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Questão Racial Cotas Raciais

Ser atendido por um médico negro vai muito além


da redistribuição de renda, diz economista
01/09/2022

Marcelo Paixão, professor da Universidade do Texas, Austin - Divulgação

A implementação da Lei de Cotas, que no mês de agosto completa dez anos, tem um impacto político e
simbólico que ultrapassa o econômico, diz Marcelo Paixão, economista e professor da Universidade do
Texas.

“Ser atendido por um médico negro, bem como dar entrevista para um jornalista negro, vai muito além de
se a distribuição de renda aumentou ou diminuiu. Ela diz respeito a uma dimensão estrutural imaterial”,
afirmou de Austin, por videoconferência, o pesquisador brasileiro.

De acordo com ele, permitir que mais negros ocupem funções e cargos onde antes não estavam tem “um
papel pedagógico, cuja mensuração é muito mais profunda do que a gente poderia estimar originalmente”.

Já uma relação de causa e efeito que meça o impacto na economia do país da política de ação afirmativa
ainda não foi estabelecida, afirma —tanto pela falta de indicativos, quanto pelo pouco tempo em que as
cotas estão em vigor.

Doutor em sociologia pela Iuperj, ele diz que a lei ajudou a diminuir o desequilíbrio racial e social em
universidades e instituições públicas, mas sozinha não é capaz de combater a concentração de renda no
país –uma das maiores do mundo.

- + = Lei de Cotas pode contribuir para a melhor divisão de renda no Brasil? Que impacto a política
A
afirmativa pode ter na economia?
As políticas de cotas têm um papel estruturante na sociedade brasileira que vai além de uma mera
mensuração econômica. Tem toda uma dimensão política e simbólica de mudanças nas ocupações do 
Brasil.

Ser atendido por um médico negro, bem como dar entrevista para um jornalista negro, vai muito além de
se a distribuição de renda aumentou ou diminuiu. Ela diz respeito a uma dimensão estrutural imaterial.

Porque ela trabalha com o simbólico, com uma dimensão política implícita. Porque, agora, estamos tratando
de um assunto que foi colocado na redoma, foi colocado debaixo do tapete por muito tempo.

Teve um efeito que eu acho que foi civilizatório. Tomara que a economia melhore, eu acho até que a
economia vai melhorar. Eu até suponho que em algum momento virão profissionais tão bem qualificados,
tão bem preparados, com tanta energia e com tanto ânimo, que vai gerar um efeito cascata na economia
brasileira.

Mas o grande ganho que o Brasil tem não é econômico, o ganho é civilizatório. O Brasil está há 140 anos
dando cabeçada. O problema não é a falta de integração, o problema é a injustiça social que ocorre por
causa da cor das nossas peles que tem um efeito sobre nós, mas que tem um efeito sobre o país. Esse
efeito é econômico, também. Mas ele é um efeito muito mais profundo.

O Brasil, com as ações afirmativas, se encontrou consigo mesmo. Esse encontro consigo mesmo é com a
própria história.

É necessário enxergar essas relações mais de fundo. Porque em determinados momentos a conjuntura
econômica não vai ajudar. Se a conjuntura não ajudou, o responsável foi a cota? Não.

As cotas, de certo modo, vão transcender esses círculos econômicos. Elas têm uma importância que vão
perpassar se a economia está bem. Se a economia vai bem, as cotas ajudaram. Se a economia vai mal, as
cotas ajudaram a não piorar.

Pode ocorrer de alguém querer jogar nas nossas costas: a economia está pior porque vocês agora
chegaram. Então, eu digo que o objetivo maior é civilizatório do que propriamente apenas econômico.

Óbvio que vai ter algum efeito econômico, na medida em que isso se traduz na desconcentração da renda.
Mas colocar essa dura dimensão pode nos trazer algumas armadilhas e é bom a gente lidar com alguma
prudência.

O sr. fala sobre o efeito civilizatório da política de cotas, mas existem pessoas que ainda se
surpreendem quando veem um profissional negro ocupando um cargo de elite. Para o sr., nesses dez
anos já houve algum efeito positivo? 

Podemos pegar como referência as novelas e os atores. Hoje há uma maior visibilidade negra. Me lembro
do filme de Joel Zito Araújo, “A Negação do Brasil”, que mostrava que os negros na televisão eram
sinônimo de escravo e de empregada doméstica.

Hoje, eu percebo que já começa a ocorrer algo diferente. Me parece que isso é um indicativo de uma
mudança que está ocorrendo. O fato é que nós estamos formando mais profissionais negros e, voltando à
sua questão, eu quero medir se as cotas foram bem-sucedidas nisso.

Disseram que iríamos fracassar. Mas, se a política fosse um fracasso, os negros não iam conseguir se
- + =
formar e ficaria tudo como era antes. Vejo que houve essa mudança. Isso tem, de novo, um papel
pedagógico, cuja mensuração é muito mais profunda do que a gente poderia estimar originalmente.

Como assim um efeito pedagógico?

Um maior número de profissionais negros ocupando posições importantes tem um efeito pedagógico à
medida que as pessoas vão começando a se acostumar, não se sentem mais surpreendidas pela
visualização de peles pretas ocupando espaços originalmente ocupados por quem tinha peles não pretas.

Há uma discussão sobre uma necessidade de revisão na Lei de Cotas. Existem grupos que defendem a
cota social e não a racial. Nesse sentido, qual seria o prejuízo para as conquistas dos negros?

Obviamente, qualquer mudança que venha no sentido de eliminar o critério racial das políticas vai ser
extremamente injusta.

O objetivo da política de cotas era o de favorecer os mais pobres? Era. Mas o objetivo fundamental era
modificar a composição racial no campus universitário brasileiro. E, se uma política que tem por objetivo
mudar a composição racial do campus universitário brasileiro retira essa dimensão, obviamente ela começa
a dar sinais de fracasso.

Porque, se os jovens brancos ocupam as vagas com maior intensidade, nós podemos até melhorar a
distribuição de renda social como um todo, mas do ponto de vista racial estaríamos aprofundando as
diferenças.

Acho que devemos, neste momento, manter a política para que ela possa seguir dando resultados. Nós
tivemos 500 anos de segregação, exclusão, discriminação e racismo no Brasil. Vamos resolver tudo em dez?
É uma goleada temporal. Nós temos que manter a política e tentar, quando possível, aumentar seu escopo.

Na sua opinião, a política de cotas precisa de ajustes?

Nesse momento, temos que mudar a política num único plano: é preciso dar mais recurso para a assistência
estudantil. É uma maldade estimular e encorajar os jovens a irem para a universidade e depois eles se
verem fracassando porque não têm o que seria o elementar.

Sabemos que, para que uma política dê certo, é preciso colocar dinheiro. Nesse terreno, não é necessária
uma mudança de escopo, mas, sim, uma mudança de aporte financeiro.

Mais adiante teremos que fazer uma discussão mais séria sobre os efeitos do racismo na sociedade
brasileira e começarmos a implementar medidas que também prevejam reservas de vagas a partir de
critérios raciais, considerando que essa injustiça perpassa não apenas as instituições de um ponto de vista
genérico social e geral, mas ela também se manifesta através das práticas raciais discriminatórias contra
negros nos vários estabelecimentos, o que prejudica o seu progresso escolar.

Por que ainda hoje é necessário defender a Lei de Cotas? 

Nós negros temos que mostrar que somos capazes duas vezes, três vezes mais do que um colega que está
ali do lado e não atravessou as mesmas dificuldades que atravessamos, inclusive do ponto de vista das
discriminações raciais que vêm nos acompanhando desde o momento em que nascemos.

E vamos deixar de hipocrisia. Sou de uma geração que pegou aquele debate: “no Brasil ninguém sabe quem
é negro e quem é branco”. Não sabe? Basta ligar a televisão. Não sabe por que é preciso ter política de
- + = mas ao ligar a televisão todo mundo é branco. Dá para ver que houve algum critério de seleção ali.
cotas,
É preciso deixar de hipocrisia e ir direito ao ponto, não temos mais tempo a perder. Temos um país para
construir, ou a reconstruir, depois da destruição desses últimos anos. 

Existem barreiras para pessoas que têm peles escuras. “Ah, mas raça não existe.” Peles escuras existem,
aparências físicas existem. Existem apropriações simbólicas, culturais, sociais e políticas dessas formas
físicas humanas, que acabam criando barreiras para milhões de seres humanos no seu processo de
classificação social.

É preciso enfrentar esse problema. Nenhum país se constrói à base de hipocrisia. Sempre achei que
conseguiríamos lidar com isso de forma racional, de quem tiver o argumento mais afiado ganha. Mas,
depois da morte da Marielle [Franco] ficou colocado que estamos vivendo um momento em que a
democracia brasileira colapsa.

Estão nos mostrando quais são os limites da democracia no Brasil. De que não há vaga para a gente, não
há espaço para a gente. Não somos obrigados a aceitar. Vamos continuar lutando para que a gente amplie
os espaços e nossos direitos. Sabemos que tem jeito.

Marcelo Paixão

Doutor em Sociologia pelo Iuperj, é economista e professor da Universidade do Texas associado ao


Departamento de Estudos da Diáspora Africana (AADS) e ao Instituto Teresa Lozano Long para Estudos
Latino-Americanos. Antes de vir para Austin, foi professor de Economia da UFRJ (Universidade Federal do
Rio de Janeiro) por 16 anos, mesmo local onde se formou. Entre 2012 e 2013, foi Professor Visitante na
Universidade de Princeton, onde foi membro do Projeto sobre Etnia e Raça na América Latina (Perla).

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