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ano XI – número 26
julho de 2015
Pérolas da Imaculada
Revisão
Rosania Mazzuchelli
e Mineo Takatama
Edição de arte
Últimas conversas
Criss de Paulo e Walter Mazzuchelli “[...] falar é uma forma de fazer,
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(...) cabe à escola potencializar o diálogo multicultural, trazendo para
dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante,
canônica, mas também as culturas locais e populares e a cultura de
massa, para torná-las vozes de um diálogo, objetos de estudo e de crítica.
Roxane Rojo. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social.
São Paulo: Parábola Editorial, 2009, p. 12.
editorial 4
Letramento da cultura local
invade a sala de aula
entrevista 6
Antonio Prata
“Uma das graças de escrever
é ver onde aquilo vai dar”
reportagem 12
Uma comunidade de aprendizagem
especial 18
Foram muitos os caminhos da escrita...
pÁgina literÁria 26
Milton Hatoum
Catadores de tralhas e sonhos
De Olho na Prática 28
Curta-poesias
oculos de leitura 34
Os caminhos e descaminhos da leitura literária
em uma escola de Ensino Fundamental
tirando de letra 40
Um passado cheio de novidades
indica oes 42
Para quem busca novidades para ler,
ouvir, ver, falar, pensar e sonhar
etramento da
cultura local invade
a sala de aula
F
oram dois dias muito especiais e intensos. Profissio-
nais da educação, especialistas de universidades,
mediadores dos cursos on-line da Olimpíada de Lín-
gua Portuguesa Escrevendo o Futuro, além de técni-
cos de secretarias de Educação e especialistas em
língua portuguesa de todos os Estados brasileiros, partici-
param do terceiro Seminário Internacional Escrevendo o
Futuro – “Práticas de escrita: da cultura local à sala de
aula” –, que destacou, mais uma vez, o protagonismo de
professores das escolas públicas de todo o país, os princi-
pais responsáveis por transmitir o que nos distingue e nos
identifica perante o mundo: a língua que falamos.
Uma das grandes marcas do Programa Escrevendo o
Futuro, desde sua origem, é incentivar e colaborar para que
professores de língua portuguesa tornem-se cada vez mais
criadores e condutores de seus próprios projetos de ensino
da escrita. Para ampliar essa reflexão, o professor Joaquim
Dolz, da Universidade de Genebra, na Suíça, um dos mais
renomados pesquisadores na área do ensino de língua da
atualidade, abriu o seminário com a palestra “Os cinco gran-
des desafios do ensino da língua portuguesa”.
Os educadores convidados incorporaram o pesquisador
que existe neles – algo que deve ser parte integrante e
essencial de quem abraçou a carreira docente – e lança-
ram-se ao desafio de experimentar novas práticas, de buscar
dentro da sua realidade e da de seus alunos aquilo que é
significativo para desenvolver o ensino e a aprendizagem.
Na Ponta do Lápis – ano XI – nº- 26
“Uma das
está provado por pesquisas que filhos de
leitores se tornam leitores. A minha primeira
experiência com livros foi fazer rampa para
carrinhos. Tinha enciclo-
pernas de pau ele vai jogar essas bombas a contar a história, mais do que ler, porque
que vão estourar para expulsar as onças. éramos muito pequenos. E começamos a nos
Isso é muito legal em 1978, 1984, 1995, interessar muito. Todo dia na praia, ao invés
2030... A história da onça e da perna de pau de contar história de criança, eles contavam
um pouquinho do Romeu e Julieta traduzido cício livre de escrita. Você não precisa de
para criança. Foi chegando o fim do livro, uma história. Uma das graças de escrever é
perto do fim das férias, e eles foram perce- ver onde aquilo vai dar. Hoje, por exemplo,
bendo a encrenca em que tinham se metido, estou começando a escrever a crônica de
porque não é o final mais Disney que você já domingo. Não sabia sobre o que escrever e
viu na vida, não é? E aí tiveram uma crise: fiquei pensando... Fui ler um pouco de Rubem
contar a verdade ou mentir e dizer que eles Braga. Daí encontrei: aluguei uma sala co-
viveram felizes para sempre. Convictos dos mercial em cima de uma pet shop, do lado
ideais deles, contaram a verdade e foi uma tra- da escola da Olívia, minha filha, porque está
gédia! A gente urrou, rolou pelo chão, pela inviável trabalhar em casa com as duas
areia, gritava, e eles tentando consertar, crianças. Estou escrevendo sobre a pet shop,
falando que era só uma história, que era que é uma loja onde não tem nada que eu
mentirinha, e uma coisa mais idiota ainda: possa comprar – nada; é uma coisa muito
que as famílias nunca mais brigaram. Como se frustrante. Não tenho bicho; então, nada me
nossos amigos de férias tivessem um enfiado interessa, e todo dia estou vendo aquele
uma faca no peito e outro tomado veneno. Foi monte de embalagens coloridas, dou uma
horrível. Foi uma coisa meio traumática... olhadinha e lembro que é uma pet shop.
Qualquer loja em que entro, mesmo que eu
■ Como é seu processo de criação? não vá comprar nada, fico olhando. Loja de
Como nasce uma crônica? Você anda com canos, fico olhando os canos: “Ó, que cano
caderninho no bolso ou grava no celular legal”, “Que cano enorme”, “Eu compraria
alguma ideia, uma cena? O que costuma esse cano”... A crônica é um pouco sobre o
motivar você? voyeurismo do consumo.
Não era do tipo que anda com caderni- Muitas vezes também a crônica não nasce
nho, até o dia em que todo mundo passou a de algo vivido; às vezes eu crio uma situa-
andar com caderninho, o celular. Antes, se ção, um encontro com uma pessoa, um vizi-
eu tinha uma ideia, anotava no guardanapo, nho. A crônica não é um relato fiel, a situação
num papel e tal. Hoje, uso aquele bloquinho que eu estou dizendo que aconteceu, muitas
de anotações do celular, mas, para crônica, vezes não aconteceu, é ficção.
não sou um grande entusiasta dessa ideia.
Acho que crônica é uma espécie de lupa que ■ Quando se descobriu cronista?
você coloca em um assunto. E qualquer as- Acho que isso foi uma contingência profis-
sunto que você olhar com uma lupa é inte- sional. Eu sabia que queria ser escritor desde
ressante. Se olhar este gravador, este cader- a adolescência, e a crônica é uma maneira de
no, esta caneta e imaginar alguma coisa a você ganhar dinheiro com literatura, uma das
respeito e começar a analisar esse tema, poucas maneiras. Comecei a escrever para
você vai achar coisas engraçadas, interes- alguns lugares e aí começaram a me pedir
santes ou melancólicas. Então, mais impor- crônicas. Quer dizer, começaram a aparecer
tante que a ideia que você tem é ter tempo espaços para escrever crônica. Então, não foi
de trabalhar. Se tenho uma ideia que acho uma decisão, não era nem uma aptidão mi-
empolgante, mas tenho duas horas para fa- nha. Quando comecei a escrever crônicas,
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zer a crônica, vai sair ruim o texto. Porém, nunca tinha lido Paulo Mendes Campos,
uma ideia que não sei se é muito boa, mas Rubem Braga, os grandes cronistas. Tinha
tenho dois dias, consigo ir puxando esse fio lido muito Luis Fernando Verissimo, Murilo
para ver aonde ele leva. A crônica é um exer- Fernandes, Fernando Sabino...
Crônica é assim, faz parte do gênero, isso é o autoironia. Isso tem que estar presente
lado ruim. O lado bom é que você está escre- nesse gênero de texto?
vendo, escrevendo, escrevendo... Essa prática É uma pergunta complexa. Das minhas
ajuda bastante. aptidões, acho que o humor é mais que uma
escolha estética. É um traço de caráter. Você textos no programas de rádio, é hilário. Foi
é assim, não é uma coisa que escolhe. Acho referência quando escrevi Nu, de botas. Na
que também a melancolia e o humor andam crônica tem o Rubem Braga, que acho imba-
muito bem juntos. O Rubem Braga é um tível e para quem volto sempre, até como
exemplo disso. Acho que um tempera o ou- recurso psicotrópico para escrever. Assim, se
tro. Se faz um texto dramático ou melancóli- eu não estou sabendo escrever, eu vou lá ver
co sem nenhuma ponta de humor, ele fica como é que ele fazia, como ele fez, vou dar
chato. Veja Machado de Assis, Memórias um “bizoiada” nele, ver se eu consigo roubar
póstumas de Brás Cubas, talvez a coisa mais um pouquinho, nem que seja do clima.
pessimista que já foi escrita, e é um livro de
humor. A crônica é um gênero de entreteni- ■ Você leu textos de estudantes
mento, ao contrário da poesia ou do roman- que participaram da edição de 2014
ce, que podem ser escritos para poucos lei- da Olimpíada de Língua Portuguesa
tores, e é muito bom que isso seja assim – o Escrevendo o Futuro. Você pode nos contar
autor pode ir para onde quiser, pode ser sua impressão geral sobre os textos.
obscuro, muito erudito, e exigir que o leitor Que recado daria para os professores
tenha muitas referências. Você não pode ser desses alunos?
James Joyce em um jornal, entendeu? Por- Fiquei bem e mal impressionado por
que, se você for James Joyce em um jornal, aqueles textos. Bem, porque eram muito bem
ninguém vai entender o que você está escre- escritos do ponto de vista formal. Aquelas
vendo, e você está sendo pago para que as pessoas sabem escrever, sabem fazer uma re-
pessoas entendam e se divirtam. dação de vestibular, estão inseridos na cultu-
ra escrita. Estão alfabetizadas no sentido fun-
■ Você citou Rubem Braga, Fernando cional da linguagem. O que me assombrou é
Sabino, Paulo Mendes Campos, mas você que não vi a voz daqueles alunos ali. Vi a voz
tem outros autores que estão na sua de textos ancestrais; vi mais a voz do Olavo
cabeceira? Bilac naqueles textos parnasianos que a voz
Ah, tem vários, mas eles mudam sempre. desses alunos. Eles não sabem que a litera-
Tem um que chama Walter Campos de Carva- tura serve para falar sobre a gente e para a
lho, não é muito conhecido, é um mineiro de gente. Quer dizer, Machado de Assis só faz
quem gosto muito, li na adolescência e releio sentido porque você lê aqueles personagens
até hoje; o próprio Machado de Assis. Mais escritos no final do século XIX e você fala: “É
que Machado de Assis, o Memórias póstu- o meu vizinho”, “É o meu cunhado”, “Sou eu,
mas é um livro que eu leio acho que todo isso aqui sou eu” – você se reconhece. Um
ano e me anima e me deprime, porque eu clássico não é um livro onde as pessoas falam
falo: “É isso que eu gostaria de fazer um dia”, difícil. É um livro onde um cara conseguiu
e falo: “Olha só como eu não estou fazendo”. escrever na Irlanda do século XVII um livro
Tem um cara que eu não tenho lido muito ul- sobre a sua tia, entendeu? E, quando você vai
timamente, mas foi muito importante durante escrever, a literatura serve pra gente expres-
muitos anos, que foi o Julio Cortázar; tem ou- sar a nossa vida. O tema das crônicas era “O
tro também que li bastante nos últimos anos, lugar onde vivo” e ninguém falou do quarto,
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um americano chamado Kurt Vonnegut, que ninguém falou da casa. As pessoas falavam
é um cara de ficção científica e humor, muito assim: “As glórias de Santarém”; “O passado
interessante. Gosto muito do David Sedaris. glorioso de Santa Cruz da Venerada”. Era uma
Ele escreve sobre infância e juventude, lê os coisa muito laudatória, aos heróis... E isso é
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twitter oral
Uma pergunta ou um mote para Antonio Prata responder em poucas palavras.
Eu não tenho esse contador de caracteres no meu cérebro, tá?
Se não fosse meio intelectual, meio de esquerda… Seria meio de campo,
meio milionário.
O sonho que não acabou... Qualquer coisa com sonho de padaria é muito infame,
não é? Fica essa mesmo: qualquer coisa com sonho de padaria é muito
infame.
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os novos desafios para o ensino da língua criatividade, por isso deve-se evitar os riscos
portuguesa se referem ao trabalho com tex- de “dogmatização e rotina na escrita”, ofere-
to/gênero; à forma de avaliar as produções e cendo vários modelos de textos de um mes-
de trabalhar a textualidade; e, por fim, às mo gênero, de diversos autores.
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suas escolas, depois de terem feito o curso a As professoras Edna Leal e Neila Porte-
distância “Caminhos da escrita”, criado pelo la, de Maracás (BA), trabalharam em conjun-
Portal Escrevendo o Futuro em 2014 e dis- to num projeto com textos de memórias lite-
ponibilizado na internet (www.escrevendoo- rárias. Para elas, a visita do tutor, que foi
futuro.org.br). No curso – que foi escolhido conversar com os alunos sobre o trabalho,
pelo Ministério da Educação para fazer parte ajudou a perceber o quanto haviam evoluído
do Guia de Tecnologias Educacionais – cada durante o processo: “Nós havíamos crescido
participante desenvolve um projeto de práti- juntas e ficamos empolgadas em continuar o
ca de letramento em sala de aula. O objetivo percurso, mesmo com as dificuldades em re-
do convite era selecionar para o seminário lação ao tempo, feriados, paralisações, ou-
alguns dos projetos desenvolvidos. tras atividades da escola... enfim, isso não
Durante quase três meses, duas forma- se tornou obstáculo, e assim nos debruça-
doras do programa, Zoraide Faustinoni e mos com mais afinco, pois os achados da
Maria Paula Parisi, se incumbiram de conta- memória já haviam tomado conta do cora-
tar esses professores e conhecer seus proje- ção de cada um”, explicam as duas.
tos em detalhes. Por meio de dezenas de “Essa experiência comprova como é im-
telefonemas e e-mails, elas se empenharam portante que o professor tenha um interlocu-
em avaliar as fundamentações de cada um tor”, afirma Sônia Madi, coordenadora do
deles, as propostas de ação ou os relatos de Programa Escrevendo o Futuro. Para ela, no
prática que deveriam demonstrar que o tra- Brasil, em geral, há uma “solidão do professor
balho se inspirara na realidade local. De- na escola, ele não tem ninguém que veja o seu
pois de tantas idas, vindas e reescritas dos trabalho, que observe, discuta e dialogue so-
projetos, foram selecionados os 24 partici- bre o que está realizando”. Sônia reitera ainda
pantes. “De maneira geral, o que chamou a que fica extremamente sensibilizada ao co-
atenção foi a grande diversidade de realida- nhecer as realidades de trabalho da maioria
des locais contempladas e também o fato desses professores que, com poucos recursos
de muitos professores já estarem contando disponíveis e outras tantas dificuldades, con-
com recursos multimodais para o desenvol- seguem realizar um trabalho transformador.
vimento e concretização de seus projetos”,
afirmou Maria Paula Parisi.
■ Dolz: “Eu aprendi escutando
os professores”
■ Professor precisa de
A criatividade foi uma das coisas que
interlocutores
mais empolgaram Joaquim Dolz. Para o pes-
Mas, antes de virem a São Paulo partici- quisador, o programa “cria um movimento
par do seminário, os professores que tive- impressionante de uma comunidade de
ram projetos selecionados receberam a visita aprendizagem com objetivos comuns, que é
de formadores da equipe da Olimpíada nas lutar pelo desenvolvimento do letramento.
escolas em que trabalharam. Além de conhe- Isso é maravilhoso!”
cer pessoalmente e conversar com o profes- Por fim, disse que veio ao seminário falar
sor, os estudantes e a comunidade escolar, de desafios, mas acabou aprendendo com os
cada formador teve reuniões de trabalho professores: “Os resultados são evidentes
com os professores para os últimos acertos nos textos de alunos, pelas transformações
antes da apresentação no seminário. “Os na escrita e também na mudança na manei-
professores puderam ter ideia da consciên- ra de trabalhar dos professores”. Joaquim
cia que se adquire ao se pensar, ao ser ques- Dolz chegou ao Brasil pensando que ia falar
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especial
Foram muitos os
caminhos da escrita...
Queremos espraiar os 24 projetos de escrita apresentados no Seminário Internacional Escrevendo
o Futuro e instigar outros educadores a construírem seus próprios projetos em suas escolas.
São retratos contemporâneos do Brasil em múltiplas dimensões, inspirados no uso vivo da língua
portuguesa, em toda a sua diversidade e variedade, tal como se apresenta em cada recanto do país,
possibilitando que os alunos experimentem uma situação real e concreta de aprendizado da língua.
Para conhecer os projetos na íntegra, acesse <www.escrevendoofuturo.org.br>.
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“Combate à dengue”
Profa. Sandra Margarete de Oliveira Cajaíba – Tremedal (BA)
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“Água, letramento e economia”
Profa. Maria Geralda Silva – Carmo do Parnaíba (MG)
“Resgatando as histórias
lendárias do lugar onde vivo”
Profa. Rita Ferreira Marcelino Vasconcelos – Castelo do Piauí (PI)
“Curta-poesias”
Profa. Patrícia Amaral – Afogados da Ingazeira (PE)
O que fazer quando o rio antes cristalino que corta sua cidade vai
dando sinais de degradação e morte? Pois a professora Heronita e seus
alunos, inconformados, se mobilizaram para denunciar a situação do rio
Tapacurá por meio de diferentes ações. Entrevistas com moradores, cria-
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“Sinhô Cordel”
Profa. Polyanna Paz de Medeiros Costa – Rio Largo (AL)
“Cantos distantes”
Profa. Maria Verúcia de Souza – Brasília (DF)
Catadores de
Milton Hatoum
tralhas e sonhos
S
ão centenas, talvez milhares os catadores de papel
nessa megalópole. Puxam ou empurram carroças e
catam objetos no lixo ou nas calçadas. É um museu
de tralhas variadas: restos de materiais para construção,
papel, caixas de papelão, embalagens de inúmeros pro-
dutos, e até mesmo objetos decorativos, alguns belos e
antigos, desprezados por algum herdeiro.
Há carroças exóticas, pintadas com desenhos de figu-
ras pop, seres mitológicos, nuvens, pássaros e vampiros.
Em Santana, vi uma carroça que lembrava um jinriquixá,
só que maior do que o veículo asiático.
Era puxada por um velho e transportava uma avó e seu
netinho, sentados em pilhas de papel. Perguntei ao carro-
ceiro quanto ele cobrava pelo transporte de passageiros.
“Depende... Pra perto daqui, cinco reais. Pra fora do
bairro, cobro 15 ou 12, depende do passageiro e do dia.
Não gasto gasolina, nem nada, é só força mesmo, amigo.”
E haja força, leitor. Mas esse meio de transporte é
raro na metrópole. Quase todas as carroças só carregam
quinquilharias, uma e outra exibem aforismos, poemas,
ditados. Vi carroças líricas, políticas, filosóficas, cômicas,
moralistas, anarquistas. Numa delas se lia: “A verdade é
uma desordem... Alguém tem dúvida?”.
Noutra, pintada de verde e amarelo: “Aqui só carrego
bagunça, mas sou homem de paz”. A que mais
me chamou atenção foi uma carroça linda, com
uma pintura geométrica que lembra um quadro
de Mondrian. Na lateral, estava escrito:
“Carrego todo tipo de tralha, e carrego um sonho
dentro de mim”.
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Era uma carroça mineira, pois ostentava uma bandeira de Minas.
Conversei um pouco com esse carroceiro de São João del-Rei. Acho
que perdeu a desconfiança nas ruas paulistanas, pois não se esquivou
de mim, e ainda me mostrou uma luminária de aço, fabricada em
Manchester (1946). Esse objeto havia sido abandonado numa caixa
de papelão e recolhido pelo caprichoso carroceiro de Minas.
Especulei a origem da luminária e me indaguei: quantas páginas
esse belo objeto tinha iluminado em noites do pós-guerra?
Depois o carroceiro abriu uma caixa e me mostrou livros velhos,
em língua alemã. Disse que tinha encontrado tudo numa mesma
calçada do Jardim Europa, e agora ia vender os livros para um sebo.
Ele me olhou e acrescentou:
“Ando solto, não gosto de ser botado preso dentro de curral. A gen-
te encontra cada coisa por aí... Só não encontra o que a gente sonha”.
Comprei a luminária desse filósofo ambulante, mas não me inte-
ressei pelos livros, que talvez sejam relidos por algum germanófilo
de São Paulo.
Sei que não é fácil encontrar um sonho nas ruas; mas encontrei
carroceiros simpáticos e um assunto para escrever esta crônica.
In: O Estado de S. Paulo. Caderno 2, 27/3/2015.
Disponível em <cultura.estadao.com.br/noticias/geral,catadores-de-tralhas-e-sonhos-imp-,1658853>.
Milton Hatoum (Manaus, AM, 1952). Romancista, contista, professor e tradutor. Viveu a
infância e parte da juventude em Manaus. Mudou-se para Brasília e lá permaneceu até 1970,
quando veio morar em São Paulo, onde cursou arquitetura na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Foi professor universitário de história da
arquitetura e de literatura francesa. Ministrou aulas de literatura brasileira, como professor
visitante, na Universidade da Califórnia (Berkeley), onde também foi escritor residente. Estreou
na ficção com Relato de um certo Oriente, publicado em 1989 e vencedor do prêmio Jabuti
de melhor romance do ano. O segundo romance, Dois irmãos, de 2000, foi traduzido para
oito idiomas e ganhou outro Jabuti. Com Cinzas do Norte, de 2005, Hatoum recebeu os prê-
mios Jabuti, Bravo, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, publicou sua primeira novela, Órfãos
do Eldorado, e em 2013 suas crônicas foram reunidas em Um solitário à espreita. Escreveu
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denaolho
prÁtica
Os projetos de letramento requerem um movimento pedagógico
que vai da prática social para o “conteúdo” (seja ele
uma informação sobre um tema, uma regra, uma estratégia
ou procedimento), nunca o contrário.
Angela Kleiman. “Trajetórias de acesso ao mundo da escrita”,
in: Perspectiva. Florianópolis, v. 28, nº- 2, jul.-dez., 2010, p. 383.
CURTA-POESIAS
Patrícia Amaral Barbosa e Elziana Sousa
D
urante o curso “Caminhos da escrita”, Patrícia Amaral Barbosa
e Elziana Sousa, puderam refletir sobre as múltiplas práticas
de leitura e escrita que ocorrem nas diversas situações da
vida social. As professoras abriram os olhos à cultura local, levaram
a poesia popular de Dedé Monteiro, tão presente nas comunidades
rurais e urbanas do interior de Pernambuco, para o contexto da
sala de aula.
Nessa região, os moradores têm o deleite de ouvir todos os dias,
pela manhã, nas ondas da Rádio Pajeú (AM), no programa Encontro
com a Poesia, os repentistas e violeiros improvisarem em suas poesias
as angústias, esperanças e alegrias dos que vivem no sertão do Pajeú.
Com a intenção de renovar o fazer pedagógico, elas acolheram
o letramento local e o interesse dos estudantes pelos avanços
tecnológicos, ao escreveram o pré-projeto Curta-poesia.
Desafiaram os jovens do 8º- ano, tão afeitos às mídias digitais
e às redes sociais, a conhecer a estética da poesia, a brincar com
sonoridade das palavras, a transformar os poemas populares em
animações (curta-metragem).
Patrícia Amaral Barbosa é professora do Centro de Excelência Municipal Dom Mota (PE).
Elziana Sousa é professora da E. E. E. F. M. Maestro Waldemar Henrique (PA).
José Rufino Costa Neto, Dedé Monteiro, nasceu no Sítio Barro Branco
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Curta-metragem em cena
Hora de selecionar os poemas populares para montagem do curta. Antes da elabo-
ração do vídeo, os estudantes vão se familiarizar com a multiplicidade dessa linguagem
– áudio, filmagem, tratamento de imagem, edição e diagramação, entre outras – para
mostrar a singularidade dos poemas dos pajeuzeiros.
No desenvolvimento do curta-metragem os jovens vão experienciar:
apresentação de algumas animações para observação e registro:
elaboração de uma agenda das tarefas que devem ser feitas na sala de aula
e as que irão ser desenvolvidas em casa pelo grupo de trabalho;
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O que é projeto?
Projeto é um conjunto de atividades orientadas por objetivos comuns e planejadas para a elaboração
de um produto final. Trata-se, assim, de um tipo de organização temporária, na qual se criam várias
oportunidades de ação coletiva: escolher, decidir, planejar, partilhar, cooperar, buscar recursos e reali-
zar. Esses procedimentos permitem e exigem a construção de conhecimentos, competências pessoais,
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Os
■ Introdução
Durante minha pesquisa de mestrado em 2007 buscava indagar sobre
o ensino da leitura em uma escola pública. A análise dos dados levantados
levou-me à percepção de que, embora houvesse incentivos para a leitura
por parte dos professores, os alunos não se lembravam do que liam. Quan-
do se lembravam, mencionavam alguns contos de fadas tradicionais ou o
nome de duas escritoras famosas, mas não suas obras. Esse aspecto levou-
-me a ponderar que as lembranças desses contos talvez fossem resultado
de um trabalho com leitura nas séries iniciais. Também percebi que, nas
séries finais, os livros indicados para a leitura dos alunos eram, em sua
maioria, da coleção Literatura em Minha Casa. Coleção de gosto inquestio-
nável, mas que não exercia atração nos meninos porque alguns livros já
tinham sido lidos várias vezes pelo mesmo aluno.
Ao terminar o mestrado, fui trabalhar no depósito de livros didáticos e
literários, um local pequeno, e foi nesse espaço restrito que nasceu a pro-
posta de formar leitores com a mediação de um professor.
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Outra tarefa era atrair os alunos para o local onde estavam guardados
os livros, que não era agradável, pois não havia espaço físico apropriado.
O atrativo teria que ter um apelo forte para levar os alunos a fazerem do
local escolhido um ponto de encontro e bate-papo cujo tema eram os
textos ou livros escolhidos por eles. Para isso, teria que buscar um cami-
nho de sedução.
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Pode-se aprender e gostar de ler textos literários e ter gosto por essa
leitura. Isso não se dá por milagre, pressupõe um processo de aprendiza-
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Hoje, entendo que a leitura de que o aluno gosta pode ser levada para
a sala de aula como ponto de partida para reflexão, análise e comparação
com outros textos. E esse trabalho pode ser feito até com uma literatura
trivial como a saga Crepúsculo ou Tio, me compra um papai.
Com o tempo, os alunos pediram e a direção da escola permitiu que
tivéssemos oficinas de leitura de literatura acrescida de contação de histó-
rias. As oficinas realizaram-se de quinze em quinze dias, com a participação
de alunos de séries variadas.
E os meninos contaram muitas histórias e se lembram de como o prazer
de ler começou naquela escola... E os caminhos e descaminhos da leitura
literária continuam seus percursos em alguma escola em que há alunos
desejosos de ler.
Referências
MAGNANI, Maria do Rosário Mortatti. Leitura, literatura e escola – Sobre a formação do gosto. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
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SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil in: EVANGELISTA, Aracy Alves Martins
et al (orgs.). A escolarização da leitura literária. 2ª- ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp.17-48.
EVANGELISTA, Aracy Alves Martins et al. (orgs.). A escolarização da leitura literária. 2ª- ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
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Q
uando decidi participar da 4ª- edição da Olimpíada de
Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro com minha turma
de 8º- ano do Ensino Fundamental, na categoria de Memó-
rias literárias, confesso ter sofrido intensamente para iniciar as
atividades. Novato nesse gênero de texto, uma grande interroga-
ção me afligia: como conseguir que uma juventude tão conectada
e tecnológica consiga voltar seus olhos para o passado, inserir-se
nele e produzir um texto refletindo um tempo que não é o seu?
Como “escrever o futuro” com os olhos para o passado? Tais ques-
tionamentos latejavam, uma solução precisava ser encontrada.
Na realidade, o problema estava dentro de mim. Era eu quem
precisava compreender todo o processo de construção de memó-
rias para que a transmissão dos conhecimentos aos alunos se
tornasse plena. Consciente dessa missão, analisei, tal como os bons
alunos de que me orgulho como professor,
4
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meninas na primeira etapa do jogo de aprendizagem. Essa ativi-
dade aguçou ainda mais a atenção deles. Aos gritos de “Cam-
peãs!”, as meninas venceram os meninos, que prometiam revanche
na próxima competição. Gustavo, meu aluno repetente e com
grandes dificuldades de compreensão de textos, comentou: “Pro-
fessor, aprender assim é divertido, faz dessa maneira mais vezes
que eu acho que não fico reprovado!”. A sinceridade do garoto me
deu ainda mais ânimo.
No entanto, ainda que o clima estivesse positivo, com o grupo
correspondendo bem aos estímulos das oficinas, minha dificulda-
de estava na produção de textos. Muitos não entregavam as pro-
duções, fato que impedia a progressão desejada. As atividades
de sala geravam textos pequenos e ainda muito insipientes.
Poucos alunos se esforçavam em produzir os textos e desenvol-
ver a reescritura.
Utilizei a coletânea de textos como uma ferramenta impor-
tante de inspiração. Ao ver como os autores se utilizavam da escrita
de memórias, os alunos se mostraram mais seguros para produzir
seus próprios textos. O texto de Zélia Gattai sobre os automóveis
permitiu ao José Miguel dizer que a Posse dos Coutinhos era ainda
“mais atrasada do que aquela São Paulo”. A turma rebateu e, num
sentimento quase patriótico, afirmou que lá os carros já chega-
vam a quase oitenta quilômetros na estrada de chão, como se isso
fosse a confirmação de que José estava errado.
Muitas atividades feitas, uma boa quantidade de textos analisa-
dos, estava chegando a hora de decidir quem representaria a escola
na Olimpíada. Todos participaram, alguns alunos com apenas um
texto, mas me senti orgulhoso por ter conseguido total adesão.
Faltava apenas uma última atividade, de suma importância, que
era a entrevista. Depois de algumas recusas e ausências, chamei
o sr. Leão para conversar com os alunos. Falou da vida, do passado
em seu lugar natal e emocionou muito ao lembrar de sua relação
com o pai. Percebi que muitos alunos passavam pela mesma situa-
ção descrita pelo entrevistado. A memória deixou de ser particular
para ser coletiva. Meu trabalho estava consolidado.
O texto da Jéssica, falando sobre sua avó e as comidas do
fogão a lenha, estava quase garantido. Tudo mudou na última
semana, quando José Miguel captou toda a emoção da entrevista
do sr. Leão e produziu o belíssimo “Cardeboi”. Não tive dúvidas
da beleza da história, era a Posse dos Coutinhos contada na sua
face mais sensível.
A Comissão Escolar percebeu isso e José seguiu para as de-
mais etapas. Acho que agradou, visto que já estamos na semifi-
nal. Quem podia imaginar que aquele “carro de boi” que andava
pela Posse pudesse atravessar Tanguá, o Estado do Rio de Janei-
Na Ponta do Lápis – ano XI – nº- 26
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Literatura
Curtos e poéticos
“Acordou lírico. Arriou-se da cama
ao chão como um punhado de cascalho
rolando no leito de um rio.”
<editora.cosacnaify.com.br/Loja/PaginaLi-
vro/2403/Afagos.aspx>.
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Pérolas da Imaculada
Revisão
Rosania Mazzuchelli
e Mineo Takatama
Edição de arte
Últimas conversas
Criss de Paulo e Walter Mazzuchelli “[...] falar é uma forma de fazer,
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4ª. capa capa
ano XI – número 26
julho de 2015