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CAPÍTULO XI

Do Alvoroço que foi na cidade cuidando que matavam o


Mestre, e como lá foi Álvaro Pais e muitas gentes com ele
Co(n)textualização do episódio – o seu
espaço na Crónica
Este capítulo enquadra-se na sequência de eventos que levaram ao cerco da cidade de Lisboa,
considerado um dos focos estruturadores da Crónica de D. João I (o outro é a batalha de
Aljubarrota). Fernão Lopes relata como se deu a aclamação do Mestre, após o assassinato do
conde Andeiro, as ações da população, quando soube que o Mestre corria perigo, e os seus
sentimentos relativamente ao futuro monarca.
A frase que serve de título a este capítulo espelha a reação e a extraordinária adesão do povo à
pessoa do Mestre. O título destaca, também, o papel desempenhado por Álvaro Pais, nesse
levantamento popular de apoio e de defesa.
Constitui-se, assim, um primeiro, mas fundamental momento para o desenvolvimento da
consciência nacional e para o cumprimento dos objetivos da obra: “uma legitimação histórica do
novo poder saído de uma insurreição popular e de um corte radical com a tradição dinástica”.
(citação do artigo de Miguel Real, disponível em https://www.e-cultura.pt/artigo/20045)
Atores/Personagens Intervenientes e Técnicas
Narrativas
O protagonista deste capítulo é o povo (“as gentes”). Fernão Lopes assume uma
posição que se assemelha à de um repórter que assistiu ao desenrolar dos
acontecimentos - transmite-nos as movimentações da população através de
sensações:
◦ Auditivas - (“dizendo altas vozes bradando pela rua”; “e, começando de falar
uns com os outros”; “Soaram as vozes do arroido pela cidade”; “Ali eram
ouvidos braados de desvairadas maneiras”);
◦ Visuais - (“se moveram todos com mão armada, correndo à pressa”; “A gente
começou de se juntar a ele e era tanta , que era estranha cousa de ver. Nom
cabiam pelas ruas principais e atravessavam lugares escusos”).
Atores/Personagens Intervenientes e Técnicas Narrativas (cont.)
Na construção das suas personagens, Fernão Lopes enfatiza a componente humana,
retratando-as de forma vívida e realista concomitantemente. Deste forma, a população,
envolvida neste alvoroço, vai revelando, sucessivamente, gradativamente, diversas
emoções:
1º - surpreendida/alarmada – “As gentes que isto ouviam saíam a ver que cousa era” (ll.
10-11); “alvoraçavam-se nas vontades e começavam de tomar armas” (ll.11 e 12);
2º - irada, revoltada, expressando desejo de vingança – “todos feitos de um coraçom,
com talente de o vingar” (l.29); “Ali eram ouvidos brados de desvairadas maneiras”
(l.33);
3º - desconfiada (difícil de conter) – “De cima, nom minguava quem bradar que o
Mestre era vivo e o conde João Fernandes morto; mas isto nom queria nenhum crer”
(ll.44-45); “E tanta era a turvação deles e assim tinham já em crença que o Mestre era
morto, que tais havia aí que aperfiavam que nom era aquele” (ll.54-55);
4º - comovida, pacificada/aliviada – “E, em isto dizendo, muitos choravam com prazer
de o ver vivo” (l.68); “Os quais, mui ledos arredor dele, bradavam” (l.71).
Atores/Personagens Intervenientes e Técnicas Narrativas (cont.)

Os sentimentos desta “gente” são ainda realçados através das falas transcritas (discurso
direto), que conferem uma tonalidade realista e expressiva a todo o episódio. Estas falas
servem, também, para denegrir a imagem de Leonor Teles (repare-se nos comentários que
são feitos sobre ela) e para fazer a apologia do futuro monarca (veja-se como sai ilibado de
ter morto o conde – “Oh que mal fez! Pois que matou o tredor do conde, que nom matou
logo a aleivosa com ele!” – ll. 58-59).
Fernão Lopes, oscila, assim, entre uma visão global da personagem coletiva e a focalização
nos pormenores, na sua aproximação à realidade, nas várias partes que compõem o todo.
Por exemplo, na linha 33, registamos os “braados de desvairadas maneiras” que se
ouviam, seguindo-se uma especificação, demonstrando que a personagem coletiva é
observada de perto: ouvem-se os que garantem que o Mestre já tinha sido morto,
querendo arrombar as portas para entrar no palácio; outros gritavam por lenha para o
incendiarem e matar Leonor Teles e o Conde; gritavam outros por escadas; uns vinham
com lenha e ramos para deitar fogo ao «paço», muitos insultavam a Rainha.
Atores/Personagens Intervenientes e Técnicas Narrativas (cont.)

Saliente-se, contudo, que sobressai a união de um corpo só, determinante na ação e


no desenrolar de acontecimentos. Nesta construção, alguns recursos expressivos são
fundamentais:
1 – “E assi como viúva que rei não tinha, e como se lhe este ficara em logo de
marido, se moveram todos com mão armada…” (l.19) – este fragmento contém
duas comparações que atribuem à população os sentimentos e emoções de uma
rainha viúva, que deve salvar quem ficou no lugar do seu rei.
2 – “…todos feitos de um coraçom,…” (l.29) - a metáfora sublinha, igualmente, o
domínio e a comunhão das emoções.
Se dúvidas houvesse acerca do protagonismo da personagem coletiva, registem-se os
momentos em que é claramente feita referência ao seu poder:
- «não lhes poderiam depois tolher de fazer o que quisessem» (l. 50);
- «E sem dúvida, se eles entraram dentro, nom se escusara a rainha de morte, e fora
maravilha quantos eram da sua parte e do conde poderem escapar» (ll. 63-64).
Atores/Personagens Intervenientes e Técnicas Narrativas (cont.)
Entre a multidão (ator coletivo) destacam-se, porém, alguns atores individuais, nomeadamente:
◦ pajem do Mestre – já preparado (“segundo já era percebido”), é a primeira personagem referida
e é ele que desencadeia toda a movimentação posterior;
◦ Álvaro Pais – avisado pelo pajem, e também ele pronto (“que estava prestes e armado com uma
coifa na cabeça”), pegou no seu cavalo e com os seus aliados foi até ao paço, espalhando
igualmente o alvoroço e influenciando o povo a correr em auxílio do Mestre;
◦ Mestre de Avis – atua segundo o conselho dos que o rodeiam; de início, parece ter receio da
multidão, depois, mostra-se à janela e sentindo-se seguro, abandona o palácio e percorre as ruas a
cavalo (“Vendo ele estonce que nenhuma dúvida tinha em sua segurança, desceu a fundo e
cavalgou com os seus”).
As ações destes atores individuais revelam o cumprimento de uma missão previamente combinada,
recorrendo ao uso do boato e apelando aos sentimentos da população, acicatando a consciência de
uma identidade nacional (consciência coletiva).
(A provar que houve toda uma estratégia definida e uma combinação prévia, temos as seguintes
passagens do texto registadas anteriormente: «como já era percebido» -l. 2- e «que estava prestes» -
l. 13.)
A sequencialização das ações e a concentração espacial
O relato revela uma concentração espacial (rua-paço-janela) que coincide com uma
gradação e um ritmo crescentes das ações (ao apelo do pajem e de Álvaro Pais,
segue-se o alvoroço da população, que culmina no clímax - o aparecimento do
Mestre à Janela).
De acordo com o vosso manual, o “alvoroço” passa pelas seguintes etapas:
◦ 1.ª parte – até «… per mandado da Rainha» (l. 28) – nesta primeira parte, dá-se a
convocação da população que acorre aos brados do pajem e de Álvaro Pais,
movimentando-se até se concentrar às portas do Paço.
◦ 2.ª parte – até «… com prazer de o ver vivo» (l. 68) – a multidão manifesta-se,
irada e desconfiada, acabando por aclamar o mestre que, finalmente se mostra,
serenando os ânimos.
◦ 3.ª parte – até ao final – a multidão dispersa.
A sequencialização das ações e a concentração espacial
(cont.)
Alguns autores referem, a propósito da estruturação deste episódio, uma estratégia
política que pode ser representada da seguinte forma e que corresponde às etapas
anteriormente referidas ou às partes identificadas:

Convocação
Movimentação
Concentração
Aclamação
O Cronista-repórter e a classificação do narrador
Como referimos no início desta apresentação, o cronista assume um estatuto semelhante ao de
um repórter, apresentando uma multiplicidade de intervenientes, selecionando a informação e
oscilando entre diferentes perspetivas e registos.
Recorrendo ao dinamismo e ao visualismo, o narrador coloca-se e coloca o leitor no local,
apelando às sensações que nos permitem ouvir e ver os acontecimentos como se, consigo, o
presenciássemos.
Na última parte, esta característica da escrita de Fernão Lopes revela-se em algumas passagens:
- «que era maravilha de ver» (l. 70),
- «mal podendo ser ouvido» (l. 73),
- «saíam todas às janelas com prazer, dizendo altas vozes».
Há, com esta característica, uma aproximação ao leitor, facto que proporciona uma melhor
compreensão e maior identificação com as personagens (facto que não é alheio à oscilação entre
objetividade e subjetividade).
Em conclusão, o narrador é omnisciente mostrando as intenções e as emoções das
personagens.
O estilo de Fernão Lopes

Em síntese, podemos destacar, desde já, alguns aspetos característicos do estilo de Fernão
Lopes que justificam a sua inclusão nos programas de literatura (e não apenas destaque no
contexto da historiografia):
• Realismo dos pormenores descritivos e informativos/visualismo descritivo;
• Conjugação de planos de pormenor e de conjunto;
• Sequencialização de episódios/construção de quadros vivos;
• Uso de recursos expressivos;
• Apelos ao leitor e discurso emotivo;
• Discurso dialógico e oralizante com marcas de coloquialidade;
• Análise psicológica das personagens (individuais e coletiva) - posição central da
componente humana.
Ora vamos lá refletir…
Fernão Lopes é hoje considerado o “pai” da historiografia portuguesa, destacando-se,
neste âmbito, os seguintes aspetos (alguns afirmados pelo próprio no Prólogo):
- Narrativa ordenada diacronicamente;
- Estrutura e apresentação intensa e complexa;
-Registo de informação a partir de fontes documentais:
velhas scrituras, desvairados autores;
-Confronto de fontes documentais: púbricas escrituras de muitos
cartarios, de volumes de livros, de desvairadas linguageẽs;
-Registo da clara certidom da verdade, verdade sem outra mestura,
simprez verdade.
De acordo com o que observámos, conseguirá o Cronista despir-se da
mundanal afeiçom e assumir a objetividade, a imparcialidade e o realismo na
sua narração dos factos como afirmara?
Discute estas questões com os teus colegas e professora.

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