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06/01/2023 15:34 Correio APPOA

Autismos e Interfaces da Rede

266 - junho de 2017

Temática
Em que rede caiu a Criança Feliz?
Ilana Katz

Quando analisamos e fizemos a comparação entre os dois documentos do Ministério da Saúde que propunham cuidado as pessoas
com autismo[1], em 2013, esclarecemos, para nós e para quem quiser ler aquele estudo, que o modo de entender o objeto decide o
desenho das políticas públicas a serem propostas. Ficou bastante claro que o entendimento a respeito dos autismos definiria a
direção de cuidado e atenção dirigido a essa população. Certos de que os autismos não se restringem ao tempo da infância, mas
também esclarecidos de que sua instituição se realiza nesse tempo da vida, assumimos como ponto fundamental de nosso trabalho
no MPASP a incontornável discussão a respeito da concepção de infância com a qual entraríamos no debate no âmbito das políticas
públicas.

A idéia de infância nos concerne em muitos pontos. Não podemos falar de infância sem considerar que não há consenso em torno
desta ideia. O mesmo acontece em relação à psicopatologia, e a psicopatologia referida a infância. O trabalho que temos realizado
nesse coletivo, já faz cinco anos, demonstra que a articulação das concepções de infância e patologia desenham campos de atuação
e posicionamentos políticos.

É preciso ainda mencionar que, na condição de psicanalistas, trabalhamos com uma determinada concepção da psicopatologia que
não é o mainstream. Foi com a ideia de sofrimento psíquico que enfrentamos a discussão acerca da importância de que a atenção à
saúde não seja organizada por especificidades patológicas. De que as políticas públicas não se prestem a criar espaços
particularizados para o tratamento de cada forma de adoecimento. Na abertura da nossa IV Jornada, no já tão distante ano passado,
eu dizia, para nos representar: "o sofrimento psíquico, antes de configurar qualquer patologia, já é sofrimento e merece tratamento". E
"foi com esse argumento, que se consolida numa lógica clínica, que brigamos para devolver a criança com autismo à condição de
criança". Ao invés de por em primeiro lugar o diagnóstico, insistimos que seria preciso destacar na infância a condição humana de que
o sujeito é aberto a inscrições.

Enquanto alguns de nós comemorávamos o final do ano de 2016, alguns outros de nós dizíamos que as coisas ainda não tinham
acabado de piorar, e que seria possível sentir saudade de 2016. Pois é. Não dá pra dizer "eu era feliz e não sabia", mas está claro
que as perdas que contamos avançaram 2017 adentro. No macro e no microcosmo de nossa experiência, há um agravamento em
curso. Seguimos caminhando para o pior. A lógica neoliberal avança com sua concepção de sujeito no Brasil e no mundo, constituindo
a disciplina da segregação como efeito mais evidente de sua impossibilidade de considerar a diversidade e a singularidade nas
formas de viver.

No Brasil, a consolidação da PEC 241/55 na Emenda Constitucional 95 produz resultados assustadores. Se até aqui foi possível
travar o debate no campo científico, discutir as articulações ao campo político de uma ou de outra clínica - o que já tem implicações
bastante sérias –, hoje, não é mais esse o terreno de nossa problemática. Todo o conhecimento produzido pela comunidade científica,
toda a clínica e, por que não dizer, toda a experiência foi descartada na instituição de um cenário político-econômico que, através da
E95, reduz o orçamento da União para saúde e educação, por vinte longos anos.

Como sabemos, e de acordo com o que Vital Didonet e Claudia Mascarenhas não cansaram de nos informar pela Rede[2], algumas
das despesas primárias estão excluídas da Emenda Constitucional 95, fazendo com que o teto seja ainda mais sufocante para
aquelas despesas que estão embaixo dele. Isso nos concerne, o fato da PEC (projeto de emenda constitucional) ter se constituído
numa EC (emenda constitucional), nos concerne. A redução de investimentos na saúde e na educação afeta as pessoas com autismo
no âmbito das políticas públicas porque se afeta a todas as pessoas, afeta sobretudo aquelas que precisam fazer valer o princípio da
equidade, que é pilar do SUS, para estar com os outros.

Bem, a forma mais vigorosa de fazer a equidade acontecer é a proposição de políticas públicas de atenção a população em causa. É
por isso que, ao nos juntarmos, escrevemos Saúde Pública no nosso nome. Os modos de investimento têm consequências nas
formas de ocupação do espaço público e, nesse sentido, modalizam a experiência de estar com os outros.

Hoje temos um novo problema. Se até o ano passado podíamos nos apoiar na ideia de infância para fazer o campo do autismo
avançar, agora é necessário examinar qual ideia de infância dá base à construção das novas políticas públicas. É preciso entender
com que ideia de infância um governo escreve suas políticas: quem é a criança a que se destinam suas proposições? O que se
entende por cuidado em relação a elas? Em outras palavras: do que uma criança precisa entre ações de tutela e cuidado? Qual a
relação do Estado com a infância e com cada uma das crianças? Essas perguntas são fundamentais. Afinal, é uma determinada ideia
de infância que decide, por exemplo, nossa posição diante da perspectiva de que a primeira infância seja protegida da E95, batalha
sustentada por muitos de nós, ainda nos tempos da discussão da PEC 241.

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Penso que desenhar medidas protetivas para a infância em relação à E95 é bastante complicado. As crianças crescem e, se tudo der
certo, tornam-se adolescentes, adultos e envelhecem. Criança tem pai e mãe, reside em um bairro e tem como vizinhos pessoas que
já passaram dos sete anos de idade. Ou seja, proteger a criança não é excluir a primeira infância da E95, porque a criança, assim
como todas as pessoas em qualquer tempo da vida, tem sua experiência realizada na pólis e, portanto, com os outros. A vida não
acontece fora da cidade, a batalha do autismo[3] nos situa muito bem nesse ponto. A necessária proteção à infância, instituída por
medidas reguladoras, como o Marco Legal[4], não se realiza desarticulando a primeira infância do contexto político que a concerne e
a realiza.

Isso posto, vale lembrar que a luta pelos direitos civis sempre perde quando tentamos hierarquizá-los e decidir qual direito é prioritário
ou fundamental. Direitos não se negociam. Nenhum, e para ninguém. Foucault, em um outro contexto, "compreendeu, contra o
economicismo, que não se podem isolar as lutas de trabalhadores da luta das mulheres, dos estudantes, dos artistas e dos doentes, e
pressentiu que a reformulação dos modos de governo dos indivíduos nos diversos setores da sociedade e as respostas dadas às
lutas sociais e culturais estavam encontrando, com o neoliberalismo, uma possível coerência teórica e prática."[5]

Com esse cenário instituído, chegamos ao Programa Criança Feliz (PCF), a política para primeira infância proposta pelo atual
governo. Para conhecer esse programa, dois caminhos se apresentam. O Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, sob a
batuta de Osmar Terra, criou o Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para a Primeira Infância[6] para gerir o programa. Há
representação de vários setores envolvidos nos cuidados com a primeira infância. As pastas da Saúde e da Educação, por exemplo,
têm uma cadeira cada uma, ao lado de outras representações ministeriais e alguns órgãos de controle social, como o CONANDA, e
os Conselhos Nacionais de Saúde e Educação.

Na página do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, os objetivos do Programa são assim apresentados: "promover o
desenvolvimento humano a partir do apoio e acompanhamento do desenvolvimento infantil integral na primeira infância; apoiar a
gestante e a família na preparação para o nascimento da criança; cuidado permanente com a criança em situação de vulnerabilidade
da gestação aos seis anos de idade; colaborar no exercício da parentalidade, fortalecendo o vínculo afetivo e o papel das famílias no
cuidado, na proteção e na educação das crianças na primeira infância; estimular o desenvolvimento de atividades lúdicas envolvendo
outros membros da família; e, finalmente, facilitar o acesso da gestante, das crianças na primeira infância e de suas famílias às
políticas e serviços públicos de que necessitem".

Encontramos ainda, disponível no site do mesmo Ministério, o instrutivo "Programa Criança Feliz - A intersetorialidade na Visita
Domiciliar". Ele foi publicado em fevereiro deste ano de 2017, sem assinatura específica. Como a visita domiciliar é o eixo de ação
principal da proposta, é ali que se faz presente a disposição do projeto: aponta-se para as articulações intersetoriais e desenha
superficialmente as linhas de intervenção. Diz ainda que os visitadores do programa devem identificar as demandas das famílias
atendidas para promover o acesso às políticas públicas vigentes. O documento apresenta os serviços de redes de Saúde e
Assistência Social e instrui os visitadores na tentativa de articulá-las para promover a atenção necessária para cada caso. Vamos
engolir em seco o desmonte em curso dessas políticas a que se pretende acesso, vamos suportar um pouco mais o cinismo que nos
assola e continuar a análise.

A outra trilha que precisamos seguir é a das proposições, dos desenhos e dos posicionamentos públicos feitos pelos responsáveis
pelo programa. Ali aparece claramente o modo com o qual se pretende viabilizar a Criança Feliz, ali se dá consistência à tessitura
ideológica da proposta. É necessariamente a partir do que essas pessoas compreendem que será efetivada a política. Falo
objetivamente sobre assuntos como contratações de pessoas, distribuição de recursos financeiros[7], desenho da amplitude do
programa, seus critérios de avaliação entre outras coisas igualmente relevantes.

No dia 5 de outubro do ano passado, a primeira-dama, Marcela Temer, doravante embaixadora do programa, faz, em seu primeiro
discurso público, o lançamento do Criança Feliz. Um discurso memorável para entendermos suas belas, e nada recatadas, intenções:
“Quem ajuda os outros muda histórias de vida, por isso fico feliz em colaborar com causas sociais". Os outros aqui são as crianças
brasileiras. Será que ela se dá conta que uma política de Estado não ajuda, mas deve garantir direitos? E ao que será que ela refere
como causas sociais? Políticas de atenção à infância e adolescência são causas sociais? Não. 'Causa social', para a mulher que
entende de supermercado e portanto de economia, é ajudar e ajudar direitinho os pais das crianças pobres atendidas pelo Bolsa
Família a estimularem o desenvolvimento de seus filhos.

Há uma proposição assistencial no discurso desse primeiradamismo reacionário. Mas não só ali. O Programa (novamente aspas para
a embaixadora) "para inibir o comportamento agressivo e violento na adolescência" é assim apresentado no site do Bolsa Família[8]:
"promove um aumento do acompanhamento para famílias beneficiadas pelo Bolsa Família[9], que possuem bebês ou crianças de até
três anos de idade, através de assistentes sociais que darão orientações de como criar as crianças em melhores condições,
promovendo um desenvolvimento mais saudável da sociedade". E o site do MDSA esclarece[10]: "Assim, novos campeões serão
criados e a luta pelo desenvolvimento social será vencida".

Seguimos com o Bolsa Família: "O objetivo principal desse programa é conseguir promover o desenvolvimento humano a partir do
apoio e acompanhamento do desenvolvimento infantil integral na primeira infância". Como? "É um programa que incentiva as famílias
a cuidarem melhor das suas crianças, isso acontece através de visitas promovidas por assistentes sociais do Governo Federal,
orientando essas famílias de como o tratamento deve ser feito, de como a amamentação deve acontecer e também de algumas dicas
de nutrição infantil.

Tudo isso é importante para garantir que essas crianças tenham um crescimento mais adequado, fazendo com que o
desenvolvimento infantil seja de melhor qualidade. Isso é fundamental para garantir com que o país se desenvolva com mais
qualidade, já que crianças bem alimentadas, nutridas e também aconselhadas têm uma perspectiva de vida melhor. Além de tudo
isso, esses assistentes sociais também promovem o acompanhamento das vacinas das crianças, assim, caso a família não esteja
acompanhando o ciclo básico do SUS, os orientadores dão dicas e falam da importância de manter essas proteções em dia" (grifos
meus). Vale notar que essa é a insistente referência à saúde: nutrição e vacina. Teremos que entender que é essa nossa atual política
de rede? O nosso país já soube melhor o que é uma política intersetorial.

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Bem, o veículo oficial continua, respiremos fundo: "será possível acompanhar e orientar melhor as famílias para que possuam um
desenvolvimento humano mais acelerado (...) esse programa serve como amparo para as próprias famílias, que não sabem o que
fazer para garantir uma educação melhor para os seus filhos e um desenvolvimento adequado. (...) O programa Criança Feliz serve
para que essas crianças, principalmente das famílias mais carentes, tenham um acompanhamento adequado, conseguindo se
desenvolver e criar boas raízes.

Pois, muitas vezes, com o pai e a mãe tendo que trabalhar fora, essas crianças ficam sem uma orientação adequada, assim, o
programa surge para preencher esse vácuo, o qual, tem uma importância enorme no desenvolvimento dessas famílias."

Um país que desenhou o SUAS já sabia que assistência social não é equivalente a assistencialismo. Mas o fato é que o país soube,
mas não sabe mais. Os pequenos e assustadores recortes que fiz do discurso em curso nos dão mostras de que os pais são
responsabilizados pelo mau desenvolvimento de seus filhos. Mas tem mais, muito mais. Diretamente de seu lar, a bela e recatada
embaixadora explica: "Cada vez que beijamos nossos filhos pequenos, que conversamos com eles, cada vez que os carregamos nos
braços, lemos uma história ou cantamos uma canção de ninar, estamos ajudando no seu desenvolvimento." Deve ser por isso que o
MDSA[11] soltou a seguinte nota, divulgada pela imprensa: “Técnicos capacitados irão até as casas das famílias para mostrar aos
pais a maneira correta de estimular o desenvolvimento dos filhos nos primeiros mil dias de vida. É neste período que o cérebro se
estrutura e que a maior parte das competências fundamentais para o ser humano se desenvolvem". (grifos meus)

Temos, como coletivo referido à psicanálise, uma posição decidida em relação ao lugar dos pais no desenvolvimento e constituição
psíquica dos seus filhos. Entendemos que os pais, refiro-me a qualquer pessoa no exercício das funções materna e paterna, de
qualquer criança, seja ela rica, pobre, autista ou artista, estão implicados como elementos contingentes na vida das crianças. Estamos
implicados, pelo sim e pelo não, porque são nossos esses filhos, cuidamos deles (direcionamos a eles nosso investimento libidinal)
tenham eles vindo azuis ou vermelhos, pequenos ou grandes, acometidos ou não por doenças do corpo, tenham sido amparados por
parteira na floresta, no SUS ou no hospital particular. Os pais investem em seus filhos e isso tem efeitos sobre o filho. Isso é muito
diferente de dizer que um determinado gesto, em qualquer família, assume um sentido unívoco, o que quereria dizer que, por
exemplo, toda mãe que não lê historinhas, ou que se ocupa com seu trabalho, constitui algum problema para seu filho. A psicanálise
reúne um saber para nos fazer entender que ninguém, mas ninguém mesmo pode decidir o sentido da vida do outro ou consegue
decidir a priori qual o valor que uma marca – qualquer que ela seja – assume na vida de alguém.

Somado a isso temos a responsabilidade de trazer para o debate uma ideia de infância que sustente a criança politicamente
articulada ao tempo que vive. Caso contrário, reduziremos nosso raio de ação, e faremos como o ministro Osmar Terra: procuraremos
no interior das famílias a culpa pelo fracasso das crianças, do futuro e do país.

Como tão bem formulou nossa colega Julieta Jerusalinsky[12] "ficar em posição de culpabilizar ou desculpabilizar as mães com
relação a uma performance materna implica eximir-se da responsabilidade coletiva de pensar de que modo está se sustentando o
cuidado das crianças, pois a relação dos pais e dos bebês não ocorre de forma isolada, mas atravessada pelos ideais sociais".

É ainda fundamental lembrar que pensar a infância como uma evidência ou "um intervalo cronológico natural" é, no mínimo,
desconsiderar todo o conhecimento produzido pela humanidade em torno deste tema. Desde 1960, todos nós que trabalhamos com a
infância lemos o clássico de Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família[13]. Embora hoje bastante discutido, esse trabalho
prestou-se à importante tarefa de nos avisar que a criança é uma invenção política ordenadora e ordenada por nossos modos de laço.
A infância "é construída por um sistema normativo que lhe atribui características, competências e funções"[14], e é por isso que nos
interessa entender qual é a ideia de infância presente na política pública vigente para a criança no Brasil de 2017.

O que se pensa sobre a infância é revelador do que se propõe como modo de laço. Por exemplo, no século 19, aqui no Brasil,
entendia-se que apenas as criancinhas de má sorte, que não podiam contar com uma mãe zelosa, estavam condenadas às creches.
Tais instituições, por sua vez, destinadas a receber os filhos das famílias pobres, tinham como função aplicar princípios médico-
pedagógicos para alcançar o desenvolvimento dos desafortunados, moralizar a vida social e modernizar a família brasileira. Esse é
um dado histórico e, como se vê, a história da infância é também a história da mulher, e muito diretamente a história da mãe[15].
Hoje, as creches são – ainda são – uma política pública que não tem caráter substitutivo, não estão no lugar da mãe que não é zelosa
e precisa trabalhar. É a isso que me refiro quando repito que a infância é uma construção política e o que pensamos sobre ela define
modos de laço. Freud sempre nos lembrou que a infância só é idílica no sonho do neurótico. Assumir a aspiração narcísica do
neurótico no desenho das políticas públicas não será jamais sem consequências para o mundo que vivemos.

Nesse sentido, retomo a pergunta: o que um governo quer dizer quando propõe que técnicos visitarão as famílias pobres do Brasil
para dar dicas sobre a criação de seus filhos? Sim, pois se reafirma frequentemente que os pais ocupados "porque trabalham fora"
precisam de ajuda pra aprender a cuidar melhor dos brasileirinhos do futuro. De que futuro falamos? Uma compreensão a-histórica e
moralista da infância retira da criança sua condição de cidadã. Acusa também o desmantelamento das políticas de rede e
intersetoriais nos campos da saúde, educação e assistência para a infância, pelas quais o país trabalhou nas últimas duas décadas,
até 2016.

A História recente do Brasil nos ajuda a pensar. A criação do Código de Menores Mello Mattos[16], em 1927, teve por mérito, já no
século 20, a extinção oficial da “roda dos expostos”, mecanismo que por mais de um século foi o único dispositivo de assistência a
crianças que tinham sido “abandonadas por seus genitores”, mas que não previa investimento do Estado sobre as crianças
“enjeitadas”.

Isadora Souza[17] (2017), em sua dissertação de mestrado, explica que nesse momento, a proposição do Código Melo Mattos se
baseia numa "doutrina [que] afirmava que era dever do Estado assistir os 'menores' abandonados ou de famílias consideradas inaptas
ao cuidado de seus filhos – categoria frequentemente aplicada às famílias pobres, negras e excluídas dos direitos de cidadania". (p.9)

A leitura do Código Melo Mattos é bastante esclarecedora sobre esse ponto. A análise feita por Isadora nos informa que o fim último
desse Código, no início da República, era o saneamento social e que, à infância dos pobres, foi atribuído o sentido de periculosidade.
Vejam, as crianças filhas das famílias burguesas não estavam citadas no documento pois não deveriam sofrer intervenção do Estado.

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A história nos mostrou que o caminho aberto por esse Marco Legal constituiu, através do discurso de proteção e assistência, o
exercício da tutela do Estado na forma de institucionalização da infância pobre, que foi classificada como perigosa. É a isso que se
refere como saneamento social: uma vez as criancinhas pobres institucionalizadas e portanto contidas para serem tratadas e
educadas, o país poderia alcançar seu pleno desenvolvimento.

Se, por um lado, o Código Melo Mattos interrompia o ciclo de descompromisso do Estado com os "enjeitados" da roda dos expostos,
por outro, se afirmou como um instrumento legal destinado à “disciplinarização dos filhos da pobreza”. É por esse motivo que faço
essa longa referência: é relevante entendermos quem era a criança objeto de intervenção estatal em 1927.

Esse é mais um exemplo de que há uma concepção de infância, e nesse caso, também de pobreza, na implementação de políticas
públicas para a infância. Esse ato nunca foi e jamais será feito sem uma ideologia que o sustente, por sua própria condição política de
base.

Sabemos que do código Mello Mattos até hoje muito foi construído em termos de políticas para a infância. Em 1979, foi proposto um
segundo código, o Código de Menores, que modificou o primeiro, mas manteve suas bases jurídicas. Foi apenas a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988 que se abriu caminho para uma mudança radical em termos de compreensão de
infância e do tipo de responsabilidade que o Estado deve assumir em relação à criança e ao adolescente. Em 1990, entrou em vigor o
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Este novo marco legal propõe uma concepção de infância em que crianças e
adolescentes são tomados como sujeitos de direitos e cidadãos plenos. A categoria "menor", que diferenciava os filhos das famílias
pobres do que se referia como criança e adolescente, é abandonada. A doutrina da situação irregular é substituída pela doutrina da
proteção integral. É atribuído ao Estado o dever de proteger as crianças através da implantação de políticas públicas e programas
sociais de suporte e cuidado.

Isso nos interessa de maneira especial para pensarmos melhor o que Criança Feliz quer dizer, por isso faço aqui esse brevíssimo
histórico. A concepção de infância presente no discurso sobre o Programa Criança Feliz, no que diz respeito à intervenção sobre as
famílias pobres, parece ter muitos pontos em comum com a proposição legal anterior ao ECA. A dimensão assistencialista do
Programa (ensinar os pais das famílias pobres a zelarem por seus filhos) parece sustentar a hipótese da “incapacitação pela pobreza”
e retirar da criança e do adolescente sua condição de sujeito de direitos, além de ferir os princípios da doutrina da proteção integral,
reassumindo o caráter tutelar da política para a infância.

Sabemos que o programa propõe o acesso a políticas públicas para a infância como norteador da intervenção do visitador domiciliar
encarregado do cuidado, e nesse sentido a condição de cidadania da infância estaria sendo respeitada. Mas sabemos também que,
além das políticas públicas para a infância estarem sofrendo os impactos do desinvestimento do Estado, há uma proposição central
no discurso sobre a Criança Feliz, que é a tutela. Um agente do estado vai explicar e ensinar (as "dicas") para os pais das famílias
pobres como eles devem cuidar de sua criança para que ela não se transforme num adolescente violento.

Essa tensão entre a tutela da família pobre – suposta em sua ignorância – e a experiência de cidadania e da responsabilidade do
Estado com a infância é uma nova novidade. Aqui se expressa claramente a impossibilidade de pensarmos simplesmente que há um
retorno, um retrocesso em curso, como se fosse possível simplesmente voltarmos para trás. Retrocedemos em relação aos avanços,
é claro. Mas o problema maior é que os retrocessos contêm os avanços e, portanto, não retornamos ao mesmo ponto, e nossa
análise se complexifica.

É nesse sentido que vale muito a pena pensar no que quer dizer esse cuidado com os filhos da família pobre proposto pelo Criança
Feliz. Porque há história, porque o conhecimento foi produzido, porque a experiência deixou suas lições e suas demandas.

Para pensarmos como sair dessa nova encruzilhada, será preciso considerar os novos modos de controle que estão presentes hoje e
que não estavam em 1927, quando se apostava nas instituições disciplinares intramuros. É uma outra lógica que se desenha, e nós
temos a responsabilidade de considerar seus modos de realização para articularmos novas respostas.

Na direção de compreendermos as novas formas de controle e de gestão de corpos que se realizam na atualidade, vale analisar o
que que foi proposto como método para a avaliação da eficácia do Programa Criança Feliz. Já foram contratados os professores
César Victoria, da UFPEL, e Ricardo Paes de Barros, do INSPER. Cabe ao primeiro a avaliação de impacto do programa, e ao
segundo a avaliação do desenvolvimento infantil. Não tive acesso à proposição do Prof. Barros. O material proposto pelo Prof. Victoria
foi compartilhado pela RNPI, e é sobre ele que vou falar.

Ele declara que seu objetivo é avaliar os efeitos do Criança Feliz sobre a estimulação intelectual no ambiente doméstico, assim como
o desenvolvimento cognitivo e psicomotor das crianças. É interessante notar a equação que se inscreve quando o programa sai do
papel para a prática: criança feliz = estímulo intelectual + desenvolvimento cognitivo e psicomotor. O avaliador contratado entende que
o PCF deve ser capaz de fortalecer os vínculos familiares, prevenir de situações de negligência e violência contra a criança, reduzir a
subnutrição crônica e promover a melhora do desenvolvimento psicomotor, cognitivo e da capacidade de interação da criança,
conforme indicadores apropriados para cada faixa etária. Para isso, desenha um modelo de impacto, coerente com a proposição do
programa que pretende avaliar. Entendendo que o treinamento da equipe de visitadores terá como consequência o aumento do
conhecimento do cuidador sobre estimulação infantil, conclui que como o cuidador estimula melhor a criança, há melhora o
desenvolvimento infantil, portanto haverá redução na vulnerabilidade geral.

Desenhado o modelo ideal de impacto, o Prof. Victoria apresenta então os instrumentos e testes que está considerando utilizar na
avaliação do programa: avaliação da interação parental com a criança.

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- Parenting Interactions with Children: Checklist of Observations Linked to Outcomes (PICCOLO)
- Maternal Cognitive Sensitivity (CS)
- Avaliação longitudinal do desenvolvimento infantil:
- Denver Developmental Screening Test (DDST)
- Ages & Stages Questionnaire (ASQ-3)
- Avaliação final do desenvolvimento infantil:
- The Bayley Scales of Infant and Toddler Development, Third Edition (Bayley-III)
- Teste de Vocabulário por Imagens Peabody (TVIP)
- Lista de Avaliação de Vocabulário Expressivo (LAVE)
- Avaliação do QI materno (WAIS – linguagem)

Surpresa! Reparem que, ao escolher esses testes, o que se pretende avaliar são as crianças e suas famílias! E aí, não escapamos da
pergunta: em que medida se pode supor que a avaliação das crianças e de seus pais avalia o programa? Talvez na medida em que se
supõe aquela linha reta desenhada pelo Prof. Victoria, na qual podemos imaginar que depois das "dicas", ou da aplicação dos
protocolos defendidos pelo programa, a vida daqueles que estavam em situação de risco, por uma espécie de descuido, ignorância ou
deficiência dos pais, vai melhorar. Elas não estavam bem estimuladas por seu cuidador, e por isso seu desenvolvimento cognitivo
estava comprometido.

Alguns desses instrumentos são checklists, muitos se preocupam com aquisições de repertório cognitivo das crianças, e outros, como
o ASQ3, são bastante controversos. Como nosso tempo é bem curto, vou apenas sugerir que possamos conhecer e interrogar cada
um desses testes. Entendo que essa tarefa é bastante fundamental para o trabalho que temos pela frente. Em relação ao WAIS, por
exemplo, que todos nós conhecemos muito bem, é preciso perguntar: o programa terá como índice de eficácia ou talvez como
parâmetro de efetividade, nada mais, nada menos que o QI materno? Essa consideração abre um mundo de discussões: o que QI
quer dizer? A condição intelectual da mãe é limitadora para o desenvolvimento do filho? Se esta é a suposição, porque não se
pergunta pelo QI do pai? Um movimento social que se relaciona com o campo da deficiência não pode se calar diante disso.

É preciso e urgente que possamos trazer para fora dos nossos circuitos técnicos, mas sem dispensá-los de nossa tarefa, a ideia de
que uma criança não pode ser criada por protocolo de desenvolvimento, e que nós, psicanalistas, aprendemos com nossa clínica que
o exercício das funções materna e paterna se realiza no singular de cada experiência, e é permeado pelas mais diversas variações de
cultura e transmissão que o humano é capaz.

Políticas públicas não podem retirar da criança sua condição de cidadania. Eu vou citar meu poeta preferido, mais uma vez, para
finalmente concluir. Diz o Emicida: "cidades são aldeias mortas, desafio nonsense. Competição em vão, que ninguém vence. Pense
num formigueiro, vai mal. Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus." #ARuaÉNóis

Autor: Ilana Katz

Este trabalho foi apresentado na V Jornada do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), realizado nos dias 7 e 8
de abril de 2017 em Porto Alegre.

* Psicanalista, doutora em Psicologia e Educação FE/USP. Pós-doutoranda no LATESFIP, IP/USP. Participante do MPASP.

[1] Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção
Psicossocial do Sistema Único de Saúde/SUS. Ministério da Saúde, abril, 2013. Diretrizes de Atenção à Reabilitação de Pessoas com
Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ministério da Saúde, abril, 2013 – versão preliminar.

[2] http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc...

[3] Referência ao nome dado por Eric Laurent a seu livro A batalha do autismo.

[4] LEI Nº 13.257, DE 8 DE MARÇO DE 2016.Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8.069, de
13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)

[5] Dardarot, P. Laval, C. A nova razão do mundo - ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 26

[6] Decreto de 7 de março de 2017.

[7] O CF vai repassar R$ 50,00 por família visitada/mês. Um visitador com contrato de 40 horas receberia R$ 1500,00. Porém, é
dessa verba que serão subtraídos os gastos com transporte, salário do supervisor e encargos sociais. De acordo com a UOL: “em
todas as estimativas apresentadas, os municípios terão um gasto superior ao repasse feito pelo governo federal” (em
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noti... É por esse motivo, também, que muitos municípios não aderiram ao programa, ele
está subfinanciado pelo Governo Federal.

[8] http://calendariobolsafamilia2015.com.br/programa-...

[9] Também podem ser agraciadas pelo programa as crianças que recebam o BCP e tenham até 6 anos de idade, ou aquelas
crianças, até os 72 meses, afastadas do convívio familiar por aplicação de medida de proteção.

[10] http://www.mds.gov.br/crianca-feliz/entenda-o-prog...

11 http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/03/sao...

12http://emais.estadao.com.br/blogs/crianca-em-desen...

13 Ariès, P. História social da criança e da família. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1978.

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06/01/2023 15:34 Correio APPOA
14 Hansen, Laura. A invenção da criança. In: Revista Mente e Cérebro. A mente do Bebê - o fascinante processo de formação do
cérebro e da personalidade. n 4, p. 74-81

15idem

16 BRASIL, Presidência da República. Casa Civil. Decreto Nº 17.943-A, DE 12 de outubro de 1927- Código Mello Mattos

17 Sousa, I.S. (2017) Determinantes da institucionalização de crianças e adolescentes em tempos da doutrina da proteção
integral.Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Médicas.

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