vezes pais e
professores cobram das crianças e jovens que saibam lidar com suas
emoções, que não batam, não sejam agressivos, mas nunca
ensinaram seus filhos a conhecer-se, a reconhecer quando sentem
raiva, por exemplo, e a saber como podem lidar com ela de uma forma

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adequada. Aí a criança sente raiva, bate no outro e os adultos a
punem porque foi agressiva. Mas quando a ensinaram como
reconhecer e lidar com sua raiva, sem ser engoli-la?
Proteger é instrumentalizar. Proteger é ajudar a criança a
analisar uma situação, a pensar possibilidades de lidar com ela, a
acreditar que vai conseguir. Ao proteger o adulto ajuda a pensar
critérios de escolha, mas não escolhe por ela. Ajuda-a a compreender
as consequências de sua escolha, mas não escolhe por ela. Ajuda-a a
aguentar essas consequências, mas não as pega para si. Agindo
assim ela é preparada para saber escolher, agir, e se vê forte para
viver as consequências de suas ações. Proteger é o melhor lugar para
estarmos ao lado de nossos filhos e alunos.
Superproteger é fazer pelo outro. A superproteção acontece
quando os pais têm tanto medo do sofrimento do filho, que se
antecipam e fazem tudo por ele. Pensam por ele, escolhem por ele,
pegam as conseqüências para si. O filho não ouve “não” nunca,
porque não pode ser contrariado. Ele é o centro da casa, a comida, o
restaurante, o programa, tudo é o que ele quer. Ele esqueceu de
entregar o bilhete da escola dizendo que tinha que comprar um livro?
Os pais saem correndo comprar e levam na escola para não ser
punido. Ele chora porque deseja algo que os pais acham que não
deve ser dado, os adultos cedem para que não sofra. Ele quer subir na
escada não pode porque vai cair e machucar. Toda angústia é tirada
de sua frente para que não sofra. Outro dia ouvi um psiquiatra falando
sobre isso e nomeando o que chamo de superproteção como
Síndrome do Reizinho. É exatamente isso. A criança superprotegida
pensa que é o rei da casa, que o mundo vive para satisfazê-la.

20
Crescem adolescentes autocentrados, sem percepção do outro,
incapazes de lidar com a angústia, com o comprometimento, com a
generosidade. São os mais vulneráveis às drogas, à depressão, ao
alcoolismo. Escondem sua fragilidade atrás da arrogância, da
violência, da culpabilização do outro para seus fracassos. Com
frequência não conseguem construir projetos de vida. Superproteger é
o pior que os pais podem fazer por seus filhos e, infelizmente, hoje é
uma epidemia. A violência da sociedade, a má compreensão do que é
proteção e vários outros fatores levam os pais a superprotegerem
seus filhos, sem perceber as consequências de seus atos.
E como essa é uma forma intensa de amor, é muito difícil para
esses pais perceberem que, quando pensam e agem pelos filhos,
passam junto uma mensagem de não acredito que você seja capaz de
decidir, não aceito que o modo como você faz seja suficientemente
bom, não acho que você é tão forte que consiga agüentar as
conseqüências de suas escolhas.
Essas atitudes acabam gerando uma insegurança enorme na
criança ou no jovem, uma dependência muito grande do adulto e uma
autoestima muito rebaixada. Os pais elogiam os filhos, dão carinho,
dão tudo...Dão mais do que deveriam e não entendem: se eles dão
tudo, como é que o filho não está indo bem na escola? Como é que o
filho tem um comportamento inadequado se eles fizeram tudo? É
muito comum, por exemplo, quando uma criança vive uma situação de
saúde complicada, uma doença séria, uma cirurgia quando pequena,
os pais ficarem com um medo excessivo de perder o filho e passar a
superprotegê-lo.

21
Às vezes a superproteção tem origem numa rigidez da mãe ou
do pai - ou dos dois - em lidar com o erro: como não agüentam ver o
“errado”, não agüentam lidar com o imperfeito (em relação à
possibilidade do adulto), acabam fazendo pela criança. Essa
superproteção está frequentemente relacionada a uma dificuldade da
mãe e/ou do pai de agüentar o erro. Por exemplo: a criança tenta
amarrar o tênis, demora, os pais estão com pressa, e não agüentam
esperar. Além disso, ela amarra daquele jeito torto que criança amarra
e o que a vizinha vai pensar? Que eles não são bons pais. O menino
escolheu a roupa que vai usar, mas as cores não combinam. A menina
coloca quinhentas bijuterias, daquelas compradas na feira, todas ao
mesmo tempo. Como deixar a criança escolher e sair assim? O que a
titia vai pensar? Que os pais não cuidam do seu filho! Escolhem,
então, as roupas, esfregam, enfeitam, enfim, fazem tudo pela criança
e ela vai ficando passiva, porque vai aprendendo que o jeito dela
nunca é suficientemente bom, que ela sempre faz errado em relação à
expectativa do adulto. E os pais jamais suspeitam disso, porque agem
assim por absoluto amor. É um amor até exagerado, mas é um modo
de amor que não é nutriente.
Muitas vezes a autoestima rebaixada vem de uma não
aceitação, por parte dos pais, de como a criança é. Eu sonhei que
meu filho seria um líder no grupo e ele é tímido demais; seria um ótimo
jogador de futebol e ele não acerta a bola no gol; ele seria inteligente,
se sairia bem na escola e tem tirado notas baixas... Existe, muitas
vezes, a comparação com os irmãos: o filho mais velho é o filhinho
que a mamãe pediu para Deus. O segundo, em compensação, faz
tudo errado: quebra as coisas, faz bagunça, deixa o quarto de ponta-

22
cabeça. Essa não aceitação é inconsciente, está relacionada às
expectativas dos pais desde a gestação ou a outros elementos.
O mais difícil de ser pai e mãe é que erram pensando estar
acertando e quando percebem que aquele modo não era o melhor, já
está feito e se sentem muito culpados. E isso não tem a ver com
culpa, tem a ver com lucidez. Com exceção de alguns casos
patológicos, cada pai e cada mãe têm a intenção de ser o melhor
possível, assim como cada professor entra na sala de aula todos os
dias acreditando que vai dar a melhor aula que sabe. Hoje podem
achar que não fizeram a melhor escolha, mas no momento em que
agiram, fizeram-no por acreditar que daquela forma era bom,
acreditavam que aquela escolha era boa.
Acontece de muitas vezes os pais não suportarem que o filho
não seja aquilo que sonharam, não serem o sucesso que desejariam
que fosse e isso é complicado porque o filho intui esse sentimento.
Como reação, com frequência tem atitudes provocativas, e a reação
dos pais reforça esse sentimento: De novo!!! Só podia ser você.
Às vezes a criança leva um trabalho muito bom, os pais olham e
comentam: Nossa, que bárbaro, foi você mesmo que fez? E a
mensagem que passam com esse comentário é: De você eu jamais
esperaria uma coisa boa, de você eu só espero coisas ruins. Isso não
é um elogio... Quando os pais dizem: Dessa vez você conseguiu,
estão, na realidade, dizendo: Todas as outras vezes você não
consegue. E com esses comentários, não intencionais, vão gerando
toda uma autoimagem rebaixada, todo esse medo de errar.
Experiências repetidas de fracasso na escola também
comprometem a autoestima. Por exemplo, a criança está aprendendo

23
a escrever. Ela escreve da maneira que consegue. O professor
corrige, corrige, corrige. Em mais de vinte anos trabalhando em
educação, poucas vezes encontrei um professor que soubesse dizer o
que o aluno sabe ou que o próprio aluno soubesse dizer o que sabe.
Eles só sabem dizer o que não sabem. Qual professor ao ler um texto
produzido pelo aluno escreve assim: “Fulano gostei muito de ler a sua
redação. Você escreveu um texto com muita imaginação, adorei o
trecho em que o super herói enfrenta os bandidos usando aquela
estratégia. Foi muito inteligente de sua parte imaginá-la! Você também
me mostrou que sabe colocar a pontuação e as letras maiúsculas nos
lugares certos, além de muita sabedoria nas estratégias para evitar a
repetição de palavras. Em relação à ortografia, das 320 palavras que
escreveu, você acertou 302 e isso mostra que você sabe muito da
maneira como as palavras são escritas.” Algum dia vocês viram um
professor fazer isso? Via de regra o que o professor diz é: A
pontuação está inadequada, você não colocou letra maiúscula, a letra
não está boa. Quer dizer, o aluno só entra em contato com o que ele
não sabe.
Às vezes o educador pensa ter mudado de atitude, mas não
percebe que faz a mesma coisa de forma diferente. Exemplificando:
Eu dava assessoria para as escolas onde meus filhos estudavam e
estava justamente trabalhando esse olhar dos professores ao ler os
textos dos alunos e discutia com eles como redigir um bilhete. A
professora do meu filho, que estava na terceira série naquela época,
falou: “Carmen, você vai ficar orgulhosa de mim. Você precisa ver os
bilhetes que escrevi para as crianças. Primeiro elogiei para eles
ficarem felizes e só depois eu coloquei o que faltava”.

24
Quando cheguei em casa, meu filho estava com a redação na
mão e me disse: “Pois é, mãe, bilhete de professor sempre tem mas...
Antes do mas eles mentem, depois do mas eles falam a verdade.”
Quer dizer, duas leituras completamente diferentes da mesma ação!
Muitas vezes, quando a criança já tem alguma fragilização, o modo
como o professor lida com ela confirma e acentua esses sentimentos.
Ao punir o erro, o professor também o proíbe e, proibindo-o,
automaticamente proíbe a aprendizagem. Os alunos param de
perguntar e passam a reproduzir somente o que o adulto quer que
digam. E passam a ficar dependentes: É assim que você queria, é
desse jeito que era para fazer? Estão atendendo ao outro e não a si
próprios. Assim como os pais, muitas vezes a escola não percebe que
age dessa forma.
Tive uma experiência com uma aluna que estudava numa escola
perto da casa onde morava e adorava ir às aulas. A escola foi vendida
e a pessoa que comprou tinha uma maneira de pensar completamente
diferente da dona anterior e até que os pais percebessem isso, o
estrago estava feito. Depois de três meses essa menina não
conseguia mais aprender: ela estava com cinco anos e dizia que só
podia escrever se soubesse escrever certo e como ela ainda não
sabia, não poderia tentar. Nem desenhar, que gostava tanto, não
queria mais. Achava que só podia pintar desenhos feitos, pois
desenhava mal. Mas faz o seu desenho, você desenha tão bem! Não
mamãe, eu não sei desenhar, eu vou pintar o desenho. Foram anos
para arrumar o estrago! Ela estacionou na concepção de escrita, ficou
insegura e não conseguia mais acreditar em si mesma.

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O modo como a escola lida com o erro, abre ou fecha a
possibilidade dos alunos pensarem, arriscarem, de terem uma leitura
de mundo, uma expressão pessoal, e isso é muito importante para não
produzir todos aqueles comportamentos que acabam por gerar
problemas de aprendizagem.
Compreender dessa forma é importante, pois possibilita outra
ação. Normalmente pais e professores acham que a criança não
aprende porque faz bagunça ou é desatenta. A bagunça e a
desatenção são, então, a causa da não aprendizagem. Se essa é a
causa, então como ajudá-la a aprender? Enrijecendo na disciplina!
Mas o que eu estou tentando mostrar é que a bagunça e a desatenção
são sintomas, são manifestações. A causa é o medo de errar, é a
autoimagem rebaixada. Enrijecer na disciplina é como dar Novalgina
para abaixar a febre e não perceber a infecção caminhando... Essas
crianças precisam de outro remédio para conseguir reverter este
quadro. O que fazer para ajudá-las dentro da sala de aula, sendo que
não se trata de lidar apenas com um aluno, como acontece na clínica,
mas com vários e tendo que dar conta do conteúdo?

Como “beijar sapo” – estratégias para ajudar essas crianças

Algumas atitudes estão diretamente relacionadas à postura do


professor e outras são do plano pedagógico. A primeira coisa é o
professor mudar o sentido do erro. É poder compreendê-lo como parte
intrínseca da aprendizagem, não como negação, não como ausência
do conhecimento, mas parte inerente à construção do conhecimento.

26
A segunda coisa e a mais difícil é modificar a forma como
significamos as atitudes dessas crianças: perceber que quando agem
dessa forma, não estão fazendo contra nós. Agem contra elas
mesmas e não é uma questão pessoal. O professor sente–se
agredido, menosprezado, incompetente enquanto que, na realidade, a
agressão é contra elas mesmas, a incompetência que sentem é
delas... Deslocando o foco, o professor pode começar a perceber que
aquele aluno, que é o mais terrível da sua classe, é também o mais
frágil; que o mais agressivo, o mais bagunceiro, aquele que
enlouquece qualquer um, usa aquela arrogância como um escudo
protetor e que, na verdade, ele se sente ameaçado por qualquer coisa.
Se o professor conseguir olhar e significar de outra forma as
manifestações desses alunos, pode sentir empatia e começar a
pensar outras maneiras de lidar com ele. Isso é o mais difícil: mudar o
sentido das atitudes desses sapos para poder transformá-los em
príncipes.
As outras coisas são simples, têm a ver com desequilibrar a
balança para o outro lado. O que significa isso? Todas as pessoas têm
coisas que gostam em si, que acham que dão conta bem e coisas que
não gostam e acham que não sabem fazer bem. O lado das coisas
que as pessoas gostam em si é o lado luz e as coisas que as pessoas
não gostam em si é o lado sombra. Todos têm luz e sombra. Qual é o
normal? Que a luz seja mais intensa que a sombra e é dela, é dessa
luz que tiram energia para transformar a sombra ou aceitar um limite.
A força dessa luz ilumina a sombra.
Esses alunos de quem estamos falando, por diferentes razões,
tiveram suas balanças desequilibradas. O lado mais intenso que

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enxergam em si mesmos é a sombra. E essa sombra obscurece a luz.
Não conseguem mais perceber do que são capazes. Fazem dez
coisas certas e uma errada. Aquela errada anula as dez. Eles
desconfiam do elogio, porque acham que não merecem... Aliás, nós,
adultos, também fazemos isso. Estamos sempre nos comparando com
o melhor: estamos na 3ª aula de tênis e nos comparamos com o Guga.
É uma comparação de coisas desiguais. Haveria igualdade se essa
comparação fosse feita com o Guga na 3ª aula de tênis dele e não
com o campeão... Um professor faz 40 coisas excelentes em sala de
aula e, em determinado momento, lida de modo inadequado com uma
situação. Volta para casa arrasado, duvidando de sua competência...
São mecanismos complexos, e, nesses casos, sempre a sombra é
que está escurecendo a luz.
O que seria a postura de transformação desse olhar? A criança
não consegue fazer isso sozinha: ela precisa da ajuda de um adulto e
quanto mais adultos estiverem envolvidos melhor e mais rapidamente
essa transformação se produzirá. Defino o trabalho do psicopedagogo
como o de enxergar a luz que existe no outro e o de revelar essa luz
para a própria pessoa. Não se cria a luz, a luz é da pessoa! Por
alguma razão, porém, ela não enxerga mais. Esse é o trabalho: saber
encontrar e refletir a luz do outro. Iluminar a luz e não a sombra nas
situações de sala de aula.
Por nossa herança cultural enxergar o erro do modo como
falamos não é comum. Em sala de aula costuma-se evidenciar a
inadequação. O professor, nesse caso, deve evidenciar a luz, a
adequação.
Como fazer isso na classe?

28
Existem algumas estratégias, coisas simples que o professor
pode fazer e que costumam ter um efeito bom. Mas, percebam, todas
minhas sugestões, na verdade são sempre a mesma coisa: modos
diferentes de iluminar a adequação, a luz que há nas crianças e jovens
em situações da sala de aula. É importante o professor perceber isso
para que possa criar outras estratégias em seu cotidiano.
Por exemplo, todo professor quando dá alguma atividade
para os alunos fazerem fica circulando pela classe. Dois alunos o
preocupam bastante. Ao circular vê que o Joãozinho errou nove
perguntas, mas acertou a terceira. O Pedrinho errou oito, mas acertou
a quinta e a oitava. Na hora da correção coletiva, “por acaso”, é
justamente a terceira que pede para o Joãozinho. O que acontece?
Ele já fica com dor de estômago, porque sabe que vai errar e que o
colega vai gozar (eles são absolutamente cruéis uns com os outros,
especialmente os adolescentes). O fulano, professora, que só fala
besteira? Normalmente, o que o professor faz? Tira o holofote do
Joãozinho que está adequado e coloca o holofote na inadequação.
Como podemos agir nesta hora? Experimente ignorar o comentário
maldoso do colega e mantenha a pergunta para o Joãozinho. Ele
responde e acerta (o professor já sabia que estava certo): Excelente
resposta! Gostei muito do modo como você respondeu. Por favor, vá
para a lousa e escreva para todo mundo copiar. Aquele que gozou se
sente lá embaixo. E o professor vai pingando: é em Matemática, é em
Português, daqui a pouco é em História depois em Geografia.
O professor nunca deve expor o aluno ao erro público. Sempre
que o Joãozinho acertar alguma coisa, holofote de 1000 watts. O erro
jamais deve ser publicizado. É como se aquele acerto público

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iluminasse as nove respostas erradas. Em determinado momento ele
começa a pensar: será que eu sou tão burro mesmo? Eu acerto toda
hora... Quando começa a duvidar da burrice, começa a diminuir a
tensão. Quando a tensão diminui, pode pensar com mais eficiência.
Ao pensar com mais eficiência passa a acertar duas, três, cinco
questões... Os colegas começam a enxergá-lo de forma diferente: será
que ele é tão burro quanto eu pensava? E param de gozar e
começam a chamá-lo para participar da equipe... como se sente
aceito, o Joãozinho deixa de fazer as brincadeiras desagradáveis que
fazia, ou de “voar” em sala de aula. Começa, então, a reverter sua
ação.
São raras as crianças que têm um problema real de
rebaixamento cognitivo. 99% das crianças que não vão bem na escola
são crianças inteligentes e capazes de aprender. Elas estão é
proibidas de aprender. Quando a porta se abre elas entram. É simples
e difícil. Basta o professor pensar: o que estou iluminando: a luz ou a
sombra?
Quando estava em sala de aula lembro-me bem de um aluno
rejeitadíssimo pela classe toda. Ele era de uma timidez absoluta! Um
dia fez um comentário que nem era procedente com o que estava
sendo discutido, mas teve coragem de se colocar pela primeira vez.
Imediatamente outro começou a rir e rebaixá-lo. Não era hora de
colocar o holofote na inadequação. Eu disse:
_ Muito interessante o seu comentário, fulano - e falei uns 15
minutos a respeito do que ele dissera: trouxe filosofia, história, usei
termos difíceis... Os alunos não entenderam metade da explicação.
Meu aluno estava surpreso, pois não imaginava que sabia tudo aquilo.

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O outro, que havia feito a gozação, sentiu-se um mosquitinho. Passou
a pensar dez vezes antes de fazer qualquer comentário que
denegrisse alguém. O que tinha medo de perguntar e fazer papel de
bobo ficou mais corajoso para perguntar.
Normalmente a ação do professor acaba por criar um clima de
animosidade, de rixa. Explico. Quando um colega goza o outro e o
professor passa um sermão, o que ouviu o sermão fica com raiva de
quem o fez levar a bronca. Enquanto ouve pensa: “O Joãozinho é
burro mesmo e só porque falei a verdade estou sendo repreendido.”
Na sala fica quieto, mas no intervalo, na saída, na rua ele e a turma
batem no Joãozinho. É assim que eles geralmente funcionam.
Mudando o foco, o professor vai, aos poucos, modificando esse
clima. Muitas vezes, não é o professor que bloqueia, é a própria
dinâmica da classe. Com esse tipo de estratégia, o professor
consegue modificar essa dinâmica que é muito mais favorável para o
conhecimento fluir, pois a sala de aula torna-se um espaço de respeito
e aceitação.
Outra estratégia simples é o ditado que ilumina a luz. Ditado é
uma atividade que as crianças costumam detestar, porque se sentem
postas à prova, e com freqüência vão mal. E não vão mal à toa. Não é
raro perguntar para os professores: Que critério você usou para
escolher as palavras do ditado? E ouvir como resposta: Escolhi
aquelas que eles têm dificuldade. É claro que eles vão mal: as
palavras foram escolhidas sabendo-se de antemão que não vão
acertar! E o critério de correção é essa visão de nossa sociedade de
iluminar a sombra. Como dissemos acima, no ditado 1 erro elimina
todos os acertos e a criança tem a sensação de que não sabe nada.

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Como podemos fazer a mesma coisa, iluminando o acerto e gerando
ainda mais aprendizagem? Apenas mudando o olhar na hora da
estratégia.
Diga para as crianças: “agora vou propor um jogo. O jogo é o
seguinte: vou ditar este trecho da história para vocês, e depois vou
escrevê-lo na lousa. Vocês vão comparar a forma como escreveram
com a forma do autor. Cada letra que você escolher igual à do autor
você ganha um ponto.” Se foram ditadas 400 letras e o Joãozinho fez
372 pontos, pergunto: há mais conhecimento ou mais ignorância?
Muito mais conhecimento! Só que errou 28 palavras, pela correção
tradicional teria tirado uns dois no ditado e chegaria à conclusão de
que é ignorante, incompetente. Em compensação, quando elas fazem
a contagem, comemoram bastante porque fizeram muitos pontos!
O próximo passo é dizer: “Agora vocês se reúnam em equipes e
vejam as letras que escolheram erradas. Veja se conseguem
organizá-las pelas que erraram pela mesma razão e descubram o que
poderiam ter pensado para acertar.” Logo percebem que todos erram
as mesmas letras, o que é um alívio, e, juntos, conseguem acionar
regras, ou usar outros recursos, dependendo da série em que estão.
A luz está no conhecimento e a ignorância é transformada em
trabalho. O que importa é descobrir algo para pensar da próxima vez e
não punir porque dessa vez não soube a melhor decisão.
A alma de tudo o que disse é a escuta. Para transformar é
preciso enxergar como a criança está vendo, pensando,
compreendendo. Essa consciência nos permite transformar a
ignorância em trabalho e não em punição. Isso muda toda a
perspectiva.

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Lembro-me de uma professora de rede pública que me ouviu
dando este exemplo do ditado em uma conferência e depois me
procurou dizendo que tinha usado a estratégia em sua classe e as
crianças agora queriam fazer ditado todos os dias. Acho que esta
atividade passou a ser o momento em que entravam em contato mais
efetivo com seu conhecimento.

Para isso é preciso perceber o erro como processo e não marca


da ignorância. Veja, crianças de 1º ano costumam escrever a palavra
alemãn usando duas marcas de nasalização na mesma sílaba. O que
estão nos dizendo ao errar desta forma? “Olha, já descobri que o
nosso sistema é alfabético, que na Língua Portuguesa existem sons
orais e sons nasais. Também já sei que sons nasais são marcados
para diferenciar dos sons orais. Já sei que as marcas de nasalização
no português são ‘m’ no final de palavra ou til. Sou capaz de aplicar
essa lei geral da língua na palavra alemã especificamente e perceber
que ela tem sons orais e sons nasais. Sou capaz de discriminar que o
som nasal na palavra ‘alemã’ é na última sílaba, mas não sei como
escolher qual das marcas coloco, então uso as duas.” Ela diz seis
coisas que sabe e uma que não sabe, e a professora risca a palavra
toda indicando – você não sabe nada. Então, é fundamental
aprendermos a ver e iluminar o conhecimento.

Educando a emoção

Também ao repreender um comportamento inadequado de nossos


alunos podemos iluminar a luz. Ao conversar com ele você pode falar:

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“Fulano, não compreendi porque um cara bacana como você, que é
solidário com os amigos como sempre vejo, que é capaz de explicar o
que pensa como me mostrou em tal situação, agiu aqui desta forma. O
que aconteceu, o que você estava sentindo para desta vez escolher
fazer deste jeito.” E escute. Não julgue sua atitude antes de ouvi-lo.
Marque em sua fala que ele não é a atitude que teve, que é muito
mais do ela, que você continua vendo-o de maneira positiva,
independentemente daquele fato. Ao perceber que você não o reduz
ao que fez de errado poderá ser mais sincero, pois se sente acolhido e
vocês poderão verdadeiramente conversar. Às vezes os sapinhos
fazem muitas coisas que nos incomodam e, com isso, nem sempre
conseguimos ver sua luz com clareza. Mas ela sempre existe, se
pensar que há dor por trás daquelas atitudes e conseguir enxergá-la,
verá nela sua humanidade e a ponte de empatia poderá se formar.

Uma das coisas que mais nos dificulta enxergar a dor dessas crianças
e jovens é o julgamento. Julgamos a atitude que tiveram e não o
sentimento que a mobilizou. Considero a educação emocional uma
das coisas mais importantes que um educador, seja ele pais ou
professores têm a ensinar, mas a sociedade não a valoriza e, portanto,
não a ensina. Por isso, vamos falar um pouco mais sobre isso.

Nós, seres humanos, somos seres emocionais, muito mais do que


racionais. A velha frase “penso, logo existo” deveria ser alterada para
“sinto, logo existo”. Agimos pela emoção com muito mais frequência
do que pela razão. E sentimos de tudo: amor, alegria, inveja, raiva,
tristeza, desprezo, gratidão e tantas coisas mais. Não sentimos

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apenas os sentimentos considerados “bons” pela sociedade. Quem
disser que nunca sentiu raiva, desprezo, inveja em algum momento de
sua vida, vou achar que olhou pouco para si. E a primeira coisa que
precisamos pensar é que sentir tudo isso é parte de nossa
humanidade e não nos torna maus. Uma pessoa não deve ser culpada
porque sente raiva ou inveja, como damos a entender para as crianças
quando agem movidas por esses sentimentos. O problema não é
sentir, é a forma como expressamos esses sentimentos. Minha raiva
não me dá o direito de prejudicar, bater, humilhar o outro. Educar
meus sentimentos não é não sentir, nem engolir, mas conseguir
expressá-los de uma forma produtiva e suportável para o outro,
respeitando-o mesmo com raiva, por exemplo.

Vamos pensar uma situação comum. O aluno A está com dificuldade


para aprender e isso está deixando-o angustiado. Sua autoestima está
muito baixa e ele acha que não faz nada certo. Sente muita inveja de
B porque ele vai bem na escola e A acha que ele é o queridinho da
professora. Aí A olha o desenho de B e acha que ficou muito mais
bonito do que o dele. Sente raiva porque B sempre faz tudo melhor
que ele. Levanta-se e, ao passar perto da carteira de B, “sem querer”
esbarra em seu braço, B faz com o lápis faz um risco enorme
estragando o desenho. B fica com raiva de A por ter estragado seu
desenho e dá um chute nele, juntamente com um palavrão. O aluno A
revida e a situação vira uma briga. Bastante comum, não é?

O mais comum nesta hora é o educador parar a aula e passar um


sermão nos dois dizendo que não se deve brigar, que brigar é feio, dá

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um castigo para os dois ou pede para um pedir desculpas para o
outro.

Repare, o que o educador cuidou foi da atitude deles (brigar) e não do


sentimento que a mobilizou. Como A não tomou consciência de seus
sentimentos, eles continuarão lá, produzindo novas brigas. Ou melhor,
como o sentimento que originou tudo foi a autoestima baixa de A, que
faz com que sinta ciúmes de B e, por ciúmes arrume briga, foi
reforçada pela fala da professora, provavelmente B terá mais certeza
do quanto não é legal, do quanto só faz coisas erradas e ficará com a
autoestima mais baixa ainda. Nessa medida, a ação do educador não
só não resolveu o problema, mas também o aumentou.

Como o educador pode lidar com uma situação dessas? Por exemplo:
pode sentar-se com os dois em separado e pedir a cada um que conte
o que aconteceu. Garanta que cada um ouça o outro em silencio e
com atenção, assim como ele. Depois de ouvir as histórias, pode
retomar a de A e dizer: “Você me disse que bateu sem querer. Você
fez alguma coisa que ajudasse B a entender que foi sem querer? O
que poderia ter feito? E se, ao invés de continuar andando como se
nada tivesse acontecido, você tivesse feito isso que falou, você acha
que ele teria sentido o que sentiu? E teria ficado com raiva de você e
te batido? Voltasse para B e perguntasse: Quando A esbarrou em seu
braço você bateu nele. O que queria que ele entendesse com seu
soco? E se naquela hora, ao invés de bater você dissesse: “A, não
gosto que você estrague minhas coisas, você me desrespeita ao fazer
isso e quando sou desrespeitado sinto muita raiva.” Você acha que A

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teria entendido seu sentimento? Você acha que ele teria continuado a
briga? Será que dá para vocês dois aprenderem outro jeito de mostrar
quando não gostam de alguma coisa? Será que se falarem de seus
sentimentos vocês não ajudam o colega a entender o que se passa
dentro de vocês? Aprenderam? Então já podem continuar a atividade
(ou a brincar) juntos.

Talvez você ache que agir assim é demorado e que você não tem
tempo em sala de aula. Acontece que, aos poucos, ao lidar com os
conflitos dessa forma, eles vão desaparecendo. No início é preciso
investir para que haja mudança, depois ela acontece e as relações
ficam tranquilas, o trabalho rende. Da maneira comum de lidar, como o
que está dentro não pode aparecer e eles não resolvem
verdadeiramente os conflitos, eles retornam indefinidamente e o ano
termina com eles. Se resolver agir dessa forma poderá constatar que
no final é muito mais rápido e eficiente ensinar as crianças e jovens a
conhecer-se e a lidar pelo diálogo com seus sentimentos. Além de
estar preparando pessoas mais maduras emocionalmente para
conviver em sociedade.

Caso você, professor, resolva agir dessa forma em sua sala de aula,
com certeza descobrirá muitos príncipes. Não será fácil, nem de um
dia para o outro, mas é sempre possível. Algumas vezes pensamos
que salvaremos e daremos conta de todos. Isso é onipotência. Outras
vezes acreditamos que não daremos conta de nenhum, e vivemos a
impotência. Nenhuma das duas posições é real. Meu desejo com tudo

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isso que trouxe é ajudá-lo a viver sua mais plena potencia de
educador!

Carmen Silvia Carvalho

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