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DETERMINANTES ECONÔMICOS, SOCIAIS E POLÍTICOS DA EDUCAÇÃO

Oder José dos Santos

Introdução

Ao trabalhar a primeira parte da disciplina Profissão Docente: bases histórico-


sociológicas, pretendemos estudar certas relações que se estabelecem entre a educação, a
escola e os professores na sociedade. Na verdade, o profissional docente, o professor
ator/autor de práticas pedagógicas, ao desenvolver a sua ação, não o faz de forma
arbitrária. Essa sua ação não decorre de escolha individual aleatória ou apriorística. Ao
contrário, resulta de determinações sociais que não só o incluem, mas até mesmo o
ultrapassam, pois a prática pedagógica é sempre social, nunca individual. Logo, refletir
sobre a prática pedagógica implica refletir sobre o contexto que lhe dá sentido e
significado. Portanto, nosso intuito, nesta primeira parte da disciplina, é levá-lo a
compreender que os processos educacionais e de escolarização se relacionam com o
contexto em que se inserem.
Isso posto, conduziremos este estudo de modo que você perceba que, em termos
didáticos, podemos estabelecer diferentes níveis de conhecimento. Assim, suponhamos
que queiramos conhecer como anda a escolarização das crianças com sete anos de idade
no Brasil. Ao procurar nos informar sobre essa questão, por exemplo, dirigindo-nos ao
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP -, vamos
constatar que um terço dos estudantes da primeira série do ensino fundamental, em 2003,
foram reprovados ou abandonaram o sistema escolar.1 Diante desses dados, poderíamos
afirmar que já conhecemos uma medida do fracasso escolar no nosso país. Como você
pode observar, esse índice é verdadeiramente alarmante pela sua dimensão. Nosso
conhecimento a respeito desse fenômeno se enquadraria, didaticamente falando, no que
poderíamos denominar nível descritivo.
Por outro lado, sabemos que diversos fatores estão associados ao fracasso escolar.
Diferentes pesquisas informam-nos que, normalmente, o denominado fracasso escolar
está associado às condições do contexto familiar das crianças desfavorecidas, como:
1
Censo Escolar, Sinopse Estatística da Educação Básica – 2003, Brasília, maio de 2004, MEC-INEP.
2

baixa escolarização de seus pais, precárias condições de vida dessas famílias. São
apontados, ainda, fatores situados no âmbito das escolas freqüentadas por essas crianças,
como: poucos recursos pedagógicos, baixa qualificação dos profissionais da educação.
Independentemente desses fatores, ou do número deles, diríamos que, nesse ponto, agora
estaríamos em outro nível de conhecimento: o nível explicativo. Com esse exemplo
quisemos mostrar que, ao associarmos dois ou mais fatores entre si, estamos explicando o
fenômeno. Isto é, o fracasso escolar decorre, no exemplo citado, das precárias condições
de vida das famílias das crianças, ou então, das precárias condições das escolas que
freqüentam, ou ainda, de ambos os fatores.
Usualmente os sistemas escolares contentam-se com esses dois níveis de
conhecimento: descritivo e explicativo. Bastaria, então, saber que certo fenômeno ocorre
por causa de certos fatores. Aliás, as escolas, de maneira geral, resumem as suas
atividades pedagógicas a esses dois níveis de conhecimento. Consideram suficiente
apresentar a ocorrência de determinado fenômeno e explicá-lo a partir da associação de
certos indicadores ou fatores.
No entanto, devemos sempre nos perguntar: por que as coisas são assim? Elas
devem ser sempre assim? Ocorrem em todas as sociedades e em todos os tempos? Qual a
sua razão de ser? Quais os princípios ou os fundamentos que as determinam? As
respostas a essas perguntas configurariam outro nível de conhecimento: o nível
compreensivo. Eis o nosso propósito: ultrapassar os níveis descritivo e explicativo ao
estudar determinado fenômeno, até atingir o nível compreensivo, procurando, dessa
forma, examinar a razão de ser do mesmo.

1- O conhecimento e a educação

Do exposto anteriormente, podemos depreender que inúmeras são as abordagens e


orientações possíveis no que diz respeito aos fenômenos sociais. Da mesma forma,
facilmente percebemos, na sociedade, diversas formas de percepção desses fenômenos as
quais se expressam nos diferentes significados atribuídos às coisas. Tais diferenças
decorrem de diferentes práticas sociais, as quais determinam diversos pontos de vista.
Entendendo-se por conhecimento a apropriação intelectual das coisas, dos fenômenos,
3

enfim, daquilo que se transformou em objeto de interesse para nós, podemos afirmar que
há diferentes conhecimentos.
Entretanto, o conhecimento é produto de um processo social coletivo. Cada
indivíduo desenvolve o seu saber no interior de um grupo social, no interior de
determinada classe social, de determinada sociedade. Assim, as classes sociais
desenvolvem práticas sociais distintas. Em conseqüência, não há possibilidade de a
percepção de uma mesma realidade ser idêntica em todas as classes sociais que compõem
determinada sociedade.
Mas quem procura adquirir conhecimento são os homens e são eles, também, que
produzem conhecimento enquanto produzem sua própria vida. Conhecer e existir fazem
parte de um mesmo processo social. Sendo o homem fundamentalmente um ser social,
para existir, tem de conhecer.
Vejamos mais detidamente esse processo. Sabemos que da relação entre um
homem e uma mulher é possível o nascimento de um indivíduo. Dir-se-á, então, que esse
indivíduo é o produto de uma herança biológica. Ele traz consigo a composição genética
oriunda daquela relação. Mas se a composição biológica desse indivíduo lhe assegura a
condição necessária para a sua existência como indivíduo, não lhe assegura, contudo, a
condição suficiente para se tornar humano.
Esclarecendo melhor essa questão, podemos citar os tão conhecidos casos de
crianças isoladas, confinadas, ou até mesmo criadas por animais. O pouco ou nenhum
contato delas com humanos impossibilitou-lhes a passagem, usualmente esperada, da
situação de indivíduo para a de homem.2 Lembremos, aqui, a história de Amala e
Kamala. Conta-se que, em 1920, na Índia, o Reverendo Singh teria confirmado um boato
que circulava entre os camponeses de Midnapore. Tratava-se da existência de crianças
vivendo no meio de lobos. Colocando um posto de observação em cima de uma árvore,
do lado de fora de uma grande caverna, ao cair da noite, pôde observar que entre os lobos
que saíam, um a um, da caverna encontrava-se uma mãe e seus filhotes. E entre os
filhotes, dois deles pareciam homens, apesar de não agirem como tal.
Após ter organizado uma expedição que massacrou os lobos, resgataram-se as
crianças-lobos. Uma delas, quando foi encontrada, denominada Amala, tinha um ano de

2
http://www.feralchildren.com/en/index.php exemplos de vários casos.
4

idade e veio a morrer um ano mais tarde. A outra, Kamala, de oito anos de idade, viveu
até 1929. Elas se comportavam como lobos e até mesmo sua aparência era de lobo. Não
sabiam andar sobre os pés, mas se moviam rapidamente de quatro, criando, assim, calos
duros nos joelhos e nas palmas das mãos. Mexiam as narinas para cheirar, queriam
apenas comer carne crua, caçavam animais selvagens, tinham hábitos noturnos, evitavam
outras crianças, preferiam a companhia de cachorros e gatos. Ao dormirem, enrolavam-se
juntas no chão. Eram ativas e uivavam como lobos. Nunca choravam ou riam.
A propósito, leia o relato a seguir:

A evolução de Kamala, registrada pelo casal de missionários que cuidava dela em um


orfanato, foi significativa, porém limitada. Ela conseguiu aprender a caminhar só com as pernas e
mudar de hábitos alimentares, aprendeu muitas palavras e sabia usá-las, embora nunca tenha
chegado a falar com fluência. Apesar dos progressos de Kamala, a família do missionário
anglicano que cuidou dela, bem como outras pessoas que a conheceram intimamente, nunca sentiu
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que fosse verdadeiramente humana.

O caso das crianças-lobos leva-nos a concluir que o ser humano não nasce do
útero materno completamente humano. Ao contrário, além da herança biológica,
necessária para o aparecimento de um indivíduo, faz-se necessário, ainda, uma segunda
herança - a herança sociocultural. Só então, o indivíduo se transforma num ser
verdadeiramente humano.
Ora, esse fenômeno de transformação é um processo social. O indivíduo torna-se
humano mediante a interação com outros homens. Somos portadores de uma herança
genética, mas a manifestação dessa herança resultará de um processo social de interação
com outros no interior de determinado contexto social. A esse processo, denominamos
educação.
Nesse processo social, podemos identificar:
• um indivíduo cuja fisiologia humana, plasticidade mental com
capacidades cognitivas facultam-lhe a capacidade de aprender;
• os primeiros agentes educativos – a mãe e o pai – (a família), cada um
deles com o seu próprio sistema ideológico particular;

3
Disponível em: http://www.aprendebrasil.com.br/articulistas/luca_bd.asp?codtexto=220 Acesso em: 03
abril 2007
5

• um conteúdo a ser ensinado – as maneiras de ser, agir, pensar/falar - que


a família pertencente a determinada classe social considera como o mais
adequado àquele indivíduo;
• um determinado processo de ensino – o que denominaríamos pedagogia
da prática decorrente da experiência, da observação, do ensaio e erro, do
trabalho do dia-a-dia;
• uma interação social entre os agentes do processo – pais/filho(a) – que,
ao agirem de forma prática, configuram, por conseguinte, um
determinado tipo de prática social.
Em decorrência dessas interações, começa a surgir, de forma lenta, o novo
homem com um novo sistema ideológico particular, característico de uma personalidade
única. É, portanto, nesse processo social, que capacidades humanas como andar,
conversar, enxergar, usar gestos, discriminar sons, reagir a diferentes situações e
ambientes, interagir com os outros são aprendidas. A herança biológica, como vimos, nos
fornece condição necessária para aprendermos, mas não garante o seu desenvolvimento.
Tornamo-nos humanos mediante a interação prática com outros homens. Afinal, o
homem é um ser social.
Desenvolvidas essas capacidades básicas - primeiro momento educativo -,
ampliam-se as práticas sociais. Inicialmente, restrita ao âmbito familiar, amplia-se aos
parentes próximos, aos grupos de vizinhança, à comunidade, ao ambiente natural e social.
Como os homens são seres de necessidades, e elas não são satisfeitas sem ações práticas,
eles são obrigados a agir. Aliás, desde cedo, a humanidade aprendeu que o homem, para
produzir e reproduzir a sua vida, tem que exercer uma atividade prática, material. Como a
ação sobre o meio natural e social se dá não de forma direta, mas mediante uma prática
social, podemos afirmar que as práticas humanas se realizam no âmbito das instituições
sociais. E é nesse fazer que os homens pensam. Porque agem, são capazes de pensar.
Assim, poderíamos afirmar que os homens são obrigados a agir; no entanto, não podem
escolher, a priori, o tipo de ação desejada. Esta decorre de determinações sociais prévias.
Como vimos antes, eles atuam no âmbito das instituições sociais, ou seja, dos grupos, das
classes sociais.
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Ao pensar sobre as ações que estão realizando, os homens aprendem. E nesse


processo de fazer/pensar, os homens se educam. Isto é, tornam-se agentes de sua própria
educação. E, assim, vão, a cada dia, aumentando e aprofundando o conhecimento
adquirido. E mais: estando no meio social ao qual pertence, o ser humano vai extraindo,
da experiência vivida, da observação dos outros, da tradição e do próprio ambiente, o
conhecimento necessário à satisfação das suas necessidades. Esse tipo de conhecimento
pode ser denominado conhecimento de senso comum.
Cabe, aqui, uma advertência: não devemos confundir educação e escola. Podemos
mesmo afirmar que a maior parte da história da humanidade não conheceu a instituição
escolar tal como nós a concebemos hoje. Ao contrário, a educação dava-se no próprio
local de moradia ou de trabalho. Estava intimamente associada à vida social. Os
conteúdos da aprendizagem vinculavam-se, estreitamente, às necessidades das relações
de produção, às exigências da sobrevivência. Os procedimentos didáticos decorriam da
pedagogia da prática. Conseqüentemente, a educação estava sempre vinculada às
necessidades humanas, conforme o ambiente social em que se inseria. Diferenciava-se, de
acordo com o tipo de sociedade e com a estrutura de classes daí decorrente. Assim, nas
sociedades em que predominava o modo de produção escravocrata, a educação devia
contribuir para a produção de escravos e de senhores de escravos. Já nas sociedades
feudais, os objetivos propostos para a educação voltavam-se para a produção de servos e
senhores feudais.
Em última análise, queremos enfatizar que não podemos esquecer que a educação
é um processo social básico para que os homens existam como seres humanos, sendo
responsável pelo aprendizado deles em sociedade. Ela decorre de práticas sociais que se
desenvolvem mediante instituições sociais e são determinadas socialmente. Dessa
assertiva, uma conseqüência de ordem metodológica devemos extrair: para compreender
a educação e não apenas descrever ou mesmo explicar o seu processo, devemos
compreender, primeiramente, como se estrutura a sociedade, pois é ela que determina o
desenho e a forma de realização do processo educacional. É a sociedade que delimita o
campo de determinação no interior do qual os diferentes processos educativos vão
ocorrer. Esse mesmo princípio metodológico deve ser aplicado à instituição escolar. Ou
seja, para compreender os processos educativos e escolares vigentes nas sociedades
7

capitalistas atuais, teremos de compreender como se estrutura a sociedade capitalista hoje


pois é ela que fornecerá os determinantes básicos da educação e da escola e, por
conseguinte, da prática docente.
Isso posto, perguntamos:
• Quais os objetivos da educação nas sociedades contemporâneas,
capitalistas?
• Quando aparece a instituição escolar e que objetivos lhe foram propostos
pelo capitalismo atual?

2- A sociedade capitalista

A reflexão sobre o tema em pauta, consoante nosso ponto de vista, leva, em


primeiro lugar, a compreender a estrutura da sociedade capitalista. Por questões didáticas,
para isso, selecionamos os aspectos ou indicadores dessa sociedade que estejam mais
relacionados com o nosso problema. Portanto, demos preferência aos aspectos que se
vinculam mais diretamente à problemática educação e escola. Quanto ao nível de
conhecimento adotado para nosso estudo, daremos ênfase ao nível compreensivo; os
níveis descritivo e explicativo só aparecerão quando necessários à compreensão do
fenômeno em pauta.
Comecemos, pois, o estudo da sociedade capitalista procurando entender o que
venha a ser capital. Adiantamos que capital não é dinheiro, nem máquinas, nem ações,
por exemplo. Trata-se, quando muito, de símbolos do capital. Dirá Karl Marx que

[...]a propriedade de dinheiro, meios de subsistência, máquinas e outros meios de produção ainda
não faz de uma pessoa um capitalista se falta o complemento, o trabalhador assalariado, a outra
pessoa, que é obrigada a vender a si mesma voluntariamente. [...]capital não é uma coisa, mas uma
4
relação social entre pessoas intermediada pelas coisas

Como você pode observar nesse trecho, Marx chama-nos a atenção para o real
significado de capital. Segundo ele, não devemos entender o capital como um bem
material, nem como símbolo monetário, mas, fundamentalmente, como uma relação

4
Marx, Karl – O Capital. Volume I. Livro Primeiro, Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 296.
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social. De um lado dessa relação, encontra-se o capitalista; do outro, os trabalhadores. Se


se rompe essa relação, se os trabalhadores começam, por exemplo, a trabalhar por conta
própria, não há possibilidade da existência da relação capitalista. As coisas, tais como o
dinheiro, as máquinas, a matéria-prima, as ações, etc. só funcionam como capital
enquanto determinados homens se comportarem como trabalhadores.
Ora, a questão que nos é colocada, agora, em decorrência do exposto, é saber
como se obtêm trabalhadores e capitalistas. Sabemos que os homens não nascem prontos.
Vimos que a herança biológica nos fornece apenas as condições necessárias para a
transformação de indivíduos em homens. Faltam, ainda, as condições suficientes que os
transformem em trabalhadores e capitalistas. Essas deverão ser preenchidas pela
educação. Sabemos, ainda, que o tipo de educação é variável de acordo com o tipo de
sociedade. Na sociedade que estamos analisando – a sociedade capitalista –, torna-se, por
conseguinte, necessária a produção de trabalhadores e capitalistas. Nesse sentido,
podemos afirmar que, no capitalismo, o objetivo central atribuído à educação e à escola
será, como teremos oportunidade de mostrar, contribuir para a produção e a reprodução
da força de trabalho. A educação e a escola no sistema capitalista fazem parte das
condições gerais de produção.
Consideraremos, entretanto, aqui, apenas como se dá a produção de trabalhadores
no mundo capitalista. Assim, o futuro trabalhador, quando criança, estabelece interações
sociais com os adultos e, de forma prática, começa a aprender as maneiras de ser, de agir,
de pensar/falar conforme o seu grupo ou classe social de origem. Posteriormente, deverá
se dirigir à escola, no intuito de receber determinado tipo de formação. Nesse ponto, ele
começa um processo institucionalizado de aprendizagem. Mas trataremos esse processo
de escolarização posteriormente. Concentraremos a atenção, agora, somente nos
processos educativos que ocorrem no próprio local de trabalho.
Com efeito, vimos que, de acordo com Marx, o trabalhador, ou seja, aquela outra
pessoa da relação social, é “obrigada a vender a si mesma voluntariamente”. Isto é, a
grande maioria das pessoas, no capitalismo, para sobreviver, tem, obrigatoriamente, de
vender a si mesma, ou seja, vender a sua força de trabalho para os capitalistas em troca de
um salário.
9

Ora, não estamos mais em uma sociedade escravocrata em que o escravo é um


bem de propriedade do senhor de escravos. Contudo, a situação do trabalhador, hoje, não
é muito diferente: agora, no capitalismo, as pessoas transformam-se em trabalhadores
assalariados porque vendem o uso de sua força de trabalho por determinado número de
horas em troca de um salário. Na verdade, são trabalhadores/escravos. Nesse contexto, a
dinâmica do processo de produção no capitalismo conduz à redução/eliminação das
formas de produção e das relações sociais pré-capitalistas bem como das atividades de
trabalho realizadas por conta própria. Daí, o trabalhador é obrigado a vender o uso de sua
força de trabalho ao mercado de trabalho, e, voluntariamente, escolher o local de
trabalho.
Visto por esse ângulo, o tempo pode ser considerado a substância daquela relação
social. O tempo constitui o elemento básico dessa relação e, em função disso, constitui,
também, o elemento gerador de conflitos sociais. Não é difícil entender a duplicidade do
papel do tempo nessa relação, pois, como sabemos, enquanto os trabalhadores procuram
reduzir o tempo que despendem no processo de trabalho, os capitalistas procuram usar,
ao máximo, a força de trabalho que contrataram. Desse processo, resultam conflitos que
marcam o dia-a-dia nos locais de trabalho. Além disso, a força de trabalho é um elemento
articulador de dois pólos que têm em comum o tempo de trabalho. De um lado, o tempo
de trabalho necessário para a produção/reprodução da força de trabalho; de outro, o
tempo de trabalho despendido pela força de trabalho no processo de produção. No
primeiro pólo, o tempo de trabalho é menor que no segundo. Essa diferença é que deu
origem à famosa ‘teoria da mais-valia’ de Karl Marx. Nessa teoria, Marx mostra que os
capitalistas, ao adquirirem, mediante o pagamento de um salário, o uso da força de
trabalho durante um dado período de tempo, fazem com que a força de trabalho seja
capaz de desenvolver um tempo de trabalho superior ao incorporado nos produtos
consumidos pelos trabalhadores. Nisso consiste a exploração capitalista. Ela se dá no
interior do próprio processo de produção, é força de trabalho em processo de ação.
Posteriormente, outras implicações dessa teoria serão extraídas e discutidas. No
momento, daremos prioridade ao aspecto da capacidade de trabalho da força de trabalho.
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2.1- Educação e trabalho

Chegando ao local de trabalho, o trabalhador, de forma prática, desenvolve a sua


tarefa e, nesse processo, isto é, ao trabalhar, ele se educa. Trabalhar e educar-se passam a
ser partes de um único processo. Explicando melhor: o fazer do trabalhador é que permite
que ele não só se eduque como também trabalhe e, ao trabalhar, aprenda, cada vez mais, a
conduzir o processo de trabalho. Tal aprendizagem se dá em duas dimensões:
• Dimensão técnica;
• Dimensão organizacional.
Passemos, pois, à análise dessas dimensões.

2.1.1- Dimensão técnica

Quando um trabalhador se dirige ao local de trabalho e inicia suas atividades, ele


estabelece uma relação social com outros trabalhadores e com o seu objeto de trabalho ou
matéria-prima. Essa relação, estabelecida entre ele e a matéria-prima, é permeada pelo
que poderíamos denominar instrumentos de trabalho. Trata-se de uma relação, como
você pode observar, não direta, mas, sim, mediatizada por instrumentos de trabalho.
Esses instrumentos, verdadeiros meios auxiliares de trabalho, possuem alguma base de
funcionamento, por exemplo, manual, mecânica, microeletrônica, nuclear, entre outras.
Pois bem, denominamos técnica, a base de funcionamento dos instrumentos de trabalho.
Assim, comumente ouvimos: neste tipo de trabalho lança-se mão de uma técnica
mecânica ou eletrônica, por exemplo, para referir-se à base de funcionamento dos
instrumentos que são utilizados em determinado tipo de trabalho. Além disso, devemos
observar que os instrumentos de trabalho com suas respectivas bases de funcionamento,
isto é, as técnicas, se inserem no âmbito das relações sociais. Aliás, como sabemos, o
capital é fundamentalmente uma relação social. Assim diremos que, nesse caso, os
instrumentos e as técnicas foram inseridos em relações sociais de produção capitalista. A
esse processo de inserção denominamos tecnologia. Ou, se se desejar, materialização de
relações sociais. Entretanto, a tecnologia não pode ser vista simplesmente como uma
forma material, como um simples dado, mas, sim, como criação humana em
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determinadas condições históricas. Ela expressa a forma de trabalho, a materialização de


relações sociais.
Conforme salienta Marx: “[...] o que distingue as diferentes épocas econômicas
não é tanto o que se fabrica, como a maneira de fabricar, os meios de trabalho pelos quais
se fabrica. Os meios de trabalho medem o desenvolvimento do trabalhador e expõem as
relações sociais em que se trabalha”.5
Retomando a questão da tecnologia, as formas das relações sociais de produção
determinam o tipo de tecnologia. É importante esclarecermos que a tecnologia não é
neutra, ao contrário, está, desde a sua origem, vinculada ao modo de produção que lhe
serviu de suporte. Nesse caso, o modo de produção capitalista gera a tecnologia
capitalista. Dessa forma, as relações sociais que, no capitalismo, expressam os conflitos
entre trabalhadores e capitalistas, materializam-se em certo tipo de tecnologia e
determinam os parâmetros definidores da produção dos conhecimentos técnico-
científicos. Esses parâmetros são ditados pela necessidade do aumento dos lucros. E, para
aumentá-los, temos de gerar novos conhecimentos, novas técnicas capazes de aumentar a
produtividade no interior do processo de trabalho. Produzir mais em igual ou menor
tempo é a definição de produtividade. Eis a obsessão maior no capitalismo.
Assim, o modo de produção capitalista gera a tecnologia capitalista a qual, por
sua vez, vai determinar o tipo de trabalho a ser seguido no interior do processo de
trabalho, a forma de relacionamento social entre os trabalhadores, enfim, vai determinar o
nível de conhecimento e o tipo de qualificação que deva apresentar a força de trabalho.
Conseqüentemente, como Gorz assinala, a

[...] nossa sociedade nega a etiqueta de ciência e de científico aos conhecimentos,


capacidades e qualificações que, não integrados nas relações de produção capitalistas, são sem
valor e sem utilidade para o capitalismo e, por esta razão, não constituem objeto de um ensino
6
formal no quadro dos sistema institucional de formação.

2.1.2- Dimensão organizacional

5
Marx, Karl. Le Capital. Paris: Editions Sociales, 1971. Tome I. Livre Premier, p. 182.
6
Gorz, André. Caracteres de classe de la science et des travailleurs scientifiques. Les Temps Modernes,
Paris, n. 330, 1974.
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Embora tenhamos proposto analisar o local de trabalho, examinando,


separadamente, cada uma das dimensões – dimensão técnica e a dimensão organizacional
– como sabemos, elas ocorrem simultaneamente.
Pois bem, para o entendimento da dimensão organizacional não podemos
esquecer, como dito anteriormente, que os trabalhadores estabelecem também relações
sociais com outros trabalhadores. Ao estabelecerem essas relações, nesse processo de
inter-relacionamento social, eles se educam. Em outras palavras, nessa atividade prática,
que se dá no interior de determinada forma organizacional, ocorre um processo
educativo.
Contudo, ao serem contratados para desenvolver certas tarefas, os trabalhadores
deparam-se com determinadas normas, regras ou procedimentos que devem seguir para a
consecução do trabalho e obtenção do salário. Defrontam-se, assim, com uma
organização do processo de trabalho.
Não podemos precisar o momento histórico da primeira organização do
processo, de trabalho capitalista. Contudo, podemos considerar que se iniciara no período
da manufatura. Nesse contexto, não é difícil entender a característica central dessa
organização do trabalho. Verificamos que, nesse período, concentra-se, em um mesmo
lugar e, ao mesmo tempo, um grande número de trabalhadores para produzir uma mesma
espécie de mercadoria. Diferentemente do sistema de produção artesanal, em que o
artífice executa todas as tarefas necessárias à produção de determinado bem, na
manufatura, várias operações parciais são combinadas para complementar a produção de
uma mesma mercadoria. Desse modo, a produção torna-se contínua e, com o passar do
tempo, favorece a especialização. Assim, cada trabalhador torna-se um especialista, um
profissional. E a mercadoria não decorre mais do trabalho individual, ao contrário, passa
a ser produto social do trabalho coletivo de vários especialistas.

2.1.3- Escola e trabalho

Na seção anterior, apresentamos a distinção entre escola e educação. Vimos que a


educação é um processo social fundamental para a existência dos homens. Mostramos,
então, como a família, como primeiro agente educativo, exercia papel preponderante na
13

formação dos homens. Podemos dizer que esse mesmo processo social prevalecera até os
primórdios do capitalismo. Por essa razão, examinamos a organização do processo de
trabalho no período da manufatura, período em que as tarefas passaram a ser parceladas,
isto é, distribuídas entre os trabalhadores.
No período da manufatura, conforme já assinalamos, a produção de determinado
bem passou a ser decomposta em uma multiplicidade de tarefas atribuídas a diferentes
trabalhadores. Nesse contexto, o oficial, aquele que conhecia bem o seu ofício, como
define Aurélio, tornava-se um especialista, uma vez que o seu fazer concentrava-se em
apenas uma pequena parte do todo. Nessa época, portanto, tem início o processo de
divisão técnica do trabalho. Adam Smith refere-se, por exemplo, à decomposição do
processo de fabrico de alfinetes em dezenove operações distintas. Em vista disso, os
trabalhadores foram obrigados a desenvolver habilidades, demonstrando capacidade para
realizar atividades que envolviam detalhes, pequenas operações. Ora, para a realização
dessas tarefas, não é necessário saber muito, ou mesmo que se saiba mais que o exigido
para exercer uma tarefa específica, o trabalhador não tem oportunidade de aplicar esse
seu conhecimento extra.7
Pois bem, é justamente nesse período histórico, início do capitalismo, que a classe
dominante, à época, a burguesia, após ter adquirido o controle do Estado, começa a
implantar um sistema nacional de ensino, precursor do que temos hoje. Assim, a escola,
tal como a conhecemos hoje, teve sua origem a partir dessa data. Dever-se-ia, então:
construir escolas em todo o território nacional; preparar indivíduos especializando-os em
determinados conteúdos – os professores -, para nelas atuarem; elaborar currículos,
programas, horários, etc. aos quais todas as crianças deveriam se submeter.
É bem verdade que dissemos, antes, que o desempenho de tarefas na forma
manufatureira de organizar o processo de trabalho demandava muito pouco
conhecimento. Mas, no período da manufatura, a burguesia, então revolucionária, passa a
atribuir à escola novos papéis. O seu lema ,– educação para todos –, em última análise,
era difundir suas idéias e seus ideais de modo universal. Era preciso convencer a todos
que a sua democracia formal, os seus ideais de liberdade, de igualdade e fraternidade

7
Consultar, especialmente, o Livro I, Capítulo 1 Da Divisão do Trabalho, de: Smith, Adam. Uma
Investigação Sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações. São Paulo: Hemus Editora Ltda., 1981.
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eram superiores aos ideais vigentes na Idade Média. Para tanto, o conteúdo a ser
distribuído pela escola deveria ser selecionado a partir de certos parâmetros, entre eles, a
necessidade de a escola ser controlada pelo Estado e dissociada de qualquer filiação
religiosa. Assim procedendo, a escola contribuiria, decisivamente, para romper com o
domínio cultural da Igreja católica, considerada como a síntese e a sanção do poderio
feudal. Para tal, o ensino da língua dominante para todos de um mesmo território e a
seleção de determinados conteúdos, conforme os interesses burgueses, passaram a
constituir a matéria escolar a ser transmitida, via pedagogia tradicional, aos alunos, para
que eles assimilassem as exigências dos novos tempos.
Além desse papel, a escola deveria, ainda, seguir outra direção: preocupar-se com
a economia de tempo e voltar-se para as coisas práticas. É sugestivo a esse respeito o
título do capítulo dezenove da Didática Magna de Comênio – Fundamentos para ensinar
com vantajosa rapidez - no qual são estabelecidas as bases para a rapidez do ensino, com
economia de tempo e de fadiga.8 A propósito, o tempo, como vimos de apresentar, é a
substância da relação social que define o capital. É ainda o tempo, o elemento central na
teoria da mais-valia e, ao mesmo tempo, o critério básico para o conceito de
produtividade. Sendo assim, torna-se necessário economizar tempo para acompanhar o
novo ritmo dos processos produtivos. E, além da necessidade de se ensinar de forma
metódica, mais rápida, era necessário ensinar de forma “sólida”, apresentar aos alunos as
próprias coisas, “ao invés das suas sombras”, como afirmava Comênio:

Os mecânicos não fazem para o aprendiz uma conferência a respeito do seu ofício, mas o
põem diante de um profissional, para que ele observe como este procede; colocam, depois, um
instrumento em suas mãos, ensinam-no a usá-lo, e recomendam que ele imite o mestre. Só fazendo
9
é que se pode aprender a fazer, escrevendo, a escrever, pintando, a pintar.

Ao invés de palavras, a escola deverá acentuar o conhecimento das coisas. Aquilo


que será útil nas oficinas e nas circunstâncias da vida.
Mas a ruptura do modo de produção feudal e o desenvolvimento do modo de
produção capitalista provocaram, como vimos, alteração radical nas formas de
organização do processo de trabalho. Diante das novas circunstâncias, impôs-se um

8
Coménio, João Amós. Didáctica Magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. p. 273.
9
Ponce, Anibal. Educação e Luta de Classes. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986. p. 128.
15

terceiro papel para a escola. As relações sociais capitalistas passaram a exigir outro tipo
de trabalhador. Agora, o trabalhador deve aceitar trabalhar para o capitalista em troca de
um salário. Deverá executar o trabalho de acordo com as condições estabelecidas pela
nova organização do processo de trabalho. Faz-se necessário, então, que os jovens,
futuros trabalhadores, aprendam, na escola, novos hábitos, novas formas de
comportamento, novas disposições e novos traços de caráter mais adequados à disciplina
da oficina ou da fábrica. O objetivo primordial, da escola, portanto, será contribuir para a
submissão da força de trabalho e, secundariamente, desenvolver conteúdos específicos. A
adaptação às novas formas de trabalho manufatureiras sobrepuja o conteúdo específico. A
ênfase nesses objetivos permitiu a Adam Smith afirmar que os trabalhadores aprendiam a
trabalhar no próprio local de trabalho, trabalhando, e, por isso, a instrução a lhes ser
oferecida poderia ser ministrada em doses homeopáticas.
A mesma opinião era compartilhada pelo empresário Kula, que fundou uma
escola na Rue dês Epinnettes, em Paris, com o objetivo de formar bons operários.
Finalizemos, pois, este tópico com trecho do depoimento do seu chefe de oficina,
conforme registram Charlot e Figeat:

Outro ponto da educação moral sobre o qual nunca se insistirá demasiadamente é o que
concerne à obediência e à disciplina na oficina. Porque a produção moderna não é
verdadeiramente útil e benéfica senão na medida em que se baseia em uma organização metódica.
Entretanto, na base de toda a organização não é possível substituir a autoridade pela a anarquia. É
preciso, portanto, que o operário aprenda a vencer suas resistências naturais ao dever absoluto de
obedecer, e isto é o que lhe ensinaremos na Epinettes (...). A disciplina na oficina constitui a
dignidade bem entendida do operário; a higiene e a previsão terminam por fazer dele um homem
10
consumado (CHARLOT e FIGEAT, 1985, p. 132).

3- Processos socioeconômicos e processos educativos

Já pudemos observar que a educação, a escola, o sistema produtivo, tanto nas


dimensões técnicas como organizacionais, encontram-se intimamente inter-relacionados.
A forma desse inter-relacionamento, no entanto, é variável conforme o tipo de relação
social básica que define o modo de produção. No caso do modo de produção capitalista,

10
Apud Enguita, Mariano F. A Face Oculta da Escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. p. 115.
16

observamos uma estreita relação entre os processos socioeconômicos e os processos


educativos. Tanto a educação como a escola contribuem decisivamente para a dinâmica
desse modo de produção. Ambas, a educação e a escola, constituem uma das condições
gerais de produção e reprodução da força de trabalho. A análise da forma manufatureira
de organizar o processo de trabalho já nos mostrou esse inter-relacionamento e a
importância dos processos educativos para a formação dos trabalhadores.
No entanto, a relação existente entre os processos socioeconômicos e os processos
educacionais não constitui, de forma alguma, uma relação linear de tipo causa-efeito. Na
verdade, o que ocorre é que as relações sociais estabelecidas entre trabalhadores e
capitalistas, por serem estruturalmente conflitantes, determinam uma dinâmica de
causalidade complexa que torna impossível precisar os possíveis efeitos, podendo,
apenas, marcar a amplitude deles, mas nunca nem determiná-los nem apontar as formas
de sua realização. Como estamos analisando relações sociais e ações humanas, estamos
diante da imprevisibilidade. O comportamento humano é determinado, mas,
simultaneamente, tem possibilidade de ação sobre o determinante.
A compreensão desses processos permite-nos, agora, tratá-los de forma
simultânea. Daí a compreensão dos diferentes padrões de acumulação de capital que
presidem o desenvolvimento econômico será mais fácil. Assim procedendo, veremos que
a educação e a escola constituem uma das condições gerais de produção e de formação do
trabalhador. Sendo elas inseridas, desde o início, no sistema capitalista de produção, são
por ele encaradas no mesmo nível de produção de qualquer bem ou serviço.
Antes, porém, de analisar as relações entre a educação e a escola no capitalismo
de hoje, examinaremos um período em que predomina uma forma de acumulação de
capital de tipo taylorista. Chama-se de taylorismo o movimento de racionalização do
processo de trabalho, que se inicia no final do século XIX e, efetivamente, implanta-se e
difunde-se no início do século XX. Nesse período, milhões e milhões de trabalhadores do
campo foram obrigados a abandonar suas terras e dirigirem-se às cidades à procura de
empregos. Especialmente nos Estados Unidos, vivia-se um período de grande
urbanização e industrialização. Impossibilitados de continuar em suas lides rurais onde
detinham os conhecimentos necessários às atividades agrícolas, ao chegarem aos centros
urbanos, esses trabalhadores eram considerados não qualificados. Sem experiência das
17

atividades industriais, eram vistos como incapazes de compreender mais do que uma
operação específica de trabalho. Diante de tal quadro, os trabalhadores se viram
submetidos às exigências do novo cenário: estabelecimento do tempo padrão e do melhor
método de trabalho, obtidos mediante os estudos de tempos e movimentos; receber
incentivos monetários, pagamento por peça produzida, por exemplo; submeter-se à
seleção e ao treinamento de acordo com os padrões definidos pela gerência. Logo, para
sobreviver, eles deveriam, de forma rápida, habituar-se aos ritmos da indústria. Assim, na
nova realidade, na fábrica, aprenderiam a trabalhar com máquinas e a integrar-se à
disciplina da empresa. Em resumo: estruturando-se os cargos, procura-se o indivíduo
certo para o desempenho de cada função. Daí derivam-se, ainda, os sistemas de
treinamento e de remuneração.
Como podemos ver, o taylorismo constituía uma técnica de gestão perfeitamente
adequada aos padrões de acumulação de capital da época. Para organizar o processo de
trabalho, adotava-se uma estratégia de comando/controle cujas partes deveriam ser
integradas verticalmente e de modo hierárquico. Nesse processo, cada agente conhecia
apenas o âmbito imediato de seu trabalho. A definição dessa tarefa específica, realizada
pela direção mediante a análise de tempos e movimentos, provoca abrupta separação
entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, entre quem pensa e quem executa, entre
o departamento de planejamento e o chão da fábrica. Somente os gestores, uma nova
classe social capitalista, concebiam, de forma prévia, como se deveriam executar as
operações necessárias a cada posto de trabalho. Somente eles detinham o conhecimento
de todo o processo de trabalho e podiam comandá-lo. Já o trabalhador, cada um deles, era
desprovido desse conhecimento, uma vez que foi transformado em executor de trabalho
simples e repetitivo, facilmente treinável e substituível. Caberia aos supervisores e aos
capatazes, zelar pelo controle e pelo bom andamento dessas operações.
Nesse cenário, os trabalhadores, compartimentados e enclausurados, eram
privados de qualquer iniciativa e explorados em sua atividade muscular. Deveriam, ao
contrário, trabalhar de acordo com o prescrito pelas normas do treinamento. Argumenta o
próprio autor dos Princípios de Administração Científica, Frederick Winslow Taylor,
que, [...] “em quase todas as artes mecânicas a ciência que rege as operações do trabalho
18

é tão vasta e complexa que o melhor trabalhador adaptado à sua função é incapaz de
entendê-la, quer por falta de estudo, quer por insuficiente capacidade mental”.11
Assim, para realizar a tarefa de transportar lingotes de ferro, o escolhido foi
Schmith, um homem estúpido como um bovino.

Schimidt começou a trabalhar. Durante o dia todo e a intervalos regulares, o homem que
o orientava com um relógio na mão lhe dizia: ‘Agora, levante o lingote e ande. Agora, sente-se e
descanse. Agora, ande; agora, descanse’ etc...
Ele trabalhava e descansava quando mandado e às cinco e meia da tarde tinha colocado
no vagão quarenta e sete e meia toneladas.12

Ora, o trabalho executado nessas circunstâncias exige dos trabalhadores grande


esforço físico e habilidade manual desenvolvida. Predomina, então, nessa forma de
organizar o processo de trabalho, a exploração do componente manual da capacidade de
trabalho. Isso se deve ao fato de a capacidade de trabalho pressupor a existência de dois
componentes básicos: um muscular e outro intelectual, que são combinados de diferentes
formas. No período em análise, predominava o primeiro componente.
A partir dessa análise, podemos conceituar o que é qualificação. No capitalismo,
qualificação refere-se à capacidade de responder a exigências requeridas pela tecnologia
capitalista. Nesse caso, os trabalhadores oriundos do meio rural foram considerados não
qualificados. Mas, após terem sido selecionados e treinados, de acordo com os princípios
de racionalização tayloristas, passaram a ser considerados qualificados.
Perguntaríamos, então: quais são as exigências de escolarização que a força de
trabalho deve possuir? Nesse período, o nível de escolarização dos trabalhadores ainda é
reduzido. Por outro lado, a aquisição de hábitos, de disciplina e obediência aos ritmos de
trabalho é fundamental. À escola solicita-se, apenas, que ensine o saber ler, escrever e
contar.
Nesse aspecto, o Brasil pode ser considerado exemplo impar: entre os anos de
1920 e 1980, a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) apresentou índices

11
Taylor, Frederick W. Princípios de Administração Científica. São Paulo: Atlas, 1970. p. 52
12
Idem ibidem p. 57
19

elevadíssimos13, não obstante a taxa de escolarização da População em Idade Ativa (PIA)


ser de apenas 3,89 anos de escolaridade em 1981. Ou seja, a baixa escolaridade da força
de trabalho brasileira não foi obstáculo ao grande crescimento econômico naquele
período. Ou, lendo de outra forma: para que gastar recursos com a escolarização de
trabalhadores se se obtém crescimento econômico independentemente desse fator? Nesse
período, os poderes políticos e econômicos concentravam-se, sobretudo, no Estado, sendo
ele, portanto, o principal responsável pela formulação e implementação de políticas
educacionais. Desse modo, podemos concluir que os recursos destinados à escolarização
das classes trabalhadoras não eram prioritários.
Como teremos oportunidade de acentuar posteriormente, a baixa escolarização
dos trabalhadores brasileiros passou a ser obstáculo às novas formas de acumulação de
capital, decorrentes do capitalismo atual.

3.1- Dinâmica dos processos socioeconômicos

Após termos analisado a forma taylorista de organização dos processos de


trabalho, bem como de algumas implicações desse movimento na educação e, em
especial, na escola, concentraremos nossa atenção nas formas atuais de organização. No
entanto, para a consecução do nosso objetivo - analisar os fenômenos pautando-se pelo
nível compreensivo -, em primeiro lugar procuraremos detectar os determinantes que
provocaram as atuais formas de organização dos processos de trabalho. Para tanto,
deveremos proceder a análise numa perspectiva histórica no intuito de apreender a
dinâmica dos processos socioeconômicos e dos processos educativos. Vale ressaltar,
ainda, que estamos vivenciando um período histórico em que transformações profundas e
sem precedentes vêm ocorrendo. Desde o final da década de sessenta, do século passado,
temos observado que mudanças significativas nos padrões de acumulação de capital têm
presidido o desenvolvimento econômico. Nesse processo, o capitalismo vem se
reestruturando e apontando novos papéis para a educação e para a escola.

13
O crescimento do Brasil no século XX, no período compreendido entre os anos 20 e 70, apresentou as
seguintes médias anuais: anos 20: 6,0%; anos 30: 4,3%; anos 40: 5,1%; anos 50: 7,1%; anos 60: 6,1%; anos
70: 8,8%. O crescimento do Brasil no século XX – Folha de São Paulo 26/12/1999.
20

Para compreender esses processos, centraremos nossa atenção na relação social


básica no capitalismo: a relação entre os trabalhadores e os capitalistas, relação essa que
dá dinamismo ao sistema. Assim, a partir dos últimos anos da década de 1950 e até o
começo dos anos 80, do século passado, foi possível observar certo acirramento dos
conflitos sociais entre essas classes sociais.
Posto isso, o desenvolvimento do capitalismo havia provocado o aparecimento de
unidades de produção verdadeiramente gigantescas e com grande concentração de
trabalhadores reunidos em um mesmo local de trabalho. Essa circunstância favoreceu a
mobilização política entre eles levando-os a posições ofensivas empreendendo até
práticas de lutas verdadeiramente inovadoras. À guisa de ilustração, podemos citar, a esse
respeito, a insurreição operária de 1953, em Berlim, na qual os alvos principais passaram
a ser os organismos sindicais. No final dessa década, as lutas dos trabalhadores japoneses
caminharam nessa mesma direção. Também famosas e importantes revoltas de
trabalhadores surgiram na Polônia em 1956 e, posteriormente, em 1970, a instituição de
diferentes comissões de fábricas. O mesmo ocorreu em 1956, com os conselhos operários
húngaros os quais só foram liquidados com a ajuda das tropas soviéticas. Extraordinária
difusão desses processos revolucionários alastrou-se pela Espanha, Grã-Bretanha, Itália,
Estados Unidos, Canadá, Portugal, entre outros, culminando-se, em termos mais
profundos e radicais, na China, com a Revolução Cultural de 1966. Movimentos
semelhantes ocorreram também em vários países da América Latina, e, particularmente,
no Brasil.
Mas o que esses movimentos sociais têm a ver com as questões educativas? Para
responder a essa pergunta, examinemos, inicialmente, as características assumidas por
eles. Parece-nos que a característica mais marcante desses movimentos sociais se refere
ao fato de os trabalhadores passarem a conduzir as suas lutas. Elas passaram a ser
realizadas, quase sempre, fora das instituições sindicais e, muitas vezes, contra elas. Os
próprios trabalhadores, em assembléias gerais ou mediante comissões especiais e
constituídas a propósito, decidiam como encaminhá-las. Essas comissões especiais, quase
sempre denominadas, entre nós, Comissões de Fábricas, eram instituídas via eleição e por
voto secreto em assembléia composta pelo conjunto dos trabalhadores de determinada
empresa.
21

Acerca desses movimentos, cabe-nos destacar que eles inovaram, ao oferecer


resistência à organização capitalista do processo de trabalho e ao propor uma nova forma
de organizar a produção e a sociedade. Maroni muito bem sintetiza essas inovações.
Segundo ele,

[...]a luta operária na fábrica desenvolveu-se a partir da resistência difusa à organização


do processo de trabalho quanto a possibilidade de estabelecer a comunicação horizontal e,
portanto, contrapor-se à vigilância e ao controle que as chefias exercem via poder disciplinar,
quanto ao conhecimento do próprio processo de trabalho de cada setor da fábrica em relação à
possibilidade de algum controle do ritmo de trabalho etc. As comissões de fábricas materializaram
essa resistência à medida que se recusaram a reproduzir a estrutura fabril, expressando em sua
organização mesma a resistência àquela estrutura.14

De forma prática, os trabalhadores demonstraram que a premissa taylorista,


segundo a qual eles só seriam capazes de compreender apenas uma operação de trabalho,
era incorreta. Especialmente naquelas experiências extremas em que os trabalhadores
foram obrigados a ocupar a fábrica e a tomar conta dela, no intuito de mantê-la em
atividade, demonstraram capacidade organizacional, inteligência e iniciativa. Nesse
processo, conseguiram reestruturar os sistemas produtivos, alterar, de modo significativo,
as relações sociais de produção, além de demonstrar outra ordenação possível para as
relações entre os homens. Nesse processo, surgiram relações sociais coletivas,
horizontais, solidárias e com participação ativa de todos. Ora, é justamente a análise
dessas relações e da extensão delas às questões educativas que nos possibilita detectar
suas implicações no âmbito pedagógico e da organização do processo de trabalho
docente.
Afinal, foram justamente esses movimentos sociais, associados à capacidade de
auto-organização demonstrada pelos trabalhadores que perturbaram o funcionamento do
capitalismo no início dos anos setenta do século passado, e contribuíram, decisivamente,
para a reestruturação desse mesmo capitalismo. Num primeiro momento, as contestações
e, em especial, a forma assumida por elas, os movimentos autônomos voltados para a
conquista da gestão organizacional serviram de base para a profunda crise econômica do
sistema capitalista daquele período. A generalização desses conflitos sociais chegou a
ameaçar o sistema capitalista. Mas, no momento seguinte, essas formas de lutas

14
Maroni, Amnéris. A estratégia da recusa: análise das greves de maio/78. São Paulo, Brasiliense, 1982
22

autônomas degeneraram-se e permitiram que os capitalistas se aproveitassem da situação.


Assim, não só passaram a utilizar formas de dispersar os trabalhadores como também, e
sobretudo, de aproveitar a competência organizativa deles, a inteligência, a iniciativa e
capacidade de raciocinar deles como haviam demonstrado. Daí, o surgimento de novos
processos de gestão, de novas tecnologias como materialização dos novos tipos de
relações oriundas desses conflitos.
Assim, a partir dos anos setenta do século passado, mudam-se as formas de
acumulação de capital. Transformações sem precedentes passam a ocorrer nos campos
econômicos, sociais, políticos, educacionais, culturais, enfim, em toda a vida social.
Hoje, podemos afirmar que o capitalismo se converteu na totalidade da economia
mundial. As formas de produção pré-capitalistas têm pouco a pouco sido liquidadas ou
assimiladas enquanto as formas de produção capitalista expandem-se para todas as partes
do mundo. Não é por outro motivo que se diz que estamos em um mundo globalizado.
Concomitantemente, acentua-se o processo de assalariamento. Pequenos proprietários,
profissionais liberais, prestadores de serviços ou trabalhadores que até então exerciam
atividades exteriores ao capitalismo são obrigados a assalariarem-se. Aqueles que não
conseguem se transformar em assalariados, seja porque o crescimento do sistema
econômico é nulo ou insuficiente para absorvê-los, seja por falta de qualificação, passam
a engrossar as estatísticas da economia informal ou da marginalidade.
Nessas circunstâncias, o processo de internacionalização do capital modifica-se:
vai deixando de se referir aos quadros nacionais e passando-se a operar no âmbito das
grandes empresas. O capital torna-se global, as companhias tornam-se transnacionais.
Nesse contexto, os grandes movimentos econômicos mundiais ocorrem, hoje, nas
relações entre as companhias transnacionais, ou então, no interior dessas companhias
entre suas diferentes filiais.
Especialmente a partir dos anos setenta do século passado, essa nova forma de
realização do capitalismo permitiu que se acelerasse, de forma desconhecida, a
concentração e a centralização de capital. A fusão de empresas em conseqüência das
crises ou da acirrada concorrência que se estabeleceu entre elas, quando, então, as mais
fortes e hábeis absorviam as menores, acarretou não só concentração do capital em grau
muito mais elevado do que anteriormente, como também centralização do capital na mão
23

de poucos grupos econômicos. Tais fenômenos causaram importantes modificações no


funcionamento do sistema capitalista e propiciaram maior acumulação de riquezas
acentuando-se mais ainda as desigualdades econômicas e sociais.15
Para se ter uma idéia da magnitude dessas modificações, podemos, por exemplo,
examinar os dados constantes no relatório publicado pelo Institute for Police Studies, de
Washington. Esse relatório revela as duzentas maiores empresas do mundo, avaliadas em
função de suas vendas anuais. Mostra que elas já controlam mais de um quarto do
comércio mundial. Se excetuarmos os dez maiores países do mundo, o montante do valor
obtido pela soma das vendas delas é, de uma parte, superior à soma dos Produtos Internos
Bruto (PIB) dos demais países do Planeta e, de outra parte, dezoito vezes o somatório da
renda anual de mais de 1.200.000.000 pessoas, ou seja, aproximadamente ¼ da população
mundial. Ao examinar, de forma mais detalhada, esses dados, procurando estabelecer
comparações entre as vendas obtidas por empresas e os PIBs dos países, verificamos que
o total de vendas da General Motors é maior que o PIB da Dinamarca; que o da
DamlerChrysler é maior que o da Polônia; que a da Royal Dutch/Shell é maior que o da
Venezuela; que o da IBM é maior que o da Singapura; e o da Sony é maior que o do
Paquistão.16
Em decorrência desse processo de concentração de capitais, as companhias
transnacionais passaram a possuir capacidade descomunal de acumulação e de
transferência de recursos financeiros. Diante disso, puderam inter-relacionar-se,
diretamente, assumindo, elas próprias, e cada vez mais, a função de coordenação da vida
econômica, em detrimento do Estado. Como conseqüência, altera-se, de forma
substancial, a cena política. As maiores empresas, as transnacionais, ultrapassam os
países, não respeitam fronteiras. Os governos nacionais, então, passaram a ter
dificuldades em manter os mecanismos de controle sobre suas economias internas. As
companhias transnacionais tornaram-se um aparelho decisivo de poder. Nessa nova
superestrutura política, os determinantes básicos do poder não estão necessariamente no
governo e, por conseguinte, não se alteram com eleições.

15
Ver, a este respeito, os dados disponíveis em The Economist, January 9th de 1999 e, na mesma revista,
em January 27th de 2001
16
Anderson, Sarah and Cavanagh, John. Top 200 – The Rise of Corporate Global Power, Institute for
Policy Studies, http://www.ips-dc.org/downloads/Top.200.pdf
24

Ora, nessa nova forma de acumulação de capital, aumenta-se a integração


dos processos produtivos, acirra-se a concorrência entre os capitalistas no interior do
próprio processo produtivo e, dessa forma, algumas das maiores empresas têm ampliado
a área de suas operações. São elas que decidem o quê, como, quando, quanto e onde
produzir os bens e serviços a serem consumidos no interior das sociedades
contemporâneas. É para elas que se deslocam a tomada de decisões e a gestão da
economia mundial. Paralelamente, reduz-se, mais ainda, o número de empresas das
principais cadeias de produção a apenas um conjunto restrito de empresas líderes
mundiais.17

4- Capitalismo hoje: implicações para a educação e para a escola

O desenvolvimento atual do capitalismo, como vimos anteriormente, implicou


mudanças nos parâmetros de integração e coordenação do seu próprio sistema. De um
período em que o papel principal de constituição das condições gerais de produção cabia
ao Estado, assistimos, hoje, ao aparecimento de novo aparelho de poder constituído pelas
grandes empresas. É facilmente observável a intervenção, cada vez maior, das empresas,
não só na planificação geral da vida econômica, antes prerrogativa exclusiva dos
governos, mas também em todas as esferas do social e do cultural. Tal intervenção
assume, em nossos dias, tamanha proporção que muitas das atribuições, tradicionalmente
assumidas pelo Estado, passaram para o âmbito das empresas. Dessa forma, seja de modo
direto ou indireto, as empresas detêm hoje os mecanismos de controle do econômico, do
social, do educacional, do cultural e das pessoas.

17
Talvez um bom exemplo de empresas líderes mundiais, hoje, pelo inusitado de seu comportamento, seja
a Wal-Mart. É hoje a maior varejista do mundo, possui mais de 3.500 lojas espalhadas em 11 países do
mundo (e lidera o mercado em três deles). É o maior empregador privado do planeta (1.600.000
empregados) e tem o maior faturamento do planeta (US$ 256 bilhões em 2003). Tem, como estratégia
empresarial, combater a sindicalização, pagar salários menores que as concorrentes e pressionar os seus
fornecedores para reduzir os preços. Responsável por 10% das exportações da China, está sendo
considerada como destruidora de manufaturas nos Estados Unidos. É rejeitada em várias localidades
americanas. Sobre a questão, consultar:
The Economist, abril-maio 2004 e http://www.terra.com.br/istoedinheiro/347/negocios/347_wal_mart.htm.
25

Essa nova forma de realização do capitalismo – hegemonia das empresas –


delimita um novo quadro de condicionamento geral. O surgimento de novas formas de
relações sociais, de novas instituições sociais, novos valores, categorias, conceitos,
princípios e parâmetros configura um novo campo de determinação. Nesse novo campo
de determinação, um critério é básico: a procura por maior produtividade. Evidentemente,
não há um critério único de produtividade. Mas, no capitalismo, só existe um: produzir
mais em igual ou menor tempo. Esse é o critério determinante: produzir consoante as
exigências da produtividade capitalista. Como os capitalistas adquirem o direito ao uso da
força de trabalho, são eles que organizam a forma dessa utilização bem como a forma de
administrar o processo produtivo. São, portanto, as relações sociais estabelecidas entre os
trabalhadores e os capitalistas que determinam o tipo de tecnologia a ser empregado e
esta, por sua vez, determina o tipo de trabalho a ser realizado. A seleção dos novos
instrumentos de trabalho e dos novos métodos organizacionais decorre desse processo
social.
Ora, a educação e a escola não podem ficar imunes a alterações tão profundas. Ao
contrário, no capitalismo, hoje, educação e escola constituem a principal condição para a
produção e a reprodução da força de trabalho. Não há como não se preocupar com a
formação dos trabalhadores no momento atual. Sabemos que são os trabalhadores que
executam os raciocínios e os gestos necessários à produção. Mas sabemos, também, que
para isso eles têm de possuir certa qualificação. Em outras palavras, devem apresentar
certos conhecimentos sem os quais não podem responder às exigências da tecnologia
capitalista. No entanto, a qualificação, o conhecimento, bem como as formas de utilizá-
los não são definidos pelos trabalhadores. Encontra-se, aqui, o âmago de todo o processo:
os trabalhadores não têm controle do processo de seu próprio trabalho, do produto de seu
trabalho e de sua formação.
Diante do exposto, o exame das implicações que advêm para a educação e para a
escola da nova forma de reestruturação do capitalismo far-se-á, portanto, a partir de um
ponto central: o processo de trabalho possui um significado preciso – significa processo
de valorização. Para a consecução desse objetivo, revolucionam-se as técnicas e a
organização social do processo de trabalho.
26

4.1- O revolucionamento das técnicas

Para fabricar novos produtos, ou para fabricá-los com maior índice de


produtividade, um dos mecanismos mais adotados pelas empresas é alterar os processos
técnicos de produção. Especialmente em períodos de maior concorrência entre as
empresas, a necessidade de alterações se faz ainda mais presente. É de fundamental
importância que as empresas, para continuarem existindo e não serem expulsas do
mercado, acompanhem o grau de desenvolvimento tecnológico alcançado pela outras
empresas que lhes são concorrentes. Com efeito, a concorrência entre as empresas dá-se
não só no mercado, mas, sobretudo hoje, no interior do próprio processo produtivo.
Nessas circunstâncias, o revolucionamento das técnicas passa a decorrer, então,
do controle do conhecimento científico. O conhecimento e os objetos da investigação
científica não são neutros; os seus paradigmas estão vinculados ao sistema econômico
que lhes serve de base e lhes dá suporte. A produção científica evolui seguindo formas e
ritmos da produção de qualquer outro bem ou mercadoria. O conhecimento adquire,
então, valor econômico e estratégico. Nesse processo, ele próprio, o conhecimento,
transforma-se em mercadoria. Assim sendo, para atender às demandas do sistema
econômico, cada vez mais, cresce o interesse das grandes empresas em termos de
domínio das investigações. Diante desse quadro, o poder de decisão sobre que
conhecimento produzir, como e para quem produzi-lo ou divulgá-lo estará sempre
limitado pela natureza e fins da empresa.18
Entre as conseqüências possíveis desse fenômeno, vale ressaltar que a
necessidade de abrir e expandir centros de investigação por parte das empresas provoca a
necessidade não só de trabalhadores qualificados, de profissionais competentes, mas
também de pessoas capazes de desenvolverem trabalhos de pesquisa. Daí a grande

18
É interessante observar que recente editorial da Folha de São Paulo, denominado Pesquisa Transparente,
informa que alguns dos mais importantes periódicos da área médica decidiram demandar, da indústria
farmacêutica, registro, num banco de dados público, de todas as pesquisas relativas a medicamentos, pois é
crescente a impressão de que os laboratórios só tornam públicos os resultados que lhes interessam,
escondendo o que possa prejudicar suas vendas. Folha de São Paulo, 21/06/2004. Consulte, ainda, sobre
essa mesma problemática, o artigo citado a seguir, que mostra o envolvimento da segunda maior empresa
farmacêutica do mundo, a GlaxoSmithKline (GSK), por ter escondido resultados de experimentações
clínicas com antidepressivo administrado para crianças. Trata-se do Paxil que, além de ser ineficiente,
poderia provocar pensamento suicida. The Economist. 19 de junho de 2004 p. 62.
27

expansão do número de vagas dos cursos superiores e dos cursos de pós-graduação,


sejam eles, de especialização, mestrado ou doutorado.
Ressaltemos, ainda, além dessa conseqüência, uma decorrente da circulação ou
distribuição do conhecimento. Como o conhecimento passou a ser mercadoria de grande
valor econômico ou estratégico para as empresas, o financiamento de pesquisas por parte
delas pode gerar antagonismos entre diferentes grupos de pesquisas. A necessidade da
manutenção de segredos daquilo que está sendo pesquisado, para que não possam ser
roubados por concorrentes, acirra conflitos, incentiva espionagens e aumenta os
mecanismos de controle para a obtenção de patentes.
Diante desse quadro, o acesso ao conhecimento passa a ser diferenciado e
hierarquizado. Não há como imaginar que, no capitalismo atual, caberia ao sistema
escolar transmitir a todos os conhecimentos acumulados pela humanidade. tal como
pugnava um bordão muito em voga, na área da educação. Hoje, observamos que o
sistema escolar, em cujo discurso ainda pesa certa aparência unitária e unificadora,
mostra-se estruturalmente diferenciado e diversificado. O sistema é fundamentalmente
heterogêneo e não poderia ser de outra forma. Na verdade, ele é formado por vários
subsistemas nos quais se localizam as diferentes classes sociais. E as condições materiais,
instrumentais, de métodos e de conteúdos devem variar de acordo com os subsistemas.
Decorre daí, no nosso ponto de vista, que a análise do acesso ao conhecimento
deve ser conduzida a partir de quatro patamares diferenciados e hierarquizados entre si e,
também, hierarquizados no interior de cada um deles.
Com efeito, sugeriríamos um modelo cujos patamares se refiram:

1. aos conhecimentos que possuem valores estratégicos, tanto militares


como empresariais e de grande valor econômico, portanto, acessíveis
somente às camadas mais altas das classes dos gestores;
2. aos conhecimentos extremamente dispendiosos, somente acessíveis
àqueles que têm recursos financeiros suficientes para adquiri-los;
3. aos conhecimentos materializados em conteúdos programáticos
destinados à classe dos gestores e às camadas altas das classes
trabalhadoras pelas escolas conceitualmente conhecidas e reconhecidas
28

como de qualidade superior ou média, além das informações


disponíveis na internet;
4. aos conhecimentos materializados em conteúdos programáticos
apresentados por escolas destinadas às classes trabalhadoras e
conceitualmente conhecidas e reconhecidas como de qualidade baixa
ou inferior.

4.2- O revolucionamento da organização social dos processos de trabalho

No que concerne à organização dos processos de trabalho, a reestruturação


capitalista assumiu a forma de recuperação e aproveitamento das capacidades
demonstradas pelos trabalhadores em seus processos de lutas como anteriormente citadas.
Desse modo, a preocupação básica volta-se para o aproveitamento dos conhecimentos
que os trabalhadores demonstraram possuir, especialmente quando foram obrigados a
ocupar instalações fabris ou comerciais e fizeram-nas funcionar, bem como dos
conhecimentos adquiridos por eles no próprio processo de trabalho. Assim, a questão
fundamental que enfrentam os empresários é como aproveitar os conhecimentos
adquiridos pelos trabalhadores e incorporá-los no processo de produção. Nesse sentido,
não serão apenas as reformulações técnicas que podem aumentar a produtividade dos
processos produtivos. A reorganização dos processos administrativos também poderá
contribuir para obtenção desse objetivo. Isso implica selecionar os conhecimentos que, ao
serem incorporados ao processo de produção, contribuam para o aumento e eficiência da
produção.
Nesse sentido, um sistema de organização dos processos de trabalho foi capaz de
apropriar dos conhecimentos possuídos pelos trabalhadores e direcioná-los em prol de
seus interesses: o sistema Toyota de produção.

Quando James Womack, Daniel Jones e Daniel Roos escreveram A Máquina que Mudou
o Mundo em 1990, eles não estavam escrevendo sobre um determinado motor de carro. Na
verdade, estavam descrevendo o Sistema Toyota de Produção (STP), o que criou o mais eficiente
sistema de produção de carro do mundo.19 (Grifos dos autores)

19
The Economist. Survey: Manufacturing. June 18th 1998.
29

O Sistema Toyota de Produção decorre, como sempre acontece, do


aproveitamento de diferentes práticas alternativas, de diferentes experimentos e de
diversas teorias anteriores. Mas, ao serem incorporados em um novo conjunto,
adquiriram novos sentidos e novos significados. Configurada uma nova forma de
organização dos processos de trabalho, o impacto causado por esse sistema foi de tal
envergadura e a sua propagação tão extraordinária que se convencionou denominá-lo
toyotismo.
No intuito de oferecer alguns traços constitutivos do toyotismo, e considerando-o,
em uma acepção bastante ampla, arrolaríamos, inicialmente, as quatro fases que, de
acordo com Benjamin Coriat, citado por Ricardo Antunes, levaram-no ao seu advento:

Primeira: a introdução, na indústria automobilística japonesa, da experiência do ramo


têxtil, dada especialmente pela necessidade de o trabalhador operar simultaneamente com várias
máquinas. Segunda: a necessidade de a empresa responder à crise financeira, aumentando a
produção sem aumentar o número de trabalhadores. Terceira: a importação das técnicas de gestão
dos supermercados dos EUA, que deram origem ao ‘kanban’. Segundo os termos atribuídos a
Toyoda, presidente fundador da Toyota, ‘o ideal seria produzir somente o necessário e fazê-lo no
melhor tempo’, baseando-se no modelo dos supermercados, de reposição dos produtos somente
depois da sua venda. [...]Quarta fase: a expansão do método kanban para as empresas
subcontratadas e fornecedoras. 20

Além desses traços, vale acrescentar, ainda, um processo descrito pelos autores do
Survey: Manufacturing, citado anteriormente e denominado kaisen. Trata-se do processo
de procurar, continuamente, melhorias no intuito de aumentar a eficiência, melhorar
ergonomia e alta qualidade.
Como podemos observar, no toyotismo, apesar de se reduzir o número de
trabalhadores, a produção não é prejudicada, pois, ao romper com a relação um
homem/uma máquina, própria do taylorismo, ela passa a ser sustentada por um processo
produtivo flexível em que um operário é capaz de operar várias máquinas. É a chamada
polivalência, flexibilidade, ou, no dizer de alguns teóricos, trabalhadores multifuncionais.
Observamos, ainda, que se deve produzir apenas o necessário, manter apenas um estoque
mínimo, que deverá ser reposto após a venda, mediante o kanban, que é a senha a ser
utilizada. Deve-se obter o melhor aproveitamento possível do tempo e aumentar a
qualidade, o que será garantido pelo just in time.
20
In Antunes, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do
Trabalho. São Paulo: Cortez. 1995. p. 23
30

É importante acentuar ainda que, acrescentando o kaisen, poderemos conseguir


melhorias que podem diminuir desperdícios, aumentar a eficiência e a produtividade.
Mas quem, no interior da empresa, conseguiria tal proeza? Quem teria os conhecimentos
necessários? “Quem conhece melhor as máquinas são aqueles que as fazem funcionar
diariamente. Pedimo-lhes que não usem apenas os braços e as mãos, mas também os
cérebros”.21
Diferentemente do período taylorista, em que se considerava insuficiente a
capacidade mental do trabalhador, agora, no toyotismo, os trabalhadores devem ser
constantemente estimulados a dar opiniões e sugestões acerca das técnicas de produção.
Por que não aproveitar os conhecimentos advindos da prática deles? O fazer não é uma
fonte do saber? Talvez pudéssemos resumir esse problema da exploração do componente
intelectual do trabalho, recorrendo à famosa revista inglesa, The Economist, que, em sua
edição de 22 de agosto de 1987, escreveu: “A revolução que se seguiu à revolução
industrial não é uma revolução dos serviços mas dos cérebros, na qual o valor é
acrescentado não por mãos qualificadas mas por inteligências qualificadas”.22
Verificamos, dessa forma, uma mudança radical na organização do processo de
trabalho. A forma rígida, hierarquizada e verticalmente integrada, característica do
taylorismo, dá lugar a sistemas flexíveis de produção integrados horizontalmente.
Rompem-se, ainda, as relações um homem/uma máquina, e um homem/uma tarefa,
caráter parcelar do sistema taylorista, para introduzir o trabalho em equipe e o trabalhador
polivalente. Esse novo sistema exigirá, necessariamente, e cada vez mais, o aparecimento
de tecnologias que garantam a eficiência das comunicações bem como a redução de seus
custos. A resposta a tais exigências encontra-se na microeletrônica, na informática. Em
decorrência disso, alteram-se as questões de tempo e espaço. Grandes empresas, agora,
podem concentrar-se em suas atividades nucleares e adquirir o que necessitam, via
subcontratações ou terceirizações de pequenas e médias empresas, mantendo-as
subordinadas às decisões estratégicas deles, ou seja, dos grandes gestores empresariais.
Just in time permite deslocar a questão do tamanho para a do tempo; a informatização

21
Trata-se de uma declaração anunciada em 1984, por Kasuo Ishikure, presidente da filial norte-americana
da Bridgestone, uma fábrica de pneus. In: Bernardo, João. Democracia Totalitária. São Paulo: Cortez,
2004. p. 84.
22
In Bernardo, João. Idem, ibidem. p. 106.
31

permite quebrar as paredes e as fronteiras, fragmentando e dispersando a força de


trabalho, sem alterar o compartilhamento dos mesmos fluxos de informação que passam a
ser integrados pelos gestores dos processos produtivos através de softwares especiais de
gestão.
Diante de sistemas flexíveis de produção, de novas e variadas formas de
organização dos processos de trabalho, o constante são as mudanças. Mudam-se não
apenas os projetos, as técnicas e os métodos para o desenvolvimento de um produto, mas
também os processos de fabricação. O importante é a existência de um sistema aberto às
inovações e que dê conta de acompanhar o acirramento da concorrência na produção.
Portanto, essa nova forma de organizar os processos de trabalho e o ritmo veloz
em que se processam as mudanças técnicas provocaram mudança nas formas de uso e de
controle da força de trabalho. Na realidade, estamos diante de um novo quadro em que se
exige um novo trabalhador: um trabalhador que suporte os aumentos da intensidade do
trabalho (realizar, em maior ritmo, as mesmas operações na mesma jornada de trabalho) e
apresente maior qualificação (realizar operações de novo tipo que exigem maior destreza
ou mais raciocínio), uma vez que a produtividade repousa, cada vez mais, na utilização
do componente intelectual para realizar trabalhos mais complexos.
Sintetizando, de modo geral, podemos dizer que os requisitos básicos para a
formação do trabalhador, hoje, devem apresentar, entre outras, as seguintes
características:

a) Formação geral que sirva de base para as atividades específicas - A variação


do número de atividades específicas, hoje, é de tal magnitude e a obsolescência e
o aparecimento de novas atividades é tão grande que se torna impossível uma
preparação muito específica. Esse processo tende, então, a provocar a
desvalorização de certas profissões ou ocupações tradicionais, obrigando os
cursos a refazerem seus currículos e ajustar-se às novas demandas;
b) Flexibilidade mental - Diz respeito à exigência, cada vez maior, de trabalho
complexo – maior intensidade e qualificação –, cuja resposta está na polivalência
- capacidade de exercer várias funções diferentes. Evitam-se a rotina única e os
males do esforço repetitivo e acrescem-se os ganhos de produtividade. Além do
32

mais, necessita-se de maior flexibilidade mental para aceitar os novos tipos de


emprego, o desemprego, a terceirização, o auto-emprego. Ou, empregando-se o
neologismo, é necessário que o trabalhador aceite a empregabilidade - condições
de suportar as constantes mudanças do mundo do trabalho, adaptando-se, para
nele permanecer. A propósito da empregabilidade, Dunninghan assim esclarece:

Entrar numa empresa de calças curta e só sair dela quando chega a


aposentadoria é definitivamente uma idéia do passado. Daqui para a frente, os
empregados terão cada vez menos chance de estabilidade, benefícios por tempo de
serviço e promoções por fidelidade... é mais importante ter empregabilidade do que
emprego. Explica-se: empregabilidade é a condição de ser empregável a qualquer
momento. O difícil mesmo é se habilitar. Para atender às novas exigências
profissionais, o trabalhador tem que ser o mais completo possível.

A empregabilidade, de acordo com o consultor José A. Minarelli, citado


por Dunninghan, não é fácil de ser obtida. Seria entretanto,

garantida por seis pilares – adequação vocacional, idoneidade, competência,


saúde física e mental, reserva financeira e bons relacionamentos – e que para mantê-
la é preciso se comportar como quem sobe uma escada rolante que desce: para subir,
tem que andar mais rápido do que o ritmo da escada. Pessoas honestas e
trabalhadoras que param na escada acabam sendo jogadas para fora. 23

c) Novas forças psíquicas - O aumento da concorrência intercapitalista


inevitavelmente acarreta a necessidade de criação, para os trabalhadores, de
condições para suportarem e enfrentarem o aumento da concorrência à
obtenção/manutenção de emprego. Se, por um lado, a concorrência para se obter
um emprego tem exigido aumento de escolaridade, por outro, também, o título
formal perde o seu valor. A exigência de grau de escolaridade mais elevado
decorre da necessidade de reduzir o número de pretendentes a um determinado
posto de trabalho, enquanto a perda de valor do título formal se prende à
necessidade de comprovar, cotidianamente, o saber fazer, de demonstrar
competência. Ademais, o trabalhador deve possuir condições psíquicas para
suportar as novas formas de controle. A cada forma organizacional,
correspondem determinados mecanismos de controle para solucionar os conflitos
sociais. Assim, no momento atual, as organizações voltam-se para a exploração

23
Dunninghan, Andréa. Emprego estável é coisa do passado. O Globo, Rio de Janeiro, 16/07/1965 p.57,
Economia.
33

da capacidade intelectual do trabalhador. Os mecanismos de controle


modificaram-se. Poderíamos afirmar que, hoje, as organizações preocupam-se,
especialmente, em obter a cooperação dos trabalhadores, incentivando-os à maior
liberdade de ações e à participação na vida da empresa. Tudo isso em prol dos
objetivos da organização. Mas a decisão dos fins a serem alcançados é
centralizada e tomada pelos gestores. Entretanto, é importante que se acentue a
participação dos trabalhadores para reforçá-la. Surge, então, a autofiscalização -
um ideal a ser conseguido para reduzir os custos de vigilância. Desse modo, os
mecanismos de controle passam a visar à vida psíquica. Ainda segundo
Dunninghan,

calcula-se que, em breve, o organograma já terá virado pó, passando os


profissionais a serem qualificados de acordo com sua competência, ou seja: as pessoas
seriam contratadas para desempenhar funções em que apresentem competência e não
mais para ser gerente disso ou daquilo, supervisor ou chefe de departamento. 24

d) Novos tipos de virtudes e disposições - O aproveitamento da capacidade


intelectual do trabalhador não poderá se concretizar se não se criarem as
condições necessárias à extração de suas potencialidades. Diferentemente do
sistema taylorista, em que os trabalhadores estavam compartimentados,
enclausurados e privados de qualquer iniciativa, no toyotismo, o que se pretende
é criar novos tipos de relacionamento interpessoal com o intuito de intensificar as
iniciativas individuais e as motivações para o trabalho. Ser capaz de trabalhar em
equipe, saber relacionar-se com os outros, participar, expressar-se, propor
soluções e oferecer sugestões passam a ser virtudes e disposições fundamentais à
nova organização do processo de trabalho.

4.3- Educação e escola

Vimos, no tópico anterior, que novas formas tecnológicas, novas formas


organizacionais, novos requisitos foram criados para a formação/qualificação dos
trabalhadores. Todas elas se consubstanciam no que denominamos capitalismo, hoje. Pois

24
Idem ibidem.
34

bem, o capitalismo, assim reestruturado, delimita um novo quadro de condicionamento


geral que determinará o aparecimento de novas formas de relacionamento social, de
novas exigências para a produção de trabalhadores, bem como de novas formas de
inserções no mercado de trabalho. Determinará, ainda, o aparecimento ou a atribuição de
novos sentidos ou significados aos valores, categorias, conceitos, princípios e parâmetros
que passam a nortear as práticas sociais.
É justamente nesse quadro condicionante em que se estrutura o campo básico da
educação como processo social. Todos nós, vivenciando esses novos tempos,
experimentando essas novas formas de relacionamento social, seja na família, no trabalho
ou nas diferentes instituições sociais, estamos aprendendo. Agora é comum atribuirmos
significados a certas coisas que, anteriormente, não levávamos em consideração. Nesse
contexto, certos aspectos são mais valorizados que outros e, ao mesmo tempo, outros
passam a ser desvalorizados. Exemplo disso, na época atual, é a desvalorização do
Estado, desejando que ele se transforme em um estado mínimo, e, ao mesmo tempo, que
várias de suas funções sejam agora exercidas por empresas privadas. O mesmo se dá com
a valorização excessiva que é atribuída ao mercado. Presenciamos, hoje, uma deificação
do mercado que se expressa no uso da personificação, isto é, consideram-no capaz de
ordenar o todo social e, se não se agir como ele deseja, ficará de mau humor, nervoso.
Outro exemplo de processo educativo, agora, talvez sem precedentes pela
amplitude que alcançou, são os jogos eletrônicos. A difusão dessa tecnologia, que
permitiu seu uso, de forma lúdica, pelos jovens, levou-os a aprender, antes mesmo do
processo escolar, como lidar com o mundo informatizado. A geração jovem foi educada
em termos de habilidades, destrezas, raciocínios, etc. tornando-a mais preparada para as
novas exigências do mercado de trabalho do que as gerações mais velhas. Essas, as
gerações mais velhas, viram-se, ao contrário, desvalorizadas.
No que diz respeito à escola, devemos observar, em primeiro lugar, que ela não é
uma ilha a salvo dos maremotos. Ela, como instituição social, sofrerá também, tal como
as outras instituições sociais, as influências daquele quadro condicionante. Ela será,
também, obrigada a se reorganizar, a assumir novos papéis, enfim, a se adequar ao
capitalismo contemporâneo.
35

Outro ponto da maior relevância e que devemos ressaltar refere-se às novas


exigências para a formação de trabalhadores, como vimos antes, completamente
diferentes das da época taylorista. Atualmente não é mais suficiente apenas saber ler,
escrever e contar. Demandam-se, hoje, certos tipos de competências, habilidades,
disposições e virtudes cujo aprendizado deve ser realizado previamente à inserção no
mercado de trabalho. Nessas circunstâncias, a escola, como instituição, não pode ser
negligenciada. Ao contrário, cresce a importância do seu papel, aumenta a sua
responsabilidade, na formação dos novos trabalhadores. Por isso, passa a ser fundamental
que os jovens não só tenham acesso a ela, mas, sobretudo, permaneçam, por mais tempo,
em seu interior. O aprendizado dessas novas exigências demanda maior tempo, maior
convívio social. Além de saber ler, escrever e contar, a qualificação básica passa a
demandar, ainda, muito provavelmente, capacidade para expressar-se, assimilar novas
tecnologias, dominar ferramentas do mundo informatizado, trabalhar em equipe.
Outra implicação advinda do quadro condicionante anteriormente citado refere-se
à dimensão gerencial. Os parâmetros administrativos originários na esfera produtiva
estendem-se, no capitalismo atual, aos sistemas escolares. Os mesmos métodos
organizacionais e os mesmos instrumentos de trabalho passam a penetrar nas escolas.
Com efeito, os critérios de organização administrativa têm de se ajustar aos preceitos de
eficiência, competência e produtividade definidos conforme o capitalismo. Somente com
a adoção dessa lógica organizacional, independentemente de serem públicos ou privados,
é que os sistemas escolares poderão se adequar aos ditames do mercado.
Como era de se esperar, rapidamente os efeitos oriundos dos sistemas flexíveis de
produção e organização se fizeram sentir nos sistemas escolares. Garantindo-se a
centralização das decisões, os sistemas escolares foram incentivados à descentralização
das ações, permitindo a ampliação da autonomia administrativa, financeira e pedagógica.
Esta é a lógica básica, esta é a nova racionalidade – o fim já fora definido, a escolha dos
meios para atingi-los pode ser livre, decididos localmente. Sendo assim, a melhor forma
de se atingir o objetivo, o melhor processo a ser adotado, as decisões relativas a
financiamento e administração, tudo isso deve ser da responsabilidade de todos. Todos
devem participar do processo e oferecer sugestões. Não se devem desprezar os
36

conhecimentos dos trabalhadores de ensino, dos pais dos alunos e, quem sabe, dos
próprios alunos.
Nesse contexto, um novo professor passa a ser exigido. Não mais aquele professor
tradicional. Torna-se necessário reestruturar também os processos didático-pedagógicos.
Não há lugar para a prática pedagógica impositiva, que prescreve normas a serem
seguidas. O professor deve levar em conta, agora, que o aluno deve ser visto como
sujeito, como ator reflexivo. Terá de prepará-lo para que seja capaz de expressar, saiba
trabalhar em grupo, tenha iniciativas, saiba enfrentar problemas, apresente flexibilidade
mental e força psíquica para suportar as exigências do mercado de trabalho.
E, finalmente, como ponto culminante da lógica capitalista, podemos citar a
necessidade de se avaliar todo o sistema. Há de se averiguar até que ponto cada unidade
escolar atinge os objetivos acadêmicos que dela se esperam. Para tanto, torna-se
necessária a proposição de um sistema nacional de avaliação. Poderíamos perguntar:
quais são os objetivos de tal proposição? Que tipo de avaliação é proposta? Ora, para a
lógica capitalista, o objetivo fundamental é aquilatar se os jovens que ingressam no
mercado de trabalho possuem as competências básicas demandadas pela tecnologia
capitalista. Quanto à avaliação, não serão as realizadas no interior da escola, pois, de um
lado elas podem apresentar certo viés em virtude de interesses específicos, e, de outro
lado, seus resultados, justamente por serem específicos, não permitem análises
comparativas. Conseqüentemente, a única avaliação possível dentro dessa lógica é a
externa ao sistema. Só ela permite equiparar, do ponto de vista quantitativo, trabalhos
qualitativamente diferentes. Para tanto, exige-se a fixação de conteúdos mínimos e de
testes padronizados, aplicados de forma sistemática. A partir da adoção desses testes,
poder-se-á medir o desempenho dos alunos, dos professores, da escola. Os testes
permitirão, ainda, aferir/revisar os planos de qualificação profissional; poderão orientar o
orçamento da escolar e os salários dos professores; poderão estabelecer limites às práticas
pedagógicas; poderão, sobretudo, determinar o prestígio, a eficiência ou a produtividade
de cada escola. Somente esse tipo de avaliação externa é que garante os mecanismos de
controle desse tipo de racionalidade. A racionalidade das diferenças, das hierarquias e da
valorização da concorrência.
37

Vale lembrar, ainda, que o capitalismo hoje é globalizado e, por conseguinte, as


avaliações agora não podem ficar restritas aos quadros nacionais. Com efeito, aqui no
Brasil, também já começam a aparecer avaliações internacionais no intuito de estabelecer
comparações entre os países. Entre elas, e à guisa de informação, sobressaem-se: o
Trends in International Mathematics and Science Study (TIMMS); o Progress in
International Reading Literacy Study (PIRLS); e o Program for International Student
Assessment (PISA), do qual o Brasil participou pela primeira vez no ano 2000.
Em suma, a educação e a escola, no contesto capitalista atual, são fundamentais
para o próprio desenvolvimento desse sistema. Cada vez mais o desenvolvimento
econômico passa a depender do componente intelectual do trabalho. Cada vez mais
educação e escola vinculam-se às imposições do mercado de trabalho.
Conseqüentemente, a educação e a escola constituem, hoje, uma das condições mais
importantes para a produção e a reprodução da força de trabalho. Assim, para elas,
convergem os mais diferentes interesses e as profundas contradições do mundo
contemporâneo.

Considerações finais

Como vimos de apresentar, no capitalismo atual, o objetivo proposto para a escola


volta-se, cada vez mais, e quase exclusivamente, para a preparação do aluno para o
mercado de trabalho. É bem verdade que, com referência às declarações de intenções, é
comum ouvir que a escola deve preparar o aluno para a cidadania. Além de não se
especificar o que se entende por cidadania, (vários são os sentidos e os usos que fazem
desse conceito), tais proposições caem no vazio, ficam apenas no discurso, não tendo
nenhuma referência prática. Na verdade, boas intenções existem, mas sem respaldo na
prática pedagógica. Entre o discurso e a prática da sala de aula, a distância é abismal.
Por outro lado, não há como evitar os condicionantes impostos pelo mercado de
trabalho. Eles têm a sua razão de ser. Sabemos que, nas sociedades em que o modo de
produção dominante é o capitalismo, as pessoas, para sobreviverem, produzirem e
reproduzirem a sua própria vida, têm de procurar trabalho. Esse trabalho, para a grande
38

maioria das pessoas, reveste-se sob a forma de salário. Assim são constituídas as classes
dos trabalhadores que devem possuir determinado tipo de qualificação, conforme as
exigências do mercado de trabalho. Conseqüentemente, o mercado de trabalho possui
uma força impositiva e a escola não pode fugir do papel que lhe é imposto. Tais
considerações nos levam a perguntar: a escola deve ficar restrita apenas a esse papel? Em
outras palavras: o papel da escola é simplesmente preparar as futuras gerações para o
mercado de trabalho?

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