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ORDENAMENTO BRASILEIRO
1
Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Procurador do Estado do Rio de
Janeiro. Vice-presidente do IBERC.
2
O presente estudo decorre da apresentação intitulada “Terceiros e responsabilidade civil do Estado”, que
tive a satisfação de fazer nas V Jornadas Luso-brasileiras de Responsabilidade Civil, em novembro de 2021,
promovidas pelo Instituto Jurídico da Comunicação, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
e pelo IBERC, sob a coordenação de Mafalda Miranda Barbosa, Nelson Rosenvald e Francisco Muniz.
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Caio Mário da Silva Pereira anota que “da mesma forma que as pessoas jurídicas de direito privado, que
por não serem dotadas de individualidade fisiopsíquica têm de se servir de órgãos e comunicação, também
o Estado, como ente abstrato, posto que cientificamente portador de realidade técnica ou realidade jurídica,
tem de proceder por via de seus ‘agentes’, ou de seus ‘órgãos’” (PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Responsabilidade civil. 11ª ed. Atualizado por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 175).
No mesmo sentido, Carvalho Filho: “Como pessoa jurídica que é, o Estado não pode causar qualquer dano
a ninguém Sua atuação se consubstancia por seus agentes, pessoas físicas capazes de manifestar vontade
real. Todavia, como essa vontade é imputada ao Estado, cabe a este a responsabilidade civil pelos danos
causados por aqueles que os fazem presentes no mundo jurídico” (CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Manual de direito administrativo. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 588).
A partir dessas reflexões iniciais, convém destacar que o presente trabalho será dividido
justamente nestes dois segmentos: o primeiro tem por objetivo abordar a responsabilidade
civil do Estado por atos comissivos, isto é, a responsabilização do ente públicos por atos
praticados (ação) por seus agentes. Nesse primeiro momento, serão abordadas as
situações nas quais os atos de terceiros – agentes públicos – vinculam a Administração
Pública ao dever de reparar. Para tanto, pretende-se investigar o conceito de agente
público e, principalmente, estudar a dupla relação que se forma em tais casos, isto é, a
relação externa entre o Estado e a vítima do dano e a relação interna, entre o ente estatal
e seu agente, a fim de verificar quando e em que termos haverá direito de regresso por
parte do Estado.
Já o segundo eixo tem por escopo a responsabilidade civil do Estado por atos omissivos.
Nesse caso, o enfoque recairá sobre a verificação dos pressupostos da conduta omissiva
da Administração vis-à-vis ao ato de terceiro, para se averiguar se o resultado da
ponderação se mostra capaz de elidir o nexo causal, a afastar, portanto, o dever de
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Trata-se, aqui, da previsão contida no caput do artigo 927 do Código Civil, segundo o qual “Aquele que,
por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
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“De regra, no sistema de responsabilidade subjetiva, somente àquele que deu causa ao prejuízo impõe-se
o dever de indenizar. Diz-se, portanto, que a responsabilidade é direta, decorrente de fato próprio do agente
causador do dano. No entanto, o anseio de justiça e proteção à vítima impôs certa flexibilização da exigência
de comprovação do ‘nexo causal entre o dano e a pessoa indigitada como causador do dano’, passando-se
a admitir a atribuição a terceiros do dever de indenizar”. (TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda
Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil, vol. 4. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020, p. 137). Para outras considerações acerca da responsabilidade civil indireta, ver
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil indireta e
inteligência artificial. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César;
FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. (Org.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre
Brasil e Europa. 1ed. Indaiatuba: Foco, 2021, v. 1, p. 181-194.
Em complemento, o artigo 933 estabelece que “as pessoas indicadas nos incisos I a V do
artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos
praticados pelos terceiros ali referidos”. Indigitado dispositivo representa importante
avanço legislativo em relação ao regime encampado pelo Código Civil de 1916. Isso
porque a legislação revogada previa expressamente que a responsabilidade indireta se
baseava em culpa in eligendo ou culpa in vigilando. Exigiam-se, assim, dois elementos
probatórios: (i) a prática do ato pelo agente causador direto do dano; e (ii) a culpa in
eligendo ou in vigilando do sujeito a quem se imputava o dever de indenizar. Nos termos
do artigo 1.523 do Código Beviláqua, “só serão responsáveis as pessoas enumeradas
nesse e no artigo 1.522, provando-se que elas concorreram para o dano por culpa, ou
negligência de sua parte”.6
6
Nas palavras de Carvalho de Mendonça, “O que se chama hoje responsabilidade por facto de outrem é,
num sentido moral superior, uma responsabilidade de facto próprio, tendo por fundamento a culpa in
vigilando ou a culpa in eligendo e não no direito de representação, pois que o responsável jamais pode ser
presumido como tendo dado ao seu representante direitos de offender. De modo que essa espécie de
responsabilidade não é derogatória do princípio da personalidade da culpa. É pela própria culpa, afinal, que
responde quem não vigia e guarda aquelles a quem deve guarda e vigilância; é, no fundo, a culpa de
imprudência ou negligência” (CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Doutrina e Prática das
Obrigações. Curitiba: Typ. e Lith. a vapor Imp. Paranaense, 1908, p. 876).
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Ricardo Pereira Lira menciona essa evolução doutrinária e jurisprudencial da responsabilidade civil do
Estado como exemplo de direito insurgente. Nas palavras do autor: “No direito legislado [a referência, aqui,
é ao CC de 1916], por conseguinte, a responsabilidade do amo, patrão ou comitente é desenganadamente
subjetiva. Não basta que a vítima prove a culpa do preposto, serviçal ou empregado. Para surgir a
responsabilidade do preponente seria necessário, em face do texto da lei, que a vítima provasse a culpa in
vigilando ou in eligendo do preponente, ou seu procedimento doloso. (...) Os operadores do direito criaram,
insurgentemente, a responsabilidade sem culpa do preponente, por força da qual provada a culpa ou dolo
do preposto é responsável o preponente”. (LIRA, Ricardo Pereira. A Aplicação do Direito e a Lei Injusta.
In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n. 5. Rio de Janeiro:
Renovar, 1997, p. 93.
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Carvalho Santos posiciona-se da seguinte forma a respeito do assunto: “Estamos com Pontes de Miranda,
em que o artigo 1.521 não constitui exceção ao princípio da culpa, nem cria responsabilidade por culpa
alheia, mas regula o ônus da prova, estabelecendo para o lesado a presunção de que foram culpadas as
pessoas designadas no texto. (...) O que parece claro é que o art. 1.521, que se deve interpretar como
dispositivo análogo ao BCG, §§ 831 E 832, impõe à vítima tão somente a obrigação de determinar o autor
direto do dano, daí decorrendo, automaticamente, a culpa do responsável, qualquer que seja dentre os ali
enumerados, que, para eximir-se, terá que provar que não foi negligente”. (CARVALHO SANTOS, João
Manuel de. Código civil brasileiro interpretado, principalmente do ponto de vista prático, vol XX. 12ª ed.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1990, pp. 213-214). Em entendimento dissonante, Aguiar Dias compreendia
que a presunção em questão referia-se à causalidade, não já à culpa, veja-se: “consideramos infundado o
vivo debate, travado na jurisprudência francesa, sobre se tal presunção se refere à culpa ou à
responsabilidade: a presunção é de causalidade; o que se presume é nexo de causa entre o fato da coisa e o
dano” E continua: “O dever jurídico de cuidar das coisas que usamos se funda em superiores razões de
política social, que induzem, por um ou outro fundamento, á presunção de causalidade aludida e, em
consequência, à responsabilidade de quem se convencionou chamar o guardião da coisa, para significar o
encarregado dos riscos dela decorrentes”. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed.
Atualizado por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 588-589).
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“Os Tribunais tornaram-se refratários à demonstração de ausência de culpa, e se consolidou, ao menos no
caso da responsabilidade do patrão pelo ato culposo do empregado (art. 1.521, III), a presunção absoluta.
A rigor, referida interpretação acabou por produzir resultado prático equivalente à adoção da teoria objetiva,
na medida em que se afastava por completo a possibilidade de demonstração da ausência de culpa in
eligendo ou in vigilando, e apenas se elidia a responsabilidade pelas excludentes de causalidade”.
(TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde. A evolução da responsabilidade civil por fato
de terceiro na experiência brasileira. In: Revista de Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, p. 1.083).
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Alvino Lima afirma que “Os problemas mais árduos e controvertidos sobre a responsabilidade civil, quer
na doutrina, como na jurisprudência, debatem-se no estudo da responsabilidade civil pelo fato de outrem”.
(LIMA, Alvino A responsabilidade civil pelo fato de outrem. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 27).
Dessa forma, nos casos, por exemplo, que envolverem ato praticado por preposto e que
não caracterizem atividade de risco nem relação de consumo, será necessário averiguar a
presença de todos os requisitos do ato ilícito, isto é, a culpa do preposto, o dano sofrido
pela vítima e o nexo causal. No caso do filho menor, por outro lado, deverão estar
presentes o dano e o nexo causal, afastando-se a presença de culpa por se tratar de agente
incapaz, mas, como pontua a doutrina especializada, o ato praticado deve equivaler a um
ato ilícito.
11
Conforme anota Maria Celina Bodin de Moraes, “a cada dia tem-se mais e mais hipóteses de regimes
especiais diferenciados, tornando impossível a tarefa de sistematizar a matéria da responsabilidade civil”.
(BODIN DE MORAES, Maria Celina. LGPD: um novo regime de responsabilização civil dito proativo.
In: civilistica.com, a. 8, n. 3, 2019, p. 1).
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Para uma análise pormenorizada da evolução histórica da responsabilidade civil do Estado no Brasil, ver
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Problemas de responsabilidade civil do Estado. In: Rumos
Pois bem, verificada a presença dos requisitos mencionados para que surja o dever de
indenizar, passa-se ao segundo momento, no qual se busca constatar a existência de
subordinação ou dependência entre o agente causador do dano e um terceiro que a lei
acaba por imputar a obrigação de arcar com a indenização; trata-se da relação dita vertical
ou de segundo grau. Essa segunda relação terá, em todo e qualquer caso, natureza objetiva
por força do supracitado artigo 933 do Código Civil, inexistindo qualquer necessidade de
investigação da culpa daquele que se vê responsabilizado, bastando a existência da
relação com o causador do dano para que surja para aquele o dever de indenizar. Assim,
a lei não exige qualquer investigação sobre eventual negligência do pai na vigilância de
seu filho menor, tampouco se preocupa com a demonstração de culpa do empregador –
ou do Estado – na escolha de seu preposto ou agente.
contemporâneos de direito civil: estudos em perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017,
pp. 173-203.
13
“O fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem para
individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve). (...) Identificar a função não é o
mesmo que descrever os efeitos do fato, interligando-os desordenadamente entre si, mas sim apreender o
seu significado normativo. Este significado, reconstruído pela aplicação das regras e princípios, se exprime
em efeitos do fato”. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad.: Maria
Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 642). E afirma ainda o mesmo autor: “Entender a
norma não é, e nem pode ser, o resultado da exegese puramente literal, mas é a individualização da sua
lógica e da sua justificação axiológica; e isso é impossível sem levar em conta o restante do ordenamento
e dos princípios que o sustentam”. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional.
Trad.: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 629).
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“Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais
são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana,
segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa
humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação
dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. (...) Noutro giro, a
perspectiva patrimonial da reparação integral parece fundamentar-se no direito de propriedade (art. 5º,
XXII). A indenização, sob a perspectiva da reparação integral, consiste em expediente pelo qual a vítima
2.2- Relação vertical entre Estado e agente público: a tese da dupla garantia, o
surgimento de um dever de regresso, o significado de erro grosseiro e a regra da
prescritibilidade
O conceito de agente público adotado pela legislação é bastante amplo, a abarcar “os
membros dos Poderes da República, os servidores administrativos, os agentes sem
vínculo típico de trabalho, os agentes colaboradores sem remuneração, enfim todos
aqueles que, de alguma forma, estejam juridicamente vinculados ao Estado”.16 Essa
procura reaver o patrimônio que efetivamente perdeu ou deixou de lucrar, na exata medida da extensão do
dano sofrido. (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no
direito brasileiro. In: civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018, p. 3).
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A responsabilidade por fato de outrem pode ser compreendida a partir do contexto geral da busca do
direito civil por tutelar à vítima do dado, fenômeno que tem como carro chefe a constante expansão da
responsabilidade objetiva. Na lição de Josserand: “todas essas leis, e muitas outras ainda, preparam e
consagram uma verdadeira revolução, dissociando completamente a responsabilidade da culpa, erigindo o
patrão, a comuna ou o explorador da aeronave em seu próprio segurador por motivo dos riscos que criou;
a ideia de mérito ou de demérito nada tem a ver no caso; a lei impõe o princípio justo e salutar ‘ a cada um
segundo seus atos e segundo suas iniciativas’, princípio valioso para uma sociedade laboriosa, princípio
protetor dos fracos: a força, a iniciativa, a ação devem ser por si mesmas geradoras de responsabilidade”.
(JOSSERAND, Louis. Evolução da responsabilidade civil. In. Revista Forense, vol. LXXXVI, a. XXXVIII,
abril de 1941, p. 557).
16
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2016,
p. 589.
Vale destacar, ainda, que a Constituição é clara ao afirmar que o Estado responde pelos
danos causados por seus agentes quando estiverem atuando “nessa qualidade”, isto é,
apenas quando o ato lesivo for praticado a pretexto da função que o sujeito exerce na
Administração Pública. Dessa forma, caso algum servidor público cause dano a outrem
sem que esteja no exercício de suas funções, evidentemente haverá sua responsabilização
direta, sem que se cogite de responsabilidade do Estado.
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As entidades referidas no art. 1º da referida lei são: Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem
como da administração direta e indireta, no âmbito da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito
Federal; entidades privadas que recebam subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes
públicos ou governamentais; e entidades privadas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou
concorra no seu patrimônio ou receita atual.
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RECURSO EXTRAORDINÁRIO. POLICIAL CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR ATO ILÍCITO PRATICADO PELO AGENTE PÚBLICO NO
EXERCÍCIO DAS SUAS FUNÇÕES. INDENIZAÇÃO DEVIDA. 1. A Constituição Federal
responsabiliza as pessoas jurídicas de direito público pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,
causarem a terceiros, não sendo exigível que o servidor tenha agido no exercício das suas funções. 2. Dano
causado por policial. Responsabilidade objetiva do Estado em face da presunção de segurança que o agente
proporciona ao cidadão, a qual não é elidida pela alegação de que este agiu com abuso no exercício das
suas funções. Ao contrário, a responsabilidade da Administração Pública é agravada em razão do risco
assumido pela má seleção do servidor. Recurso extraordinário não conhecido. (STF, 2ª T., RE 135.310/SP,
Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 10.11.1997).
19
AGRAVO REGIMENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. ACIDENTE DE
TRÂNSITO ENVOLVENDO VEÍCULO OFICIAL. SÚMULA 279 DO SUPREMO TRIBUNAL
Outra questão que demandou esclarecimento por parte do Poder Judiciário diz respeito
aos tabeliães e oficiais de registro. A dúvida surgiu porque esses profissionais não são
servidores públicos, exercendo sua função por meio de delegação, nos moldes do artigo
O dever de indenizar a vítima por danos causados por agentes públicos recai
exclusivamente sobre o Estado, não havendo a possibilidade de o lesado ajuizar ação em
face da pessoa do agente. Após grande e acirrada discussão sobre o tema, e ao contrário
de inúmeros precedentes do STJ25, foi esse o entendimento firmado pelo Supremo
Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 1.027.633/SP, que fixou a
seguinte tese para o Tema 940 de sua Repercussão Geral: “A teor do disposto no art. 37,
§ 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser
ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço
público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso
contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.26 Trata-se de consagração
jurisprudencial da teoria da dupla garantia, assim denominada por proteger tanto a vítima
quanto o agente público. Nas palavras do Ministro relator:
22
CRFB/88, art. 236: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação
do Poder Público”.
23
O julgamento de 1999 a que se faz referência é o RE 209.354, julgado pela Segunda Turma com relatoria
do Min. Carlos Veloso e ementado da seguinte forma: “CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO.
TABELIÃO. TITULARES DE OFÍCIO DE JUSTIÇA: RESPONSABILIDADE CIVIL.
RESPONSABILIDADE DO ESTADO. C.F. , art. 37, § 6º. I. - Natureza estatal das atividades exercidas
pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por
delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por
esses servidores no exercício de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos
de dolo ou culpa (C.F., art. 37, § 6º). II. - Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido”.
24
STF, Tribunal Pleno, RE 842.846/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 27.02.2019.
25
“O STJ vislumbra a possibilidade - no caso de dano causado por agente público - da vítima escolher
contra quem propor a ação (contra o Estado, contra o autor do dano ou contra ambos). O STJ chega a dizer
que a questão é pacífica por lá (STJ, REsp 687.300. Precedentes: REsp 731.746; REsp 1.325.862; AgInt no
ARESP 583.842, DJe 24/08/2017)”. BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil do Estado por
omissão: entre mitos e verdades. In: Migalhas de responsabilidade civil, 24.11.2020. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/336797/responsabilidade-civil-
do-estado-por-omissao--entre-mitos-e-verdades. Consultado em 25.02.2022.
26
STF, Tribunal Pleno, RE 1027633/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 14.08.2019.
De fato, não vem de hoje a máxima segundo a qual “na dúvida, dorme tranquilo quem
indefere”,28 a ilustrar o pouco estímulo que a ordem jurídica, no Brasil, dá ao
administrador público de tomar decisões inovadoras, ainda que, por vezes, haja certo grau
de incerteza acerca de suas consequências. Nessa direção, Gustavo Binenbojm e André
Cyrino explicam que a maior virtude do dispositivo foi “criar um ambiente propício à
inventividade, cuidando de gestores e técnicos que buscam inovar os meios de gestão
pública. Se suas tentativas de inovação não forem bem-sucedidas, eles apenas
responderão por dolo ou erro grosseiro”.29
27
“O princípio da eficiência [...] traduz-se, de forma bastante ampla, no dever imposto à Administração
Pública de decidir pela melhor opção disponível, considerando os custos envolvidos e benefícios almejados.
Trata-se não apenas de atuar de maneira legal e razoável, mas de buscar a solução juridicamente possível
que seja a mais apropriada ao atendimento de determinado interesse público”. (BARCELLOS, Ana Paula
de. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 390).
28
A respeito do tema, v. RIBEIRO, Leonardo Coelho. "Na dúvida, dorme tranquilo quem indefere", e o
Direito Administrativo como caixa de ferramentas. In.: Direito do Estado, n. 149, 2016. Disponível em:
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/leonardo-coelho-ribeiro/na-duvida-dorme-tranquilo-quem-
indefere-e-o-direito-administrativo-como-caixa-de-ferramentas
29
BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB - A cláusula geral do erro administrativo.
In: Revista de Direito Administrativo, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de
Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), nov. 2018, p. 213.
José Vicente Santos de Mendonça, em estudo anterior ao advento da nova disposição da LINDB, procurava
dar densidade à responsabilização da atividade consultiva da Administração, indicando 4 parâmetros: (i)
dolo do parecerista: a mais evidente causa de responsabilização, embora de difícil comprovação a prática
diante da necessidade de comprovação da má-fé subjetiva; (ii) erro evidente e inescusável: erros flagrantes
perceptíveis pelo advogado médio. Exemplos dados pelo autor: elaborar parecer jurídico referente a matéria
atual de trânsito com base no revogado Código Nacional de Trânsito, Lei Federal n.º 5.108, de 21 de
setembro de 1966. Enquadrar caso de dispensa de licitação em artigo inteiramente inaplicável da Lei de
Licitações. Aplicar a legislação da União relativa a pregão a hipótese em que a legislação estadual sobre o
tema estabelece regra diversa e incompatível; (iii) a não-adoção de condicionantes reais de cautela, como
o dever de informar à Administração a respeito dos riscos jurídicos de determinada estratégia; (iv) a
necessidade de preservação da heterogeneidade de ideias: o juízo de responsabilização do parecerista deve
sempre levar em conta a pluralidade de ideias e o incentivo da inovação na formulação jurídica, concedendo
liberdade, dentro dos limites da lei, para que o advogado público exerça sua função. (MENDONÇA, José
Vicente Santos de. A responsabilidade pessoal do parecerista público em quatro standards. In: Revista
Brasileira de Direito Público, v. 27, p. 177-199, 2009).
30
Nesse sentido, v. CRUZ, Alcir Moreno da; BORGES, Mauro. O artigo 28 da LINDB e a questão do erro
grosseiro. In: Consultor Jurídico, 14 de maio de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-
mai-14/opiniao-artigo-28-lindb-questao-erro-grosseiro De acordo com Luís Roberto Barroso, consideram-
se conceito jurídico indeterminado “expressões de sentido fluido, destinadas a lidas com situações nas quais
o legislador não pôde ou não quis, no relato abstrato do enunciado normativo, especificar de forma
detalhada suas hipóteses de incidência ou exaurir o comando a ser dele extraído”. (BARROSO, Luís
Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 352).
31
“Não obstante tenha o legislador optado por adotar, mais uma vez, o estranho requisito do ‘erro grosseiro’
(já inserido no art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por via da reforma
implementada pela Lei nº 13.655/2018), pecou menos em indicar que, em última análise, quer-se referir
que a responsabilização ocorrerá nas hipóteses de culpa grave. [...]A redação do art. 2º da Medida Provisória
nº 966/2020 encerra, a rigor, uma tautologia: erro grosseiro nada mais é que o erro evidente e inescusável
praticado com culpa grave. Esta, por sua vez, por ter alta gravidade, é sempre explícita e indesculpável, o
que se trataria de ‘erro grosseiro’. (REIS JUNIOR, Antonio dos. A responsabilidade civil dos agentes
públicos em tempos de covid-19: análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal no pedido cautelar
na ADI nº 6421 e outras. In: Revista IBERC, v. 3, n. 2, maio/ago. 2020, pp. 315-316)
32
“Importante frisar que o erro grosseiro, para fins de responsabilização, não afasta a ocorrência de culpa.
Na verdade, estão abrangidas na ideia de erro grosseiro as noções de imprudência, negligência e imperícia,
quando efetivamente graves – ou gravíssimas”. BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da
LINDB - A cláusula geral do erro administrativo. In: Revista de Direito Administrativo, Edição Especial:
Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), nov.
2018, p. 213.
33
TCU, Plenário, 4ª C.C., TC 031.560/2016-4, Rel. Augusto Nardes, julg. 17.03.2021.
Embora geralmente associado à culpa grave, como visto acima, para parte da doutrina o
erro grosseiro equiparar-se-ia ao dolo, nos termos do tradicional brocardo latino culpa
lata dolo comparabitur, aproximação que se teria reforçado especialmente após processo
de objetivação do dolo,35 consubstanciado no deslocamento do foco da intenção do agente
– elemento psíquico – para sua atitude deliberada e consciente do resultado que pode
acarretar. Para os adeptos da tese, o conceito de dolo, objetivado, consiste “na consciência
34
STF, Tribunal Pleno, MC nas ADIs 6421,6422,6424, 6425, 6427, 6428 e 6431, Rel. Min. Luís Roberto
Barroso, 21.05.2020.
35
“No primeiro caso, ou seja, no tocante à culpa lata, ela é equiparável ao dolo: culpa lata dolo
comparabitur (D. 11, 6, 1, 1), por ser tão vergonhosa quanto esse, nas não menos conhecidas palavras de
Windscheid. É a negligência extrema a que alude o Digesto (D. 50, 16, 213, 2): culpa lata é a mínima
diligência, id est, non intelligere quod omnes intelligunt. Ou, ainda, a culpa aqui decorre de uma falta tão
elementar, conhecida por todos, que vai equiparada ao ato deliberado de má-fé”. (CARRÁ, Bruno Leonardo
Câmara. A doutrina da tripartição da culpa: uma visão contemporânea. In: Revista de Direito Civil
Contemporâneo – RDCC, vol. 13, ano 4, out.-dez. 2017, p. 203).
36
TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz.
Fundamentos do direito civil, v. 4. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 107. No mesmo sentido, Caio
Mário da Silva Pereira ensina: “Modernamente, o conceito de dolo alargou-se, convergindo a doutrina no
sentido de caracterizá-lo na conduta antijurídica, sem que o agente tenha o propósito de prejudicar.
Abandonando na noção tradicional do animus nocendi (ânimo de prejudicar), aceitou que a sua tipificação
delimita-se no procedimento danoso, com a consciência do resultado. Para a caracterização do dolo não há
mister perquirir se o agente teve o propósito de causar mal. Basta verificar se ele procedeu consciente de
que o seu comportamento poderia ser lesivo. Se a prova da intenção implica a pesquisa da vontade de causar
o prejuízo, o que normalmente é difícil de se conseguir, a verificação da consciência do resultado pode ser
averiguada na determinação de elementos externos que envolvem a conduta do agente”. (PEREIRA, Caio
Mário da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Atualizado por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense,
2016, pp. 89-90).
37
Há ainda quem sustente, em doutrina, que a culpa grave do direito civil se assemelha ao dolo eventual do
direito penal: “Poderíamos lembrar que quem age com culpa grave, está agindo com a previsibilidade de
causar dano, é o que em Direito Penal se chama de dolo eventual; a pessoa assume o risco de prejudicar
outrem”. (LOPEZ, Teresa Ancona. Principais linhas da responsabilidade civil no direito brasileiro
contemporâneo. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 101, jan-dez. 2006,
p. 129). Em direito penal, conceitua-se dolo eventual da seguinte forma: “Haverá dolo eventual quando o
agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas aceitá-la como possível ou até provável, assumindo
o risco da produção do resultado (art. 18, I, in fine, do CP), isto é, não se importando com sua ocorrência.
No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de
prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo, por considerar mais importante sua ação que o resultado”.
(BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 1. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.
362).
Por fim, um último tema a ser abordado acerca da relação interna entre Administração
Pública e seu agente causador de dano a terceiro diz respeito à prescritibilidade da ação
de regresso a ser movida em face deste último. A discussão surge em razão do previsto
no § 5º do artigo 37 da Constituição da República, que prevê que “A lei estabelecerá os
prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que
causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”, a gerar a
discussão sobre possível imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 666 de sua Repercussão Geral, fixou a
regra geral sobre a matéria com a seguinte tese: “É prescritível a ação de reparação de
danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”.38 Há, porém, exceções, e uma delas
consiste nos atos de improbidade administrativa em que tenha havido dolo do agente
público, conforme restou fixado no julgamento do Tema 897 de sua Repercussão Geral:
“São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso
tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.39 Em complemento a esse
entendimento, no julgamento do Recurso Extraordinário RE 636.886/AL, de relatoria do
38
STF, Tribunal Pleno, RE 669.069/MG, Rel. Min. Teori Zavascki, julg. 03.02.2016.
39
STF, Tribunal Pleno, RE 852.475/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julg. 08.08.2018.
40
STF, Tribunal Pleno, RE 636.886/AL, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julg. 20.04.2020.
41
“Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus
representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou
faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”.
42
“Art. 194. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os
seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.
Parágrafo Único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver
havido culpa dêstes”.
À luz dos dados normativos atuais, isso quer dizer que nos chamados atos comissivos, ou
seja, naqueles em que o Estado atue de forma positiva, aplica-se o artigo 37, §6º, da atual
Constituição, que prevê a teoria objetiva da responsabilização, a prescindir da culpa,
sendo exigida apenas a demonstração do dano – efeito da lesão a interesse juridicamente
tutelado43 – e nexo causal – liame entre a atividade estatal (no caso, conduta comissiva)
e efeito danoso.44 Por outro lado, em casos em que o dano tenha sido ocasionado por
terceiros diante de uma omissão estatal, aplicar-se-ia a regra da responsabilidade
subjetiva, sob a ótica em que é atualmente interpretada, vale dizer, a despeito de serem
aqui exigidos os três tradicionais pressupostos da responsabilidade civil, dano, nexo
causal e culpa, esta última revela-se mitigada, vez que não precisa estar personificada em
um ou mais funcionários determinados, bastando que se comprove a ineficiência culposa
do serviço público em geral, isto é, a culpa anônima.
Abram-se dois breves parênteses neste ponto. O primeiro para o registro de que o Código
Civil de 2002 apresenta, em seu artigo 43, regra acerca da responsabilidade civil do
Estado praticamente idêntica à da Constituição da República e, portanto, com feições
bastante distintas às do revogado artigo 15 do Código de 1916, eliminando esse esteio
legal da teoria da responsabilidade subjetiva dos entes públicos por atos omissivos. O
segundo, no sentido de que o texto constitucional de 1946 pretendeu efetivamente
disciplinar por completo a matéria, não recepcionando, assim, a anterior norma
infraconstitucional prevista no artigo 15 do Código Civil de 1916, o que se extrai da regra
de hermenêutica constante do artigo 2º, §1º, parte final, da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro, segundo a qual a lei posterior revoga a anterior se houver cuidado
43
Para as definições de dano moral e material com base nos efeitos da lesão de direito, bem como das
respectivas técnicas de reparação de acordo com a ordem constitucional, v. MONTEIRO FILHO, Carlos
Edison do Rêgo. De volta à reparação do dano moral: 30 anos de trajetória entre avanços e retrocessos. In:
SCHREIBER, Anderson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; OLIVA, Milena Donato (orgs.).
Problemas de direito civil: homenagem aos 30 anos de cátedra do professor Gustavo Tepedino por seus
orientandos e ex-orientandos. Rio de Janeiro: Forense, 2021, pp. 563-577.
44
TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade. In: Revista Trimestral de Direito Civil –
RTDC, vol. 6, pp. 3-19.
Nada obstante, para aqueles que defendem que os atos omissivos desafiam
necessariamente a responsabilidade subjetiva, como o citado Celso Antônio Bandeira de
Mello, se o Estado não agiu, não pode ser autor do dano; e, não tendo sido seu autor, só
caberia responsabilizá-lo na hipótese de estar obrigado a impedi-lo. A responsabilidade,
em suma, decorreria do descumprimento do dever legal de obstar o evento lesivo,
geralmente desencadeado por ato de terceiro. Na síntese do próprio autor: “se o Estado,
devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se
abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta
incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não
evitado quando, de direito devia sê-lo”.47
Tal posicionamento foi elaborado ainda sob a égide da Constituição de 1946 por Oswaldo
Aranha Bandeira de Mello, mas ainda hoje é o que congrega o maior número de
seguidores em doutrina e jurisprudência, talvez porque tenha como tônica o expressivo e
convincente argumento de que o Estado não pode ser responsável por tudo o que aconteça,
45
Na ênfase de Luís Roberto Barroso: “nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode
subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental” (BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 161).
46
Ainda que assim não fosse, cumpre observar que as Constituições que se sucederam à de 1946 adotaram
essencialmente a mesma regra sobre responsabilidade do Estado. Todas simplificando sobremaneira a lide
a ser enfrentada pela vítima, a qual já não mais precisa demostrar a ocorrência de culpa, ainda que anônima,
na atuação comissiva ou omissiva do Estado. O elemento culpa só irá interessar na relação Administração
versus agente, para efeito de eventual direito de regresso.
Confira-se o teor das Cartas de 1967, 1969 e 1988:
1967: “Art. 105. As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários,
nessa qualidade, causem a terceiros.
Parágrafo Único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
1969: “Art. 107. As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários,
nessa qualidade, causarem a terceiros.
Parágrafo Único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
1988: 46 “Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços
públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
47
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2015, p. 1.042.
E, mais ainda, acaba por contrapor visões antagônicas da essência dos institutos da
responsabilidade civil e suas funções: o modelo clássico, derivado do liberalismo
econômico e do individualismo filosófico, a apontar na direção da regra subjetiva, versus
o modelo contemporâneo, que deita raízes no Estado social e no princípio da
solidariedade, a indicar a solução objetiva.
48
BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil do Estado por omissão: entre mitos e verdades. In:
Migalhas de responsabilidade civil, 24.11.2020. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/336797/responsabilidade-civil-
do-estado-por-omissao--entre-mitos-e-verdades . Consultado em 25.02.2022. Calha transcrever a eloquente
passagem do autor: “É fundamental ainda que busquemos, de modo criativo e responsável, soluções que
promovam o diálogo da responsabilidade civil do Estado com a teoria dos direitos fundamentais e com os
conceitos, categorias e institutos mais harmônicos com o século XXI. É fundamental que tenhamos também
estabilidade, isonomia e clareza nos julgados. O direito administrativo do século XXI não pode continuar
a trabalhar com conceitos formulados há mais de um século, com um instrumental que se reporta ao século
XIX. Há certo sabor autoritário nas lições tradicionais do direito administrativo, que costuma ter como
ângulo de análise os poderes do administrador, não os direitos do cidadão. Não por acaso, há autores que
ainda usam a palavra "súdito" para falar em cidadão.”
49
TEPEDINO, Gustavo. A evolução da responsabilidade civil no direito brasileiro e suas controvérsias na
atividade estatal. In: Temas de Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 191.
De fato, quanto mais genérica a omissão, mais difícil a comprovação da causalidade entre
a conduta ou atividade administrativa e o dano. Ademais, não parece exata a noção de
que, ao se dispensar a prova do elemento culpa, o Estado se tornaria, ipso facto, o
segurador universal de todos os danos. Em rigor, a necessidade de comprovação do nexo
de causalidade funciona como elemento de contenção. As causas excludentes de
responsabilidade, em hipóteses de fato exclusivo da vítima, fato de terceiro, força maior
ou caso fortuito, estabelecem o ponto de equilíbrio que afasta o risco de o Estado se
transformar em um garante de tudo e de todos, em uma indesejada panresponsabilização.
A denominada teoria intermediária, a rigor, ao apresentar como requisito a omissão
específica do Estado para responsabilizá-lo, parece, na realidade, querer dizer que a
omissão esteja direta e imediatamente ligada ao efeito lesivo, a demonstrar, com isso, a
presença de nexo de causalidade entre referida omissão e o dano gerado.51 Então, quanto
mais específica a omissão, ou o dever de evitar o dano, mais a omissão estatal será
50
TJRJ, 16ª CC, Apelação 0007329-43.2015.8.19.0031, Rel. Des. Lindolpho Morais Marinho, julg.
02.02.2021.
51
Nessa linha observa Juarez Freitas: “bem de ver, desnecessário provar, em situações desse jaez, culpa ou
dolo dos agentes e cumpre ao Poder Público desfazer o nexo causal, tudo de acordo com a teoria do risco
administrativo, redimensionada dialeticamente, sob o prisma da proporcionalidade”. (FREITAS, Juarez. A
responsabilidade extracontratual do Estado e o princípio da proporcionalidade: vedação de excesso e de
omissão. In: Revista de direito administrativo, vol. 241, jul./set. 2005, p. 35). Destaca-se, ainda, a
expressiva lição de Cristiano Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, segundo os quais: “Diminuem
os espaços da omissão estatal legítima. Aumentam os deveres estatais de ação – não qualquer ação, mas
uma ação eficiente, proporcional, cuidados. Omissões que nos séculos passados não responsabilizariam o
Estado, progressivamente, no século atual, passarão a responsabilizá-lo” (FARIAS, Cristiano;
ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Curso de direito civil: responsabilidade civil, volume 3.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 606).
O Supremo Tribunal Federal, por muito tempo, não apresentou solução uniforme para o
problema da omissão, apresentando acórdãos em ambos os sentidos (imputação objetiva
e subjetiva), podendo-se delinear a existência de franca divergência entre suas Turmas,
em torno da virada do século XX para o XXI.
Naquela altura, a Primeira Turma do STF decidia inúmeras vezes no sentido da adoção
irrestrita da responsabilidade objetiva do Estado em casos de omissão, conforme se pode
observar nos Recursos Extraordinários nºs 109.615-2/RJ (Rel. Min. Celso de Mello,
julgado em 28/05/1996, votação unânime) e 170.014-9/SP (Rel. Min. Ilmar Galvão,
julgado em 31/10/1997, votação unânime).52
Por outro lado, a Segunda Turma do Egrégio Tribunal apresentava acórdãos nos quais se
percebem, à primeira vista, argumentos que se inclinam na direção da tese objetivista,
mas que, ao cabo da análise, dão guarida à teoria subjetiva em sua plenitude. Neste
sentido, é oportuno mencionar os Recursos Extraordinários nºs 180.602-8/SP (Rel. Min.
Marco Aurélio, julgado em 15/12/1998, votação unânime) e 179.147-1/SP (Rel. Min.
Carlos Velloso, julgado em 12/12/1997, votação unânime).53
52
Por ilustrativa do entendimento esposado pela Colenda Turma, convém reproduzir excerto da ementa do
RE nº 109.615-2/RJ: “A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos
constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à
responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado
causa, por ação ou omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da
responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à
vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente
de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. (...)
O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento
e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais
configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de
ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 – RTJ 55/50)”.
53
No voto do Ministro Marco Aurélio, relator do primeiro acórdão (RE nº 180.602-8/SP), lê-se o seguinte:
De início, depreende-se do preceito constitucional que os vícios na manifestação de vontade, revelados por
dolo ou culpa, dizem respeito apenas ao direito de regresso. Em si, o Estado responde de forma objetiva.
Daí a impropriedade do acórdão recorrido na parte em que se consignou: ‘não ficou demonstrada a
existência de culpa por parte do poder público...’ (folha 182). Na espécie, o Recorrente, trafegando pela via
pública, chocou-se com um semovente. (...) A hipótese é, iniludivelmente, reveladora da deficiência de um
serviço público, valendo notar que a responsabilidade não foca restrita a certo espaço do dia, a certo horário
de funcionamento burocrático da entidade pública (original sem grifos).
55
No direito português, Mafalda Miranda Barbosa faz as seguintes ponderações sobre a responsabilidade
do Estado por atos omissivos e que se aproximam do conceito de omissão específica utilizada no direito
brasileiro: “Se o caráter negativo da ação – aqui vista como omissão – não é perturbador para o jurista, quer
pela equiparação valorativa entre o facere e o omittere, quer porque a omissão de deveres no âmbito da
supervisão pode ser vista como um deficiente cumprimento da atividade de supervisão, colocam-se, ao
invés, interessantes questões, neste quadro, ao nível da imputação objetiva. (...)haveremos de considerar a
edificação de uma esfera de responsabilidade pelo regulador. Esta é delineada a partir da preterição dos
deveres de supervisão e para ela serão reconduzidos, em princípio, todos os danos que se integrem no
âmbito de proteção de tais deveres, ou seja, teremos de ver quais os interesses que com eles se procuravam
proteger e que danos se pretendiam obviar. Se o dano experimentado for um desses cuja obliteração o dever
pretendia alcançar, então, afirma-se a imputação”. (BARBOSA, Mafalda Miranda. A causalidade na
responsabilidade civil do Estado. In: Revista de direito da responsabilidade, a. 2, 2020, p. 436).
56
STF, Tribunal Pleno, RE 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 30.03.2016.
Nos mesmos termos fixou-se a tese referente ao Tema 366 da Repercussão Geral do
tribunal, analisado no Recurso Extraordinário 136.861/SP: “Para que fique caracterizada
a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do comércio de fogos de
artifício, é necessário que exista a violação de um dever jurídico específico de agir, que
ocorrerá quando for concedida a licença para funcionamento sem as cautelas legais ou
quando for de conhecimento do poder público eventuais irregularidades praticadas pelo
particular”.57
57
STF, Tribunal Pleno, RE 136.861/SP, Rel.p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, julg. 11.03.2020.
58
STF, Tribunal Pleno, RE 608.880/MT, Rel.p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, julg. 08.09.2020.
59
Sustenta-se, em doutrina, que a responsabilidade civil do Estado por risco integral teria lugar, no direito
brasileiro, apenas em casos de acidentes nucleares, na linha do que dispõe o artigo 21, XXIII, d da
Constituição da República. Sobre o tema, ver ARAGÃO, Alexandre Santos de. A responsabilidade civil e
ambiental em atividades nucleares. In: Revista de Direito Administrativo, vol. 271, jan./abr. 2016, pp. 70-
78.
60
STJ, 2ª T., REsp 1.869.046/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 09.06.2020.