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Bildung e Spieltrieb:

o projecto estético
João N.S. Almeida

No século de Frederico, a crença numa nova invenção do homem irá animar toda a filosofia
da Aufklarung. Iniciando-se em Inglaterra e França, as raízes científicas do movimento
serão transpostas para várias escolas filosóficas que pretenderão a substituição do dogma
do divino pelo primado da razão, colocando no lugar do cristianismo uma nova religião do
homem a que viríamos a chamar cultura. O empirismo, o racionalismo e o cepticismo
excluirão a especulação do tratamento da metafísica, aproximando a filosofia da ciência e
extrapolando daí a possibilidade de um aperfeiçoamento universal, começando no indivíduo
e partindo daí para o mundo. Com o homem no centro, a modernidade descobre o
melhoramento diacrónico da sociedade, sintetizado no progressismo histórico de Hegel,1
através do indivíduo e não do favor divino, num desenvolvimento individual da humanidade
que levaria ao summum bonum aristotélico no comum 2. É neste contexto que surge o
trabalho de Humboldt e Fichte, desenvolvendo o conceito de Bildung como tendente à
criação de um novo homem3, associado também a um nacionalismo com vista à
recuperação do atraso civilizational alemão em relação à França e Inglaterra.

Neste ambiente intelectual, a palavra Bildung é usada intercaladamente com Kultur,


Zivilization, e com o Geist hegeliano4. A raiz remonta à tradição mística da idade média
alemã, que criará o verbo Inbilden, tornar-se imagem,5 como reprodução do ideal divino.
Herdando do neoplatonismo o sistema das emanações do Uno para o noûs e subsequente
corrupção da matéria,6 Shaftesbury transformará esta ideia religiosa numa função social da

1Allen W. Wood, ”Hegel on Education," Amélie O. Rorty (ed.) Philosophy as Education. London:
Routledge, 1998, pp.26-28
2Beiser, Frederick C. Schiller as Philosopher: A Re-examination. Oxford: Clarendon, 2008. Print, p.
188
3 Geuss, Raymond. "Kultur, bildung, geist." History and theory (1996): 151-164. , p.156-158
4 “In retrospect it is the relative absence of the term Kultur in the period from 1800-1870 that is most
striking. I strongly suspect that this absence is not unrelated to the pervasive influence of Hegel and
his followers in the 1820s, 1830s, and 1840s. Hegelianism tended to prevent the term Kultur from
establishing itself because Hegel's notion of Geist preempted the conceptual space in
which uses of Kultur could take root. Hegelianism acknowledges the superficial plurality of historically
specific folkways, forms of art, sociability, religion, and so on, but sees them all as having an
underlying unity, as being mere forms of a historically developing structure, Geist, whose internal
structure Hegel's philosophy articulates. In such a scheme there is no place for a separate concept of
Kultur.” In Geuss, p.157
5Bergmeier, Horst (2007). Conceitos e Formas de Realização de Bildung e de Bildungsroman:
Goethe, Handke, Wenders, Rutschky. In A. F. Araújo, F. Azevedo & J. M. Araújo (Orgs.). Educação e
Imaginário. Literatura e Romance de Formação. Actas de Colóquio Internacional, pp. 9-27. Braga:
Universidade do Minho., p.10
6 Cocalis, Susan L. "The Transformation of "Bildung" from an Image to an Ideal." Monatshefte 70.4
(1978): 399-414, p.400-402
estética7 , que Wieland consolidará na sua proposta de paideia moderna8. Esta
perfectibilidade assentará numa teleologia do homem ideal futuro, transformando este
processo num progressismo no pietismo e secularizando-o no sec. XIX9. Paralelamente, o
conceito de Bildung ganhava tradição nas ciências naturais, onde o Bildungstrieb de
Blumembach10 apontava a tendência interior do organismo biológico à forma externa. Estes
desenvolvimentos determinaram a Bildung como um processo de aperfeiçoamento distinto
do moralismo francês e herdeiro do individualismo protestante11, onde o desenvolvimento
interior é autonomamente determinado, de dentro para fora. Será em Hegel que
encontraremos o sistema filosófico mais completo para a descrição da Bildung enquanto
adequação do momento do conhecimento com o da verdade, numa dialética de
aprendizagem com as sucessivas falhas, extrapolando desse desenvolvimento da Kultur
individual um progressismo histórico que levará ao melhoramento da Zivilization. A
generalidade do Neuhumanismus era, assim, progressista e oposta ao relativismo que se
encontra um pouco em Herder 12. Mas seria a primordialidade da cultura alemã, em Fichte, a
marcar a diferença face ao resto da Europa13, uma unidade de ideias e costumes que era
prelúdio da noção schilleriana de realização total do formal e do sensível.

Esta nova religião do homem irá permitir a autonomia da disciplina filosófica da estética. A
beleza, simultaneamente subjectiva e objectiva, substituirá a experiência da fé no
cristianismo, onde também o divino se descobre tanto no sujeito, feito à imagem do divino,
como na criação. O projecto distingue-se do monadismo da sensação e da razão, em
Hume, e da beleza apenas como utilidade social no Iluminismo escocês14, que não
desenvolverá a teoria autónoma da estética que encontraremos em Kant, onde a finalidade

7 Id., p. 401
8 Id., p.402
9 Id., p. 401

10 “Paralelamente, a expressão Bildung vinha assumindo, nas ciências naturais do século XVIII, um
significado formal e objetivo cada vez mais central na explicação dos processos biológicos. A idéia
de um Bildungstrieb, de um impulso de formação que explicaria a energia presente em todos os
corpos, formulada por Johann Friedrich Blumenbach na passagem do século XVIII para o XIX,
indicava o estabelecimento de um novo paradigma dinâmico- biológico para a Bildung que se
estenderia por todo o neo-humanismo. O Bildungstrieb substituía a idéia de Stufenfolge, ou
progressão – paradigma das ciências naturais do século XVII, que deduzia a dinâmica das espécies
a partir da posição relativa que elas ocupavam em um quadro classificatório estático e imutável – por
um novo critério, que reinseria uma forma de teleologia no mecanicismo.” In Lemos Britto, Fabiano,
“Sobre o conceito de educação (Bildung) na filosofia moderna alemã.”
11Bergmeier, Horst (2007). Conceitos e Formas de Realização de Bildung e de Bildungsroman:
Goethe, Handke, Wenders, Rutschky. In A. F. Araújo, F. Azevedo & J. M. Araújo (Orgs.). Educação e
Imaginário. Literatura e Romance de Formação. Actas de Colóquio Internacional, pp. 9-27. Braga:
Universidade do Minho., p.10
12 Geuss, Raymond. "Kultur, bildung, geist." History and theory (1996): 151-164. , p.155-156
13 Id., p. 156-158
14Wilfried van der Will, Proto-Literary Texts and the Otherness of Art: On Schiller's Aesthetic Letters,
his Preface to Die Braut von Messina, and Nietzsche's Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der
Musik, Vol. 80, Iss. 2-3, 2011, p.93
sem fim ultrapassa a lei da contingência 15. O Neuhumanismus surge, assim, como reacção
às especializações do Iluminismo16 e ao excessivo primado da razão, sendo substituídas na
estética pelo desenvolvimento do homem na sua totalidade, onde a visão idealista da pólis
grega, herdada de Winckelmann17 , influenciará Humboldt, Lessing, e Schiller. Antecipando
as ideias de Schelling sobre liberdade estética, Schiller traduzirá o seu temperamento
artístico18 numa teoria do homem total, onde o sensível terá uma expressão realizada a par
da razão.19 Justificando essa eternamente dupla natureza20, propõe ultrapassá-la não por
ablação de nenhuma das partes que subtraísse humanidade, mas pela criação de uma
terceira, o Spieltrieb, uma síntese que não eliminasse a oposição, como nova artificialidade
contraposta à excessiva artificialidade da Zivilization, realizando a liberdade estética não na
própria vida sensível 21 mas num terceiro estado intermédio, tentando a síntese entre o
julgamento estético subjectivo de Kant e a beleza objectiva em Goethe22. Reagindo a Kant e
Fichte, onde o summum bonum é alcançado apenas por meios morais,23 Schiller irá
contrapor que a razão obriga tanto à existência da humanidade como à da beleza,
distinguindo a liberdade moral Kantiana da liberdade estética, a que se refere, numa carta a

15Immanuel Kant, Kant’s Critique of Judgement, translated with Introduction and Notes by J.H.
Bernard (2nd ed. revised) (London: Macmillan, 1914). http://oll.libertyfund.org/titles/
1217#Kant_0318_150
16 Van der Will, p.96
17 Id, p.98
18 While Kant is concerned only with the subjective state, only with the universal a priori judgment,
Schiller, the artist, is interested primarily in the object. Bohning, Elizabeth E., Goethe’s and Schiller's
Interpretation of Beauty
19Schiller, Sobre a Educação Estética do Ser Humano Numa Série de Cartas, Imprensa Nacional,
1994, pp. 54-59
20 Id, Ibid, p.69-70

21 “Also the circle here represents the paradox, mentioned above by Schiller.As Jaszi asserts,the
impossibility avowed becomes the only possibility, as the paradox aims toward truth, driven by the
contradiction at its heart that something should be other than it must be, in order truly to be. And the
authentic paradox engages the existent as a promise,23the promise of deliverance from unfreedom,
the unarticulated hope-except fleetingly in the soft contours of play-of freedom; while, contrariwise,
Schiller sees the sheerly analytical paradox by implication as abstract and disembodied. Only a
passing glimpse of true freedom can be had-negatively, not positively; in shadow, not in substance; in
play, not in life, a momentary look beyond the conventional coordinates of time and being. One such
glimpse looks out at the reader, if the reader looks back at it, from Schiller’s Asthetische Briefe.” In
The Strain of Negative Ontology and the Serious Play of Words in Schiller's "Ästhetische Briefe”,
Vaughan, Larry p. 169.

22 “While Kant is concerned only with the subjective state, only with the universal a priori judgment,
Schiller, the artist, is interested primarily in the object. He must ascertain what in the object awakens
the harmony of the imagination and the understanding in the subject. He occupies an intermediate
position between Kant and Goethe. Like Kant he regards the aesthetic judgment as sub- jective; like
Goethe he tries to maintain beauty as an objective principle.” In Bohning, p.189
23Beiser, Frederick C. Schiller as Philosopher: A Re-examination. Oxford: Clarendon, 2008. Print. , p.
144-147
Korner, como imperativo categórico estético24. Apesar disso, Schiller pressupõe uma
regência do racional sobre o sensível que se deve às suas próprias naturezas: o sensível
como princípio selvagem, subjugável, e a razão como princípio dominador, o primeiro ligado
à contingência, o segundo à liberdade e autonomia 25. A sua teoria filosófica não investigará
a origem ou causas destes impulsos, apontando apenas a sua área de acção e não saindo
além desse empirismo, diferindo de Nietzche, onde, mais tarde, o projecto será apresentado
como pré-lógico, fundado no apolíneo e no dionisíaco 26.

Na tese de Schiller, a abstracção de um homem futuro não consegue ultrapassar os termos


da pessoa e do estado: pode fazê-lo, mas criaria um homem ideal distante dos seus
limites27. Assim, se o sujeito, em Kant, é o ideal numenológico, para Schiller será o
fenomenológico28, realizando-se sem uma sobreposição dos seus impulsos mas com a
criação de um outro que, numa gradualidade progressiva semelhante a uma educação,
modifique a natureza do homem, sistematizando e naturalizando a experiência estética.
Este processo está dependente do estado epistémico do sujeito: quando conhece o fim que
determina o objecto, desaparece a sua autonomia29 . A beleza só se atinge sans raisonner,
emprestando razão e teleologia ao objecto, justificando o sensível e permitindo a
heautonomia do belo.30 Assim, o impulso lúdico é como um sensível que se combate a si
próprio e se ficciona numa analogia aos processos da razão, importando a teleologia desta
para a sua arbitrariedade. Mas é só no plano do fenómeno que o objecto pode receber o
empréstimo dessa liberdade: é o impulso sensível que tem de ser educado para ficcionar
uma autonomia, numa negação epistémica do sujeito. O que Schiller propõe é roubar o
homem ao tempo através de uma proto-fenomenologia derivada do trabalho de Kant, mas
se o impulso lúdico ultrapassa a identidade das coisas e essa reificação implacável dada
pelo tempo,31 o homem estético é concebido numa lógica progressista tendente a um ideal,
separado das forças que, apesar de fazerem parte da sua natureza, subjugam a sua

24 Acosta, Emiliano. "Schiller y el reconocimiento del otro en su otredad. El desafío de pensar la


intersubjetividad a partir de una lógica de la diferencia." Pensamiento. Revista de Investigación e
Información Filosófica 68.256 (2012): 225-247. , p.11
25Sobre os limites necessários no uso de formas belas, Schiller, Sobre a Educação Estética do Ser
Humano Numa Série de Cartas, Imprensa Nacional, 1994, §1-2
26 Van der Will, p. 92
27 Acosta, p. 16
28 Acosta, p.9
29Schiller, Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, Imprensa Nacional, 1994, Kallias, Carta 3, §.
27
30Schiller, Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, Imprensa Nacional, 1994, Kallias, Carta 5, §.
75

31 Schiller wished to illuminate an unchanging,and ultimately self- referential,if theoretically


transcendental nomenal identity over against apparently changing phenomena, but in so doing he
only admitted the sway of reification derived from the rule of time.

Vaughan, Larry. "The Strain of Negative Ontology and the Serious Play of Words in Schiller's
"Ästhetische Briefe"" Monatshefte 80.2 (1988): 162-71. Web.
liberdade estética. Ele necessita, assim, do tempo para se realizar, não se bastando a ser
um fenómeno, pois o homem, enquanto tal, já se encontra realizado. Se Schiller pretende
transformar o homem real enquanto fenómeno, distinto do de Kant, num homem ideal,
perseguindo o numenológico, acaba por tratar, afinal, de um homem inexistente na vida,
reconhecendo-o numa idealidade futura da realização simultânea dos seus impulsos
contrários. Assim, a realização na vida dessa liberdade estética é como uma abstracção
semelhante a uma emanação neoplatónica de um não-ser, saindo do jogo circular do tempo
e circunscrevendo o próprio homem, aprisionando-o na liberdade de um lúdico da própria
autoria.32 Entrevê-se, aqui, a circularidade do projecto da estética, que, apesar de tentar
conceber uma total realização das suas faculdades enquanto fenómeno, trata de um
homem futuro de que se aproximará num progressismo infinito, um homem que é tão
numenológico como o de Kant, não existindo exclusivamente no fenómeno, permanecendo
enquanto sujeito ideal no reino do númeno.33

A leitura do projecto de Schiller e a estrutura prototípica do Bildungsroman permitem


observar como na Bildung e na experiência estética nunca existe coalescência na pessoa,
pois as forças sensíveis, aprisionando o homem no tempo, só permitem a continuidade
infinita da Bildung e não a materialização da eternidade que o impulso formal procura. Não
há a formação de uma personalidade, mas sim a própria renegação dessa no empréstimo
de liberdade que faz ao sensível, valendo-se da negação epistémica do desconhecimento
dos fins, rejeitando assim o conhecimento para ganhar a beleza. Não é a pessoa que se
procura, mas sim a alma bela, o que certamente equivale a um progressismo relativamente
à contingência do impulso sensível e à imposição da vontade moral. O interesse do sujeito,
proveniente de dois impulsos, é transversalmente partido ao meio, cedendo a autonomia do
impulso do eterno que a razão emana para o objecto, o outro, o mundo, recebendo do
sensível uma ficção de finalidade sem fim. Assim, o desinteresse Kantiano da teoria estética
assemelha-se ao desinteresse da experiência religiosa, onde também se realiza uma
alteridade absoluta. Se o interesse equivale aos impulsos, voltados para o sujeito, a
experiência do desinteresse é uma abstracção ficcionada dos impulsos e do sujeito, numa
realização lúdica ou religiosa da vida, virada para fora, para o objecto, na estética o belo, na
religião o divino. O sujeito espalha, assim, a sua liberdade pelo mundo enquanto fenómeno,
num paradoxo onde a responsabilidade do ser autónomo fica em parte cedida ao objecto,
aliviando a pressão insuportável do impulso da razão, mas ao mesmo tempo tornando o
sujeito ainda mais responsável pelo próprio objecto, onde, numa analogia com a dialética
interpessoal de Hegel, o sujeito perde parte da sua liberdade e uma correspondência entre

32 "it would elude the vicious circle of time by joyously appropriatingplay and appearance,in a word,
freedom that would be both creative and productive, or tautologically,freedom that would truly be
freedom.One cannot escape circles.One can only encircle them. But the circle here would embrace
humankind,not enchain man.

The Strain of Negative Ontology and the Serious Play of Words in Schiller's "Ästhetische Briefe "
Author(s)/ Larry Vaughan, p.169
33The Strain of Negative Ontology and the Serious Play of Words in Schiller's "Ästhetische Briefe "
Author(s)/ Larry Vaughan, p.168-169
vontade e acto ao se impor no outro.34 O homem ideal de Schiller, a alma bela, não
pretende ser livre na autonomia do impulso formal, mas pretende confundir-se com o
objecto, abdicar de metade da sua faculdade da razão e da sua natureza enquanto pessoa
imutável, para existir objectiva e ficcionalmente no mundo. O postulado fenomenológico de
Kant, onde as coisas elas mesmas são inacessíveis e tudo o que temos são impressões,
deixa o sujeito mais próximo do mundo, pois ele é quase produtor dos seus conteúdos
sensíveis, mas ao mesmo tempo isola-o numa solidão demiúrgica, responsável por todo o
fenómeno. A religião do homem inaugura, assim, uma angústia de ser que se desenvolverá
na filosofia e literatura posteriores, onde a deflação do divino, que não desaparece mas não
é nomeado da mesma maneira, deixará o homem num problema com o ser aparentemente
mais aprofundado e trabalhado sem os auxiliares metafísicos dos sistemas religiosos.

A idade da razão não consegue, porém, justificar a própria existência deste impulso num
mundo finito, e tudo aquilo que Hume, Kant, e mais tarde Wittgenstein e outros têm como
problema impróprio para a filosofia, longe do empirismo, da especulação ou da linguagem, é
o seu reconhecimento de um divino inominável cujas teorias filosóficas não pretendem
abordar ou trabalhar, mas que participa no sistema e permite a existência do homem
enquanto paradoxo lógico, evidente na teoria estética e na Bildung enquanto conhecimento
da impossibilidade de conhecimento, e em qualquer sistema de ontologia que encontra,
invariavelmente, a parede da consciência virada para si própria. Mas o progressismo de
Schiller e Hegel funciona e cria de facto um homem novo que, devido ao fenomenalismo
dos sistemas de que partem, é na verdade apenas a aparência de um mundo novo, onde a
educação do impulso sensível consegue um reequilíbrio do sujeito com o mundo e uma
mais profusa realização das suas faculdades. A alma bela, porém, só seria atingida se este
trabalho não fosse de um infinito aperfeiçoamento e, tal como é próprio da natureza da
Bildung, a impossibilidade de atingir aquilo que se procura não fizesse soçobrar o sujeito no
seu objectivo. Esse homem ideal pode não ser inteiramente atingível, mas isso não impede
que o projecto estético persiga um aperfeiçoamento que inaugure um efectivo estado ético.
Mas essa é uma realização social e não um novo homem, e emana de uma forte convicção
da Aufklarung sobre a modelação do homem pelo seu meio, onde a razão, modificando as
relações do sujeito com o mundo, pode mesmo modificar o homem a partir da
ficcionalização de uma nova natureza. Se o sensível é ficcionado, a razão não altera a sua
natureza: o homem permanece eterno, e apenas numa negação epistémica consegue o
reequilíbrio pretendido. Mas é a faculdade da razão que leva o homem a tomar a criação
pelas próprias mãos, já que é a responsável pela teoria estética que levará à prática e ao
melhoramento. A origem desse impulso do eterno está fora da própria teoria que a propõe:
excluindo a especulação metafísica, admite que a origem dessa faculdade não está ao
alcance do conhecimento, recusando-se a nomear a transcendência que traçamos na
tradição do logos como origem da faculdade da razão. A autoria humana do racionalismo,
conforme à auto-consciência do movimento, pára nos limites do empirismo, rejeitando toda
a especulação metafísica que apontaria uma proveniência divina dessa faculdade,
ficcionada num empréstimo de razão transcendente à autonomia da razão humana. Se a
estética complementa o primado da razão Iluminista com a justificação do sensível, ambos

34
Allen W. Wood, ”Hegel on Education," Amélie O. Rorty (ed.) Philosophy as Education. London:
Routledge, 1998, p.7-8
são obrigados à invenção de uma nova natureza, em que a ontologia do homem não se
justifica perante o transcendente mas através de uma ficção fenomenológica.

Assim, a busca do ser numenal na religião da estética é um fenómeno infinitamente


aperfeiçoável, equivalente ao transcendente dos sistemas religiosos. Para chegar ao ideal,
o homem tem de se disfarçar de fenómeno e descobrir-se, tal como ilustram os exemplos do
Bildungsroman, na impossibilidade de conhecer-se, desenvolvendo um impulso que
modifica o sua estado epistémico, criando uma razão exterior estética no objecto
equivalente à razão divina. Há uma ablação da realização absoluta da razão e do sensível:
ambos os impulsos são deformados até atingirem uma reciprocidade, e não são realizados
no excesso da sua plenitude. Se isto equivale a uma maior realização do humano, significa
que o humano não se define pela exponenciação das suas capacidades mas por um rácio
destas que não é equitativo, já que a razão tem sempre uma regência superior ao sensível,
necessária à prática de uma filosofia estética e por conseguinte à prática da própria estética
e da pretendida realização das faculdades humanas. A proposta estética é, assim, de uma
ironia ficcionada e de um lúdico permanente, negando ao humano a saciedade plena dos
seus impulsos, modificando-o na crença de um aperfeiçoamento que o aproxime de um
homem ideal. Se em Schiller à primeira leitura encontramos uma preocupação com o
homem fenomenológico, onde o sensível deve merecer também um primado paralelo ao da
razão, o seu homem ideal é na verdade numenológico porque o concebe como um ideal
fora do reino do fenómeno a atingir enquanto fenómeno. Deriva talvez daqui a circularidade
do projecto estético desde Kant até à contemporaneidade, onde a religião da beleza não
consegue nomear as suas alteridades e chama liberdade ao eixo fenomenológico em que
se encontra aprisionada. Esse círculo contém o homem e o mundo em toda a sua extensão,
e substitui mal a religião: o não-ser da primeira, o homem estético ou alma bela, é
eternamente perseguido como se fosse atingível, e o da segunda é assumidamente
inominável, inatingível e no entanto co-participante do sistema ontológico do humano.

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