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EXCELENTÍSSIMA SENHORA MINISTRA RELATORA ROSA WEBER, DO

EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF.

DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA À ADPF 964-DF


PEDIDO LIMINAR

O PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL), por seu Diretório Nacional,


inscrito no CNPJ/MF sob o n. 06.954.942/0001-95, com sede na SCS, Quadra 02, Bloco
C, n. 252, Edifício Jamel Cecílio, 5º andar, Brasília/DF (doc. 01), por seu Presidente (doc.
02), Juliano Medeiros, brasileiro, historiador, inscrito no CPF/MF sob o n. 004.407.270-
81 e no RG n. 8.084.283.962 SJS/RS, e nos termos de seu Estatuto Social, vem, por seus
advogados (doc. 03), com fundamento no art. 102 §1º, e no art. 103, VIII, da Constituição
Federal, e no art. 1º c/c art. 5º e ss, ambos da Lei n. 9.882/1999, propor a presente
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL COM
PEDIDO LIMINAR AD REFERENDUM contra o Decreto Presidencial de 21 de abril
de 2022, pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas:

I
LEGITIMIDADE ATIVA DO PSOL

1. O PSOL é partido político com representação no Congresso Nacional,


devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral e, portanto, nos termos do art. 103,
inciso VIII, da Constituição Federal, legitimado para agir em sede de controle
concentrado de constitucionalidade, sendo despicienda a comprovação de vínculo de
pertinência temática (= legitimidade universal):
________________________________________________________
“Partido político. Ação direta. Legitimidade ativa. Inexigibilidade do
vínculo de pertinência temática. Os partidos políticos, desde que
possuam representação no Congresso Nacional, podem, em sede de
controle abstrato, arguir, perante o STF, a inconstitucionalidade de atos
normativos federais, estaduais ou distritais, independentemente de seu
conteúdo material, eis que não incide sobre as agremiações partidárias
a restrição jurisprudencial derivada do vínculo de pertinência temática.”
(ADI 1.407 MC | Ministro Relator Celso de Mello | julgado em
07.03.1996) (grifou-se)
________________________________________________________

2. Resta observado, pois, o requisito de legitimidade, preenchidos os pressupostos


do art. 103, inciso VIII, da Constituição Federal, bem assim do art. 2º, inciso I, da Lei n.
9.882/99.

II
DISTRIBUIÇÃO POR PREVENÇÃO À MINISTRA RELATORA ROSA
WEBER, EM VIRTUDE DA ADPF 964

Em 22.04.2022, os partidos políticos REDE SUSTENTABILIDADE, PDT e


CIDANANIA ajuizaram Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(“ADPF”) contra a mesma graça concedida pelo Presidente Jair Messias Bolsonaro, ao
Deputado Federal Daniel Lucio da Silveira, pelo Decreto Presidencial de 21.04.2022.

A ADPF 964 foi distribuída, por sorteio, no mesmo dia, à Ministra Relatora Rosa
Weber, conforme extrato do processo eletrônico (doc. 04).

Nos termos do art. 69 do Regimento Interno do STF (“RISTF”), essa circunstância


gera prevenção, tendo em vista que os feitos são evidentemente conexos, pela
coincidência de seus objetos.

2
Assim, requer-se antes de mais nada, como medida de coerência e economia
processuais, a distribuição por prevenção desta APDF para a Ministra Relatora Rosa
Weber (vide art. 66 caput do RISTF).

III
CABIMENTO

Conforme prevê o art. 1º da Lei 9.882/99, a ADPF tem por objeto ato do poder
público lesivo a preceitos fundamentais. In casu, trata-se de Decreto Presidencial que -
ao arrepio dos diversos preceitos fundamentais tratados abaixo – concedeu graça
constitucional (indulto individual) ao Deputado Federal Daniel Lucio da Silveira,
condenado por este STF no bojo da AP n° 1.044 (doc. 05), que ainda sequer transitou em
julgado.

Trata-se de (i) manifestação jurídica do Estado que produz efeitos de direito; (ii)
ato concreto, posto diz respeito a “um único e específico caso”; e (iii) individual, já que
tem por destinatário sujeito “especificamente determinado”.1

Faltando-lhe, portanto, as características do ato normativo (generalidade,


abstração e impessoalidade), resulta incabível a propositura de ação direta de
inconstitucionalidade (art. 102, I, “a”, CF), preenchendo o requisito de subsidiariedade
de que é revestida a ADPF (art. 4º, §1º da Lei 9.882/99), visto que não há outro
mecanismo processual apto a sanar a lesão.2

Vale anotar que a jurisprudência deste STF segue o entendimento de que integra
a subsidiariedade a eficácia da medida processual, ou seja, “não se verificando a
existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma

1
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo¸ 33ª edição, São Paulo: Malheiros, 2016,
p. 397, 435 e 436.
2
Cf. STF, Tribunal Pleno, ADPF 101, rel. Min. Carmen Lúcia, j. 24.6.2009, DJe 4.6.2012.

3
ampla, geral e imediata –, há de se entender possível a utilização da arguição de
descumprimento de preceito fundamental.”3

Outrossim, cumpre destacar a nova feição que esta Corte vem conferindo à ADPF
como a medida processual apta a dar cabo a situações complexas que exijam a
participação de todos os Poderes da República,4 tal como no caso em tela, o qual exige a
análise da constitucionalidade da concessão de graça com claro desvio de finalidade e por
intermédio do qual o Presidente buscou se substituir ao STF.

Por tratar-se, neste caso, da (i) guarda da Constituição Federal (art. 102, caput,
CF); (ii) do princípio da separação de poderes (art. 2º, CF); e (iii) da moralidade dos atos
administrativos que, por sua vez, serve de suporte de legitimidade ao poder estatal (art.
37¸caput, CF), está-se diante de uma clara afronta a preceitos fundamentais da
Constituição Federal.

IV
BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA QUESTÃO EM DEBATE: A
INCONSTIUCIONALIDADE DO INDULTO INDIVIDUAL (GRAÇA) DE
21.04.2022

Em 20.04.2022, este E. Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal


nº 1.044, condenou a oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, o
Deputado Federal Daniel Lúcio da Silveira, em virtude de crimes praticados contra a

3
STF, Tribunal Pleno, ADPF 33, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 7.12.2005, DJU 27.10.2006. No mesmo sentido: “Não
bastasse, tem sido prestigiada, na interpretação desse dispositivo, a consideração da eficácia típica dos processos
objetivos de proteção da ordem constitucional, vale dizer, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante próprios ao
controle abstrato de constitucionalidade. Significa afirmar que o referido dispositivo, ao consagrar o que a doutrina
vem convencionando chamar de cláusula de subsidiariedade da arguição de descumprimento, exige, como
condição de admissibilidade da ação, a inexistência de outro meio de sanar a lesividade que seja tão eficaz e
definitivo quanto a ADPF, qual seja outra medida adequada no universo do sistema concentrado de jurisdição
constitucional.” STF, Tribunal Pleno, ADPF 405, rel. Min. Rosa Weber, j. 21.6.2021, DJe 30.6.2021. Destaques
nossos.
4
“É cabível a arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver (i) uma violação generalizada de
direitos humanos; (ii) uma omissão estrutural dos três poderes; e (iii) uma necessidade de solução complexa que exija
a participação de todos os poderes.” STF, Tribunal Pleno, ADPF 635 MC, rel. Min. Edson Fachin, j. 18.8.2020, DJe
21.10.2020, p. 3/198 do acórdão.

4
democracia, contra o processo e também a esta Corte Constitucional. Além das
consequências de natureza penal, o referido deputado também se tornará inelegível, nos
termos da legislação eleitoral brasileira (art. 14, §3º, CF, c/c art. 1º, inciso I, “e”, da Lei
Complementar 64/1990).

. O julgamento da mencionada ação penal, importante ressaltar, ainda não transitou


em julgado, na medida em que ainda é possível ao réu a interposição de recursos previstos
no Código de Processo Penal.
. Não obstante o processo ainda não ter se encerrado, o Presidente da República, no
uso pretenso de sua competência constitucional (art. 84, XII) editou, em 21.04.2022, ou
seja, no dia seguinte à condenação do Deputado Federal Daniel Silveira, o Decreto de
21 de abril de 2022 (doc. 05), para conceder ao referido parlamentar o indulto individual
(= graça), cuja consequência é a extinção da punibilidade dos crimes cometidos (art. 107,
inciso II, Código Penal). Eis os artigos do decreto:

________________________________________________________
“Art. 1º Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira,
Deputado Federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de
abril de 2022, no âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e
nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes
previstos:
I - no inciso IV do caput do art. 23, combinado com o art. 18 da Lei nº
7.170,
de 14 de dezembro de 1983; e
II - no art. 344 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal.
Art. 2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida
independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Art. 3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que
haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as
penas restritivas de direitos.”
________________________________________________________

. Conforme será demostrado ao longo desta ADPF, ao editar um ato administrativo


que concedeu graça ao Deputado Daniel Silveira, o Presidente da República,
extrapolando e desvirtuando os limites de sua competência constitucional, visou a

5
beneficiá-lo de forma induvidosa, circunstância que, em resumo, macula o decreto
presidência por desvio de finalidade, violação à separação dos poderes e por desrespeito
à vedação da proteção deficiente, o que exige, no mérito, sua retirada do ordenamento
jurídico brasileiro e, liminarmente, a imediata suspensão dos seus efeitos.

. Além deste vício intransponível, outro merece ser destacado e será devidamente
abordado nas linhas seguintes, como um reflexo dos demais: a graça foi concedida antes
do trânsito em julgado da Ação Penal nº 1.044, o que também macula irremediavelmente
o ato ora impugnado, tal como será demostrado.

. Para facilitar a identificação destes vícios de inconstitucionalidade, consistente no


descumprimento de preceitos fundamentais à República Democrática brasileira,
passemos a explorá-las individualmente.

V.
DESVIO DE FINALIDADE DO DECRETO PRESIDENCIAL.

V.I. A natureza do decreto presidencial

. Antes de tratarmos especificamente do desvio de finalidade do Decreto de 21 de


abril de 2022, destaquemos a sua natureza jurídica de modo a afastar qualquer tentativa
de esvaziar a possibilidade de seu controle jurisdicional.

. Entendem alguns autores que existem atos expedidos pelo Estado que não se
amoldam satisfatoriamente em nenhuma das três funções do Estado: legislativa,
jurisdicional e administrativa. Para Celso Antônio Bandeira de Mello5 e Roberto Dromi6,
por exemplo, além da separação tripartite de função há a função política.

5
Curso de Direito Administrativo, 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2022, p. 36.
6
Derecho Administrativo. Hispana Libros: Buenos Aires. 2009, p. 99

6
. Ao ilustrarem tal afirmação, usualmente se valem dos seguintes atos: iniciativa de
leis pelo Chefe do Poder Executivo, a sanção e veto das leis, convocação de eleições
gerais, destituição de altas autoridades por crime de responsabilidade, declaração de
estado de sítio e de estado de defesa, declaração de guerra, concessão de graça e indulto.

. Esta função política, importante destacar, não é estanha em outros países. Deveras,
quando analisamos as obras de autores franceses, observamos claramente a existência de
atos provenientes da função política, cognominados de atos de governo ou atos políticos.
A nota característica destes atos para os franceses, é a vedação de controle jurisdicional.
Paul Duez7, em sua obra clássica dedicada ao assunto, deixa isso muito claro este
posicionamento:
________________________________________________________

“Mais la caractéristique fondamentale qui décèle l’acte de


gouvernement est l’ impossibilitá absolue le juge d’em apprécier la
legalité. L’ acte de gouvernement est surtout caractérisé par ce fait
que, dans tous les cas, il est intégralement soustrait au contôle
juridictionnel, non seulement quant à l’opportunité, ce qui serait
normal, mis encore quant à la régularité juridique”.
________________________________________________________

Na América Latina, Roberto Dromi8 é categórico ao afirmar ser esta uma das
características dos atos políticos: “(...) son irrevisibles, no judiciables, no justiciables o
no invalidables judicialmente. Estan extensos de control jurisdiccional”.

. Contudo, isso não se passa no Brasil. Apesar de também compreendermos a


existência de atos derivados do exercício da função política, tais atos, ao contrário do que
ocorre em outros países, são absolutamente sindicáveis. É que no ordenamento jurídico
brasileiro, nada, absolutamente nada, está livre do controle de legalidade do Poder
Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, CF).

7
Les actes de gouvernement. Dalloz: Paris, 2006, p. 18.
8
Op.cit,, p. 101.

7
. No Brasil, o que realmente existe, no caso dos denominados atos políticos, é uma
forte carga de discricionariedade conferida diretamente pela Constituição Federal aos
Poderes Executivo e Legislativo. Mas esta alta dosagem de discricionariedade, não é
elemento suficiente para apartar os atos políticos dos atos administrativos. São institutos
próximos e suscetíveis de controle jurisdicional. Muda-se, apenas, a amplitude do mérito9
do ato. O primeiro (ato político) maior que o segundo (ato administrativo)10.

Na decisão paradigmática mais recente sobre o tema (ADIn 5.874), vê-se que o
STF tem por consolidado o entendimento de que não se pode adentrar o mérito do indulto
– muito menos substituir, enquanto órgão de cúpula do Poder Judiciário, o representante
máximo do Executivo –, mas tão somente analisar a constitucionalidade de sua
concessão, o que, neste caso, revela-se de importância fundamental.

Além disso, o Min. Gilmar Mendes, na decisão que suspendeu a eficácia do ato
de nomeação do ex-presidente Lula para o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil (MSs
34070 e 34071), apontou, de forma expressa e inequívoca, para a possibilidade de
sindicar atos de atribuição privativa do Presidente da República (no caso, o art. 84, I, da
CF), e portanto, com forte carga de discricionariedade, com base na ocorrência de desvio
da sua teleologia constitucional.

. Ou seja, o STF já consolidou entendimento no sentido de inexistir ato presidencial


não sindicável perante a jurisdição constitucional. Vale dizer, havendo configuração de
desvio de finalidade, o ato passa a ser fiscalizável pelo STF ainda que estruturalmente
detenha caráter discricionário.

9
Sobre o mérito do ato administrativo classificado como discricionário são precisas as palavras de Celso Antônio
Bandeira de Mello: “Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso
concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais
soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser
objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.” (Discricionariedade e Controle Jurisdicional.
Malheiros: São Paulo, 2003, 2ª ed, p. 38)
10
Lúcia Valle Figueiredo também entende que atos políticos são, em verdade, atos administrativos (Curso de direito
administrativo. 8ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 215)

8
. O que se tem, em casos como o do indulto do Deputado Federal Daniel Silveira,
é, justamente, nas palavras do Min. Gilmar Mendes, “a adoção de uma conduta que
aparenta estar em conformidade com uma certa regra que confere poder à autoridade
(regra de competência), mas que, ao fim, conduz a resultados absolutamente
incompatíveis com o escopo constitucional desse mandamento e, por isso, é tida como
ilícita.”11

. Desta forma, as considerações que faremos a seguir sobre desvio de finalidade,


violação à separação de poderes e à vedação de proteção deficiente, devem ser aplicadas
ao caso em exame, à luz da jurisprudência do Supremo, mesmo se considerarmos que
estamos diante de um ato político (= ato administrativo de maior amplitude).

V.II. Considerações sobre o desvio de finalidade

. Um dos princípios mais caros ao Direito Público e, por conseguinte, a qualquer


ato administrativo, é o da legalidade. Previsto expressamente nos. arts. 5º, II, 37, caput,
e 84, IV, da Constituição Federal, é o fundamento de toda e qualquer ação da
Administração Pública12.

. Em frase lapidar, Celso Antônio Bandeira de Mello destaca a relevância deste


princípio: “O princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou
oligárquico, pois tem como raiz a ideia de soberania popular, de exaltação da
cidadania”13. A frase, como veremos, aplica-se perfeitamente ao caso em exame.

. É por conta da centralidade do princípio da legalidade ao Direito Administrativo


que a doutrina acertadamente afirma que a atividade administrativa é uma atividade
sublegal, infralegal, preordenada à complementar os comandos da Lei.

11
MS 34070 MC/DF, decisão monocrática, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18.3.2016, p. 19.
12
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2022, p.
79.
13
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 103.

9
. Ao se analisar a anatomia dos atos administrativos, especialmente a partir do que
se convenciona chamar de plano da validade, um dos pressupostos destacados pela
doutrina administrativista para a validade do ato é o teleológico. Este pressuposto
estabelece que todo ato administrativo é expedido para se alcançar um resultado, uma
determinada finalidade pública. A finalidade do ato administrativo, portanto, é justamente
o bem jurídico objetivado pelo ato14.

. Quando o ato administrativo expedido não satisfaz a finalidade buscada pela lei
para aquele tipo de ato, viola o princípio da legalidade por desvio de poder ou desvio de
finalidade. Esta é a relação inexorável entre o princípio constitucional da legalidade e um
de seus vícios, o desvio de finalidade.

. O que se nota, portanto, é uma relação servil, em função do princípio da


legalidade, entre o ato administrativo expedido e a finalidade prevista na norma superior.
Não pode haver qualquer incompatibilidade entre a finalidade do ato e a finalidade da
norma superior.

. É que a administração pública, nas palavras do saudoso Professor Ruy Cirne Lima,
é a atividade de quem não é proprietário15. E se o administrador não é proprietário, senhor
absoluto da coisa16 que administra, só pode realizar aquilo que a Lei, expressão da
vontade popular, determinou. A relação, reforcemos, é de total submissão, sendo defesa
qualquer tentativa do agente público expedir ato administrativo desgarrado da específica
finalidade prevista em lei, ainda que eventualmente atinja outro interesse público17. É
que, nas palavras de Caio Tácito, o “juiz definitivo da finalidade do poder é o legislador,
nunca o executor da lei”18.

14
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 397.
15
Princípios de Direito Administrativo. 7ª Ed. Malheiros: São Paulo, 2007.p. 36.
16
A expressão também é de Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, p. 37).
17
TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público. 1º Vol. Renovar: Rio de Janeiro, 1997 p. 90.
18
Op. Cit., p. 90/91.

10
V.III. Sistematização do desvio de finalidade

Na esteira de Julio A. Prat19, maior estudioso do desvio de finalidade na América


Latina, Celso Antônio Bandeira de Mello20 e Eduardo García de Enterría21, temos que um
ato administrativo não atingirá a finalidade estatuída na norma jurídica que lhe é superior,
quando: a) o agente público expedir um ato administrativo para atingir uma finalidade
alheia a qualquer interesse público; b) o agente público expedir um ato administrativo,
que apesar de atingir um interesse público, não corresponde à finalidade pública daquele
tipo de ato.

. No primeiro caso o ato administrativo é expedido pelo agente público para


satisfazer um interesse pessoal, próprio ou de terceiro, que evidentemente não é o
interesse tutelado pela norma jurídica superior ao ato administrativo. O desvio de
finalidade neste caso é evidente e aviltante.

. O segundo caso refere-se a uma situação em que o agente público ao expedir


determinado ato administrativo contempla um interesse público, mas não aquele
específico interesse público que a norma jurídica que dera suporte ao ato expedido
pretendeu tutelar. Há, neste caso, desvio de finalidade por desrespeito à tipicidade do ato
administrativo.

. Caio Tácito anota, com muita razão, ser a primeira hipótese a mais grave, pois “se
oculta sob a aparência de legitimidade. A violação maliciosa encobre os abusos de direito
com a capa de virtual pureza”22.

. O Decreto de 21 de abril de 2022, enquadra-se, a toda evidência a esta primeira


hipótese de desvio de finalidade, qual seja, aquela em que o agente público ao expedir o

19
De la Desviacion de Poder. Montevideo: Faculdad de Derecho de Montevideo, 1957 ,p. 225/236.
20
Discricionariedade e Controle Jurisdicional. Malheiros: São Paulo, 2003, 2ª ed p. 58/67.
21
Curso de derecho administrativo. 13ª Ed. Navarra: Ed. Thomson Civitas, 2006. Vol. I, p. 534.
22
Op. Cit., p. 162.

11
ato administrativo visa satisfazer um interesse privado, seu ou de terceiro, quer para
favorecer, quer para prejudicar alguém23.

. Em suma, pode-se resumir este vício da seguinte forma: desvio de finalidade é o


vício de legalidade que acomete o ato administrativo expedido por agente público
competente, quer esteja este agente público no exercício de competência discricionária
ou no exercício de competência vinculada, por não atingir a finalidade pública
estabelecida pela norma que lhe é superior (Lei ou Constituição), ou por atingir interesse
pessoal, próprio ou de terceiros, ou por atingir finalidade pública distinta daquela
contemplada na norma jurídica superior, podendo ser invalidada pela própria
Administração Pública, como também pelo Poder Judiciário.

V.IV. O desvio de finalidade no caso em exame

. A Constituição Federal e, por conseguinte, a lei, não criaram e regulamentaram o


instituto da graça para beneficiar amigos ou prejudicar inimigos, especialmente quando a
sua condenação não transitou em julgado. Obviamente este não é o propósito, o espírito
do art. 84, XII, da CF e o art. 734 do Código de Processo Penal.

Conforme admitido pelo próprio Supremo, durante as várias etapas do julgamento


da ADIn 5.874, o indulto, seja ele individual ou coletivo, relaciona-se diretamente à
concretização de um direito e um sistema penais democráticos.

Isso não quer dizer que o instituto possa ser utilizado de forma a mascarar a
descriminalização, sob a forma de graça, o que consistiria no afastamento, por abuso do
Poder Executivo, do processo penal e da pena definida judicialmente.

23
Anota Celso Antônio Bandeira de Mello: “Em tal caso, a autoridade pratica um ato administrativo movido pela
amizade ou inimizade, pessoal ou política, ou até em proveito próprio. Não raro está impulsionada pelo propósito de
captar vantagem indevida, angariar prosélitos ou cegada por objetivos torpes de saciar sua ira contra inimigos ou
adversários políticos, buscando molestá-los ou, pior ainda, vergá-los de suas conveniências.” (Discricionariedade e
controle judicial, p. 62)

12
Muito embora o Poder Judiciário não possa, segundo o STF, analisar o mérito do
clementia principis, ele deve sim sindicar, se provocado, a constitucionalidade dos
decretos de graça ou de indulto, do ponto de vista da sua coerência com a CF/88, sem
extrapolar, é claro, os limites legislativos de fixação de políticas criminais, em prol da
separação de poderes.24

Como bem notou o Ministro Alexandre de Moraes, relator para o acórdão da ADIn
5.874, no emblemático julgamento da constitucionalidade do Decreto de Indulto Natalino
do ex-Presidente Michel Temer:
________________________________________________________

“A análise da constitucionalidade do Decreto de Indulto deverá,


igualmente, verificar a realidade dos fatos e também a coerência
lógica da decisão discricionária com os fatos. Se ausente a
coerência, o indulto estará viciado por infringência ao ordenamento
jurídico constitucional e, mais especificamente, ao princípio da
proibição da arbitrariedade dos poderes públicos que impede o
extravasamento dos limites razoáveis da discricionariedade,
evitando que se converta em causa de decisões desprovidas de
justificação fática e, consequentemente, arbitrárias”.25
______________________________________________________

. Ora, considerando as inúmeras manifestações anteriores do Presidente da


República em favor do Deputado Federal Daniel Silveira (doc. 06), a realidade dos fatos
é esta: o Presidente Jair Messias Bolsonaro mantém inequívoca relação de amizade com

24
De acordo com o entendimento corrente do Supremo, essa análise deve obedecer a três premissas: “(1) é competência
discricionária do Presidente da República a definição dos requisitos e da extensão do ato de clemência constitucional,
a partir de critérios de conveniência e oportunidade; (2) o exercício do poder de indultar não fere a separação de poderes
por supostamente esvaziar a política criminal estabelecida pelo legislador e aplicada pelo Judiciário, uma vez que foi
previsto exatamente como mecanismo de freios e contrapesos para possibilitar um maior equilíbrio na Justiça Criminal,
dentro da separação de poderes, que é uma das cláusulas pétreas de nossa Magna Carta (CF, art. 60 §4º, III); e (3) O
Decreto de Indulto não é um ato imune ao absoluto respeito à Constituição Federal e, consequentemente, torna-se
passível de controle jurisdicional para apuração de eventuais inconstitucionalidades, cujos limites estabelecidos nos
artigos 2º e 60 §4º, III, da CF, ao definir a separação de poderes, impedem a transformação do Poder Judiciário em
pura legislação, derrogando competências constitucionais do Chefe do Poder Executivo e substituindo legítimas opções
pelas suas” (STF, Pleno, ADIn 5874, min. rel. para o acórdão Alexandre de Moraes, j. 9.5.2019, m.v., DJUe 5.11.2020,
pp. 88-89 do acórdão).
25
STF, Pleno, ADIn 5874, min. rel. para o acórdão Alexandre de Moraes, j. 9.5.2019, m.v., DJUe 5.11.2020, p. 84 do
acórdão.

13
o parlamentar, o que se percebe, com clareza obscena, pelo momento em que a graça foi
concedida (= um dia após o julgamento do parlamentar e antes do trânsito em julgado).

Logo, é fácil concluir que o Decreto de 21 de abril de 2022 está eivado,


principalmente, com o vício do desvio de finalidade. Não há dúvidas – utilizando-nos
dos critérios fixados na ADIn 5.874 –, de que o decreto foi expedido sem qualquer
coerência lógica com os fatos, apenas para beneficiar um amigo próximo do Presidente
da República, alheando-se por completo das suas finalidades democráticas como, por
exemplo, (i) a ressocialização daquele que cumpriu parte da pena que lhe foi imposta; e
(ii) o combate ao hiperencarceramento, espectros que tanto assombram a administração
da justiça penal brasileira.

. A imagem abaixo, que se soma a inúmeras outras amplamente divulgadas pela


imprensa e nas redes sociais, além das diversas manifestações de apoio e amizade do
Presidente da República em relação ao Deputado Daniel Silveira, revelam o verdadeiro
motivo do Decreto de 21 de abril de 2022: proteger um amigo, ideologicamente alinhado
ao Presidente, das sanções penais que possivelmente serão impostas ao parlamentar pelo
Supremo Tribunal Federal, e provocar mais um embate desgastante, infundado e
inaceitável entre os Poderes da República, tudo ao arrepio da harmonia exigida pelo art.
2º da Constituição Federal.
________________________________________________________

________________________________________________________

14
. Néstor Pedro Saguês26, ao analisar o instituo do indulto, arrola as hipóteses em
que este ato político deve ser controlado pelo Poder Judiciário. Uma destas hipóteses,
como veremos no trecho transcrito abaixo, enquadra-se perfeitamente no caso em exame,
in verbis:
________________________________________________________

“Sin embargo, pueden existir las siguientes categorias de indultos


inconstitucionales.
(...)
2) Los espúrios por irrazonabilidad. Es el caso, por ejemplo, de que
resulten palmariamente arbitrarios, productos de un innegable
favoritismo, o concedido con respecto a delitos inindutables, según el
derecho internacional, también si hubiere um error de persona o causa,
etcétara.” (griufou-se)
________________________________________________________

Em termos propositivos poderíamos enquadrar a manifestação do desvio de


finalidade no caso em exame do seguinte modo: como o ato expedido visou contemplar
exclusivamente um interesse pessoal do agente público, estranho a qualquer interesse
público, por beneficiar amigo íntimo, deverá ser invalidado por desvio de finalidade por
este E. Supremo Tribunal Federal.

. Mas não é só. Outros elementos hão de ser considerado para caracterizar os
descumprimentos a preceitos fundamentais, para além do desvio de finalidade, no caso
em exame.

VI.
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA (ART. 37, CAPUT, CF).

Decorre da impessoalidade, que “não é senão o próprio princípio da igualdade ou


isonomia”, a exigência de um tratamento igual aos administrados que se encontrem em

26
Derecho Constitucional. Buenos Aires: Astrea, vol.2, 017, p. 640-641.

15
uma mesma situação jurídica e deve ser perseguido “o objetivo certo e inafastável de
qualquer ato administrativo: o interesse público”.

A persecução de interesses particulares, como se vê no caso, onde praticado tendo


em vista o favorecimento de um indivíduo em especial e em detrimento da democracia e
de instituições democráticas essenciais, incorre em desvio de finalidade com imoralidade.
Segundo Maurice Hauriou, sistematizador da doutrina da moralidade administrativa, o
agente administrativo, atentando-se para o elemento ético de sua conduta e para finalidade
da instituição a que serve, que é o bem comum, deve decidir não apenas entre o legal e o
ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno,
mas também entre o honesto e o desonesto27.

. A situação, de nítido favorecimento indevido a uma só e específica pessoa, amiga


e aliada política do presidente, não condiz com a moralidade que se exige da
Administração.

. Marino Pazzaglini Filho28, substanciado em outros autores, conceitua a


moralidade pública, princípio positivado na Constituição Federal no caput do art. 37,
como “a ética da conduta administrativa; a pauta de valores morais a que a
Administração Pública, segundo o corpo social, deve submeter-se para a consecução do
interesse coletivo. Nessa pauta de valores insere-se o ideário vigente no grupo social,
v.g., honestidade, boa conduta, bons costumes, equidade e justiça. Em outras palavras,
a decisão do agente público deve atender àquilo que a sociedade, em determinado
momento, considera eticamente adequado, moralmente aceito”. Tais valores e objetivos
estão flagrantemente não observados no caso sobressaindo-se o interesse pessoal em
detrimento do coletivo.

27
HAURIOU, Maurice. Précis Élementaires de Droit Administratif. Paris, 1926, p. 197 apud MEIRELLES, Helly
Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 83-84.
28
https://www.paesepazzaglini.com.br/artigos/artigo8.php

16
. De acordo com o STF, tal desarmonia entre a aparência do ato (o uso de
atribuições constitucionais e orgânicas) e sua real substância (favorecer uma pessoa em
detrimento de decisão judicial e de instituições) configura quebra da moralidade
administrativa.

. Conforme depreende-se do julgamento no RE 405386, a aparência do ato deve


estar conectado a sua substância, sob pena de nulidade: “A moralidade, como princípio
da Administração Pública (art. 37) e como requisito de validade dos atos administrativos
(art. 5.º, LXXIII), tem a sua fonte por excelência no sistema de direito, sobretudo no
ordenamento jurídico-constitucional, sendo certo que os valores humanos que inspiram
e subjazem a esse ordenamento constituem, em muitos casos, a concretização normativa
de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral
consagrado pelo senso comum da sociedade. A quebra da moralidade administrativa se
caracteriza pela desarmonia entre a expressão formal (= a aparência) do ato e a sua
expressão real (= a sua substância), criada e derivada de impulsos subjetivos viciados
quanto aos motivos, ou à causa, ou à finalidade da atuação administrativa”29.

. É o que ocorreu no caso, a caracterizar a violação do princípio constitucional da


moralidade, e a denotar a quebra a impessoalidade. A impessoalidade, como visto, é
complementar ao princípio da moralidade.

. A impessoalidade reflete o princípio da finalidade, que consiste em perseguir “o


objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público”30. Assim,
segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “a Administração não pode atuar com vistas a
prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público
que tem que nortear o seu comportamento”31.

29
RE 405386, Rel Min. ELLEN GRACIE, Rel. p/ Ac. Min. TEORI ZAVASCKI, 2ª T., julgado em 26/02/2013.
30
MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 86.
31
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2003, p. 71.

17
. O decreto vergastado deixa de observar a moralidade administrativa,
desvirtuando-se de sua aparente finalidade e incorrendo em pessoalidade, fatores que o
nulificam sob o prisma do art. 37, caput da Constituição Federal.

VI.
VIOLAÇÃO À SEPARAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS PODERES

. Ao analisarmos o Decreto de 21 de abril de 2022, notamos, nos consideranda (=


motivos do ato), que um dos motivos para a sua edição a preservação da liberdade de
expressão e a inviolabilidade de opinião, dois direitos fundamentais previstos no art. 5º,
incisos IV e IX, ambos da Constituição Federal.
________________________________________________________
Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto
individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de
Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna,
justa e responsável;
Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade
em todas as suas manifestações;
Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional
discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional
de freios e contrapesos na tripartição de poderes;
Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro
baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente
cabíveis;
Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente
a missão de zelar pelo interesse público; e
Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em
vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de
opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade
de expressão; (grifou-se)
________________________________________________________

. Sucede, porém, que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição


Federal e o seu último intérprete. Isso significa dizer que é a nossa Corte Constitucional
a única legitimada pela Constituição Federal para dizer se determinado ato se insere ou

18
não dentro de seus quadrantes. Está não é, obviamente, uma competência do Poder
Executivo, mas sim do Poder Judiciário.

. Longe disso: o Chefe do Poder Executivo, em qualquer de suas esferas de atuação,


é apenas o mandatário da vontade popular, a qual deve ser exercida de acordo com os
princípios constitucionais que regem a vida dos agentes públicos, em especial a probidade
e a moralidade no trato do interesse público, em sentido amplo.32

. No caso concreto, será o Supremo Tribunal Federal quem dirá se as falas e ações
do Deputado Federal Daniel Silveira estão em sintonia com o texto constitucional; se ele
extrapolou ou não os limites do direito de liberdade de expressão. Jamais o Presidente da
República, pois este não pode, em hipótese alguma, substituir uma decisão do Poder
Judiciário. Contudo, foi isso que o Decreto de 21 de abril de 2022 ousou fazer: substituir,
antes mesmo do trânsito em julgado da Ação Penal nº 1.044, a decisão do Supremo
Tribunal Federal, dizendo, em termos práticos, que não houve crime depois de o órgão de
cúpula do Poder Judiciário ter dito o contrário, o que caracteriza, induvidosamente, pelas
razões acima, desvio de finalidade, e mais: violação à separação constitucional de
poderes.

. O instituto do indulto e da graça, sempre relevante destacar, devem ser utilizados


(como de fato são) por motivos humanitários e para se preservar o princípio da dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III, CF) em situações que clamam estas medidas, mas jamais
para o Poder Executivo rever ou substituir uma decisão judicial - ainda mais quando não
transitada em julgado e um dia após o julgamento do réu.

Ainda em relação à perspectiva da separação de poderes, o ato impugnado pode


ser visto como um desvio de finalidade que busca agredir outro Poder, no caso o STF. É
a utilização de um instrumento legal (Decreto) para atingir um fim ilegal (confrontar o
próprio STF).

32
MS 34070 MC/DF, p. 17.

19
Conforme lição de Levitsky e Ziblatt uma das defesas democráticas é a aquilo que
se intitula forbearance (na tradução livre, abstenção). Segundo os autores, a forbearance
é uma norma crítica para a sobrevivência do regime democrático, que consiste,
basicamente, no ato de se autoconter no exercício de um direito ou poder legalmente
estatuído.33 Por exemplo, quando a noção de forbearance é forte numa democracia,
políticos evitam determinadas ações, mesmo que tecnicamente dentro de suas
prerrogativas, se percebem que podem causar dano à estrutura do sistema.34

Nessa mesma perspectiva, Mark Graber identifica diversos mecanismos


escamoteados de ataque ao constitucionalismo contemporâneo que conduzem ao
esvaziamento da democracia constitucional. Assim, ele identifica o “Autoritarismo
furtivo” (tradução livre de “Stealth authoritarianism”), “constitucionalismo abusivo”
(tradução livre de “Abusive constitutionalism”) e “jogo duro constitucional” (tradução
livre de “constitutional hardball”) são as ferramentas que minam a democracia
constitucional. 35

Nessa perspectiva, investidas autocráticas fazem uso do arcabouço legal existente


para conseguirem a aprovação de novas leis para reforçar o seu poder e impor restrições
às instituições rivais. Ilustrativa nesse sentido é a expressão cunhada por Landau,
“constitucionalismo abusivo”, a qual é utilizada para descrever o cenário em que o
constitucionalismo democrático é usado por líderes políticos para destruição da própria
democracia constitucional. 36

33
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. How democracies die, Nova York: Crown, 2018, p. 106. Ver: ABBOUD,
Georges. DEMOCRACIA E FORBEARANCE: REFLEXÕES ACERCA DAS REGRAS IMPLÍCITAS NO JOGO
DEMOCRÁTICO, in Revista de Processo, n. 299, 2020, versão online.
34
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. How democracies die, cit., p. 106. Ver: ABBOUD, Georges.
DEMOCRACIA E FORBEARANCE, op cit..
35
GRABER, Mark A., What’s in Crisis? The Postwar Constitutional Paradigm, Transformative Constitutionalism, and
the Fate of Constitutional Democracy. In: GRABER, Mark A., LEVINSON, Sanford, TUSHNET, Mark. Constitutional
Democracy in Crisis?, New York: Oxford University Press, 2018, p. 668. Ver: ABBOUD, Georges. Democracia para
quem não acredita, Belo Horizonte: Letramento, 2021, p. 155.
36
GRABER, Mark A., What’s in Crisis? The Postwar Constitutional Paradigm, Transformative Constitutionalism, and
the Fate of Constitutional Democracy. In: GRABER, Mark A., LEVINSON, Sanford, TUSHNET, Mark. Constitutional

20
No caso sob exame, o desvio de finalidade do Decreto Presidencial é a
materialização evidente do constitucionalismo abusivo. Lançando mão do subterfúgio de
utilização de instrumento legal busca-se na realidade atingir a própria jurisdição
constitucional. Assim, o que se escamoteia no instituto da graça, ora concedida, é um
ataque deliberado à instituição do STF.

Desse modo, o que a dogmática tradicional designa como desvio de finalidade


também pode ser vislumbrado perante a doutrina contemporânea como
constitucionalismo abusivo. A real finalidade do ato é esvaziar a decisão do STF de modo
a atingir sua credibilidade e desestabilizar sua funcionalidade corroborando uma narrativa
política já apresentada contra as instituições judiciais em especial o STF e o TSE.

O Decreto ofende ao princípios da separação dos poderes, previsto no art. 2º da


CF/88.

VII
JULGAMENTO AINDA NÃO ENCERRADO DEFINITIVAMENTE.
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E VEDAÇÃO À PROTEÇÃO
DEFICIENTE (Untermassverbot)

. Como dito anteriormente, o julgamento do Deputado Federal Daniel Lúcio da


Silveira, realizado em 20.04.2022, ainda não se encerrou; ainda não transitou em julgado.

. O fato de não haver condenação transitada em julgado obsta qualquer eficácia


imediata do julgamento, haja vista que apenas quando esgotados todos os recursos
disponíveis à defesa, é que o Deputado Federal Daniel Lúcio da Silveira passará a ter o
status de condenado, com todas as consequências previstas na legislação penal e eleitoral.

Democracy in Crisis?, New York: Oxford University Press, 2018, p. 678-681. Ver: ABBOUD, Georges. Democracia
para quem não acredita, Belo Horizonte: Letramento, 2021, p. 155.

21
. Isto ocorre porque, assim como o indulto, a graça é uma forma revisão externa,
de competência exclusiva do Presidente da República, da sentença condenatória
transitada em julgado. Sem o trânsito em julgado, não há espaço para a concessão de
graça ou indulto, o que eiva o ato em questão de inconstitucionalidade formal.

. O Código de Processo Penal, que regulamenta a graça, o indulto e a anistia,


acertadamente alocou estes institutos no Livro IV “Da Execução”. E no art. 669, que abre
este livro, estabelece-se o óbvio: a sentença penal condenatória só é exequível após o
trânsito em julgado. Antes do trânsito em julgado, diversos atos de execução não podem
ser realizados, dentre eles a concessão de graça ou indulto. E a ratio legis é singela: até o
trânsito em julgado, quando se forma a coisa julgada, é juridicamente possível a
alteração da decisão condenatória.

. Desta forma, ainda sob a análise dos pressupostos dos atos administrativos, pode-
se afirmar que o Decreto de 21 de abril de 2022 é inválido, porquanto não observa o
pressuposto objetivo do ato, no caso o motivo legal. É dizer: não houve incidência da
hipótese da norma jurídica à situação do mundo fenomênico.

. Sobre o momento em que o indulto (geral ou individual) pode ser concedido,


assim já grafava Pontes de Miranda37, com apoio em jurisprudência história do Supremo
Tribunal Federal, em seus comentários à Constituição de 1946, in verbis:
________________________________________________________
“O indulto só se pode conceder depois de passada em julgado a
condenação (Supremo Tribunal Federal, 3 de julho de 1909)”
________________________________________________________

. Mas não é só. Outro pressuposto do ato administrativo e, em última instância o


princípio da legalidade, foi violado, qual seja: o pressuposto subjetivo do ato. É no

37
Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen Editor, vol. 2, p. 345.

22
pressuposto subjetivo que se investiga o sujeito que produz o ato administrativo. Entre os
diversos pontos que se analisa, a competência do sujeito é uma das mais relevantes.

. Não se discute ao analisar este pressuposto, a competência, in abstrato, do


Presidente da República em conceder indulto e graça. É uma competência exclusiva
conferida pela Constituição Federal. O que se discute é o momento em que se permite o
uso desta competência. Como vimos anteriormente, a graça e o indulto pressupõem o
trânsito em julgado da sentença condenatória, o que significa dizer que enquanto não
houver o trânsito em julgado, o Presidente da República não pode conceder graça, o
indulto individual.

. A competência do Presidente da República para indultar o Deputado Daniel Lúcio


da Silveira somente poderá ocorrer, ad argumentandum tantum, quando houver o trânsito
em julgado da Ação Penal nº 1.044. Até lá, não pode conceder a graça, o que acarreta a
invalidade do Decreto de 21 de abril de 2022 por violação aos pressupostos objetivo e
subjetivo do ato administrativo.

Caso se admita o contrário, sob o ponto de vista mais amplo, se relegará à proteção
deficiente, violando-se a Untermassverbot, o núcleo duro constitucional do Direito Penal,
promovendo, neste caso específico, uma política criminal excessivamente leniente,
incapaz, por diversos vícios e desvios de origem, de proteger a probidade administrativa
que se exige dos agentes políticos – e mais – a própria noção de Estado de Direito que
nos é, constitucionalmente, tão cara e essencial, e que consistiu, ela própria, no principal
fundamento da condenação do Deputado Federal Daniel Lúcio da Silveira.

VIII
DOS REQUISITOS AUTORIZADORES PARA A CONCESSÃO DE MEDIDA
CAUTELAR AD REFERENDUM (ART. 5º DA LEI 9.882/99)

23
. A esta altura resta evidente a presença dos requisitos do fumus boni iuris e do
periculum in mora para a concessão monocrática, ad referendum, de medida cautelar.

. À luz das razões aduzidas na presente ADPF, a única forma de salvaguardar o


modelo constitucional atualmente vigente é determinando, inaudita altera parte, a
suspensão da eficácia de todo o Decreto de 21 de abril de 2022, nos termos do art. 5º
§ 1º c/c § 3º, primeira parte, ambos da Lei 9.882/99.

. De um lado, restaram plenamente demonstrados os diversos vícios de


constitucionalidade que circundam o Decreto de 21 de abril de 2022, editado pelo
Presidente da República um dia após a condenação (não transitada em julgado) do
parlamentar Daniel Silveira, quais sejam: (i) desvio de finalidade e invalidade por
inobservância dos pressupostos objetivo (motivo legal) e subjetivo (competência) dos
atos administrativos, que se escoram no princípio constitucional da legalidade; (ii)
violação à separação constitucional dos poderes; e (iii) inconstitucionalidade formal e
vedação à proteção deficiente.

. Ou seja, está sobejamente caracterizada a presença do fumus boni iuris, fundada


em farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

. De outro lado, no que se refere à extrema urgência e ao perigo de lesão grave


(periculum in mora), basta observar que, se não concedida a medida cautelar, persistirá
a violação indiscutível da CF/88, na medida em que o referido Decreto extinguiu a
punibilidade do parlamentar Daniel Lucio da Silveira, afastando todas as
consequências penais e eleitorais (perigo de lesão grave).

Do mesmo modo, se não deferida a liminar imediatamente, ficaria criado um


perigoso precedente que permitiria a ingerência do Executivo na extinção de um processo
judicial em andamento. A medida liminar objetiva suspender imediatamente os efeitos
dessa violação à Separação de Poderes.

24
Além disso, se não concedida a cautelar, o referido parlamentar poderá
deixar de utilizar as medidas restritivas que lhe foram impostas (= tornozeleira
eletrônica) e, também, fugir do Brasil (extrema urgência).

. Dessa forma, impõe-se, nos termos do art. 5º, §1º c/c §3º, ambos da Lei n.
9.882/1999, a imediata suspensão monocrática da eficácia de todo o Decreto de 21 de
abril de 2022, ad referendum, até que se julgue definitivamente a presente Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental.

IX
DOS PEDIDOS
. Ante o exposto, requer-se:

a) a concessão monocrática de medida cautelar, em sede de liminar (art. 5º, §1º c/c
§3º, da Lei n. 9.882/1999), inaudita altera parte, ad referendum, para o fim de
suspender a eficácia de todo o Decreto de 21 de abril de 2022, até que se julgue
definitivamente a presente Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental;

b) independentemente da concessão da medida cautelar, no mérito, a procedência do


pedido para, ao final, declarar-se a inconstitucionalidade do Decreto de 21 de abril
de 2022, pelas razões apresentadas ao longo desta petição inicial;

c) a intimação da Advocacia-Geral da União, de acordo com o §3º do art. 103 da


Constituição Federal, para que se manifeste no prazo legal;

d) a abertura de vista dos autos à Procuradoria-Geral da República (§1º do art. 103


da Constituição Federal), para manifestação quanto ao mérito da presente ação;

25
e) a prioridade de inclusão na pauta de julgamento no Plenário deste E. Supremo
Tribunal Federal, observado o inciso VIII do art. 145, do RISTF; e

f) a distribuição, por prevenção, em virtude de conexão com a ADPF 964, da


presente à Ministra Relatora Rosa Weber.

. Por fim, requer-se que das intimações oficiais pela imprensa conste
exclusivamente os nomes dos Drs. Walfrido Jorge Warde Júnior, OAB/SP n.
139.503, Pedro Serrano, OAB/SP n. 90.846, Rafael Ramires Araujo Valim, OAB/SP
n. 248.606, Gustavo Marinho de Carvalho, OAB/SP n. 246.900, Georges Abboud,
OAB/SP n. 290.069, todos com escritório na Alameda Itu, n. 852, 1º e 7º andar, CEP
01421-002, São Paulo – SP; André Brandão Henriques Maimoni, OAB/DF n. 29.498
e Alberto Brandão Henriques Maimoni, OAB/DF 21.144, com escritório no SCN,
Quadra 01, Bloco F, sala 903, Brasília-DF, sob pena de nulidade.

Termos em que,
Pede deferimento.
São Paulo, 23 de abril de 2022.

Walfrido Jorge Warde Júnior André Maimoni


OAB/SP 139.503 OAB/DF nº 29.498

Pedro Serrano
OAB/SP 90.846

Gustavo Marinho de Carvalho Rafael Ramires Araujo Valim


OAB/SP n° 246.900 OAB/SP n° 248.606

Georges Abboud Alberto Maimoni


OAB/SP 290.069 OAB/DF 21.144

26

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