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ESTUDOS

DE CASOS
A PRÁTICA CLÍNICA
FENOMENOLÓGICA-
EXISTENCIAL

Esta obra é originária da atividade final do Curso de


Fomação em Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial
da Afethos - Instituto de Psicologia

GEISE CAMPÊLO E LUCIANA SANTOS (ORGANIZADORAS)


ESTUDOS DE CASOS
A prática clínica
fenomenológica-existencial

Autores(as)
Aline Nunes Donato
Andréia Ramos Patrocínio
Andreia Souza Reis
Augusto Carlos Rodrigues da Cunha
Jonathan de Oliveira Neves
Mikaelly Gallerani Pacheco
Paulo Henrique Basilio Alves
Vanessa Lima Rodrigues da Trindade

Geise Campêlo
Luciana Santos
(Organizadoras)
www.afethos.com

CAMPÊLO, Geise; SANTOS, Luciana. Estudos de casos: A prática


clínica fenomenológica-existencial. Brasília: Afethos, 2021.

ISBN: 978-65-994257-0-7

Edifício Connect Towers, 1503


Águas Claras/DF
Telefone: +55 61 99108-7755
Organizadoras

Geise Campêlo possui Graduação em Psicologia pela Universidade Católica


de Brasília (2017). Pós-Graduada em Filosofia da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo (2020). Pós-Graduanda em Psicologia e Sexualidade
na Universidade de Araraquara (UNIARA). Estuda intersecções nas temáticas
de Gênero, Religião e Sexualidade. Tem experiência em Psicologia na ênfase
clínica onde trabalha com a abordagem Fenomenológica-Existencial. Integra
a equipe da Afethos e monitora o curso de Formação em Psicologia Clínica
Fenomenológica-Existencial. Fez a compilação e correção teórica dos
capítulos, além da diagramação do livro.

Luciana Santos é docente e diretora da Afethos - Instituto de Psicologia.


Doutora (2014) e Mestre (2008) pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília. Foi professora de
Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e pesquisadora na
UCB/DF. É graduada em Licenciatura Plena (2003) e Formação em Psicologia
(2004) pela UFPB. É coordenadora do Grupo de Estudo 'Psicologia Clínica,
Existência e Sociedade' (PCLES). Psicoterapeuta fenomenológica-existencial,
formadora e supervisora de psicoterapeutas com enfoque em teorias
humanistas. Tem formação e experiência em Psicologia Clínica (individual,
família e grupo) com enfoque em processos de adoecimento e saúde
mental, gênero, cultura e subjetividade. É coordenadora e supervisora do
Curso de Formação em Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial. Fez a
revisão final dos capítulos e do livro.
Autores(as)
Aline nunes donato
Psicóloga, Pós-graduada em Gestão de Pessoas e com Formação em Psicologia Clínica
Fenomenológica-Existencial. Residente Hospitalar na ênfase da saúde do adulto e do idoso.

AndrÉIa Ramos Patrocínio


Psicóloga graduada pela Universidade Católica de Brasília, com formação em Psicologia Clínica
Fenomenológica-Existencial pela Afethos - Instituto de Psicologia. Atua como psicóloga clínica,
com foco em atendimento individual para adultos.

Andreia SOUZA REIS


Graduada em Psicologia – PUC/GO, Psicóloga Clínica Fenomenológica-existencial – Afethos/DF,
Especialista em Avaliação Psicológica – IPOG/GO e Mestra em Psicologia com ênfase na
Avaliação Psicológica – USF/SP.

Augusto Carlos Rodrigues da Cunha


Formado em Economia pela Universidade Federal do Ceará (1978), Mestre em Ciência Política
pela Universidade de Brasília (1994). Formado em Psicologia pelo Uniceub (2018). Exerce as
atividades de Psicólogo Clínico em consultório particular em Brasília. Professor de Ciência
Política da UPIS desde 2000.

Jonathan de oliveira neves


Graduado em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília e Curso de Formação em
Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial pela Afethos. Pós-Graduação em andamento sobre
Psicologia Humanista Fenomenológica-Existencial (FARESE). Experiência na ênfase Psicossocial e
também Clínica. Realiza atendimentos com adolescentes e adultos(as). .

MIKAELLY GALLERANI PACHECO


Graduada em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília; Curso de Formação em Psicologia
Clínica Fenomenológica-Existencial pela Afethos; Mestranda em Psicologia em habilitação em
saúde mental e ações terapêuticas na UCB. Psicóloga clínica.

Paulo Henrique Basilio Alves


Psicólogo Clínico graduado na Universidade Católica de Brasília (UCB) com formação em
Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial pela Afethos - Instituto de Psicologia. Psicólogo
clínico.

Vanessa Lima Rodrigues da Trindade


Psicoterapeuta fenomenológica-existencial pela Afethos - Instituto de Psicologia, formada em
Psicologia pela Universidade Católica de Brasília (UCB) em 2020 e Pós-Graduanda em
Comportamento Alimentar.
Agradecemos pela dedicação, empenho e
comprometimento de todos(as) os(as) autores(as) dos
capítulos que seguem. À vocês que carinhosamente
cederam suas produções para este projeto, cada um com
seu estilo de escrita e preferências de leitura. Em
particular, pela condução do processo psicoterápico e pelo
cuidado que tiveram com os(as) clientes - a quem
dedicamos este trabalho.
Conheça-nos!
Afethos - Instituto de Psicologia oferece diferentes cursos de capacitação
profissional para psicólogos(as) e discentes de Psicologia.

A missão da Afethos é capacitar profissionais de Psicologia para a atuação


com adequação ética e técnica, sem perder a dimensão afetiva da relação
humana. Para tanto, os nossos valores são empatia, ética, autenticidade,
respeito e comprometimento. A Afethos tem como visão ser referência no
ensino e no aprimoramento das práticas clínicas psicológicas, em um
espaço de trans-forma-ação pessoal e profissional.

A Afethos surgiu para atender a algumas inquietações/desejos:

1. O de haver um espaço onde profissionais de psicologia pudessem se


capacitar de forma ética e técnica, prezando pela prática e desenvolvimento
pessoal. Um lugar onde se é permitido afetar e ser afetado pelo outro, e
produzir aprendizados significativos. A intenção é coexistir, sentir-se acolhido(a)
e trocar muitas experiências.

2. A nossa proposta é a de um espaço em que os(as) profissionais possam


exercer sua prática com zêlo e que tenham apoio de uma equipe de
profissionais atentos para discutir as demandas trazidas. Por isso, atuamos com
supervisões, cursos e workshops para que os(as) profissionais possam dirimir
dúvidas, melhorar seu conhecimento teórico e prático da clínica psicológica e
cada vez mais se capacitar, além de cuidar de sua própria saúde mental.

3. Um dos objetivos da Afethos é tornar a psicologia (enquanto ciência e


profissão) mais acessível às pessoas. Assim, também são disponibilizadas
diferentes práticas (oficinas, lives, grupos de estudo, atendimentos psicológicos,
etc) para que as pessoas possam ter acesso aos serviços e conhecimento
psicológicos.

Seja bem-vindo(a) à Afethos e ao significado desse espaço para você!


APRESENTAÇÃO
A Afethos, desde 2017, tem oferecido o Curso Livre de
Formação em Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial.
Percebemos, em particular ao longo dos primeiros encontros
teóricos, muitas dúvidas dos discentes para responder a essas e
outras questões: Como é o atendimento? Como as teorias são
colocadas em prática? Como sei que o atendimento está
adequado?
E, embora sabendo que os atendimentos e atividades práticas
ocorram apenas no último semestre do curso, sentimos a
necessidade de trazer algo mais palpável aos nossos discentes
para sanar tais problematizações. A partir de então, decidimos
publicizar esse E-book no intuito de apresentar exemplos de
atendimentos realizados na perspectiva Fenomenológica-
Existencial.
Esse E-book não tem pretenções acadêmicas, não seguiu o
rigor científico nem passou por avaliação de pares, tampouco
comercializa a obra. A intenção é dar visibilidade ao trabalho
realizado pelos(as) discentes que estiveram conosco e motivar
os(as) próximos(as).
É originário da atividade final de do Curso de Formação citado.
Isso porque ao longo do último semestre, solicitamos aos
discentes que, a partir do estágio supervisionado, escrevam um
Estudo de Caso a respeito do processo terapêutico e a
compreensão fenomenológica-existencial.
A partir do interesse dos(as) discentes e qualidade do Estudo
de Caso apresentado no último Módulo do curso, selecionamos
oito trabalhos das quatro últimas turmas para compor este E-
book. Com a leitura deste, pretendemos aproximar a
comprensão dessa prática clínica.
É preciso apontar que cada um dos 08 capítulos foi escrito
por um(a) dos(as) 08 discentes(as), autores(as) deste E-book.
Todavia, os(as) respectivos(as) nomes da autoria em cada capítulo
serão omitidos no intuito de evitar identificação do(a) paciente.
Alguns elementos da biografia e/ou de dados sóciodemográficos
também foram suprimidos com o mesmo objetivo.
Desejamos uma ótima leitura. E que através dessas páginas
que seguem possamos apreender um pouco mais do processo
clínico na perspectiva fenomenológica-existencial.

As organizadoras
sUMÁRIO
1) ENTRE O COLO E À AUTENTICIDADE, O CAMINHO PARA SI. ESTUDO
DE CASO NUMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL
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2) A “CIRANDA CIRANDINHA” DAS RELAÇÕES DE MOLY: UM ACOLHER


FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL
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3) ESTUDO CLÍNICO - O DESVELAMENTO DE UM SER-NO-MUNDO


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4) O ENCONTRO QUE CURA, A RELAÇÃO QUE TRANSFORMA: UM


ESTUDO DE CASO
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5) UM OLHAR FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL SOBRE UMA AUTO


COMPRENSÃO SOFREDORA – O “DAR ERRADO” É QUEM MANDA
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6) O OLHAR FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL PERANTE UM ESTUDO


DE CASO: A ABERTURA DE POSSIBILIDADES E OS MODOS DE SER-NO-
MUNDO
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7) "COMO QUE EU IRIA ME LIBERTAR, SE EU IA TER ERA UM DONO


PORQUE EU ERA DE MENOR?”: UM ESTUDO DE CASO SOBRE
LIBERDADE, ABSURDO E OUTRAS COISAS
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8) UM ESTUDO DE CASO NA ÓTICA FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL:


JULIANA, UM ETERNO VIR-A-SER
.............................................................................................................................................................................
ENTRE O COLO E À AUTeNTICIDADE, O CAMINHO
PARA SI. ESTUDO DE CASO NUMA PERSPECTIVA
FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL

O objetivo deste estudo é apresentar e discutir, com os olhos de


autores e conceitos da fenomenologia-existencial, a história de uma
jovem mulher que procurou atendimento clínico pelo sentimento de
profunda angústia referente ao processo de colocar-se no mundo
enquanto mulher lésbica, em particular frente à sua mãe. Além disso,
a paciente trazia sintomas relacionados ao estado de Estresse Pós-
Traumático (CID 10 - F43.1), estes por enfrentar as consequências
físicas, psicológicas e jurídicas, de uma tentativa de assédio sexual
deferida por um motorista de aplicativo. De início será apresentada
uma breve contextualização da história da cliente, do processo
terapêutico e posteriormente será realizada uma análise teórica de
base fenomenológica-existencial.

A CLIENTE

A cliente é uma jovem mulher, com ensino superior completo e


residente em uma cidade com padrão de classe média alta. Seus
pais se separaram durante sua infância e mesmo na época ela sendo
mais apegada ao pai, residiu e reside até os dias de hoje com sua
mãe e irmãos. Buscou o atendimento psicológico por demanda
inicial envolvendo sua relação com a mãe, que se deteriorou ao
contá-la sobre sua orientação sexual. O que a deixou, em suas
palavras, constantemente angustiada, ansiosa, fragilizada e com o
sentimento de culpa.

Compartilham amizades, confidências e vivências juntas. Apesar de


tão próximas, sua sexualidade nunca foi uma pauta de diálogo entre
as duas, porém, existia a desconfiança por parte da cliente de que
sua mãe poderia saber ou ao menos desconfiar.
O comportamento constante de palpites em vestimentas, atividades
de lazer, escolha do curso superior e até em “forçar romances com
meninos” (sic), corroborava com tal pensamento e talvez com a
tentativa de sua mãe em mudar as “preferências” (sic), não só
afetivas, da jovem. Diz ter percebido seu afeto por mulheres desde
muito nova, quando se viu apaixonada de maneira platônica por
uma professora da escola. Revela que sentia confusão sobre seus
sentimentos no período da adolescência, que tentou
relacionamentos heterossexuais, mas que, na mesma época, teve
um breve relacionamento amoroso com uma colega de classe que a
fez ter certeza de ser lésbica.

Expõe que vivia sobre máscaras, escondia as relações amorosas de


sua família e possuía uma namorada que não via há bastante tempo
por conta do isolamento social causado pela pandemia de Covid-19.
A necessidade do encontro com sua companheira e o desejo de não
mais mentir, abriu espaço para o diálogo não planejado para o
momento e todos os desenrolares negativos sequentes. Sendo estas
as principais demandas que a fizeram buscar a psicoterapia. Já
durante o processo terapêutico, um fato ocorrido durante os
conflitos com sua mãe, que passara desapercebido da consciência
da cliente, veio à tona para compreensão.

No ápice dos momentos de brigas e discussões, a cliente utilizou o


serviço de motoristas por aplicativo para ir ao encontro de sua
namorada e sofreu assédio sexual com uma provável tentativa de
violência sexual, o que a fez pular do automóvel em movimento.
Utilizou normalmente o aplicativo depois do fato ocorrido, porém,
posteriormente e já em psicoterapia, ao tentar usar o serviço para
voltar do trabalho, pensou ter visto o mesmo motorista dentro do
carro que chegou para buscá-la. Fato que a fez pular do carro em
movimento novamente. Os sentimentos afloraram como no dia da
tentativa de violência, medo demasiado, taquicardia e uma
ansiedade que a fez fugir do automóvel mesmo que, em suas
palavras, o motorista não tentasse nada. Este e demais sintomas se
acumularam, levando ao aproximar de um estado de Estresse Pós-
Traumático.
O PROCESSO TERAPÊUTICO

Os atendimentos ocorreram na clínica-escola no formato de


psicoterapia breve, esta com a característica principal de ter um
número limitado de sessões, o que é acordado previamente com a
cliente. No total, dezenove sessões com duração mínima de
cinquenta minutos foram realizadas presencialmente, em que,
diante da pandemia de Covid-19, todos os protocolos de proteção
foram seguidos para a segurança dos clientes, dos alunos do curso
de formação e das psicoterapeutas que utilizaram os ambientes do
instituto. Pelas características e propostas da psicoterapia breve,
além do lockdown e o distanciamento social, a expectativa era de
um engajamento prejudicado por tal contexto. Porém, tal
pensamento foi rechaçado e até contrariado, já que, tal situação
pode ter contribuído para o comportamento ativo da cliente na
busca pela compreensão de si mesma. Pontualidade, inexistência de
faltas e contatos esporádicos fora do setting terapêutico, este último
quando existindo real necessidade, foram o cerne de todo o
processo.

Mesmo expressando inicialmente sua resistência na procura por


atendimento psicológico, se tornou comum o relato da ansiedade
para a próxima sessão, este, visto como um sinal de urgência, a
necessidade de uma vida autêntica, de uma história já (pré) refletida
por ela no seu cotidiano, que agora estava posta para (sua) escuta e
tomada de consciência. Acredito ser importante reafirmar a
abordagem teórico/prática do manejo clínico do estudo de caso em
questão. Este, não se caracteriza pela pureza conceitual demandante
das produções positivas, quantitativas e consequentemente
objetivas. O contrário disso, de essência negativa, foram realizadas
buscas de autores da fenomenologia e da psicologia humanista que
contribuíssem com a condução das sessões, além de filósofos
existencialistas para a compreensão específica do caso em questão.
Realizado tal esclarecimento, serão apresentados alguns conceitos
teóricos importantes para a práxis clínica.
A redução fenomenológica ou Époche, tal como atitude proposta por
Edmund Husserl de nos colocar “entre aspas”, suspender nossos
valores, julgamentos e verdades à priori, foi fundamental para a
preparação e manutenção da escuta necessária ao real contato com
o sentido atribuído pela pessoa a sua realidade, esta, tal qual ela
enxerga (EDWALD, 2008). Além desse exercício ser necessário,
também, para a não objetificação da cliente e consequentemente
colocá-la como passiva em seu próprio processo, ao contrário, é ativa
em sua compreensão, na ressignificação das relações e na
transformação de suas prospecções da realidade.

A cliente, vista como singular e dona de sua existência (HOLANDA,


2009), demanda do psicoterapeuta uma relação transformadora
entre seres, e que possa abrir as portas para sua autenticidade e
autonomia. O filósofo Martin Buber, nomina essa relação pela palavra
princípio Eu-Tu, que consiste na vivência de um relacionamento
pleno que possa permitir o impactar-se pela presença do outro no
encontro, seja este outro uma obra de arte, um Ser ou ente qualquer
(LUCZINSKI; ANCONA-LOPEZ, 2010). Para isso, foram utilizadas
propostas da práxis terapêuticas da ACP - Abordagem Centrada na
Pessoa de Carl Rogers (1902-1987), que, apesar de suas limitações e
contradições, o que não será abordado no estudo em questão, se
aproxima dos pensamentos do filósofo da relação e do método
fenomenológico.

A ideia do terapeuta “centrado na pessoa” é de compreender o sujeito falante, a


sua fala e o que se passa no aqui e agora da relação. A perspectiva da terapia
rogeriana se encontra com as premissas fenomenológicas no sentido de que o real
aí está, o fenômeno está aí-presente, oferecido à observação, bastando se estar
atento para apreendê-lo sob o prisma do sujeito que vive o fenômeno (HOLANDA,
2009, p.45).

De volta ao filósofo da relação, Martin Buber também traz que toda


relação humana com o mundo tende a recair na palavra princípio
Eu-Isso, esta que se caracteriza por uma experiência de maneira
mais objetiva, um distanciamento reflexivo para a elaboração de
significados. Diferente da relação Eu-tu, que é vivência, o Eu-isso
consiste na experiência.
Não é caracterizada pelo filósofo como uma palavra princípio de
menor importância ou negativa, ao contrário, é também necessária e
fundamental para apreensão do mundo (LUCZINSKI; ANCONA-
LOPEZ, 2010). Por demandas percebidas nos instantes do setting, tal
palavra princípio foi identificada na utilização de intervenções mais
diretivas, como na psicoeducação e nos métodos de enfrentamento
ao medo em utilizar os serviços de motoristas por aplicativos.

A “técnica” da Cadeira Vazia foi utilizada em uma situação específica


no setting terapêutico pela necessidade, externalizada pela cliente,
do diálogo com sua mãe como uma forma de resolução do conflito
já descrito. Apesar de existir até os dias atuais um debate sobre
quem realmente idealizou tal método, Jacob Levy Moreno (1889-
1974), criador do Psicodrama ou Fritz Pearls (1893-1970) da Gestalt-
terapia, a angústia descrita como impeditiva desse diálogo trouxe a
demanda pela técnica. Esta é caracterizada pelo convite à expressão,
do não-dito para o dito, à uma cadeira vazia, imaginando sentado
nela um personagem de sua história de vida (PERAZZO, 2020).

As conduções se caracterizaram, de forma geral, dentro do tempo


estipulado para cada sessão e seguindo o que foi descrito como
“método” de condução utilizado no processo terapêutico. O início da
sessão era mais voltado para o acolhimento das demandas da
cliente, de reflexões, às vezes presentes e outras não, sobre as
sessões anteriores e/ou, também, novas visões e interpretações de si
mesma (figura-fundo) decorrentes do processo. Novas reflexões e
tomadas de consciência esporadicamente surgiam no setting, às
vezes deixando interrogações, outras compreensões da angústia e
algumas o empoderamento. Ao final, com o término do
atendimento, o feedback deixava isso mais claro. Porém, a percepção
era de um processo com “altos e baixos”, tristezas e alegrias, de dores
e (re)descobertas, na caminhada para a autenticidade.
ANÁLISE FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL

Com o objetivo de melhor organizar a análise de cunho


fenomenológico-existencial e a compreensão da cliente, respeitando
o processo em que a jovem se revelou na psicoterapia, foi realizada a
separação das duas demandas que motivaram tal estudo e que
foram as mais frequentes no setting terapêutico. Certo que, as duas
acabam por se entrelaçar em um certo momento, tanto por
questões referentes à própria caminhada singular da cliente, quanto
com a necessidade de finalização do caso. A primeira, “principal”, foi a
motivação central da cliente para a busca da psicoterapia e se
caracterizou por demandas referentes ao processo de assumir-se
como uma mulher lésbica para sua mãe. A segunda, emergiu já no
processo, tem como característica o assédio sofrido e os sintomas de
estresse decorrente deste.

SE ASSUMIR

No papel de filha em relação constante e simbiótica com a mãe, há


muito tempo imaginava como seria o dia de revelar seu segredo.
Não planejava um diálogo em si, mas um afastamento abrupto
causado por sua independência financeira e consequente saída de
casa, o que em tese funcionaria como o corte necessário do cordão
umbilical. Em uma conversa cotidiana e amistosa com ela, se sentiu
à vontade para dizer o que escondeu por toda sua vida e acabou por
ouvir o que nunca imaginou de uma pessoa que tanto ama. Apesar
de não ter cultivado boas expectativas com a reação dela,
surpreendeu-se negativamente. Chegou ao ponto de não a
reconhecer: “Nunca imaginei que ela poderia agir assim com
alguém” (sic).

No momento em que se abriu e necessitou de acolhimento e amor,


em suas palavras, recebeu ofensas e raiva. Se perguntava em como,
tão rapidamente, deixou de ser a filha tão amada pela mãe por
apenas se apaixonar por uma mulher. Por, finalmente, não precisar
mentir mais sobre quem ela é, o sentimento de liberdade surgiu,
porém, acompanhada pela culpa, pois a relação que diz ter se
esforçado tanto para ser harmoniosa, não estava mais da mesma
maneira.
Antes de externar, se via bem com sua namorada, com planos e
sonhos, e, ao mesmo tempo, também disse sempre ter feito o
máximo como filha pensando neste momento (assumir-se) e hoje se
vê “destruída por dentro” (sic). Sempre viu e sentiu em sua mãe a
base concreta para seu enfrentamento às questões existenciais do
ser-no-mundo, ao ponto de olhar-se no espelho e não ver a si
mesma, mas sua genitora – conforme falou.

O “esforço” de ser a filha que ela tanto queria, junto com o fato de
olhar-se no espelho e não se ver, traduz as tentativas de se
enquadrar, moldar-se diferente de quem é, e com isso a
consequente cristalização das possibilidades de sua existência, sendo
outra pessoa além de si mesma. Em suma, um modo de ser
inautêntico. De acordo com Kierkegaard, o Eu se constitui no
sentimento de Desespero (vontade de sermos nós próprios e não
sermos nós próprios), este que é emaranhado aos paradoxos do
existir, já que para o autor somos ao mesmo tempo: Finito x Infinito;
Temporal x Eterno e Possibilidade x Necessidade. A cristalização da
“Vontade de ser si próprio” e de “Não ser si Próprio”, este último
correspondente ao percebido como tendência na cliente, além da
também cristalização dos fatores constituintes dos paradoxos,
acabam por cercear as possibilidades de escolha, literalmente grades
construídas por nós (FEIJOO, 2011).

No caso em questão, a demasia de Finito pela carência de Infinito,


caracteriza o ser que contempla as multidões e perde o seu Eu. Do
temporal, como mais uma parte integrante do mundo material, este,
que logo se aniquila e não desejar o eu que é. E também pelo
Necessário em demasia, em suma, perder-se neste ponto do
paradoxo é não haver lugar para arriscar as possibilidades. A falta da
dialética entre a necessidade, que retém os possíveis, e a
possibilidade, que dá fluidez as necessidades, tem como produto a
cristalização desse ser (FEIJOO, 2011), ontologicamente é um
constante vir-a-ser. Colocar-se como ação para cliente, trouxe o
sentimento de liberdade, como uma vontade, que sempre existiu, de
fluir ao querer ser si própria, mas ligado a isso, a culpa desta escolha.
Para Medard Boss (1975), a culpa não pode ser diferenciada
facilmente do medo de ser castigado depois de cometer uma
transgressão e ultrapassar uma proibição. No caso, o castigo esteve
relacionado ao estar fora do não ser si próprio, escolher além das
opressões externas do que deveria ser e consequentemente fazer
sofrer pelo não cumprimento dos “mandamentos”, que outrora
foram seguidos à risca pela jovem. Ainda de acordo com o autor, a
culpa também se caracteriza por ser aquilo que carece, que falta, por
um dever ou estar em débito. “A criança ‘deve’ respeito e obediência
ao pai. Mais tarde o jovem ‘deve’ ao professor o cumprimento das
lições. O adulto ‘deve’ ao estado moderno a ajuda para o aumento do
potencial econômico dos meios de produção” (BOSS, 1975, p.31). A
jovem adulta devia à sua genitora, já que o colo correspondia a um
preço, a inautenticidade. Pensava não lidar com as consequências
das escolhas de sua existência, já que todas dependiam de
aprovações, assim não eram dela. O que causava a sensação de
concretude, o “suporte” para estar fazendo o “correto”, ou melhor,
não sendo si mesma. O que fica claro nos fatos de sua história
narrados ao longo de todo estudo.

As tentativas sequentes de diálogo entre as duas se transformaram


em discussões, o que, pela primeira vez, teve como consequência a
intervenção do seu irmão mais novo. Este se posicionando ao lado de
sua mãe, contra o mal-estar que todas as brigas estavam causando a
ela. Se viu sozinha, questionando quem é, e sobre os afetos
românticos que cultivou em toda sua vida, ao ponto de nominar
como um defeito o fato de ser lésbica, “antes estava tudo bem” (sic).
E até então, esforçar-se tanto para o momento de se assumir não foi
o bastante em sua concepção e, posterior a isso, não se via também
suficiente para estar em uma relação amorosa, fato que a fez
terminar o namoro que funcionou como um start de seu processo de
liberdade. Uma metáfora foi usada por ela para explicar tudo o que
sentia nesse momento: “É como se eu estivesse dentro de uma caixa
de vidro criada por minha mãe, e, quando eu tentei quebrar e
consegui, ela pegou os cacos e começou a me ferir” (sic).
Com as feridas abertas e passado certo tempo, a cliente expôs estar
em um momento de trégua, “paz”, ou melhor, uma tranquilidade
mascarada, pois sente que estão se relacionando como se nada
tivesse acontecido. Em tal “paz”, enxergou a necessidade de buscar
compreender tudo o que aconteceu de maneira tão rápida e intensa.

Passou a refletir sobre o processo de “quebra da caixa” e também


perceber em sua história o processo que a fez entrar nela. Em que,
na sua infância, já fazia frente as constantes tentativas de controle da
sua mãe, não sendo inédita a luta para se colocar como uma pessoa
autônoma e com suas próprias escolhas pessoais, profissionais e
vontades amorosas: “Ela queria o balé e eu o futebol, ela queria a
sapatilha e eu a chuteira” (sic). Apesar de tais tentativas, em sua
infância percebia o orgulho de sua mãe com suas conquistas,
principalmente quando ganhou uma bolsa atleta de estudos em
uma escola particular pelo seu desempenho no futebol, a prática que
era reforçada por seu pai. Disserta sobre a relação com ele com bons
olhos, apesar de a separação ter ocorrido de forma litigiosa por conta
de uma relação extraconjugal.

Quando pequena, via acolhimento e colo sempre presente do seu


pai, sendo defendida por ele em brigas com seus irmãos, não
importasse a motivação. O que se caracteriza como o contrário do
controle realizado por sua mãe. A separação foi um evento muito
marcante para ela, o colo presente e constante não estava mais em
casa, além de não compactuar com a visão de uma menininha,
“estilo boneca” (sic), que sua mãe pensava para ela. Revela que a
possibilidade de estar com ele hoje é limitada pela distância, mas
seria seu desejo naquele momento, já que o acolhimento esteve
mais uma vez presente quando conversou com ele sobre sua
sexualidade. Tem medo de a “tranquilidade mascarada” (sic) ser
como uma volta aos trilhos dos desejos de sua mãe. Porém, tomar
consciência de sempre ter tentado fugir da caixa a faz ter certeza de
não querer mais voltar.

Com tal trégua, um fato outrora esquecido surgiu em uma tentativa


de voltar para casa depois do trabalho utilizando os serviços de
motorista por aplicativo.
Revela que tinha sofrido assédio sexual de um motorista e por temer
uma escalada na violência, sua resposta ao ocorrido foi pular do carro
em movimento. Insônia recorrente com presença de pesadelos com
o fato, ansiedade em utilizar novamente o serviço e as
consequências negativas em tarefas do seu dia-a-dia, além de medo
constante, foram algumas das queixas posteriores que se tornaram
esporádicas e que serão analisadas em um tópico separado.

Expõe que recebeu um certo acolhimento de sua mãe


especificamente sobre isso e até ficou feliz por perceber uma
mudança de opinião dela sobre a psicoterapia, já que antes ela
apresentava pré-conceitos sobre, e agora indicou para sua filha
procurar ajuda. Apesar do acolhimento, o sentimento de solidão
persiste por ter que lidar sozinha com tudo o que vem acontecendo
ao mesmo tempo. O processo de assumir-se, fim do namoro e agora
o medo de utilizar um serviço necessário para o desenrolar de suas
atividades cotidianas. Diz se sentir fragilizada e ouvir dos outros as
respostas de como resolver os seus problemas, como se todos
soubesse lidar melhor com as situações, com conteúdo às vezes
semelhantes aos dela, e ela não conseguisse. “Minha base, que era
minha mãe, não está tão sólida. Sinto que estou na piscina e ela me
vendo na borda” (sic).

O sentimento de angústia, frequentemente dito, e mais


recentemente a solidão, estes, em lidar por si só com as
circunstâncias (desamparo), se aproximam das reflexões
existencialistas. Para o dinamarquês Kierkegaard, principal autor do
existencialismo cristão, a partir do momento em que o homem
entrou em contato com a possibilidade de comer ou não o fruto
proibido, inquietou-se. A proibição provocou o vislumbre de seus
possíveis, o poder escolher, ou melhor, escolher-se frente as
multidões. Assim, a Angústia se inicia na indeterminação e
consequente liberdade frente ao Devir (FEIJOO, 2011). Já para Jean-
Paul Sartre, representante francês de uma linha ateia, sem um
caminho traçado, um destino ao qual devemos meramente seguir,
somos jogados no mundo com infinitas possibilidades de escolha,
isto, a cada instante e frente as inúmeras situações da vida, somos
condenados a Ser livres, o que caracteriza a angústia e o desamparo
de termos que nos escolher (SARTRE, 2013).
“Agora preciso aprender a nadar” (sic), metáfora utilizada pela jovem
sobre a situação atual, de “(re)aprender” a ser livre, agora sem a
“Deusa” que era sua mãe. Também aprender a escolher e em como
lidar com as consequências de suas escolhas, fato “teoricamente”
novo para a jovem.

Para o Sartre, que parte da intencionalidade tal qual pensada na


fenomenologia husserliana, a consciência é: consciência de alguma
coisa. Esta, que existe somente em relação com o mundo e na
medida em que se realiza. Assim, ela não é em-si de forma
autônoma e concreta como os objetos (cadeira, lápis, etc.). Com isso,
a consciência se caracteriza como um ser para-si, não sendo uma
estrutura fechada que simplesmente é, ao contrário, é constante
movimento e pura relação. Lançado no mundo e sempre intencional,
o ser-para-si procura a si mesmo e também a completude do ser-
em-si. Como o para-si é relação intencional à algo, a consciência se
caracteriza como o nada, como possibilidade de vir-a-ser.
Impossibilitado de ser em-si é constantemente inacabado, sempre é
falta e busca (SARTRE apud JUNIOR; ARDANS-BONIFACINO; ROSO,
2016).

Como não nos relacionamos apenas com os objetos, mas com outros
seres, a trindade satreana se completa na relação do ser-para-outro,
que se manifesta no olhar desse outro. Da mesma forma como a
subjetividade transcende de nós para o outro, o contrário também
ocorre. “Da mesma maneira que posso olhar o outro e defini-lo
através de minha subjetividade, sei que o outro pode olhar-me e
definir-me através de sua subjetividade” (SARTRE, 2014). O outro nos
vê como um objeto, um em-si, e com isso nos reduz, repele e
também, ao mesmo tempo, atrai. A atratividade de ser um objeto
para o outro, está no fato de atribuir ao para-si o que tanto deseja,
sua estabilidade. Viver como um objeto para o outro é
consequentemente atribuir para o mesmo o papel de sujeito. O
para-si, apesar de buscar a concretude do em-si, paradoxalmente
não quer deixar sua fluidez e liberdade, isto é a tentativa de um
projeto nomeado em-si-para-si. A consciência atrás dessa síntese
perfeita, em-si-para-si, falha, principalmente pela objetificação,
cristalização do ser por uma atribuição de outra liberdade, fora de si
mesmo (JUNIOR; ARDANS-BONIFACINO; ROSO, 2016).
Tudo isso caracteriza a relação com nós mesmos e com o outro, que
é essencial para a existência, mas nunca completa em si,
funcionando como o Desespero (desejo de não ser si mesmo e ser si
mesmo) para Kierkegaard.

Percebe-se na jovem as tentativas, em alguns momentos, de


aparecer frente o reflexo de sua genitora, o que a fazia pensar que
somente seria sujeito com o corte do cordão umbilical, pela
distância. No processo de tomada de consciência sobre a construção
da “caixa de vidro”, de seu estar sendo inautêntico, caminhou pela
falta do colo em sua infância, resultante da saída de seu pai de casa,
e a busca pelo mesmo que teve como produto a jovem cedendo às
opressões externas, se colocando como um objeto, “estilo
bonequinha” (sic). Se esforçou espontaneamente para a manutenção
dessa segurança e proteção do em-si, para que talvez, ao mesmo
tempo, a visão de sua mãe, o sujeito de sua história naquele
momento, pudesse caminhar com o seu para-si, para aceitação de
seus vislumbres de liberdade e escolhas (futebol, curso superior, etc),
e também, principalmente, para o ser que é, uma mulher
homossexual, isso distante dos desejos do “sujeito” sua genitora. Tal
desejo, a tal síntese perfeita, acabou por não se concretizar.

A Má-fé sartreana foi percebida no colocar-se como objeto, não só na


relação específica com sua mãe, mas também referente ao ver nas
multidões, nos outros, as soluções de seus problemas, “o lidar melhor
do que ela mesma” (sic). Consequentemente não se responsabilizava
por suas ações. Já que a existência precede a essência, ao se assumir,
colocou-se como ação, o que é fundamental e intrínseco à liberdade,
para exercê-la, em função da construção de seu projeto existencial. A
má-fé de cunho existencialista só existe ligada a própria liberdade e
consiste no fato de voluntariamente negar a possibilidade de ser
algo diferente, funcionando como um escape a angústia de ter que
se escolher, negar a ação e consequentemente a liberdade. (JUNIOR;
ARDANS-BONIFACINO; ROSO, 2016). Fatos posteriores aos narrados
até então reforçam tal visão e as práticas recorrentes da jovem,
reafirmando que a partir do momento que se angustiou, saiu da
caixa e vislumbrou os possíveis, viu em si o caminho ao qual quer
trilhar, enfrentando o lugar em que “se/foi” “enfiou/enfiada”.
A jovem se via caminhando devagar para longe da caixa, explorando
as possibilidades e enfrentando os medos, se pegando pensando
constantemente em como lidar com as situações por si só, e
também, em como se colocar no contato com os outros de uma
maneira que não seja os colocando como sujeitos.

Em outro momento, revelou ter ficado magoada com os


comentários do irmão mais velho sobre os participantes LGBTQIA+
do reality show Big Brother Brasil. Não contou para ele ser lésbica,
por enxergá-lo como uma pessoa extremamente preconceituosa e
por não sentir uma real necessidade de tal ação, não existe uma
relação próxima entre eles. Porém, vê os comentários como um
ataque direto a quem ela é. Revela nunca ter se posicionado como
ativista na defesa das pessoas LGBTQIA+, mas, se sente mais uma vez
sozinha, por não ser defendida por sua mãe e seu irmão, as pessoas
dentro de casa que sabem. “Sinto como se estivesse fechando meus
olhos para tudo que aconteceu” (sic). Tranquilidade e paz por fora,
raiva e mágoa por dentro. Enxerga uma conversa com sua mãe
como a única maneira de resolver a pressão que existe dentro de si,
mas não se vê preparada para isso. Tudo que sempre a machucou,
agora machuca mais, o que não caracteriza em si uma mudança no
contexto, do seu campo dos possíveis, mas sim de si mesma. Se vê
cada vez mais na frente do espelho e se escolhendo neste campo e
ao mesmo tempo, paradoxalmente, desejando aquela proteção
presente no colo.

Foi realizada a dinâmica da cadeira vazia com o intuito de trazer o


que ela gostaria de dizer para sua mãe. Intensamente emocionada,
não conseguiu olhar diretamente para a cadeira, com a voz trêmula
e baixa disse: “Fiquei muito magoada com tudo que você me fez, eu
não fiz nada de errado, nada que possa ter te magoado, como você
disse que eu magoei. Não tenho culpa nenhuma, não escolhi ser
assim. Só quero que me aceite” (sic). O significado de tal dinâmica
está além de trazer para o dito o que estava no não dito, mas
também de externalizar os afetos e significados atribuídos, e agora
refletidos, pela jovem sobre tudo isso. Agora, não para fechar os olhos
para os sentimentos da mãe ou os de si mesma. Mas, de aceitar, não
no contraditório de ser pega no colo como objeto, mas de ser aceita
e também aceitar o ser livre que ela é.
No dia de seu aniversário, revela ter ficado incomodada e mal com a
mensagem que recebeu de sua mãe. O conteúdo, de acordo com a
jovem, era focado em como ela fazia parte de sua mãe. “Parte dela,
seu orgulho, sua vida, seu amor” (sic). A utilização de termos
possessivos exemplifica a própria visão da mãe sobre a relação e
condiz com a metáfora reelaborada anteriormente sobre a caixa de
vidro, mas agora visto pela jovem de uma maneira diferente, passou
a ver que as duas estavam dentro da caixa, juntas e misturadas. “Não
me sinto tudo isso que ela disse, ela é minha mãe e eu sua filha. Só
quero viver minha vida” (sic).

Apesar de complexa e trazer alguns debates polêmicos, que não


serão trabalhados aqui, a famosa frase de Sartre: “O importante não é
aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os
outros fizeram de nós” (SATRE, 1987), traz sentido aos sentimentos e
sobre o desejo de ação da jovem em colocar-se frente aquilo que o
contexto pensa sobre ela, sobre o que tentam fazer também frente
ao que já fizeram, estes, enquanto forças externas de controle.

Se reconheceu atacada na fala de seu irmão mais velho e na


ausência de ação dos demais familiares, principalmente por sua mãe,
que nesse momento, não mais era, em demasia, a substância
primordial da “essência” de si mesma. Para o autor francês, O Campo
dos Possíveis é o contexto já construído por gerações anteriores a
nós mesmos, é o encadeamento de subjetividades passadas,
produto histórico e cultural, que é subjetivado pelas novas gerações,
e, no qual, a liberdade se faz presente. A liberdade está assim ligada a
uma situação (JUNIOR; ARDANS-BONIFACINO; ROSO, 2016). Esta
situação, que foi se revelando aos poucos pela caminhada para longe
da caixa, com a distância, distinguiu o que era dela e o que não era.

Percebeu em alguns momentos se cobrar para continuar sendo o


que sua mãe precisa dela, ou pelo menos o que ela mesma acha que
sua mãe precisa. Ao mesmo tempo vê um distanciamento dela, que
ocorrera depois de se assumir, e é caracterizado pelo espaço que ela
queria para lidar com as suas situações, uma maior liberdade de ir e
vir sem questionamentos e cobranças por satisfação de: Onde está?
Com quem? E quando vai/volta?
Porém, também existe tal distanciamento sobre a questão do
processo jurídico envolvendo o assédio. Em um primeiro momento, o
acolhimento de sua mãe ocorreu, mas agora, ao ser ela a entrar em
contato com o advogado, é a jovem que lida com as “consequências”
de suas “escolhas”. O que torna explícito, condensa e clareia a
angústia de todo processo, o trajeto percorrido da casa, onde morava
com sua mãe, até o de sua namorada na época, ela, que “motivou”
sua libertação e a aproximou de si mesma. Do colo à autenticidade.
Nesse caminho, a culpa por escolher fora do outro e as “recaídas” que
reafirmam o sentimento de solidão: “Sempre tinha uma asa para
qual eu corria (...) Não ter esse colo dói” (sic).

Ficou em dúvida sobre a real intenção de sua mãe ao dar esse


espaço, pensa em duas possibilidades: 1) Aceitar ela como é 2)
Apenas para mantê-la por perto. Se questiona sobre uma mudança
tão rápida e repentina no comportamento dela depois de tudo que
sofreu. E tais questionamentos internos deixam-na sem paciência
com as tentativas dela de comunicação, respondendo rispidamente
a qualquer questionamento. Sente como se ela estivesse “forçando
barra” (sic), e, ao se perceber nesse movimento, diz não querer
machucar a mãe. Dentro de si existe uma vontade muito grande de
trazer para o diálogo tudo o que sente e ao mesmo tempo teme ir ao
encontro de sua mãe e estar voltando para debaixo da asa, voltando
para esse colo e consequentemente se prendendo novamente no
que ela quer. Questionada sobre como sua mãe poderia agir
diferente, talvez de acordo com o que a jovem espera dela, diz que
sua mãe agir dessa forma era exatamente o que ela queria.

O que é paradoxal, o que ela quer e não querer, estar livre e ao


mesmo tempo no colo. Porém, como já explicitado nas obras
existencialistas, principalmente as de Sartre, a liberdade está para a
angústia como também está para a ação. Diferente da expectativa
da jovem de ser acolhida, de receber ação de outrem, de um sujeito,
ou melhor, de voltar para debaixo da asa. Alçar voo, é entrar em
contato com o vento que machuca, mas também é a condição
necessária para sair do chão. Longe de a angústia ser o impeditivo da
ação, da mudança, é na verdade seu motor principal. “É na angústia
que o homem toma consciência de sua liberdade” (SARTRE, 2014).
Com esse espaço, agora pode ser e escolher o que realmente quer
sem se sentir culpada, apesar de ainda se ver mentindo sobre os
encontros escondidos que têm com sua ex-namorada, tal culpa não
mais impede de ir e não mais corrói ao se fazer, como acontecia
antes, talvez, o comportamento de afastamento de sua mãe tenha
reforçado isso.

Uma atitude da jovem fez com que ela se sentisse de fato livre,
contextualizou dizendo que frequentemente saía para comprar
roupas com sua mãe e a mesma opinava sobre o que ela deveria
vestir, consequentemente adquiria peças que não condiziam com
seu gosto pessoal. Revela que não costumava arrumar tanto o quarto
e ao fazer isso, no seu guarda-roupas, selecionou todas aquelas
roupas que não gostava, mas acabou comprando e decidiu doá-las,
algumas delas, nas suas palavras, sequer foram utilizadas. Revela
indiferença no comportamento de sua mãe com sua escolha, porém,
mesmo afirmando ser “besta” tal atitude, no sentido de talvez ser
pequena para a visão dos outros, as roupas era um resquício, um
símbolo dos atravessamentos, e para ela foi mais um cântico,
temeroso, porém frequente de liberdade, autonomia e
autenticidade.

Expõe que, com o fim do antigo relacionamento, se sentiu aberta


para novas possibilidades românticas, o que aconteceu mesmo
dizendo ainda estar bastante magoada. Revela ter passado o dia dos
namorados com outra pessoa, e, ter encontrando alguém que a trata
como realmente gostaria de ser tratada, sentindo-se bem com a
atual relação. No mesmo dia completou-se um ano que a jovem se
assumiu para a mãe como uma mulher lésbica e, se estava feliz com
a atual relação, também entrou em com contato com algo que não
queria. Viu no celular de sua mãe uma conversa dela com seu irmão,
a forma de como a conversa ocorreu a deixou muito magoada. Em
suas palavras, o conteúdo demonstrava uma especulação dos dois,
sobre onde a jovem dizia ter indo e o que estava fazendo em
discordância com a realidade, ou seja, teorizavam sobre possíveis
mentiras da jovem. O que de fato estava acontecendo. Percebeu-se
mais uma vez sozinha, argumentando que os dois estão se unindo e
ela ficando de lado, talvez, perdendo aquele lugar garantido na asa
da mãe.
Foi observado algo como uma regressão. A paciente ficou quase que
em posição fetal, com choro intenso equiparado ao de uma criança
pedindo colo dos pais e a fala pausada por soluços que externalizava
o desejo de voltar a como tudo era antes de se assumir, em que, o
acolhimento necessário foi realizado. Na sessão posterior a regressão,
a jovem relata ter sentindo um grande alívio, como se tivesse
esvaziado tudo o que estava sentindo naquele momento, agora mais
leve e sem um peso em seus ombros, foi observado uma postura
completamente diferente ao da sessão anterior, corpo ereto, ombros
abertos e uma fala confiante. Diz que preferiu não expor para sua
mãe e irmão o que sentiu com o ocorrido, pois já estava se
relacionando melhor com o fato.

Durante o processo, foi percebido uma montanha russa de emoções,


frequentemente com a presença de “altos”, este se caracterizando
por percepções da cliente de boa qualidade em sua relação consigo
mesma, com os outros de forma geral e com seus envolvimentos
românticos, e, também de “baixos”, sendo este o completo oposto.
Em uma semana tudo estava “às mil maravilhas”, euforia, felicidade e
alívio eram sentimentos comuns, como também comuns, os
sentimentos já descritos de medo, insuficiência e o desejo de
reafirmação de si pelo colo. Como um cabo de guerra, que aos
poucos estava se tornando mais leve e com uma tendência maior
para si mesma.

A jovem manteve em sua rotina semanal a prática do esporte que


tanto gosta. E, com frequência se via cobrada pela mãe a voltar para
casa antes do horário de término dos jogos, inclusive com
argumentos de uma possibilidade de sofrer violência na rua. “Toda
vez que vou para o futebol ela fica falando que sou pequena e que
não é hora de ficar andando na rua, acho que sempre acreditei nisso”
(sic), isso resultava em sentimentos de raiva, culpa, angústia e medo,
pois voltava para casa mesmo não querendo voltar. Hoje, com a
consciência de todo o processo, a raiva se transformou em irritação, a
culpa não toma conta de si e a resposta para tais argumentos é ficar
onde desejar estar.
O ASSÉDIO

Como as temáticas foram separadas apenas com intenção de


organizar a compreensão de tal estudo, deixo claro que, no processo,
tudo ocorria ao mesmo tempo, como os próprios paradoxos do
existir que também estão inerentes à psicoterapia. Às vezes eram
trabalhados na mesma sessão, a relação com a mãe, se assumir e o
assédio que sofreu de um motorista por aplicativo. Na minha
percepção, tal ponto em específico aparecia às vezes desprendido de
uma sequência narrativa, o que me dava a sensação de uma
tentativa de fuga por parte da jovem sobre o que ela realmente não
queria tratar, ou, não conseguia lidar no momento. O que deixava o
texto corrido, sem a separação por tópicos, como uma quimera, uma
colcha de retalhos.

Como tal temática já apareceu com um certo tempo de caminhada


na terapia, a dúvida que surgiu foi: O que motivou tais sintomas a
emergirem naquele momento, especificamente naquele dia? Já que,
depois do assédio, um considerável tempo tinha se passado sem que
nenhum dos sintomas descritos tivessem surgido até então. Muito
do analisado na sessão sobre o assumir-se também é observado
aqui, já que os processos se atravessavam. Questões sobre a
angústia, liberdade, má-fé em se colocar como coadjuvante da
própria história, e, também, sobre agora olhar o mundo com novos
olhos, autênticos. Além da percepção da jovem dos mesmos “altos” e
“baixos”.

Como já narrado anteriormente, ao voltar para casa depois de um dia


de trabalho, a jovem pensou ter visto o mesmo motorista que a
assediou no carro que pediu pelo aplicativo. Todos os sentimentos
daquele dia vieram à tona e também o instinto de proteção, pois
novamente teve a mesma reação ao se sentir ameaçada, pulou do
veículo em movimento. Tais sentimentos se tornaram recorrentes e
trouxeram prejuízos aos mais diversos afazeres do cotidiano da
jovem. O que se somou à angústia que já sentia decorrente de outras
esferas de sua vida. A fragilidade era mais comum aqui, em que as
percepções de si mesma eram mais negativas quando se
relacionadas a tal temática: “Não quero ficar assim” (sic).
Foram trabalhados no setting, no tempo da cliente e sem forçar,
alguns métodos de contato e enfrentamento a esse medo. Em que,
algumas estratégias foram encontradas em conjunto para isso,
compartilhamento de viagens com pessoas de confiança, utilização
do questionamento socrático para a percepção de fatores da
realidade, que no momento, não condiziam com os pensamentos,
exemplo: carro, cor e placa, diferentes do automóvel do agressor,
além das diferenças físicas do próprio motorista. E, também
trabalhadas técnicas de respiração e relaxamento que pudessem
ajudar durante o deslocamento.

Esporadicamente a jovem realizava algumas tentativas de


enfrentamento, às vezes conseguindo utilizar os serviços dos
motoristas de aplicativo e outras vezes não. A última situação a fez se
sentir regredindo, no sentido de caminhar para trás com o processo
de “tratamento”. Revela que isso a fez ir atrás de sua ex-namorada
para desabafar sobre o que sentia, já que ela também tinha sofrido
uma tentativa de violência nos serviços do aplicativo. Foi repreendida
pela ex. Nas palavras dela, “Não podia ficar com esse medo para
sempre” (sic), o que, naquele momento, confirmou para si mesma
não saber lidar bem com seus problemas, como as outras pessoas. O
que foi vivido no mesmo momento em que via as respostas para si,
nos conselhos que recebia sobre o tópico anterior. Lembrou que
também tinha medo de cachorros, por ter passado por uma situação
traumática, e sua ex-namorada ajudou nisso, “deixava de ir na casa
das amigas que tinham cachorros ou pedia para prendê-los. O que
era chato” (sic). Enxerga hoje o processo que passou para voltar a
conviver com os cachorros como uma realização, vencer uma
dificuldade, “não sou fraca como eu imaginava” (sic).

Um processo foi aberto contra o motorista de aplicativo. O contato


mais próximo com a história, ter de ir na delegacia e lidar com todo
processo jurídico, trouxe a sensação de perigo constante e próximo,
fez o medo, que em alguns momentos era deixado de lado,
continuar vivo dentro de si. Deixou de ir treinar na academia e
também de encontrar as amigas nos jogos de futebol, algumas vezes
pela necessidade de ir pelo aplicativo.
Se diz cega pela ansiedade só de pensar em chamar o motorista, o
medo que lhe acomete a faz esquecer das alternativas que podem
solucionar os problemas de deslocamento no momento. Revela que
a culpa aparece como um sentimento pós-situação, depois de não
“conseguir” enfrentar seu medo. O que se tornou uma interrogação
no processo de compreensão da história, no sentido da culpa para
Medard Boss (1975), o que a jovem deve?

Os sintomas que sofria referentes ao estresse pós-traumático estão


amenos de acordo com sua percepção. Se acentuando à medida que
necessita entrar em contato com o fato para colocar o seu agressor
na justiça. Não quer deixar impune tudo que ela vem sofrendo.
“Mesmo a audiência sendo online, fico com medo de não conseguir
falar e de como eu posso reagir ao ver ele. Mas ao mesmo tempo não
quero que ele saia impune. Sinto raiva de tudo que ele me causou
naquele dia. Não quero não fazer nada, mas sim buscar justiça” (sic).
Ao mesmo tempo diz ver que sua ex-namorada deu um “empurrão”
necessário para enfrentar esse medo. Já que, na última visita, ela fez
a jovem voltar para casa utilizando o aplicativo.

Expôs que percebeu o que talvez seja mais uma consequência da


tentativa de assédio que sofreu. Diz que não se incomodava tanto
com os olhares de homens que recebia ao andar na rua, porém, em
uma saída para resolver questões pessoais, se viu com medo
excessivo de que algo pudesse acontecer por como era olhada no
caminho de seus afazeres. Revela que fica constantemente alerta, de
“guarda alta” (sic), o que comprometeu no desempenhar de suas
atividades no trabalho, especificamente ao ter que lidar com homens
de idade avançada. Para ela, mesmo já tendo lidado com isso ao
decorrer da vida, é como se agora fosse algo novo, ou, visto com
novos olhos. “É tudo muito novo, como se eu estivesse aprendendo a
lidar com isso” (sic). As temáticas estavam inerentemente juntas,
entrelaçadas pela inautenticidade e também pela tentativa de se
fazer, este, um modo de ser-aí, “novo”. Novos olhos e possibilidades.

O tempo decorreu e, de acordo com as palavras da jovem, não foi


necessário o uso do transporte por aplicativo.
Não apresenta mais os sintomas de insônia e medo relacionados a
isso, porém, ao mesmo tempo, percebe-se fugindo do
enfrentamento, como se precisasse se testar para se ver “curada”.
Mais uma vez reafirma sua força e autonomia para encarar as
questões do mundo, talvez estando no estado de fortaleza que
demandava de si mesma, o contrário que sentia há um tempo atrás,
fragilidade.

Falou também sobre as consequências do assédio em seu trabalho,


diz que ficou assustada ao ver um homem de idade, que
acompanhava uma familiar, entrar no seu local de trabalho com
óculos escuros, o que a fez pensar na possibilidade de ser o irmão do
seu agressor. Revela que, o que reforçou tal pensamento no
momento foi uma carta entregue inesperadamente pela paciente. A
dúvida de ser ou não um parente do agressor, junto com ansiedade
de saber o conteúdo da carta, fez passar por sua cabeça a
possibilidade de sair do trabalho. Ao ler o conteúdo da carta, se
surpreendeu positivamente. “Era a senhora agradecendo pelo
serviço dos profissionais do trabalho. Eu precisava de uma
mensagem daquela” (sic). Revela que no mesmo dia, um sonho a fez
refletir mais sobre a carta da senhora e também sobre outras
circunstâncias parecidas que já foram trabalhadas em psicoterapia.
“Sonhei que só eu via o motorista, eu apontava, mostrava, falava, mas
minha mãe e irmãos não o viam. No sonho fiquei com medo, mas
depois de ler a carta me senti aliviada ao perceber que estava
criando algumas coisas na minha cabeça” (sic). Coisas estas,
argumentado por ela, que não condiziam com a realidade de fato.

Na última sessão a jovem utilizou os serviços de motoristas por


aplicativo para ir ao Instituto. Compartilhou a viagem com pessoas
de sua rede em que confia e durante o trajeto se sentiu eufórica e
com pensamentos recorrentes sobre o que poderia dar errado.
Utilizou as técnicas de respiração e o questionamento socrático para
completar o trajeto e enfrentar o medo. “Não quero me sentir assim,
frágil e fraca” (sic). Os questionamentos realizados no início do tópico
se responderam apenas no encerramento dos atendimentos. Revela
que o ocorrido tinha passado despercebido para si e estava usando o
serviço sem problema, até ouvir de sua mãe que o motorista pode
ter visto ela como uma criança, frágil e indefesa.
Esta, a visão da própria mãe, que se tornou também a da própria
jovem e estava sendo “projetada” nos homens adultos e, também,
especificamente nos motoristas de app. A culpa aqui, também vinha
do fato de ousar ser si mesma, e, sofrer o assédio foi a
“consequência”, a “punição divina”, de sua mãe, por fazer o que não
deveria. A consciência desse fato a fez hoje se enxergar, enquanto
qualidades e defeitos, no caminho que quer e não no que querem,
especificamente sobre o que a genitora sempre quis. Ao mesmo
tempo argumenta que está apenas no início, pois, na sua percepção,
somente hoje se assumiu e é dona de si. Com um novo olhar, às
vezes ambíguo, vê um caminho longo para trilhar a sua frente,
inclusive sobre o enfrentamento aos sintomas referentes ao Estresse
Pós-Traumático, o que a motiva a continuar na psicoterapia.

O EU DA RELAÇÃO, IMPLICAÇÕES

Em toda caminhada ao lado da jovem, foi impossível não sentir e


refletir sobre a história dela, a minha e as temáticas vivenciadas no
setting terapêutico. O que é ser livre? Autêntico? Por que me
comporto ou sinto o que sinto? Como construí as grades nas quais
eu mesmo me prendi? Claro que cada ser é único, um universo
particular, por isso o uso do termo caminhar, ao lado da cliente, e não
a utilização de outro que possa talvez trazer o sentido de ensiná-la a
viver da melhor maneira possível sua própria vida. De ser superior ou
ter mais sapiência que ela mesma. Assim, as respostas de como lida
com essas questões também são singulares.

Minha sensação é de que quanto mais olhamos em direção a nós


mesmos, sobre o que traz e faz sentido, o que acompanha o bem-
estar de nossa existência, de maneira proporcional, também
enxergamos os processos da vida que nos afasta desses sentidos.
Como a jovem, no processo também identifiquei alguns de meus
grilhões, agora eu também devo aprender a me libertar deles. Como
não existimos sozinhos, talvez, com tantos atravessamentos nunca
sejamos realmente livres, se o outro nos é espelho e vice versa, na
minha visão, que seja do quanto ainda possamos viver, aprender,
conviver e nos afetar.
A époche foi fundamental para essa separação, do que era meu, e o
que era da jovem, já que tais implicações são comuns à existência
humana e, às vezes, me pegava em alguns momentos também
refletindo.

“Quem é quem para dizer quem é o quê” (PEREIRA, 1998).


Compartilhamos a vida, uns com os outros, e, que a aceitação de nós
mesmos e consequentemente de que o outro não precisa, e não é,
aquilo que pensamos, que queremos, também nos liberte de
crenças que acabam por prender nossas possibilidades, nos
impedem de fluir, e que tiram nossa esperança de que o amanhã
pode ser melhor. É claro que há responsabilidade, quando eu me
escolho, consequentemente escolho o humano (SARTRE, 2013), e se
o objeto é aquilo que é, como diz Raul Seixas (1973), “Eu prefiro ser
essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião
formada sobre tudo”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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publicado em 1943)
SEIXAS, R. Metamorfose ambulante. Rio de Janeiro: Philips Records,
1973. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=CmB4sfoZkwo> Acesso em: 06/08/2021.
A “Ciranda Cirandinha” das relações de Moly:
um acolher fenomenológico-existencial

Conhecendo Moly e o processo psicoterapêutico

Moly (nome fictício) uma mulher independente, mãe e filha buscou


acompanhamento psicológico com a demanda de uma possível
hipótese de depressão. Ela é uma jovem adulta do interior, que
atualmente reside numa grande cidade brasileira, mora com sua
família: mãe, pai, irmãos e filha.

Moly foi casada (com o pai de sua filha) durante 3 anos; hoje em dia,
está divorciada. Uma de suas demandas e o ressentimento, e é fazer
a filha vivenciar situações de afastamento como a que Moly passou
com sua própria mãe. Quando Moly era bem pequena, sua mãe
biológica saiu de casa e perderam o contato uma com a outra.

Eventos provocadores de ciúme, desprezo, tristeza, raiva, abandono,


trauma psicológico e físico e indiferença permearam as fases do
desenvolvimento infantil e adolescente de Moly. Tais eventos
propiciaram e desencadearam sintomas ansiogênicos, insônia,
taquicardia, pensamentos negativos e críticos – sintomas descritos
pela própria cliente ao longo das sessões.

Foram realizados 10 encontros por via remota com o respaldo ético


discorrido no Código de Ética do Profissional da Psicologia (2005) e
na Resolução 04/2020 do Conselho Federal da Psicologia, e com o
auxílio das plataformas: doxy.me e WhatsApp. A cliente desde o
início demonstrou muita sensibilidade a sua história de vida e aos
eventos causadores de diversos tipos de traumas (psicológicos e
físicos). Também foi possível perceber resistências e afastamentos
em determinados momentos do processo psicoterapêutico.
A constância dos atendimentos foi mais um desafio. Conforme
ressalta Bowlby (2002), existe uma necessidade de constância e
qualidade nas conversas e encontros para o desenvolvimento de um
vínculo saudável e com possibilidade de transformação. Moly por
diversas vezes desmarcava ou não comparecia aos atendimentos
com regularidade.

A abordagem fenomenológica-existencial corroborou para um olhar


mais compreensivo e afetuoso das vivências de Moly. O diálogo se
constitui na escuta fenomenológica e na presencialidade do
encontro. Toda a manifestação discorrida da teoria fenomenológica-
existencial pôde ser observada e sinalizada pela cliente nos seus
discursos de vínculo. Em várias sessões ocorreram feedbacks
positivos de afeto, cuidado, escuta e compreensão. E todo esse
processo foi, como já mencionado, construído com a permissão e
liberdade na relação psicóloga-cliente.

Sabemos que a psicoterapia não é um caminhar em linhas retas e


crescentes, mas sim um processo, suscetível a obstáculos, curvas,
retrocessos e evoluções. Pode-se dizer que Moly experienciou todos
esses passos do processo: as inseguranças, os relacionamentos
tóxicos, as recaídas de insights e a força em continuar se
(re)descobrindo.

Vamos cirandar no compasso de Moly e das teorias


fenomenológicas-existenciais?

Conforme aponta Feijoo (2012), o psiquismo é considerado uma


subjetividade passível de objetivação – sujeito – e em seu interior há
traumas, rupturas e os conflitos, assim como estão os mecanismos
de superação, com o autoconhecimento que o processo
psicoterápico propicia. Além disso, o método fenomenológico-
existencial, como um auxiliador no processo da compreensão do
existir humano, nos oferece um encontro o mais autêntico possível
entre o sujeito, ele mesmo e o psicólogo.
Todo o campo existencial, como representado por Forghieri (1996),
trabalhado e desenvolvido no processo psicoterapêutico
fenomenológico-existencial, possui um foco na relevância do bem-
estar e atualização das potencialidades e habilidades do ser humano
para melhor amadurecimento e reconhecimento de sua saúde
existencial. Com Moly não foi diferente. Cada transitoriedade das
emoções, dos pensamentos e comportamentos davam sentido e
validavam o seu processo existencial. A cliente oscilava muito entre
os momentos de insights e “retrocessos” durante todo o seu
processo. Binswanger (1977) articula que uma análise existencial se
compreende na articulação do sujeito como “ser-no-mundo”. Assim,
as oscilações de Moly também devem ser compreendidas e
analisadas com base nos seus encontros diários “no-mundo”.

Um aspecto que se mostrou bem atuante nos encontros foi o modo


de se angustiar. Entendemos que sensações, emoções e
sentimentos podem ser experienciados de diversas maneiras e,
muitas vezes, concomitantes e paradoxais - por exemplo, a angústia
e o amor. Moly, desde a sua primeira sessão, transparecia ser um
ente muito agitado e ansioso para “resolver” suas demandas e
encontrar um caminhar mais tranquilo no seu cotidiano, contudo as
relações tóxicas e os campos que poderiam amenizar alguns
processos angustiantes eram entrelaçados de amor e carinho. “Ao
mesmo tempo que ele me faz mal, já me agrediu e a outras pessoas
próximas, não posso abandoná-lo. Quando eu precisei, ele não me
abandonou, foi o único. Não posso fazer isso agora com ele” (sic).

Forghieri (1996) discutiu a importância de compreendermos nossas


vivências e como devem ser observadas em sua complexidade
imediata e pré-reflexiva. Feijoo, Mattar, Feijoo, Lessa e Protássio (2013)
abordam os estudos de Kierkegaard (1844/2010) sobre o conceito de
angústia como um caráter de indeterminação da existência e como
o sujeito se confronta nas suas experiências. Dar ao sujeito a
possibilidade de escolha é por si só um processo angustiante. Nas
sessões com Moly foi possível presenciar esse angustiar nas decisões
corrompidas de arrependimentos, responsabilidades e culpabilidade,
que Kierkegaard relata serem sentimentos inerentes à angústia.
Garaventa (2011) ainda discorreu o conceito de angústia trabalhado
por Kierkeggard como uma via de acesso à consciência de si. Como
se a compreensão do sujeito de si mesmo estivesse interligada ao
caminhar da angústia. Podemos observar toda essa analítica quando
Moly se permite encontrar todas as suas angústias e se afirmar
enquanto sujeito necessário e único para si mesmo. As expressões
“só eu posso me ajudar” (SIC), “eu sou a única que consegue resolver
e me tirar desse lugar” (SIC) foram muito utilizadas na confirmação
desta consciência de si e de suas angústias.

Juntamente com o processo de angústia conceituado por


Kierkegaard (1979), podemos observar em Moly o desespero
estudado pelo mesmo autor. Nas transições entre estar consciente e
se desconectar desta consciência, identificamos formas diferentes de
desespero. Como por exemplo o desespero de não se reconhecer, o
desespero da vontade de sermos nós próprios e o desespero de não
sermos nós próprios.

O modo de ser de Moly no seu “aqui-e-agora” transitava entre todas


as formas de desespero e angústia descritas pelos autores.
Kierkegaard (1979, s/p) relatou “não é ser desesperado que é raro, o
raro, o raríssimo, é realmente não o ser. O que a maior parte não vê, é
que não ser desesperado, não ter consciência de o ser, é
precisamente uma forma de desespero”.

É de suma importância, no processo de subjetivação do sujeito, o


(re)encontro com as formas ditas do desespero de Kierkegaard
(1979). O autor destaca que uma das formas mais tenebrosas do
desespero é a inconsciente. O sujeito não se reconectar com suas
formas de angústia e desespero o deixa mais distante ainda de um
possível “alívio” do seu desesperar-se. Já que, para o autor, o
desesperar-se só é possível quando reconhecemos, compreendemos
e experienciamos os nossos desesperos continuados.

Moly é uma cliente que possui dificuldades em permanecer-com


consciência do seu desespero. A cada percepção, há um bloqueio e
uma perda da consciência do desespero atual voltando para os
desesperos aglomerados de sua existência.
Podemos perceber em Moly uma disfuncionalidade nos modos de
desespero citados por Kierkegaard (1979). O fato de Moly não ter
plena consciência de si e dos motivos e sentidos dos seus atos nos
faz pensar em um desespero de não se reconhecer. Outros episódios
que a fazem incansavelmente querer se mostrar, querer se
posicionar quanto aos seus desejos e vontades, podemos associar ao
desespero da vontade de sermos nós próprios. Já ao pensarmos nas
suas falas e angústias de querer a qualquer custo mudanças de si e
explicações dos porquês de agir de tal forma e não de outra,
podemos pensar no desespero de não sermos nós próprios. Todas
essas formas de desesperos estão distanciando Moly das suas reais
possibilidades e (re)conectividades por negligenciar os seus modos
de ser-no-mundo.

Com todos os percalços do reconhecimento de si, Moly também


enfrenta o impacto do outro (“multidão”, como menciona os autores
acima citados), que se faz muito presente e decisivo em sua vida.
Durante as sessões, foi necessário parar e fazer o trabalho de escuta
da própria Moly e não da escuta do outro. Muitas vezes, esse outro
representava os embates em que ela se colocava e não mais se
encontrava nas suas decisões. “Eu não sou assim” (SIC), “eu não sei o
que fazer, mas minha amiga conversou comigo e disse para eu fazer
isso” (SIC), “minha mãe e meu pai sempre falam que eu sou assim”
(SIC), “no meu trabalho as pessoas estão sempre esperando algo de
mim” (SIC) são algumas sentenças que podemos compreender
como distanciamento do eu e aproximação da multidão, do outro.

Com a mesma perspectiva do modo influenciador do outro nas


nossas vivências, podemos destacar o que Sartre (1970) nos relatou
sobre a existência preceder a essência. Somos lançados na
sociedade, nas nossas famílias, culturas e em diversos sistemas que
nos cercam e são nesses encontros que vamos nos reconhecendo e
nos apropriando do nosso EU. Em algumas sessões, Moly demostrou
essa falta de apropriação do EU: “Eu sou mãe, filha, ex-mulher e irmã”
(sic). Como se o ‘você é’ fosse só uma descrição dela, pausada,
buscando argumentos para incrementar o seu EU, o que nos faz
refletir sobre a falta de autenticidade de Moly e do vazio que existe
na sua existência, levando ao angustiar-se.
Quando Sartre diz que somos o que fazemos de nós, sinto e percebo
a falta deste ‘o que eu faço de mim’ em Moly. Essa frase não poderia
ser completada de outra maneira, pois Moly não consegue, ainda,
fazer algo que pudesse se libertar das máscaras sociais e se
encontrar.

Ainda tendo Sartre (2014) como referência, é possível identificarmos


alguns encontros com o “ser-em-si” (a descoberta de uma
identidade de força e coragem de Moly), “ser-para-si” (a busca da
conscientização de suas habilidades, limitações e apropriação de si) e
“ser-para-o-outro” (suas relações foram fortificadas e significativas
nas trocas e nas decisões de permanecer nas relações, até então
tóxicas). O autor nos presenteia com construções do nosso “ser-aí”,
como possibilidades. O ser-em-si é o que deve ser, é um aparente,
um objeto que se perde na temporalidade por ser aquilo que se é, e
não ser um contínuo de construção do eu. Já o ser-para-si contradiz
o ser-em-si, pois é uma busca, é a consciência sendo lançada e
descoberta na intencionalidade do ser-em-si, do que nos falta e
desejamos. Mas ainda se perde na realidade da consciência em si, já
que a consciência subjetiva do sujeito também é formada pelo ser-
para-o-outro, nossas relações, portanto, o que buscamos, a
intencionalidade da consciência e a fluidez (em-si-para-si) estão
interligadas ao nosso reconhecimento das interligações dos modos
de ser.

Em uma das sessões, Moly insistentemente procurava uma forma de


encontrar outra pessoa para resolver (ou ajudá-la a resolver) os seus
próprios problemas, como ela mesma faz com os outros, como um
mecanismo de defesa e bloqueio. Neste momento da sessão foi
pontuado que ela precisava de uma pessoa possivelmente com
características... Moly completou dizendo “amiga, prática, objetiva e
bem forte”. Então foi perguntado se ela conhece alguém com tais
características e ela disse que sim, ela mesma. Neste momento
podemos observar um caminhar e uma busca pela autenticidade,
liberdade, sentido, e até mesmo uma má-fe quando Moly projeta um
desejo de tercerizar uma “desculpa” para não entrar na angústia
existencial e saudável de um ciclo de autoconhecimento e ajuda
própria.
Moly, desde a primeira sessão, relatou repertórios parecidos com os
das pessoas com as quais se relacionava. Há cada nova sessão, um
familiar ou pessoa muito próxima era acrescida a suas histórias. E o
curioso é a percepção que ela passa a ter de como devem ser
pautadas suas relações e a forma como ela acredita ter que ser as
suas relações. Por exemplo, uma das demandas foi a relação com o
pai agressor. Eles não se comunicavam muito bem e ocorriam
inversões e confusões dos papeis de cada um. O mesmo ocorria na
relação com a madrastra e os irmãos. Outras pessoas inseridas na
repetição de modos de ser são o atual namorado e o ex-marido,
todos com demandas exaustivas de relações abusivas, de
dependência e exigência de ser a única e a mais importante.

Enquanto relação eu-tu (Buber, 2001), compreendemos Moly com


um campo de energia intenso e muito significativo, pulsante, no qual
ela experiencia vividamente o atravessamento do outro no seu
campo existencial autêntico. Quando Moly se angustia nas
lembranças do abandono materno e reacende o desespero e o
desconforto (não ressignificado) sentido no passado nas suas
relações do presente, pode-se dizer que houve uma repetição do
modo eu-tu vivenciado em sua infância e não trabalhado para que as
futuras relações eu-tu não fossem reproduzidas inteiramente do
passado vivido.

A relação eu-isso, complementar à relação eu-tu, refere-se ao modo


mais objetivo e concreto dos encontros, a possibilidade de um maior
reconhecimento e adequação da realidade observada e vivida
(Buber, 2001). Podemos perceber Moly um pouco perdida nos modos
de ser e estar nas relações.

Luczinski e Ancona-Lopes (2010) abordam que os modos eu-tu e eu-


isso devem ser alternados em suas percepções, atitudes e
desdobramento. A maneira mais saudável de compreender as trocas
relacionais seria a possibilidade de sempre favorecer as
transformações e ressignificações a cada relação vivida. É o que Moly
busca aprimorar e compreender os efeitos e danos sentidos para se
permitir transformar em um ciclo de relacionamentos mais
saudáveis e menos repetitivos de abusos psicológicos e físicos.
Outro fator que chamou a atenção nas sessões com Moly foi a
resistência e os distanciamentos provocados por ela. Toda
psicoterapia é um processo que demanda constância e entrega das
partes envolvidas. Nas sessões com Moly, as trocas de horário, o não
comparecimento ou quando desmarcava só corroboraram e
afirmaram os modos de ser dela no seu mundo vivido (Lebenswelt).

Toda forma de ser é validada e tem significados aos olhos do sujeito.


No processo psicoterapêutico de Moly é possível observar, no início,
uma disfuncionalidade no seu processo de ajustamento criativo, que
prejudicou a possibilidade existencial de um engajamento
psicoterapêutico mais eficiente tanto de Moly quanto da psicóloga, já
que o verdadeiro encontro/vínculo só se mostra no envolvimento e
afetabilidade das partes.

Ginger e Ginger (1995) apontou mecanismos de defesa manifestados


pelos indivídios (clínicos ou não) corroborando com as teorias já
engajadas de Perls e Polster. Na cliente em questão, podemos
observar alguns mecanismos utilizados, como: Profexão – tornar
minhas atitudes, comportamentos e emoções para com os outros da
forma como gostaria que eles fizessem comigo; e Deflexão – desvia o
contato direto com o “problema”, desvia a energia.

Moly reproduzia uma vontade de que os seus amigos, familiares e


namorados agissem com ela da mesma forma que ela o faz com
eles. Ela não entendia porque não poderia ser a número um para
eles já que eles sempre foram prioridade para ela (Proflexão).

A cada resistência, distânciamento, trocas de demandas,


antecipação de sessão como solicitação emergencial sem o
sentimento de emergência, a cada nova sessão, a inclusão de
pessoas e elementos nunca mencionados anteriormente (e que não
estavam fazendo ligação direta com queixas anteriores) corrobora
com um modo de ser mais deflexivo. É como se Moly estivesse
colocando barreias ou esfriando sua compreensão acerca de
conteúdos muito sensibilizadores para ela.
Por último, o que também chama atenção em Moly é o seu modo
único de se comunicar e se expressar corporalmente. Desde a
primeira sessão os gestos realizados por ela chamaram atenção.
Sempre com as mãos inquietas, Moly se comunicava por meio de
coçeiras no peito e no pescoço e mexendo muito no cabelo.

Em alguma sessões, em razão do atendimento ser remoto, Moly


ficava com o celular na mão e, consequentemente, trocava muito de
um lado para o outro e mexia mais do que o habitual. Porém, nas
sessões em que Moly apoiava o celular em algum móvel, tais
comportamentos se repetiam. Assim, podemos compreender que as
expressões corporais de Moly não estavam sendo estimuladas pelo
atendimento remoto ou por segurar o celular em uma das mãos.
Observamos que são expressões comunicativas e bem trabalhadas
de Moly e que precisavam ser conscientizadas por ela, já que ela não
se percebia com tais atitudes e gestos.

Furlan e Bocchi (2003) discorrem sobre a relevância dos gestos na


compreensão de uma fala que emana toda uma relação de sentido
com o ser-do-mundo do sujeito. Observamos no acompanhamento
de Moly que nas sessões em que ocorria maiores resistências e muita
confusão do seu ser, as comunicações corporais eram intensificadas.
Já nas sessões em que os insights e a compreensão de si estavam
mais em voga, as comunicações corporais eram mais brandas. O
modo de ser e estar no mundo impacta na maneira de se expressar e
se comunicar em uma relação.

Merleau-Ponty (2006) discorre e contribui com o olhar sobre a


fenomenologia da percepção. Nela podemos discutir a importância
da percepção como sendo um sentido que dá abertura a toda
conectividade no mundo. O nosso corpo não é só objeto aparente, é
um corpo vivido, constituido e interligado na relação “corpo-mente-
mundo”. O autor nos privilegia com sua perspectiva da contribuição
da percepção que o nosso corpo é um modo de veiculação da nossa
existencia e do nosso vivido. O indivídio, o cliente, nos conta uma
história e o corpo se faz presente e atua, se coloca em situação com
suas falas e experiencias. Nossas vivências ocorrem nas relações, na
corporeidade percebida e na abertura do lancar-se no “aí”.
Podemos perceber que o corpo é um modo expressivo de sentido e
de comunicação das demandas de Moly. Corroborando com a
compreensão de toda a circularidade e conectividade das formas de
linguagem transcrita pela cliente, que se permite ser lançada no seu
ser-no-mundo e, aos poucos, no seu tempo vivido, retomar a
autenticidade e controle de suas próprias responsabilidades e
papéis. Deste modo podemos compreender o sentido de toda a
ciranda cirandinha vivida e experienciada por Moly no decorrer de
sua existência. Os desafios, os empasses, as disfuncionalidades
dando espaço para o reconhecimento das potencialidades e
autoconsciência dos seus modos de se relacionar e de se
responsabilizar pelas atitudes, decisões e papéis exercidos por ela.

Contudo o ato de cirandar ainda pode ser percebido ao final das


sessões. Não foi possível realizar sessões de fechamento, a cliente
deixou em aberto o desejo de permanecer o acompanhamento,
dificultando o alinhamento e as devolutivas fenomenológicas-
existenciais percebidas no decorrer dos encontros. A cada
agendamento, uma intercorrência, um (des)agendamento. A cada
possibilidade ainda pode permear uma ciranda até as próximas
permissões e intencionalidades de encontros de Moly com Moly e
não só os dribles e fugas experienciados.

Implicação pessoais

Todo cliente, toda história e todo encontro nos aproximam e nos


afastam do que conhecemos de nós mesmos. O compasso da dança,
que envolve duas pessoas e duas existências, nos possibilita a magia
da transformação do OUTRO e do EU. O método fenomenológico-
existencial, escolhido para realizar a escuta do atendimento
psicológico aludido corroborou com as percepções da cliente e com
as percepções e transformações que refletiram em mim.

Atentando-nos ao que Kurt Lewin (1965) retratava com a teoria de


campo e das conexões sistêmicas que nos interligam com cada
papel exercido por nós. Pode-se perceber que a cada sessão, a cada
possibilidade do encontro, ambas (psicóloga e cliente) saíam
transformadas. A permissão da troca entre elas foi se intensificando
com as sessões e com os conteúdos e confiança preestabelecida.
Desde a primeira sessão relutei com diversos temas subjetivos para
dar conta de se afetar na relação, por exemplo, temas trazidos com
os quais a cliente se colocava e permanecia em posição de
vulnerável. A relutância em “tentar” encontrar os “porquês” de
permanecer vivendo relações tóxicas, inicialmente, estavam sendo
um empecilho para que ocorresse a verdadeira relação terapêutica.

Os sentimentos estavam sendo confundidos e deturpados por mim


devido a não compactuar das mesmas decisões que a cliente.
Contudo, após levar o caso para supervisão e trabalhar os meus
assuntos subjetivos na minha própria psicoterapia, me permiti afetar
pelos temas (que até então eram de uma difícil escuta) e ampliar a
minha escuta fenomenológica devida.

Pode-se dizer que cada cliente e cada sessão nos sensibiliza de uma
maneira. O caso em questão, Moly, fez com que houvesse uma
abertura em minha e uma atualização da minha prática clínica.
Parece que o novo se fez desse lado também. O desafio de atender
on-line e a demandas que não estavam na minha zona de maior
conforto e expertise corroboraram para a “ciranda cirandinha” dos
meus afetos também.

Pode-se afirmar que estar presente nas relações nos faz vivenciar e
experienciar diversas formas de emoção. Neste caso não foi
diferente. Raiva, tristeza, impotência, ansiedade, alegria, amor,
compaixão, empatia e leveza foram alguns sentimentos
experienciados por mim. É enriquecedor perceber e confirmar cada
emoção sentida, no momento sentido.

A relação terapêutica é iluminada. Nela, podemos ampliar o nosso


campo de percepção, escuta e afeto. Em um primeiro momento,
pode-se perceber o encontro “de mãos e pés atados”, sem muita
presença doada durante as sessões. E finalizar com demonstrações
de afeto e cuidado (tanto da cliente quando da psicóloga) é um
passo maravilhoso. O que se pode dizer deste caso: estar presente no
processo é o primeiro passo para construir a sua evolução no setting
terapêutico.
Considerações finais

Ao escrever pôde-se reviver e repensar os afetos e os


desdobramentos das sessões e, obviamente, as críticas à forma de
atender e compreender o caso surgiram. É de suma importância nos
atentarmos a este ponto. Nossas críticas, nossos apontamentos
devem ser construtivos e não punitivos. Lembrando que uma
psicoterapia fenomenológica é construída no aqui-e-agora, no
encontro e na presencialidade do momento.

Assim, o nosso olhar (crítico) é e sempre será para uma construção e


evolução para os demais encontros psicoterapêuticos e nunca para o
encontro que passou. Devemos nos ater ao autocuidado. As
supervisões, as próprias psicoterapias do psicólogo e o carinho do
encontro do momento sempre tem o seu valor na construção e no
caminhar do psicólogo fenomenológico-existencial.

A escolha da terminologia “ciranda cirandinha” se deu,


principalmente, pelas várias relações tóxicas e repetidas da cliente.
Como se nas suas relações ela estivesse de mãos dadas consigo
mesma - pelo seu repertório contínuo nas relações e dando voltas
em todas as suas vivências e existências da mesma maneira sem
ressignificá-las.

Um acolher fenomenológico-existencial – pela necessidade do


caminhar da psicóloga ao ampliar, aos poucos, a abertura dos afetos
e da relação e escuta fenomenológica. Tal perspectiva teórica, como
exalta Augras (2013), abraça a possibilidade e evidencia as relações, o
estar presente e o compreender as vivencias e experiências do
sujeito, atende aos requisitos para o acolher de Moly.
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profissional da psicologia. Brasília, agosto de 2005.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução nº 04, de 26 de


março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços
psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da
Comunicação durante a pandemia do COVID-19. Brasília: Conselho
Federal de Psicologia, 2020. Disponível em:
https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-
4-2020-dispoe-sobre-regulamentacao-de-servicos-psicologicos-
prestados-por-meio-de-tecnologia-da-informacao-e-da-
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SARTRE, JEAN-PAUL. O ser e o nada: ensaio de ontologia


fenomenológica. 23ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014. (Originalmente
publicado em 1943).
Estudo clínico
O desvelamento de um ser-no-mundo

1. Introdução

Este estudo de caso tem por objetivo relatar o estágio curricular do


Curso de Formação em Psicologia Clínica Fenomenológica-
Existencial, realizado na área de psicologia clínica, como pré-
requisito para a conclusão do curso. O curso de formação
proporcionou um conhecimento mais amplo e específico dentro da
abordagem, além do monitoramento regular dos atendimentos e
supervisões, promovendo oportunidades e experiências na área, bem
como consciência da responsabilidade como prática aplicada aos
pacientes.

A relevância da atuação interdisciplinar do profissional de psicologia,


segundo afirma Ribeiro (2003), na saúde coletiva, não pode ser
compreendida e realizada com um conjunto de ações e
conhecimentos isolados. Portanto, é essencial a elaboração de ações
comuns, sem o predomínio de uma profissão ou campo como
detentora das diretrizes do trabalho generalista.

O aluno na clínica-escola de Psicologia tinha como objetivo atender


os pacientes indicados pela escola (pessoas da comunidade), voltado
para o público adulto e idoso de baixa renda. Com o atendimento
proporcionou-se acolhimento e escuta qualificada ao observar e
analisar a queixa do paciente. Assim, pode-se aumentar suas
competências para que o mesmo aprenda a manejar de forma mais
efetiva a sua existência e que assegure os sentimentos positivos,
reduzindo o sofrimento.
Com isso, o presente estudo tem como objetivo aprimorar os
conhecimentos na área da Psicologia Fenomenológica-Existencial,
que obtive através da vivência com os pacientes, os momentos de
trocas de experiências e experimentações, tanto com as pessoas
atendidas na escola, como com os colegas e supervisora durante o
período do estágio.

Em resumo, a escola de formação tem por finalidade não só dar


fundamentos teóricos para a prática clínica, mas de aperfeiçoar os
conhecimentos dos futuros profissionais de psicologia e também
levar uma primeira experiência clínica, um conhecer e aprender fazer
dentro da clínica. Por fim, compartilho de uma experiência apreciável
com um paciente acompanhado na clínica durante o estágio. Neste
estudo constam relatos relevantes das sessões do paciente que
foram observados e acompanhados ao longo dos atendimentos,
bem como análise teórica a respeito desse conteúdo. Para que
pudesse descrever este caso clínico, por questões éticas foi
necessário manter em sigilo o seu nome, usando dados fictícios.

1.1 Identificação do Paciente

Nome: Alan
Idade: 35 anos

1.2 Local

As sessões de psicoterapia foram realizadas na Clínica-escola da


Afethos - Centro de Formação em Psicologia, no antigo endereço da
QSF 16, casa 316 – Taguatinga Sul, uma vez por semana, em horário
combinado com o paciente.

1.3 Instalações

A clínica-escola em Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial,


dispõe de uma estrutura bem aconchegante, composta por
recepção, sala de espera, cozinha e copa para melhor conforto tanto
dos pacientes, quanto dos profissionais, salas de atendimentos
psicoterápico e uma sala para encontros de supervisões entre outros
eventos.
2. Procedimentos

Os procedimentos da clínica escola apontam para o acolhimento da


sociedade, a qual tem a liberdade de solicitar o atendimento
psicológico, oferecido à comunidade carente. O serviço de
atendimento psicológico é gratuito e realizado pelos alunos do
último Módulo do Curso de Formação, que desejam aperfeiçoarem-
se na abordagem, sendo orientados e supervisionados
semanalmente por uma profissional da área. Os atendimentos
psicológicos foram iniciadas em agosto de 2019 e finalizadas em
dezembro 2019, num total de 15 sessões.

2.1 Setting

Quando se fala no lugar do terapeuta no setting pode ser chamado


como o plano de uma existência em comum, considerando que o
paciente passa a ser um parceiro existencial. Dessa forma, a
psicoterapia torna-se um acolhimento ou um encontro, um ser-com.
O estudioso Binswanger (1958) apud Gomes & Castro (2010),
denomina como transferência, que pode ser compreendida como
um tipo de encontro amparado em uma presença genuína, em um
presente que é uma continuação do passado e que objetiva olhar
para as perspectivas do futuro.

O atendimento com Alan durou um semestre, sessões com duração


de 50 minutos, estendida até 1 hora em algumas situações. No início,
ele tinha o hábito de chegar atrasado, mas ao longo dos
atendimentos isso foi sendo trabalhado. As primeiras sessões tiveram
objetivo de acolhimento e conhecimento de suas queixas, bem
como a consolidação do vínculo terapêutico. Foi lhe permitido a
liberdade de iniciar, continuar ou parar de falar no decorrer das
sessões, sempre respeitando seu tempo.

Durante os encontros iniciais deu-se a compreensão de seu vivivo,


por meio de questionamentos e intervenções, com intuito de
apreender e investigar suas queixas, obtendo a clareza e o cuidado
na escuta ativa e qualificada, sem nenhum tipo de julgamento e sim
compreendê-lo a partir de sua existência, para que houvesse uma
melhor interpretação das demandas do mesmo.
Inicialmente tímido e retraído, com o passar das sessões, Alan foi se
desinibindo e se soltando em cada sessão. Começou a relatar sua
história de vida, como se deu as relações do desenvolvimento
infantil, adolescente até chegar na fase adulta. Mencionou o
relacionamento que tinha com a mãe, bem como o relacionamento
conturbado com pai e entre tantos outros assuntos. E assim, esses
relatos ajudaram a ter uma percepção e compreensão mais ampla
de suas vivências.

Foi trabalhado o autoconhecimento, onde o mesmo se apresentou,


relatou suas demandas e pontos críticos, onde citou suas
experiências tanto positivas e negativas, fazendo várias reflexões do
seu modo de ser. Foi questionado sobre sua vida social, como se
relacionava nesse meio, como se via diante de sua vida profissional,
no intuito de se perceber sendo o próprio autor da sua história, com
possibilidades de mudança e reconhecimento daquilo que fez e faz.
No setting também foi oferecido espaço de perguntas, exposição de
ideias, sentimentos e emoções, como também o compartilhamento
de suas conquistas, sempre no propósito de mostrar o quanto é bom
ter a liberdade de se expressar. O mesmo elaborou planejamentos
envolvendo pequenas mudanças, mas necessárias para a
concretização de metas e resultados.

Alan relatou que esperava ansiosamente os dias das sessões, para


desabafar e compartilhar seus sentimentos e angústias, pois passou
a se sentir muito bem com os encontros. Não apresentou resistência
e nem dificuldades ao longo das sessões, mas quando foi lembrado
que estaríamos chegando ao fim dos atendimentos, e agendada a
última sessão, Alan não compareceu. Foram realizados contatos
posteriores para remarcar a sessão, mesmo assim, ele não
compareceu e assim foi dado como encerrado os atendimentos.

3. Discussão Diagnóstica
3.1 Histórico do paciente

O paciente Alan, solteiro, é professor de atividade física. Possui o


ensino médio completo, condição socioeconômica baixa, nascido em
Brasília.
No início de sua adultez "assumiu a sexualidade" (sic) e decidiu morar
sozinho, em uma cidade satélite do Distrito Federal. É um jovem
portador de doença autoimune, descoberto há poucos anos, e vive
preocupado com a saúde e bem-estar. Ele faz tratamento e
acompanhamento regularmente com profissionais da saúde. No
decorrer das sessões sempre se apresentava bem vestido,
comunicativo e sorridente.

3.2 Queixas e demandas

Alan foi encaminhado para o atendimento psicológico porque


apresentava um quadro de crise de ansiedade, não sabendo lidar
com o término de um relacionamento que durou quase 10 anos. No
início da terapia, Alan se queixava de que era uma pessoa muito
ansiosa e preocupada, isso lhe causava uma compulsão alimentar
incontrolável, principalmente por doces. Apesar de não sofrer contra
a balança, pensava na estética e na saúde, pois preocupava-se com o
seu trabalho e na necessidade que tinha medo de não conseguir dar
o melhor de si, conforme afirmou.

Mas com o passar das sessões, as demandas de Alan foram outras,


passou a citar fortemente a palavra “medo”. Mencionou o medo de
perder o ex-companheiro que amava muito; o medo do preconceito
por ser homoafetivo; o medo da rejeição da igreja que frequentava,
que não lhe aceitou quando assumiu sua sexualidade; o medo por
ser um portador de doença autoimune e ter a saúde frágil e em risco
constante, em particular quando lembrava que cuidou de amigo que
lutou contra doença semelhante incansavelmente até fim da sua
vida. Alan, constantemente, fala do medo da morte e que vivia cada
dia como se fosse o último.

Aparentemente, Alan demonstrava ter uma autoestima bem


elevada. No entanto, existia um sofrimento muito grande diante da
sua história de vida. O mais importante foi o quanto o mesmo
almejava mudança e o autoconhecimento para saber lidar com suas
dificuldades. Embora reconhecesse o trabalho brilhante que tinha,
parecia nunca suficiente, e sempre com muita urgência em existir,
de repassar muitas coisas relevantes para o seu público, de deixar
um legado.
E assim, Alan reconheceu suas angústias e dificuldades, resolveu
procurar ajudar na terapia para saber lidar com os problemas
emocionais e comportamentais, para encontrar novos meios de lidar
com eles.

3.3 História de vida

Em sua adolescência Alan percebeu “que tinha algo de estranho nas


suas escolhas” (sic), pois gostava de estar com as amigas e se
automaquiar, usava roupas feminina e comportamentos bem
semelhantes aos "de mulheres" (sic). Sua mãe não gostava muitos de
suas companhias e nem de seus comportamentos, ela o proibia de
encontrá-las. Alan relatou que sofreu uma crise de identidade na
adolescência, onde recebeu vários julgamentos. Um certo dia seu
padrasto lhe apoiou e encorajou a assumir sua sexualidade e deixar
de sofrer, ficando à mercê do desejo do outro, que era a forma de ele
assumir as consequências e viver a própria vida.

Aos dezoito anos ele decidiu se assumir como homoafetivo, mas a


família e a igreja que frequentava não apoiaram a sua orientação.
Sem apoio da família e da igreja, ele resolveu ir morar com amigos e
começou a fazer parte de projetos voltados para resgate de
adolescentes e jovens carentes da comunidade. Tempos depois, Alan
foi acolhido por outra igreja, na qual passou a "sentir bem e ajudar
nos trabalhos voltados para a área de adolescentes e jovens" (sic). Por
volta dos 30 anos Alan descobriu que tinha uma doença autoimune.
Foi um momento desesperador em sua vida, pois imaginava que não
ia sobreviver e relacionava seu quadro com a morte.

Mencionou que foram momentos tensos. Desde receio de procurar


ajuda, preocupação em falar com a família e amigos próximos, como
também aceitar a doença e começar a fazer o tratamento, medo dos
procedimentos invasivos.
O mesmo citou que passou pelo acompanhamento psicológico na
época, o qual lhe ajudou a aceitar a doença e submeter-se ao
tratamento promovido pela rede pública de saúde. Teve bons
atendimentos pelos profissionais de saúde com esclarecimentos
sobre a doença, que foi lhe acalmando e familiarizando com "a
realidade" (sic). Continuou buscando mais informações e
conhecimentos, bem como continuar trabalhando e ter a vida mais
comum possível. Isso lhe trouxe esperança de viver.

Em um de seus relatos, Alan se refere que por mais que ele tenha
medo da morte, é uma pessoa sonhadora e que tem muitos planos
para concretizar, principalmente profissionalmente. Procura sempre
se cuidar e fazer o tratamento corretamente, zelar pela sua vida e
pelas pessoas com quem convive, pois no momento faz parte de
vários projetos religiosos e enquanto educador físico, além da
militância pelo "respeito ao próximo e dizer não ao preconceito" (sic).

3.4 Histórico social

Alan conviveu até os dezoito anos com a família: mãe, irmão e


padrasto, frequentou igreja cristã desde criança. É uma pessoa
sociável, comunicativa e gosta de fazer amizades. Relatou ter bons
relacionamentos com os projetos e grupos que participa e/ou
coordena. Ministra aulas em escolas e se considera uma pessoa
empática. Sempre sonhou com a liberdade e em assumir quem
realmente ele é, gosta de festas, de estar com amigos e viver cada
dia intensamente.

O mesmo declarou que ultimamente tem se preocupado com a sua


carreira profissional. O seu trabalho e projetos têm sido reconhecido
em vários lugares e "tem dado frutos interessantes " (sic). Por outro
lado, dado as exposições de redes sociais, diz não estar preparado
para se tornar "uma figura pública", caso os locais de trabalho e
projetos desenvolvidos ganhem mais visibilidade.
3.5 Histórico afetivo-sexual

A demanda inicial de Alan, foi a sua relação afetiva-sexual. Ele teve


um relacionamento amoroso de quase 10 anos, entre idas e vindas, e
havia terminado recentemente por não aguentar certos
comportamentos e atitudes do ex-companheiro que considerava
abusivas. Para Alan, o ex era uma pessoa ciumenta e controladora.
Confessou que foi ele que terminou, apesar de amá-lo muito, mas
que não aguentava mais ser maltratado e humilhado, falou que não
foi fácil e ainda sofria com o término.

Durante os atendimentos, em alguns relatos, Alan se percebeu


dependente do antigo relacionamento, no qual era controlado pelo
ex-parceiro. Em sua visão inicial considerava o controle uma espécie
de cuidado, ao se dar conta de saber o que é uma pessoa
controladora, e saber que estava nessa condição, não aceitou
continuar vivendo numa submissão e decidiu romper a relação, no
intuito de mudar seu modo de agir e pensar tanto pessoal, como nas
relações afetivas.

Todavia, ao longo das sessões os sentimentos de Alan eram


ambivalentes, em paticular quando ele e/ou o ex entravam em
contato ou se viam. Ficavam sempre na dúvida se a decisão do
término era definitiva ou se poderiam afinar-se, mudarem e
recomeçar. Mas, em seguida percebia que esse momento já tinha
sido feito por diversas vezes e não tinha tido retornos positivos.

Expressou que apesar dele gostar de fazer amizades e ter muitos


amigos, não gosta de ficar se envolvendo amorosamente com várias
pessoas. Por ter limitações devido sua condição médica precisava
falar sobre seu quadro, para proteger-se, e essa situação lhe deixava
muito constrangido, porque nem sempre encontrar pessoas capazes
de compreendê-lo, e aceitar as limitações.

3.7 Histórico médico-psicológico

O paciente já fez acompanhamento psicológico há um tempo atrás


quando descobriu a doença autoimune.
Iniciou no momento do tratamento acolhimento/aconselhamento
para facilitar o processo, visando manter o bem-estar mental do
paciente, identificando e compreendendo os fatores emocionais que
podem intervir na sua saúde, além das angústias, preocupações e
medos, bem como facilitar o processo de aceitação da doença,
tirando as dúvidas e encorajando-o ao tratamento contínuo.
Atualmente, Alan faz acompanhamento médico conforme
recomendações da equipe de saúde, para garantir a defesa do
organismo, para manter imunidade alta e não contrair outras
doenças, bem como manter uma qualidade de vida, respeitando
seus limites.

4. Hipótese Diagnóstica

Durante as sessões de psicoterapia individual, o paciente apresentou


sintomas de ansiedade como o medo e a insegurança com relação
ao seu estado de saúde. Demonstrou fragilidade quanto ao
diagnóstico da doença autoimune com seu estilo de vida e,
apresentou reiterados discursos de insegurança acompanhados de
sintomas psicossomáticos. Alan deseja levar uma vida mais leve,
sabendo lidar com suas demandas para conseguir trabalhar e por
projetos em prática, pois se considerava uma pessoa "muito
inspirada" (sic). Considerando as demandas sinalizadas por Alan,
identificou-se que as mesmas poderiam ser trabalhadas na
psicoterapia individual, mas caso viesse a ter necessidade de ser
acompanhado por outros profissionais de saúde, seria feito o
encaminhamento do mesmo. Bem como, trabalho conjunto com
profissionais que o cuidavam, uma vez identificada a necessidade e
com anuência do mesmo.

5. Fundamentação Teórica

Este estudo foi realizado sob o olhar da abordagem fenomenológica-


existencial, que é uma abordagem que se apresenta de forma a
respeitar toda a vivência, as experimentações de vida do cliente, a
liberdade, bem como a autonomia para que o indivíduo possa dar
novo sentido a história de vida.
Para isso, o terapeuta deve ir além das palavras, deve utilizar a escuta
qualificada e empática para compreender o mundo do outro, e
assim, chegar ao sentido contextual e simbólico do que está sendo
relatado pelo paciente. Para tornar mais substanciado este contexto,
o terapeuta pode se identificar como um facilitador das expressões
de seu cliente, para isso não se valendo da interpretação, mas sim, da
compreensão existencial imediata do cliente (GOMES; CASTRO,
2010).

A psicoterapia não mostra apenas onde, quando e até que ponto o


paciente falhou em realizar a totalidade de sua humanidade, pois o
objetivo do terapeuta é tentar explorar não só as estruturas
temporais, mas as estruturas espaciais do seu mundo, no intuito de
compreendê-lo para uma possível ressignificação. A fenomenologia-
existencial tem como base principal o sentido do ser, nesse
pensamento a consciência nos chama a assumir nossa "culpa", ou
seja, assumir a responsabilidade por todas as nossas ações, e os
resultados que geram em nossas vidas. O homem é um ser-no-
mundo, o homem é lançado e submetido a uma situação que não
escolheu, para descobrir o sentido de sua própria existência e
orientar suas ações nas direções mais diversas (HEIDEGGER, 1998).
Segundo o autor, o humano é um ser-aí (Dasein), é uma reflexão da
própria existência, e a partir deste modo é possível determinar seu
ser, não de maneira total, mas um revelar-se, um manifestar-se como
fenômeno.

Com o propósito de analisar a queixa do paciente, foi imprescindível


compreender suas demandas e os sintomas que o mesmo chama de
transtorno de ansiedade, como também a sua história para uma
investigação mais precisa, para poder intervir de maneira favorável
para sua existência. Foi importante que o paciente definisse as
características e a natureza dessa condição, chamando-a de
transtorno de ansiedade, e ainda, ao se definir o mesmo trouxe à
tona experiências relacionadas ao medo de viver situações
semelhantes ao do amigo falecido em função de seu diagnóstico.

No caso de Allan entende-se que ansiedade e medo denotam uma


condição emocional desagradável, seguida de um desconforto
somático, podendo ser um temor do desconhecido.
May (1984) explica que o medo é a reação de algo que ameaça
apenas a parte do nosso Self, e ansiedade, uma ameaça total do
nosso Self e, ainda sobre o medo, nós sabemos qual o objeto e como
enfrentar ou fugir dele. Nesse caso, o paciente encontra-se em um
estado de ansiedade perpétua, é como se ele permanecesse na luta
pela sua sobrevivência existencial, por aquilo que mantêm ou dá
valor a sua vida. Segundo o mesmo autor a ansiedade pode ser um
clamor íntimo para a resolução de um conflito, aquela sensação de
que algo está errado. Muitas vezes, é possível resolver alguns
conflitos, através de uma conquista ou esclarecimento sobre algo, e a
ansiedade é diluída, porém, em outras circunstâncias, o conflito
permanece e é preciso aprender a conviver com ele.

Sentimentos negativos oriundos do medo podem se desencadear no


paciente de diferentes formas: por não corresponder às expectativas,
ou por não alcançar metas e objetivos desejados, desapontar amigos
e/ou familiares, dentre outros. De fato, em diversas situações a vida é
colocada "em cheque” e esses sentimentos que antes estavam
associados a uma correspondência social (relação do indivíduo e o
meio que vive), pode evoluir do meio psíquico para o físico ao ponto
de afetar a continuidade da vida do indivíduo. Quando o paciente
relata sobre seu diagnóstico deixa evidente o medo de viver as
experiências passadas por seu falecido amigo.

"É um medo constante. Desde limitações de coisas que não posso fazer, aos
tratamentos contínuos que preciso fazer, à certeza que aminha vida terá fim.
Morrer todos iremos. Mas desde que descobri o que tenho a vida se torou mais
frágil. Parece que as pessoas vivem sem saber que irão morrer. Eu penso nisso
todos os dias. E vivo como se fosse de fato o último. [...] E não falo só do morrendo
aos pouquinhos porque não posso fazer isso ou aquilo, porque perdi amigo com
mesmo quadro, porque sei de relações que não tenho por causa da doença. Falo
da morte mesmo, de não existir mais, de não estar mais aqui. [...] E por mais que as
vezes questione o sentido de tudo já que o destino e a morte, quero viver
intensamente, tudo agora, com urgência". (sic)

Na fala do paciente fica evidente essa percepção do ser-para-a-


morte, conforme aponta Heidegger (1986). Pois, segundo o autor, o
conceito de morte é uma espécie de angústia ampliada e mais
definida na direção de uma caracterização fundamental da sua
existência.
Na fala quando o paciente descreve sua angústia ao ver o sofrimento
do seu amigo, que possuía o mesmo diagnóstico, fica gritante o
medo de passar pela mesma situação, esse ser-para-a-morte lhe
causa transcendência capaz de tirar das ocupações cotidianas. A
tomada de consciência do ser-para-a-morte leva a um
questionamento de todo o ser, no sentido de que o ser-humano se
coloca radicalmente diante de seu ser. Assim como a angústia, "a
antecipação da morte singulariza o ser-aí" (HEIDEGGER, 1986, p.263).

Um elemento importante é quando Alan fala de seus sonhos e do


prazer do seu trabalho. Fica óbvio o prazer que sente em estar nos
projetos, nos grupos, nos palcos. No entanto, em algumas falas ele
expressou que gostava de fazer algumas encenações ou até mesmo
coreografias para expressar alguns sentimentos e a própria
liberdade. Nota-se que esse comportamento condiz com uma
válvula de escape, uma vez que Alan pareceu não possuir
naturalmente a liberdade de se expressar, o que pode ser um dos
fatores provocadores de seus transtornos.

Na perspectiva heideggeriana, o adoecimento como modo de ser do


Dasein, está relacionada a dificuldade de suportar uma relação de
abertura para com os sentidos do mundo, ou até mesmo a liberdade
de expor. Nesse sentido, Alan se sente restringido a essa abertura
com mundo, embora ele tenha procurado estratégias de expressar
seus sentimentos, através da dança e das coreografias. Sendo assim,
compreender os fenômenos de adoecimento psíquico à luz da
fenomenologia implica sempre uma apropriação temática do
horizonte histórico de sentido, no qual o paciente se situa, visto que
as situações de adoecimento não são consideradas como simples
funcionamento intrapsíquico. Entretanto, a própria liberdade
humana se configura em limitações e restrições no seu horizonte
existencial.

É nesse contexto que podemos constatar o vínculo entre as


condições atuais de sofrimento ou adoecimento psíquico e o
desvelamento de nosso destino histórico. Isto visto que o modo de
ser do homem moderno, com suas pretensões de controle, tende a
acentuar as tendências ontológico-existenciais ao fechamento, por
não conseguir tolerar o estranhamento e a indeterminação.
As angústias contemporâneas encontradas em clínicas de psicologia
na forma de sofrimento psíquico, devem poder ser pensadas, assim,
em referência a esse estreitamento dos limites de compreensão
proveniente de nosso horizonte de sentido.

5.1 Prognóstico

No período dos atendimentos foi perceptível nas falas do Alan a


necessidades de algumas mudanças, pois o mesmo tinha clareza e
consciência dos danos causados. Principalmente a autoconfiança e
amor próprio, visto que são fatores importantes para estar bem
consigo mesmo, sendo recomendadas também a redução da
autocrítica e cobranças pessoais exageradas em tudo que faz.

Os objetivos terapêuticos foram trabalhados. Houve assiduidade nas


sessões e empenho ao longo dos atendimentos, entendendo que há
sempre uma necessidade de dedicação do paciente em manter e se
colocar à disposição para novas experiências, bem como assumir
suas consequências e ser responsável por elas.

Por fim, houve uma avaliação positiva do quadro clínico de Alan. Em


paticular, devido às mudanças satisfatórias de sua percepção de si e
relações com os outros: família, e ex-namorado principalmente. No
entanto, confirmou-se a necessidade de continuidade do processo
terapêutico do paciente, que seria encaminhado a outro(a)
estagiário(a) dado o término no estágio. Mas Alan faltou ao último
encontro e às tentativas de finalizar o processo - o que pode ter sido
mais uma vivência de finitude que o mesmo não tenha querido
vivenciar.

6. Considerações Finais

O acompanhamento psicológico realizado nesse período, revelou-se


sendo fundamentalmente importante na vida do paciente em
questão, demonstrando sofrimento psíquico que lhe acompanha,
embora ele tenha demonstrado uma autoestima elevada. O espaço
que lhe foi proporcionado, tornou-se um ambiente acolhedor de
escuta ativa, onde ele podia expressar suas angústias, preocupações
e desejos, deixando seus medos e suas aflições virem à tona.
Ao avaliar o caminho percorrido no processo terapêutico, foi possível
observar que houve um progresso considerável na vida do paciente,
sendo que o mesmo percebeu a magnitude de sair da “caixinha” e
olhar para outros horizontes. Percebe-se também que o paciente
apresentou de forma significativa mudanças no seu estilo de vida em
relação às principais questões levantadas no início do atendimento.

Em relação aos atendimentos e supervisões, procurei ser pontual


mantendo interesse em identificar todas as demandas do paciente,
tirando dúvidas ao longo do processo. No início dos atendimentos
tive a sensação de que não conseguiria contribuir neste caso, pois foi
algo completamente novo na minha trajetória acadêmica, uma
experiência maior do que minhas expectativas. O paciente tinha
uma doença incurável, juntamente com uma série de fatores sociais
e pessoais que me desafiaram. Mas naquele momento me
comprometi a empreender esforços na perspectiva de superar meus
limites mais uma vez. Tinha ao meu lado uma sólida formação
acadêmica, um grande esforço na busca por literatura especializada
a fim de compreender as situações e circunstâncias pelas quais
passam os portadores de doenças autoimunes, apoio recebido da
minha orientadora, sugestão de material bibliográfico técnico-
científico e além de todas as supervisões. Então fui em busca
incansável de aprender e proporcionar o bem-estar mental ao
paciente.

Embora tenha consciência da necessidade de evoluir, procurei


cooperar, no que foi possível dentro das competências que possuo,
tentei ser o mais independente possível fazendo o uso das técnicas
da abordagem, observação, escuta ativa, empatia e intervenções.
Procurei sempre trabalhar com ética profissional, identificando riscos
e sendo comprometida com o paciente. Enfim, foi um caso que me
surpreendeu, além de ampliar meus conhecimentos pude ver a
evolução do paciente, que me deixou feliz por fazer parte desse
processo, foi um privilégio atendê-lo.

Foram muitas implicações, ideias e reflexões que surgiram no


decorrer da prática. Estes momentos de compartilhamento foram
fundamentais para aprimorar a prática clínica e assim, proporcionar
um aprofundamento teórico nas técnicas da psicoterapia.
7. REFERÊNCIAS

BINSWANGER, L. The existential analysis school of thought. In: MAY,


R.; ANGEL, E.; ELLENBERGER, H. F. (Org.). Existence: A new
dimension in psychiatry and psychology. New York: Simon &
Schuster, p. 191-213, 1958. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ptp/./a07v26ns.pdf>. Acesso em: 15/01/2020.

GOMES, W. B.; CASTRO, T. G. Clínica Fenomenológica: Do método de


pesquisa para a prática psicoterapêutica. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, Porto Alegre, v.26, n. especial, p. 81-93, 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ptp/v26nspe/a07v26ns.pdf>. Acesso em:
22/01/2020.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, Parte II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo (Sein und Zeit – 1ª ed.). Tübingen: Max


Niemeyer, 1986.

MAY, R. O homem a Procura de Si Mesmo. Petrópolis: Editora Vozes,


1984.

RIBEIRO, M. S. Identidade e formação profissional dos médicos. Rev.


Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 229-236,
2003.
O ENCONTRO QUE CURA, A RELAÇÃO QUE
TRANSFORMA: UM ESTUDO DE CASO

I. Síntese da História da Paciente

No intuito de resguardar a identidade da paciente serão utilizados,


nesse estudo de caso, nomes fictícios para se referir à mesma e às
pessoas envolvidas em seus relatos. Alguns cenários e demais
identificadores do caso também serão omitidos pelo mesmo fim.

A paciente Amanda é jovem, possui o ensino médio completo, é de


etnia preta e atualmente mora sozinha no Distrito Federal.

Quando criança, o irmão mais novo tinha sérios problemas de saúde


e demandava muita atenção da mãe, que precisava ficar
frequentemente no hospital acompanhando o filho. Já o pai, por ter
trabalho que precisava viajar com frequência, não ficava muito em
casa. Com isso, desde criança Amanda e suas irmãs precisaram gerir
o próprio autocuidado.

Nesse período, em que precisava ficar em casa sem cuidado de


adultos, a paciente sofreu abuso sexual empretado por um vizinho.
Este cometeu tal ato com diversas crianças da região. Quando
Amanda tentou falar sobre isso com a mãe foi desacreditada pela
mesma. É importante ser dito que a mãe também havia sido
abusada, inclusive com conjunção carnal, e que do estupro veio o
seu irmão mais velho.
Ela cresceu em uma cidade de baixo desenvolvimento
socioeconômico e vivenciou uma série de privações financeiras e
educacionais. Conforme seu relato, desde criança se imaginava em
outra realidade, com mais recursos. Na sua infância, participou de
projetos sociais, e nesse período desenvolveu o seu interesse pelo
mundo artístico e também, por experimentar outra realidade,
despertou a sua vontade de ter melhores condições de vida. Além
dessas questões citadas acima, Amanda relata ter vivenciado
diversas situações de racismo e discriminação voltados a sua etnia.
Seja pela tonalidade de pele e/ou pelo cabelo crespo.

A família tinha uma vizinha muito próxima, que gostava muito da


Amanda, e por conta das dificuldades a mesma se ofereceu para
criá-la. Com isso ela passou a morar com esses vizinhos, sem perder o
contato com sua família de origem. No entanto, Amanda relata que
apesar de ter sido muito bem criada, sempre se questionou sobre a
atitude da mãe biológica, por ter entregado apenas ela para ser
criada por outra pessoa. Ela relatou que atualmente compreende as
motivações da mãe e busca entender que foi necessário, frente ao
contexto no qual viviam.

Amanda saiu muito cedo de casa em busca de autonomia e


independência, ficou noiva do Gabriel ainda muito nova, e
permaneceu nessa relação durante quatro anos. Em certo momento
ela engravidou desse noivo e logo no início dessa gestação perdeu o
bebê, em decorrência de uma bactéria que o mesmo a transmitiu.
Logo em seguida Gabriel rompeu a relação, alegando que ela estava
sofrendo muito e que ele achava melhor dar um basta. Nesse
período Amanda entrou em um profundo quadro de depressão,
chegando a pensar diversas vezes em suicídio. Por conta disso,
precisou do suporte de amigos e de familiares para lidar com as
perdas. Retornou a morar com a família biológica e pôde, nesse
período, restaurar o vínculo com eles, em especial com a própria
mãe. Na atual configuração familiar, relata ter melhor convivência
com a mãe e uma irmã e distanciamento dos irmãos e do pai, que
ela intitula como "pessoas fechadas".
Quando passou a se sentir melhor, saiu da casa dos pais e voltou a
morar sozinha, mas como ainda tinha muitas crises e sentiu que
estava piorando, chamou uma amiga para morar com ela. Após um
período de convívio com essa amiga solicitou que ela fosse embora
de sua casa pois ela estava se sentindo sobrecarregada por arcar
com as despesas da casa sozinha. Desde então está morando só,
relata que sente falta de uma companhia, mas que tem gostado
dessa nova configuração da sua vida.

A paciente buscou o atendimento terapêutico com a intenção de


lidar melhor com as perdas e se organizar internamente. Relatou que
foi incentivada por uma amiga a iniciar o atendimento gratuito,
ofertado pela clínica.

II. Processo terapêutico

O processo terapêutico iniciou em fevereiro de 2020, sendo


realizados ao todo dezenove atendimentos. Dentro desse período
Amanda precisou realizar três desmarcações, mas em todos esses
momentos o fez com mais de 24h de antecedência, conforme o
combinado.

No entanto, com o caminhar dos encontros e aliança terapêutica


formada, Amanda sentia-se mais segura para colocar-se. A maior
parte do processo a paciente se mostrou muito engajada, tanto no
que se refere à configuração do setting, quanto ao seu próprio
desvelar-se, mostrando-se aberta a falar sobre si e repensar suas
vivências. As sessões foram pautadas na escuta dos relatos da
Amanda e nos apontamentos frente ao que era apresentado por ela.

Nos dois primeiros atendimentos Amanda se mostrou com muitas


reservas e com um elevado nível de resistência, demonstrando não
estar muito à vontade em falar de si própria para uma pessoa
estranha. No terceiro atendimento, Amanda desmarcou informando
que tinha ido viajar e que não conseguiria retornar a tempo de ir
para o atendimento.
No atendimento seguinte a mesma compareceu e se mostrou muito
mais aberta ao processo, relatou que tinha chorado muito nos dias
anteriores, pois ficou pensativa sobre a sua vida, refletindo que veio
de origem pobre e que apesar de ter batalhado muito sente sua vida
estagnada e demasiadamente direcionada para os afazeres do
trabalho. Nesse atendimento tive a sensação que a mesma estava
começando a entrar de fato no processo terapêutico e apontei isso
para ela.

Nas sessões seguintes foi percebida maior abertura da paciente e até


mesmo maior confiança e engajamento no processo. Além da queixa
inicial, surgiram novas demandas, como o fato de se sentir como
objeto nas relações, a necessidade de racionalizar suas dores, a
demasiada importância dada para a opinião dos outros, o
sentimento de menos valia e a dificuldade de receber afeto. Essas
novas demandas surgiram gradualmente ao longo das sessões,
sendo relatadas com muita carga emocional. Amanda, por
apresentar uma boa capacidade de elaboração, conseguia
ressignificar suas vivências sem muitas interferências externas, a
minha função, em diversos momentos da terapia, era estar presente
e acolher o peso emocional que a mesma estava sentindo ao falar de
suas dores.

O quinto atendimento, realizado no dia 18/03/2020, foi o último


encontro presencial, os atendimentos seguintes passaram a ser
efetuados na modalidade virtual em decorrência das orientações de
isolamento social, devido à Covid-19. No dia 01/04/2020 realizamos o
nosso primeiro atendimento virtual e contrariando o que eu
imaginava, conseguimos continuar com o processo terapêutico de
forma satisfatória para ambas as partes.

Ao longo do processo foi percebida gradual evolução da Amanda,


tornando-se perceptível o seu modo de funcionamento, pois por
mais que exista uma boa capacidade de elaboração dos fatos vividos,
ela tem como característica a necessidade de retornar diversas vezes
ao mesmo episódio. Por exemplo, ela relatou em diversos momentos
sobre a condição de vida da sua família, evidenciou não se identificar
com a realidade deles e em paralelo sofrer com as críticas e o
distanciamento.
Com isso foi percebida a constante necessidade que Amanda tem de
se aproximar gradualmente de suas dores. Esse mesmo padrão foi
observado em outros relatos como o do abuso sexual, da relação
com o ex, das relações de amizade e das cobranças da família.
Quanto a esse modo de funcionamento foi observado que a cada
novo relato do mesmo assunto a paciente se encontrava em um
outro nível de entendimento sobre si mesma.

No sétimo atendimento foi notado progresso quando a mesma se


mostrou mais consciente de si própria e com um discurso diferente,
reconheceu sua responsabilidade sobre a sua própria vida e se
retirou do constante papel de vítima, que vinha se colocando desde
os primeiros atendimentos. Com essa tomada de consciência da
paciente, percebi que o processo terapêutico da Amanda estava
progredindo e me senti satisfeita enquanto profissional por constatar
que estava conseguindo auxiliá-la a se perceber e se apropriar de sua
existência.

Nos atendimentos, outro aspecto observado se refere ao medo que a


paciente tem de não ser merecedora de amor por não ser uma
pessoa fácil de conviver. Esse temor da Amanda a levou a refletir
sobre seu modo de agir com as pessoas e nessa reflexão se pôs a
pensar que não está disposta a se submeter às relações destrutivas e
desrespeitosas. Percebo que esse entendimento da paciente está
muito relacionado ao que foi experimentado em antigos
relacionamentos, em decorrência das vivências desagradáveis que
favorece para que se coloque com certa rigidez e reatividade frente
às novas possibilidades de relações e envolvimentos afetivos.

Desde os primeiros atendimentos percebi que Amanda tem uma


capacidade de autoanálise aguçada e isso tem auxiliado na sua
evolução dentro do processo terapêutico. Percebo também que a
resistência fortemente apresentada nas primeiras sessões foi um
indicativo do seu modo de funcionar demasiadamente desconfiado
e cauteloso, nas relações que se iniciam, tornando-se evidente o
receio que a mesma tem de estabelecer vinculações, que possam ser
destrutivas ou gerar sofrimentos.
III. Fundamentação teórica

Iniciar um processo terapêutico nem sempre é uma decisão fácil,


pois tal atitude requer do analisando disposição para encarar
aspectos da sua própria existência, que na maioria das vezes não
costumam receber a devida atenção. É percebido que a ação clínica
e seus efeitos se tornam possíveis mediante o encontro
terapeuta/cliente, se mostrando necessário, como bem apresenta
Prado e Caldas (2013), a articulação de dois fatos, sendo eles, uma
pessoa que sofre e coloca em cheque o próprio horizonte de sentido,
buscando se apropriar de si, por meio da fala e da forma como lida
com suas questões, juntamente com a capacidade de reconhecer
suas escolhas e ter propriedade para escolhê-las.

Ainda nesse sentido, acho válido ressaltar a importância do encontro


terapêutico para se estabelecer o modo próprio de funcionamento,
com isso é evidenciado que os indivíduos são dependentes uns dos
outros para estabelecer um eu próprio. Como bem apresenta Feijoo
(2010), utilizando como referência Kierkegaard, existem duas formas
de desespero, uma é pautada no desespero pela vontade de sermos
nós próprios e a outra no desespero por não sermos nós próprios.
Essa última mostra o quão necessário é a existência de outro ser,
para que possa estabelecer um jeito de ser próprio. Pensar nesse
aspecto, me remete ao processo terapêutico de Amanda, que
inicialmente estava muito fechada em si, mas conforme foi se
permitido confiar na relação terapêutica pôde ir se percebendo e se
aproximando de um modo de funcionamento próprio.

Completando esse raciocínio, acho interessante mencionar a


importância das relações no existir humano e na constituição de um
modo de ser saudável ou patológico, como bem aponta Tenório
(2008). Pensar nas relações e em como estão diretamente
relacionadas com a saúde mental, me leva a refletir sobre o período
em que a Amanda se separou, pois para conseguir lidar com a dor da
relação rompida, precisou reestabelecer novas relações e
ressignificar o sentido de relacionar-se.
Com isso, a paciente voltou a se reaproximar de amigos e pode
retornar ao convívio da família e experimentar a relação com eles.
Lembrando que a relação tinha sido, em partes, perdida por ter sido
criada por outra família. Nesse resgate dos vínculos com sua família
de origem se reaproximou em especial da sua mãe biológica.

Outro aspecto que me chamou atenção no processo da Amanda, no


que se refere a relacionar-se, foi sua tendência a dar muita
importância ao olhar do outro. Em diversas sessões a mesma falou
sobre seu desconforto com as cobranças externas, que na maioria
das vezes vinham dos familiares. Por vezes, essa cobrança apareceu
nos relatos relacionados às amizades, mas no decorrer dos
atendimentos o que ficou muito perceptível foi a autocobrança e
uma tremenda dificuldade de relacionar-se consigo própria, como
bem ficou evidenciado na seguinte fala “parece que eu estou
fazendo, fazendo e não estou saindo do lugar” [SIC]. Amanda se
percebe sempre em desvantagem e atrasada na vida e isso a faz se
sentir perdida, sem saber qual direção seguir, pois o elevado nível de
exigência a faz se perceber em constante inadequação.

No decorrer do processo, foi notada a cristalização dos afetos de


Amanda, sendo percebida profunda dificuldade em se abrir a novas
possibilidades amorosas, pois ficou presa nas experiências negativas,
que vivenciou em seu antigo relacionamento. Frente a esse
fenômeno cabe um trecho da Feijoo (2010, p. 63) onde ela aponta
que “o eu com carência de possível se perde no necessário [...] não há
lugar para arriscar as possibilidades”. Nesse sentido torna-se possível
observar nos trechos abaixo os relatos que evidenciam a dificuldade
de Amanda se permitir ao novo:

Amanda: “Eu às vezes também acho que eu não sei receber


carinho, porque eu me blindei tanto que quando as pessoas me dão
algum tipo de carinho eu já penso que está querendo me iludir para
sair fora de novo [...]”.

Terapeuta: “Eu tenho a impressão que você se bloqueia para não


receber esse carinho e se poupar de uma frustração. Faz sentido?”.
Amanda: “Acho, eu acho que a coisa que eu mais temo hoje em dia
é passar pelo o que eu passei de novo. Não quero mais gostar de
alguém, me entregar de corpo, alma e coração e a pessoa me trair,
me largar, me deixar sozinha de novo. Sempre que estou me
relacionando com alguém eu estou observando a pessoa o tempo
todo, eu não consigo me entregar de primeira mais”.

O modo de existir da paciente aponta para uma estrutura bastante


controladora e calculista, onde ela busca sempre se pautar na razão
para evitar as dores, que podem emergir do sentir. Esse modo de ser
da paciente me remete ao relato de uma sessão, onde ela trouxe o
profundo sofrimento vivenciado com o término da relação, que a
levou a pensar, em diversos momentos, em dar fim a própria vida.
Com isso acho interessante trazer um trecho de Camus (2010), onde
ele aponta o suicídio como uma confissão de que a vida te
ultrapassou e que não é possível compreendê-la. Voltando para a
realidade da paciente, considero que ela busca ser racional, com o
intuito de não sofrer e não precisar lidar com a dor de ter sido
ultrapassada pela vida.

Um outro aspecto debatido por Camus (2010), que me remeteu a


vivência da Amanda, faz referência à morte voluntária como um
indicativo de que o indivíduo reconheceu que viver não está
correlacionado a nenhum sentido em si mesmo e que a turbulência
cotidiana e o sofrimento são inúteis e desnecessários. Ao me deparar
com a história da paciente fiquei com a sensação de que ela sempre
idealizou a família perfeita, como ela mesma relatou em uma sessão,
ela vivia em uma bolha onde o mundo era "cor de rosa" (sic), com
isso quando ocorreu a separação ela precisou entrar em contato com
o mundo real, que por si só é carente de sentido e como
consequência viu no suicídio uma saída para o seu sofrimento.

Outro aspecto amplamente trabalhado no seu processo terapêutico


se refere ao fato da paciente se perceber como objeto nas relações e
não se achar merecedora de amor. Nesses aspectos tornou-se
necessário investigar junto à paciente como ela avaliava e lidava com
essa constante sensação de ser objetificada e menosprezada em
suas relações afetivas.
Para compreender esse fenômeno foi crucial buscar autores que
tratassem do ser mulher preta e periférica na nossa sociedade.
Pacheco (2013) evidencia que na vida afetiva ocorre exclusão dessa
mulher, sendo esse lugar do amor e do casamento destinado a
mulheres brancas, por outro lado, as relações puramente sexuais e a
erotização são naturalizadas para negras e mestiças.

Ainda tratando desse mesmo aspecto Luduvico (2018) traz que


socialmente a mulher preta é vista como uma pessoa que não
precisa de amor, sendo essa realidade carregada de muita dor, que
dificilmente é falada publicamente. Apesar de não ter sido
trabalhado diretamente nos atendimentos, posso considerar, pelos
diversos relatos apresentados, que o abuso sofrido influenciou a
percepção de autoimagem que a Amanda tem de si própria e que,
em conjunto com o estigma social imposto à mulher preta, tais
abusos vividos pela paciente fortificaram a dor de estar nesse lugar
de aviltamento e coisificação.

Nos atendimentos essas questões apareceram diversas vezes com


um relato carregado de choro e sofrimento. A Amanda falou em
vários momentos que percebia o interesse masculino muito voltado
para a relação sexual apenas, com isso as relações nunca evoluem
para algo mais consistente e duradouro. Nos atendimentos pude
observar que a paciente tinha para consigo e para com esses
companheiros o mesmo comportamento de objetificação e de
desvalorização que ela tanto se queixava. Frente a essa percepção foi
possível evidenciar para paciente esse seu comportamento e auxiliá-
la a se perceber como coparticipante na dor vivenciada.

No decorrer dos atendimento foi interessante perceber a evolução


da paciente. Conforme ela entrava em contato com suas
experiências e relatava sobre suas dores, naturalmente reduzia a
intensidade do que foi vivido, sendo necessário, no caso da Amanda,
o relato do mesmo assunto diversas vezes para conseguir dar um
novo sentido ao fato. Melo, Boris e Stoltenborg (2009, p. 137) trazem
que é “através da descrição que o sujeito pode apreender o essencial
das situações vividas por ele e o sujeito pode presentificar suas
próprias vivências e trazê-la para seu processo psicoterapêutico tal
como foi vivida para que possa ser ressignificada”.
Por fim, acho interessante apresentar Luczinski e Ancona-lopez
(2010), que falam sobre a importância do compartilhar das
experiências com outras pessoas para que haja a confirmação das
vivências como reais, ou seja, o reconhecimento do outro é de suma
importância, pois o ser humano é relacional e se constitui na
presença de outrem. Pensando na Amanda posso afirmar que, para
ela, estar com outra pessoa disposta a ouvir, acolher e validar suas
percepções como reais foi de suma importância para o seu processo,
possibilitando que ela reconhecesse a legitimidade dos seus
sentimentos.

IV. Implicação com o caso

Essa relação terapêutica teve um significado muito especial para


mim, pois foi a primeira paciente que atendi depois que conclui a
graduação. Eu havia me formado há cerca de um semestre e desde
então não me percebia devidamente preparada para atuar como
psicoterapeuta, pois me sentia muito insegura, com medo de não
saber como conduzir um processo de forma a auxiliar
significativamente os pacientes. Com isso percebo que atender a
Amanda foi, para mim, um marco profissional, onde eu precisei
buscar a superação das minhas inseguranças e do meu medo de não
ser suficientemente boa. O mais interessante, que estou me dando
conta agora, é que nem de longe eu superei essas inseguranças, mas
posso dizer que tenho aprendido a conviver com elas a cada
atendimento que realizo.

Inicialmente pensei que essa parte fosse ser a mais fácil de realizar
nesse estudo de caso. No entanto, colocar no papel o que
representou para mim e de que forma me impactou todo esse
processo, não está sendo a tarefa mais fácil. Considero que essa
dificuldade possa ser atribuída ao receio de julgamento ou de críticas
e acredito que isso está me levando a ficar travada, sem permitir que
os pensamentos e a escrita possam fluir.

Falar dessa dificuldade que estou sentindo, me fez pensar no


processo da paciente, que inicialmente apresentou muita resistência
para falar sobre si, percebo que de forma semelhante estou sentindo
um pouco de dificuldade em me expor.
Na tentativa de superar minhas limitações e voltando a atenção para
o caso, acho interessante ressaltar que ao longo do processo com a
paciente eu consegui lidar melhor com minha ansiedade e com o
medo de errar e passei a me sentir mais tranquila. Atribuo esse meu
progresso às orientação passadas em supervisão, onde em diversos
momentos foi falado que é natural apresentar ansiedade e que errar
faz parte da natureza humana, e o mais engraçado é que essas
orientações sempre foram muito óbvias para mim, mas ouvir de
outra pessoa traz uma conotação e um sentido diferente, trouxe
alívio interno e me estimulou a mostrar o lado humano que existe
em mim.

Conforme eu vou expondo minhas incertezas, inseguranças e


exigências, nesse relato de implicação, inevitavelmente me recordo
do modo de ser da paciente, que demonstrava o sentimento de
menos valia, baixa autoestima e elevado nível de cobrança, nas
sessões. Em alguns atendimentos senti certa dificuldade de manejar
o relato da paciente, pois me remetia às minhas próprias questões,
frente a isso fui convidada em diversos momentos a me aprimorar e
a repensar o meu modo de ser. Perceber o progresso da paciente
despertou em mim uma satisfação muito grande, um indicativo de
que, mesmo tendo muito ainda para aprender, eu adquiri certa
capacidade para auxiliar outras pessoas. Dentre todas as percepções
que passei a ter, essa é uma das mais importantes, pois sinto que
resgatou minha confiança e sentimento de competência. Falar sobre
isso me remete a conceituação teórica, que em diversas passagens
aponta para a importância do contato, do estar com e da relação
para nossa constituição enquanto sujeito. E ao pensar sobre isso,
naturalmente me dou conta de como esse encontro possibilitou
para mim a ressignificação de minhas próprias questões.
V. Referências

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução


de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2010.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A filosofia existencial e a analítica


da existencia. In: FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A escuta e a fala
em psicoterapia: uma proposta fenomenológica-existencial. Rio de
Janeiro: Ifen, 2010. p. 54-100.

LUCZINSKI, Giovana Fagundes; ANCONA-LOPEZ, Marília. A psicologia


fenomenológica e a filosofia de Buber: o encontro na clínica. Estudos
de Psicologia, Campinas, v. 1, n. 27, p. 75-82, mar. 2010.

LUDUVICO, Thalita Santos Reis. Mulher preta e a intelectualidade “a


síndrome da nega metida”. Porto Seguro. 2018.

MELO, Anna Karynne da Silva; BORIS, Georges Daniel Janja Bloc;


STOLTENBORG, Violeta. Reconstruindo sentidos na interface De
Histórias: uma Discussão Fenomenológico-existencial Da
constituição Do sujeito Borderline. Revista da Abordagem Gestáltica,
Fortaleza, p. 133-144, fev. 2009.

PACHECO, Ana Cláudia Lemos. A escolha de um “objeto” afetivo: as


mulheres negras solitárias. In: PACHECO, Ana Cláudia Lemos. Mulher
negra: afetividade e solidão. Salvador: Edufba, 2013. p. 21-47.

PRADO, Rafael Auler de Almeida; CALDAS, Marcus Tulio. Atitude


fenomenológica existencial e cuidado na ação clínica. In: BARRETO,
Carmem Lúcia Brito Tavares; MORATO, Henriette Tognetti Penha;
CALDAS, Marcus Tulio. Prática psicológica na perspectiva
fenomenológica. São Paulo: Juruá Editora, 2013. p. 95-105.

TENÓRIO, Carlene Maria Dias. A psicopatologia e o diagnóstico numa


abordagem fenomenológica-existencial. Universitas Ciências da
Saúde, Brasília, v. 1, n. 1, p. 31-44, 2008.
UM OLHAR FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL SOBRE UMA
AUTO COMPRENSÃO SOFREDORA – O “ DAR ERRADO”
É QUEM MANDA

A demanda

K é um homem de meia-idade, casado e com filho jovem. Está com a


família no exterior, fazendo uma capacitação profissional. Sua queixa
refere-se a crises de ansiedade que tem com frequência. Sente-se
sufocado, a garganta aperta e sente no peito uma aflição
insuportável. O fato de estar pela primeira vez no exterior em meio a
essa crise sanitária, com atividades acadêmicas interrompidas e a
necessidade de confinamento lhe aguçaram suas questões e
resolveu então procurar ajuda entrando em contato com a clínica. O
atendimento é realizado online semanalmente, apesar de
dificuldades com o fuso-horário, e até o momento de escrita do
estudo foram realizadas 13 sessões.

O paciente

Sua história de vida é dolorosa e a seguir faz-se um resumo das


sessões em que ele contou sobre sua vida. Ele é filho adotivo. Sua
mãe não podia ter filhos e, certa vez, andando no centro de uma
cidade metropolitana, viu uma moradora de rua grávida de meses
acompanhada por uma prole de 5 crianças. Era uma mulher em
situações precárias e aceitou o pedido da mãe de K para doar a
criança ao nascer. Esse fato, sobre a mãe biológica, que K
demonstrou uma certa indiferença, só foi conhecido por K muitos
anos depois de ocorrido, por intermédio de uma irmã de sua mãe,
uma das poucas parentes com quem K ainda mantém relação.
Quando tinha cerca de dois anos seu pai adotivo faleceu. Sua mãe
iniciou uma nova união, com um homem "austero que bastava um
olhar para se perceber a repreensão" (sic). No entanto, aos 16 anos
seu padrasto faleceu de um AVC nos braços de K. Cerca de 4 meses
depois, sua mãe também veio a falecer em um acidente de
automóvel. K ficou sozinho e teve que "lutar para sobreviver" (sic).
Seu padrasto e a mãe lhes deixaram alguns recursos e uma casa boa
em que viveu sozinho e depois casado. Seu padrasto deixou-lhe
algum dinheiro e uma pequena empresa, mas o acesso a eles foi
bloqueado pelo juiz até a consumação do inventário, que só se
realizou após 4 anos. Enquanto isso, catou “latinhas” na rua e foi
ajudante de pedreiro e de pintor durante esse tempo.
Posteriormente K trabalhou em empresas da cidade e começou a
fazer a faculdade, iniciando o exercício do magistério. Em Brasília há
mais de uma década, é professor.

Uma das fontes atuais de sua ansiedade é a questão financeira. Foi


para o exterior com uma bolsa, que tem metade de seu valor
consumido pelas despesas no lugar em que está residindo. Alugou
sua residência em Brasília, mas a taxa de câmbio, em razão da
política econômica e da pandemia, tem lhe sido altamente
prejudicial. A pandemia também acarretou a decretação da
quarentena em seu emprego no exterior, mal ele tinha chegado.
Tentou voltar para o país, mas há inúmeras complicações e
impossibilidades. E, ao mesmo tempo, não consegue concluir as
atividades que precisava fazer em seu curso.

K goza de boa saúde, apesar de ter sido acometido de uma doença,


que obrigou-o a retirar órgão do aparelho digestivo. Segundo K, essa
doença acomete mais frequentemente membros da etnia negra,
uma herança de sua mãe biológica, em suas palavras.

Uma preocupação que sempre o acompanha tem relação com o seu


filho. Segundo K, ele tem Transtorno de Atenção e Hiperatividade
(TDAH). Descobriu isso já há algum tempo, e um exame
relativamente recente “comprovou” sua suspeita. K gostaria que o
filho fosse um pesquisador, mas este não demonstrou nenhum
interesse nos estudos.
Certo dia um amigo, notando ansiedade em K, lhe questionou: “e se
seu filho quiser ser outra coisa?” K não respondeu. Seu filho
demonstrou interesse por um curso em saúde. Seu filho passou no
vestibular sem terminar o ensino médio, e K imediatamente
arranjou-lhe um supletivo, ele fez uma prova e acabou entrando na
faculdade. No segundo semestre foi reprovado em todas as
disciplinas e K descobriu que o filho usava drogas ilícitas. Na casa, as
coisas se complicaram. A mulher de K expulsou o filho de casa, e ele
foi para a casa de um amigo. O pai depois o procurou e conseguiu
trazê-lo de volta, convencendo sua mulher.

K conta em detalhes que conseguiu fazer uma varredura no celular


do filho e descobriu muitos nomes conhecidos como vendedores de
drogas, um inclusive já tinha passagem na polícia – essas
informações foram colhidas junto a um amigo que tem na Polícia.
Contou também que fez uma “pesquisa” na turma da faculdade do
filho e constatou que metade da turma era usuária de drogas. O filho
solicitou-lhe permissão para ir a uma festa de duração de mais de
um dia e K autorizou sob a promessa de que ele não devia fazer uso
de drogas. Ao retornar, seu pai constatou que ele voltou a fazer uso
de drogas, o que foi um drama terrível. Indagado sobre a
preocupação exagerada com o filho e suas necessidades de controle,
K afirma que a causa é sua história de vida. Fala que não suportaria
sobreviver à morte de um filho.

Sua mulher é outra narrativa preferida de K, dizendo que ela é muito


“retraída”. Contou que ela sofre de insônia, dormindo muito pouco,
cerca de duas a três horas por dia, e é um sono agitado. Falou que
certa semana, já no exterior, ele acordou meia noite e ela estava
sentada na cama. K voltou a dormir, acordando novamente às 5
horas da manhã e ela estava ainda na mesma posição - sentada à
beira da cama. Falou que ela sempre foi assim. No Brasil, ele havia
levado-a para fazer uma polissonografia (exame que monitora o
sono), tendo sido registrado um índice altíssimo. Falou também que
ela é “borderline”, sem especificar o que isso significa para ele.
Falou que esses seus problemas são decorrentes de situações
familiares passadas, onde K também relata uma história de muito
sofrimento por parte da mulher. Por tudo isso, ele acredita que sua
mulher tem esse jeito retraído e não tolera qualquer fato em
desacordo como os seus princípios. K relata que ela é
excessivamente ciumenta, tendo certa vez, quando ainda
namoravam na cidade de origem, após uma festa, ele a deixou em
casa e saiu, sem muita vontade, com os amigos e foram para um bar
na redondeza. Sua mulher desconfiou e percorreu vários bares e
boates em que K poderia estar. Ela chegou a percorrer vários
quilômetros não o encontrando. Assim, aguardou-o na frente da casa
de K. De manhã cedo, ao chegar em casa K foi agredido, tendo sua
moto destruída por ela. K afirma que jamais traiu a esposa, nesse
ponto revelando ser uma pessoa austera, só tendo tomado o
primeiro “chopp” com quase 40 anos de idade. K revela que sua vida
sexual é normal, sem explicar o que é esse “normal”. Também faz
referência que é muito controlador e que isso pode estar
atrapalhando sua relação com o filho.

Em várias sessões K trouxe suas apreensões em conversas com


colegas de trabalho. O medo de ser demitido e de ter reduzido o seu
salário sempre o acompanha. Traz o fato de que poderia ter feito
concurso público, mas optou por não fazer. Imagina-se exercendo
atividades fora do magistério, no comércio, por exemplo, como
formas de lidar com a situação angustiante em que se encontra e
construir novas possibilidades.

A percepção do psicoterapeuta da fala de K

K é uma pessoa afável de conversa fácil e com uma boa capacidade


de comunicação. É um homem alto e forte, uma presença que
sobressai em ambientes variados. Sua fala é constante e rápida, com
grande fluxo de palavras, coerente em todos os momentos, como
que se avisasse que se for permitido ele falará ininterruptamente.
Sua narrativa é linear, no sentido de que não há alterações corporais
razoavelmente significativas, a não ser quando fala da morte da mãe,
tais como embargar a voz, marejar os olhos, acelerar ou diminuir a
intensidade de sua fala e mexer-se excessivamente na cadeira,
demonstrando desconforto.
Pode-se dizer que ele já traz consigo o diagnóstico para os
problemas que relata. Nesse sentido, todas as suas questões são
atribuídas aos percalços e perdas de sua vida. Isso é facilmente
perceptível, pois desde a primeira sessão K sempre enfatizou alguns
acontecimentos de sua história. Ele relaciona sua ansiedade
diretamente aos fatos trágicos de sua vida, como a perda do pai,
quando ele tinha dois anos, depois a perda do padrasto e logo em
seguida a perda da mãe. Esses fatos são centrais para K, entretanto
ele os apresenta como algo inexorável, determinístico, como
prenúncio de catástrofes, que fazem como que K tenha que se
manter sempre alerta.

Foi trazido como tema para as sessões sua necessidade de controle


sobre si mesmo, sobre as demandas familiares e que pode ser
estendido para todas as suas áreas de atuação. Controle esse como
decorrente de sua "personalidade ansiosa" (sic), que o faz ser
excessivamente preocupado com tudo e todos a sua volta e/ou sob
seus cuidados, inclusive com antecipações irreais. São comuns suas
afirmações de que não sobreviveria à morte de um filho. Isso é
afirmado sem que o filho seja portador de qualquer doença grave
que ameace a sua vida, mas isso o acompanha e faz parte do seu
modo de ser-no-mundo.

O controle é um tema central de suas preocupações e de seu estado


geral. Em K esse sintoma se apresenta sobre as mais diferentes
formas, sendo bem visível quando acompanhada da compulsão e
inquietação em estabelecer parâmetros para esquadrinhar e colocar
os acontecimentos futuros, inclusive definindo e atribuindo
transtornos psicopatológicos às pessoas, como sua mulher e seu
filho, cujos exames somente “comprovam” as suas suspeitas. De um
certo modo, isso o conforta e o acalma, temporariamente, em um
sentido até mesmo mórbido, saber que pessoas queridas e próximas
de si estão “diagnosticadas” e dentro do seu parâmetro existencial.

Essa compulsão e desespero por enquadrar o futuro dentro de suas


previsões para satisfazer suas necessidades de controle é também
expressa pela citação de índices, taxas, níveis, medicamentos que ele
profusamente faz menção.
O remédio que sua mulher toma para a insônia, o resultado do
exame poligráfico a que ela se submeteu, o TDAH do filho, que
também fez um exame específico, são descritos com rigor científico
por K, e sobre os quais ele não coloca nenhuma dúvida e os aceita
como uma verdade irrefutável, para os quais não há solução em
horizonte factual.

Essa mesma compulsão é também observada na sua preocupação


exagerada com a vida do filho. Ajudá-lo a entrar na faculdade,
forçando-o a fazer um supletivo e um exame para entrar
antecipadamente, demonstram o seu nível de ansiedade e
compulsão. Do mesmo modo, hackear o telefone do filho para
descobrir e ver o alcance do seu envolvimento com as drogas e levar
o resultado para um amigo policial informar de quem eram os
nomes que apareceram na lista também demonstram o nível de sua
ansiedade. “Relatórios”, “listas” e “exames” são parte da vida de K. Ele
tem notório saber em sua área profissional, e seus trabalhos giram
na área de recuperação de pessoas que contraíram doenças graves.
Possivelmente, a escolha dessa área tem muito a ver com a
personalidade de K, reforçando nele o gosto por controles e aferições
mensuráveis, trazendo à tona uma outra dimensão sua, que é a
excessiva racionalidade e a pouca, ou quase nenhuma, importância
que atribui à sua vida emocional. Durante todas as sessões, ele não
fez qualquer referência a algo agradável, que o entusiasmasse e o
deixasse feliz, prendendo-se ao passado, agindo somente dentro do
que ele determina ou permite, sendo incapaz de ver o mundo por
outro ângulo, levando consigo sua própria família.

Outro ponto que enfatiza como contribuindo para o seu estado atual
de ansiedade é a questão financeira. Ele faz sempre referência às
suas dificuldades atuais, à bolsa de pequeno valor, à taxa de câmbio,
ao preço do aluguel e demais empecilhos ao seu bem-estar material.
São questões superdimensionadas, às quais ele confere atenção
exagerada, talvez fruto da penúria de seu passado. Nas últimas
sessões, K relatou que seu filho tinha começado a prestar serviços no
comércio, contribuindo para o orçamento familiar. Sua mulher
também havia começado a trabalhar como prestadora de serviços
gerais. E ele estava perturbado com o cenário.
Fundamentação Teórica e Desenvolvimento da Psicoterapia

Nossa psicoterapia vem se baseando nos ensinamentos do filósofo


existencial Kierkegaard e nos pressupostos da hermenêutica de
Heidegger. O método é o fenomenológico, que preconiza nos
concentrar e retornar “às coisas mesmas”. Fenomenologicamente K
mostra em várias falas que ele está preso ao passado, ao medo
acarretado pela perda repentina e abrupta dos pais e a sensação de
medo e impotência que se seguiu a esses fatos. Parte-se do princípio,
com base em Kierkegaard, que o “eu” deve se tornar ele próprio,
balanceando suas necessidades e possibilidades. O importante a
ressaltar é que a falta de um ou de outro leva o eu ao desespero
(FEIJOO, 2000). Nossa terapia tem como um de seus objetivos levar K
à refletir sobre sua própria fala, o que ela indica sobre suas reais
necessidades e um redirecionamento de suas possibilidades, bem
como a emergência de novas possibilidades, pois ele parece estar
prisioneiro de uma única possibilidade – tudo dar errado.

Só assim ele estará frente à sua angústia para exercer a liberdade de


escolha, imprescindível ao bom desenvolvimento da terapia. Nesse
sentido, o eu se encontra com ele próprio. No caso de K, suas
necessidades predominam sobre o leque de possibilidades de
satisfazê-las, que são muito limitadas, tornando sua vida asfixiante. A
angústia de qualquer existente, como a de K, segundo Kierkegaard,
conforme Feijoo (2000), traz o desejo de um futuro, de um devir, mas
ao mesmo tempo incorre também no receio do futuro, que foge às
reais possibilidades do existente, por ser imprevisível. Nos termos
heideggerianos, o poder-ser de K está reduzindo suas possibilidades
de realizar o seu ser-aí, ser-aí este que “é marcado pelo seu caráter de
poder-ser" (CASANOVA, 2013, p. 28).

Escapar a essa imprevisibilidade, decorrente da característica de


indeterminação do ente, uma indeterminação ontológica originária,
vem sendo tentado por K, e por ser logicamente impossível o seu
objetivo, por que procura evitar a morte, a angústia e a ansiedade, o
vem consumindo.
Por esse aspecto, K terá que percorrer um caminho, que pode ser
longo, para aprender a lidar com a sua angústia. Nesse sentido, as
possibilidades se encontram aglutinadas em estados (KIERKEGAARD
apud FEIJOO, 2000). Assim, a existência individual evolui por meio de
saltos de estados para estados, sendo o calibre do salto e os estados
tanto de onde se parte para onde se quer ir os objetos primordiais da
psicologia. Nesse sentido, o psicoterapeuta estará ao seu lado, como
companheiro de viagem de sua evolução, ajudando-o a
“desembaraçar-se dos laços de sua própria ilusão”, que para
Kierkegaard, é a ilusão de 'ser aquilo que não é'". (FEIJOO, 2000, p. 28)

Em Kierkegaard, aquele que precisa de ajuda está, na maioria das


vezes no estágio ético-estético, devendo o psicoterapeuta atuar de
forma paciente, pois a impaciência acaba reforçando, pois só assim
poderemos chegar ao paciente. Nesse sentido, é que estamos
atuando, deixando-o livremente contar sua história, pontuando
eventualmente sua fala. Também com base em Kierkegaard,
estamos procurando mais do que entender K, mas entender o que K
entende, pois se assim não for, a ajuda de nada lhe servirá.
(KIERKEGAARD apud FEIJOO, 2000). Assim nos aproximamos dos
postulados fenomenológicos-existenciais, pois estamos mais
interessados em como se realizam os processos de compreensão de
K do que propriamente em explicá-los.

Suas falas apontam para alguns exageros que devem ser


considerados. Assim, por exemplo, seus percalços financeiros e
problemas de colocação profissional são superdimensionados, como
também o fato de dizer que nunca fez terapia, quando ele mesmo
em outras sessões afirma o contrário, como se querendo aumentar a
percepção de seus problemas. Essas e outras questões indicam a
existência de várias falas inautênticas.

Segundo Heidegger (FEIJOO, 2000), é por meio da fala que é dada


voz à hermenêutica, a modalidade de compreensão bem específica
da Daseinanaylse, compreensão essa sobre a qual se erigirá a
interpretação do dizer do paciente. Nesse sentido, devemos recorrer
à investigação do Dasein não como uma unidade fechada.
Como um método fenomenológico, deve-se partir daquilo que é
evidente, que se mostra por si mesmo, que se desvela. K traz em sua
fala diversas evidências, que somente devem ser consideradas pelo
psicoterapeuta quando aceitas por ele próprio. Nossa ação tem sido
a de permitir o pensar sobre o “modo diálogo”, pois só assim, poderá
emergir o ser do ente, numa fala livre e cheia de possibilidades.

Nesse sentido, estamos travando conhecimento com o ente K, com o


objetivo de estabelecer um diálogo que permita a ele vislumbrar
suas possibilidades para realizar um novo devir em sua vida,
aproximando seu ente do seu ser. Nesse diálogo, o ente pode
mostrar-se de diversas formas, as quais o terapeuta deve estar
atento. Segundo Heidegger (FEIJOO, 2000), a forma de se mostrar do
ente pode na verdade mostrar-se como ele não é, denominada de
aparência; emergir como coisas que apenas se anunciam, sem
mostrar-se (manifestação); e de mostrar-se ao mesmo tempo em
que esconde, o entulhamento. K incorre em todas essas formas do
mostrar o seu ser-aí.

K revela estar muito preso aos fatos trágicos de sua existência, como
se não houvesse outras possibilidades de significar suas situações
atuais. Coloca a mulher e o filho como objetos de seu medo, de seus
receios e temores, resultantes de suas construções comuns de
cenários catastróficos. Na verdade, o receio e o medo são dele
mesmo. K racionaliza tudo o que acontece em sua vida. Tem na
ponta da língua todos os exames, índices e remédios para os males
que atribui a si mesmo e aos seus. A sua profissão e atuação refletem
muito bem os seus sintomas.

Toda essa situação revela em K o pouco espaço para a manifestação


de suas emoções, preponderando sempre em sua vida o lado
racional, de medição e de controle que ele exerce sobre si mesmo,
sobre seu filho e sobre sua mulher. O perfeccionismo que dedica a
todas as suas atividades, como o fato relatado em uma sessão, de
que ele quando orienta o trabalho de alguém, na maior parte das
vezes, a sua ansiedade o impele a fazer o trabalho para esta pessoa,
tão envolvido que está com sua necessidade de perfeição e controle.
Nesse sentido, a fala de K deixa transparecer um ser completamente
inserido no mundo da técnica, como a maior parte de nós, que para
Heidegger é a atmosfera moderna (Gestell) em que as existências
existem (FEIJOO, 2017). No mundo da técnica prevalece o
pensamento calculante, que quer prever, controlar, planejar o existir
humano, destacando-se a ação eficiente como objetivo a ser
perseguido pelos entes, obscurecendo “outro modo de se deixar
estar diante daquilo que nos vem ao encontro” (FEIJOO, 2017, p. 86).
Contrapondo-se ao pensamento calculante, Heidegger propõe o
pensamento meditativo, como necessário ao resgate da essência do
ser, a ser alcançado por meio da serenidade, que possibilita “se deixar
tomar pelas coisas, abdicando de querer com toda a força que as
coisas se deem ao seu modo” (FEIJOO, 2017, p. 89). Esclareça-se que
um tipo de pensamento não afasta o outro.

Nossa psicoterapia vem procurando criar espaços no sentido de


valorizar o pensamento meditativo, buscando espaços para que eles
ocorram e K possa vislumbrar novas possibilidades e seja capaz de
ouvir a si mesmo, por meio de uma abertura que se mostra ainda
muito inibida. Está-se procurando encontrar brechas no fluxo
narrativo intenso de seus sofrimentos, mas deparamo-nos com
inúmeros empecilhos, como se K tivesse medo do silêncio e não
quisesse deparar-se com o que dele pode resultar.

Tanto para Kierkegaard como para Heidegger, o movimento


constitui o “eu”. Para o primeiro, a ausência de movimento implica
em estado de queda do indivíduo. O ser que procura uma
psicoterapia debate-se contra si mesmo, está em desespero, à
procura de resolver os conflitos e ambiguidades de sua existência.
Nesse sentido, Kierkegaard (FEIJOO, 2000) propõe três dialéticas em
que se coloca na evolução da vida do ser humano: a dialética do
finito e infinito, o eterno e o temporal e as necessidades e
possibilidades. Duas delas são suscetíveis para abordar a existência
de K, e vínhamos atuando por essa perspectiva. Em primeiro lugar,
suas necessidades e possibilidades. Quando preso às suas
necessidades o homem se paralisa, pois nada depende de si. Por
outro lado, quando se atém somente às suas possibilidades,
esquece-se dos seus limites e tudo pode.
Trabalharemos para que K reconheça suas necessidades e
possibilidades em conjunto com a colocação de limites à realização
de ambas. A ação de K está muito voltada para a satisfação de
necessidades unicamente de um ente desconectado do seu ser, que
está à procura de uma fresta para desvelar-se. Na dialética do
temporal e do eterno a existência se apresenta como uma síntese
entre passado, presente e futuro. Aquele que se perde no eterno
acredita que nada lhe acontecerá, é um ser diferente e especial.
Aquele que está no polo contrário, o temporal, teme tudo, teme o
tempo. Nesse sentido, protege-se de todas as formas possíveis,
acreditando que assim agindo poderá evitar a morte. O temor da
morte do filho, na verdade o temor da própria morte, aparece em K
como definidor de que ele passa muito tempo no polo temporal, não
exercitando o “ir e vir” entre os extremos como o atributo de uma
vida mais madura e verdadeira. Fazê-lo compreender a necessidade
desse “ir e vir” nessa dialética tem sido um objetivo perseguido pelo
processo terapêutico.

Outra via de acesso ao sofrimento de K pode ser colhida quando


acrescenta-se a dimensão política. Nesse sentido, esse sofrimento é
também político, pois “em seu sentido originário... a política diz
respeito à coexistência e associação de homens diferentes” (JARDIM,
2013, p.18). Desse modo, “a clínica não pode se prestar a ser um
instrumento individualizador, pois a clínica é política” (JARDIM, 2013,
p.18). Há um certo consenso entre os estudiosos de que a sociedade
contemporânea se caracteriza pela compulsão de seus membros.
Byumg-chul Han (s/d) chama-a de sociedade do desempenho. O
excesso de individualismo transfigurou o capitalismo de uma
sociedade disciplinar, cujo olho pan-óptico, anunciado por Bentham
e criativamente usado por Foucault, que exerce a vigilância sobre os
indivíduos, para a sociedade do desempenho, em que a vigilância é
exercida pelo próprio indivíduo sobre si mesmo de uma forma cruel
e desumana. Isto foi possível graças ao sistema do capitalismo neo-
liberal contemporâneo que difundiu a ideia de positividade, nova
técnica de poder, em que o indivíduo pode tudo, negando a
negatividade, necessária ao desenvolvimento sadio do ser do
homem.
Como não podemos tudo, na verdade uma grande ilusão, quando
não alcançamos os resultados estipulados (por nós mesmos)
sobrevêm a depressão, o Burnout e as crise de ansiedade. Não há
como deixar de fazer conexões entre a situação de K e a elaboração
desses conceitos, que de uma forma ou de outra estão contidos em
sua afirmação de que “o mundo todo está contra mim” (sic). Mundo
aqui, entenda-se, seu si mesmo. Daí seu sentimento de culpa, sua
depressão, burnout e crise de ansiedade.

K demonstra um eidos heróico, em que qualquer objetivo que


estabeleça para si mesmo somente pode ser realizado com intenso
sofrimento. Esse seu modo de ser, decorrente de sua história de vida,
lhe retira toda a energia, tornando sua vida um fardo. O desvelar-se
do seu ser pode com certeza contribuir para diminuição dessa sua
tendência.

Uma questão vem perpassando os atendimentos realizados até aqui:


a resistência que K opõe ao mostrar-se, reconhecer suas indecisões e
apatias frente aos dramas de sua existência, que o impedem de
manifestar-se. O psicoterapeuta tem se municiado de todos os
cuidados necessários, observando com o maior rigor os
aconselhamentos de Kiergegaard para o manejo terapêutico, e dito
anteriormente. Numa psicoterapia fenomenológico-existencial a
angústia tem que de alguma forma ser mantida. Ela é imprescindível
à continuidade do processo terapêutico, mantendo um nível de
tensão necessário à saída do paciente de sua situação de desespero
por meio da ação terapêutica.

Essa questão vem se mostrando um tanto complicada. Além dos


empecilhos já colocados um outro vem a esses se agregar, que é a
realização da psicoterapia de modo remoto. O sofrimento de K vem
se mostrando de grande intensidade, o que demandaria uma
psicoterapia presencial. Sem dúvida, esta se demonstra mais
promissora para o caso. A observação de corpo de K fica prejudicada,
pois ele participa das sessões em sua casa, onde sempre procura um
lugar mais adequado, ou a faz dentro do carro. Assim, ao dizer que
estava perdendo peso, não pude verificar o seu alcance, até mesmo
por que os atendimentos foram sempre por via remota.
Isso também tem limitado a aplicação das técnicas de relaxamento,
que em K têm se mostrado necessárias. Nesse contexto, venho lhe
indicando, até certo ponto com insistência, um atendimento
psiquiátrico, que ele ainda não viabilizou.

Entretanto, podemos afirmar que a psicoterapia vem apresentando


uma boa evolução, o que pode ser verificado pelos assuntos trazidos
por K nas três últimas sessões, culminando com a sua afirmação na
última sessão, em que disse que “o mundo todo está contra mim”.
Sua fala vem se deslocando dos problemas do filho e da mulher, e
até mesmo de seu passado difícil, para si mesmo. Assim, tal postura
pode ser indicativa de que K está iniciando e assumindo
responsabilidade com o seu próprio processo de desenvolvimento,
onde a angústia, decorrente de seu liberdade, possa ser enfrentada e
com isso novas possibilidades podem desvelar-se.

O Psicoterapeuta na Psicoterapia

O atendimento de qualquer paciente me afeta, sendo verdade que


uns mais, outros menos. O de K, particularmente, alguns itens se
destacam. Um deles refere-se à sua ênfase em seu passado como
construtor de seu sofrimento, o que até certo ponto é verdadeiro. O
que me chama a atenção é isso funcionar como justificativa para sua
inação frente às suas questões. Durante parte de minha vida assim
me situei, sem a intensidade de K, mas conheci algo que se
assemelha a esses sentimentos.

Colocar o atingimento de metas inalcançáveis e atribuir o seu


malogro a outros ou ao mundo foi algo também que me atravessou
e, de um certo modo ainda me atravessa, é um componente não
desprezível e que eventualmente emergiu na relação terapêutica.

O atendimento de K me propiciou encontrar conexões entre a vida


de um ser-no-mundo e os saberes psicológicos que embasaram
nosso relacionamento. Foi altamente gratificante o debruçar-se nos
livros e a experiência do atendimento e ir pouco a pouco me
familiarizando com a clínica fenomenológica-existencial, que cada
vez mais me seduz.
No mesmo sentido, encontrar vínculos e conexões entre o seu
sofrimento, que é de todos de um modo geral, e a macro
organização político-social muito me satisfaz, as interconexões entre
Filosofia, Política e a Psicologia têm muito a me dizer. Por último,
mas não menos importante, o atendimento de K vem me mostrando
os limites da psicologia e do atendimento psicoterápico,
independentemente da abordagem.

Posfácio

O estágio supervisionado terminou em meados de agosto, período


em que foram realizadas as 13 sessões ditas no primeiro parágrafo,
mas continuamos com as sessões até o final do mês. Propus-lhe
continuar com os atendimentos, agora mediante remuneração a
preços sociais. Ele hesitou mas disse que pretendia continuar. No
final do mês de setembro conversamos sobre o fato de que ele
faltara às últimas sessões. Ele me disse que me ligaria para
conversarmos. Nunca ligou. Podemos considerar então que ele
abandonou a terapia.

As duas sessões de agosto e as duas de setembro foram bem


indicativas de seu desfecho. Elas praticamente foram dedicadas à
questão de seu retorno ou não ao Brasil. K alegou que já não
aguentava mais, que era muito sofrimento. Entretanto, sua família
pretendia ficar. Seu filho estava trabalhando, assim como sua
mulher. Portanto, isso estava aliviando a questão financeira. Na
verdade, sua mulher e filho estavam demonstrando muita
determinação em suas atitudes. Sua mulher inclusive, por meio de
um grupo de brasileiras na cidade no qual já se inserira, conseguira
para ele uma consulta com uma médica na cidade, que lhe receitou
alguns remédios para diminuir sua ansiedade. Remédios aos quais
ele não se adaptou.

Ele falou que achava terrível ficar só em casa, que isso era um
tormento. Surgiu a ideia de arranjar alguma ocupação, enquanto não
retomava a atividade que estava suspensa devido à COVID-19.
Não sabemos que decisão tomou. Mas ficou evidente o avanço da
terapia, já que esta se deslocara das questões de sua família,
principalmente mulher e filho, que demonstraram enorme presença
e capacidade de adaptação, para as indecisões e questões próprias
de K.

Referências

CASANOVA, Marco Antonio. Heidegger e o escuro do existir: esboços


para uma interpretação dos transtornos existenciais. In:
EVANGELISTA, Paulo Eduardo R. A. (Org). Psicologia
fenomenológico-existencial: possibilidades da atitude clínica
fenomenológica. Rio de Janeiro: Viaverita, 2013.

FEIJOO, Ana Maria L. C. de. A escuta e a fala: uma experiência


fenomenológico-existencial. São Paulo: Vetor, 2000.

___________ . Existência & Psicoterapia: Da psicologia sem objeto ao


saber-fazer na clínica psicológica existencial. Rio de janeiro: IFEN,
2017.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnica


de poder. Belo Horizonte: Âyné, s/d.

JARDIM, Luis Eduardo Franção. Compreensão e ação na clínica


fenomenológico-existencial. In: EVANGELISTA, Paulo Eduardo R. A.
(Org.). Psicologia fenomenológico-existencial: possibilidades da
atitude clínica fenomenológica. Rio de Janeiro: Viaverita, 2013.
O olhar fenomenológico-existencial perante um
estudo de caso: a abertura de possibilidades e os
modos-de-ser no mundo

O caso

Rosa (nome fictício) é uma mulher de meia-idade que chegou ao


consultório dizendo que queria se conhecer melhor, mas não sabia
se iria continuar. Ela participou de dez atendimentos. Atualmente
não tem um emprego, mas quando tinha, trabalhava com serviços
gerais. A paciente prefere ser chamada de Rosa e reside com seu
marido e a filha deste, pela qual demonstrou ter tido desavenças.
Rosa gerou um filho que teve quando jovem, em seu primeiro
casamento, mas não reside com ele. Tinha uma filha do seu atual
casamento. Esta filha tinha uma doença congênita e faleceu há
aproximadamente três anos.

Para fazer a leitura da paciente foi feito o uso de conceitos


existencialistas e o “como”, o método, da Fenomenologia. A
Fenomenologia tenta elucidar o Eidos do fenômeno, a essência, de
maneira que se chegue a esse lugar a partir de um conhecimento
não reflexivo, empático e por meio do vivido. Ou seja, segundo Dutra
(2013), para que seja possível compreender essas experiências diretas
da vida é preciso compreender o que precede a teoria, o que ocorre
independentemente das ciências e por meio da intuição e
receptividade. Saímos do que é reflexivo proposto pela filosofia
tradicional e vamos para o que se acredita ser necessário para
alcançar o mundo vida. Assim sendo, é por meio de uma filosofia
originária, que é pré-teórica, não-reflexiva, que alcançamos a
Hermenêutica de Heidegger.
Segundo Seibt (2012), a Hermenêutica liberta o ser da cristalização e
deixa-o aberto para as possibilidades e ao mundo, pois crê que a
vivência (objeto reflexivo) ultrapassa a teoria, entende a totalidade e
a continuidade da vivência (acompanha o fluxo do que vai se
realizando, continuamente), sendo o que deve ser feito em
consultório. Por meio do que se entende sobre hermenêutica, visou-
se o auxílio no distanciamento da cristalização, deixando a paciente
aberta para as possibilidades. As coisas, por meio do que é reflexivo,
acabam sendo objetificadas e por isso o compreender da
Hermenêutica busca acompanhar esse acontecer sem objetificar,
mas por meio da vivência pura, da vida em si (SEIBT, 2012). Antes de
qualquer coisa, existe a significatividade.

As coisas significam para a paciente nessa abertura do mundo, não


existindo separação entre sujeito e objeto no pré-reflexivo, pois o “eu”
está indissociavelmente inscrito no acontecimento, sendo um “eu”
histórico por esse motivo e não um “eu” teórico. Foi preciso entender
o sentido construído para as coisas, por Rosa, ao longo de sua
história. É preciso entender o nosso papel de tirar da simples
narrativa e chegar ao afeto. Percebe-se grande dificuldade em tirar a
paciente da simples narrativa, onde conseguiria se afastar de seus
afetos e do que a incomoda, abordando somente histórias de seu
passado. Com o decorrer dos atendimentos, Rosa conseguiu entrar
em contato com algumas vivências e também falar de seu presente,
coisa que não ocorria de forma alguma, uma vez que parecia viver
constantemente o seu passado.

É necessário, para proceder com os atendimentos, ter em mente que


nada determina o homem a priori e esse homem só existe em
relação ao mundo, em uma relação inseparável com este “ser no
mundo” assim como o próprio clínico (DUTRA, 2013). O humanismo é
considerar e se preocupar fundamentalmente com o humano,
sempre em projeção, fora de si, no mundo e em liberdade (SARTRE,
2006). A fenomenologia na psicologia é considerar um ser humano
não numa relação com ele mesmo, mas um ser no mundo e que é
atravessado por múltiplas dimensões de múltiplas ordens. Aplicar
tudo isso na prática clínica implica estudo dessas bases e
compreensão não somente da doença, mas do ser do ente, da
vivência, do processo de devir (DUTRA, 2013).
Foi necessário, por esse motivo, compreender a alma desse
problema, entender o sentido desse modo de funcionar para a
paciente e as relações que construiu em sua vida. Sendo assim,
questionou-se qual o modo de ser no mundo de Rosa e o sentido
desse funcionamento em sua vida.

Rosa relata diferentes acontecimentos impactantes em sua vida. O


primeiro foi a vivência na casa de uma mulher que explorava a
paciente, o segundo foi a desilusão em seu primeiro casamento, o
terceiro quando descobriu que iria ser mãe novamente quando já
estava mais velha. O quarto foi quando descobriu, pelo médico, que
sua filha tinha doença congênita e por fim, o falecimento dessa.

Esta é uma paciente que desde cedo passou por dificuldades


financeiras e teve de começar a trabalhar precocemente. Devido às
dificuldades financeiras de sua mãe, a responsável se casou com um
senhor de idade com melhores condições de vida e com ele teve
alguns filhos além de Rosa. O padrasto já possuía outros
descendentes e quando este já não conseguia mais sustentar a si e
sua família, decorrente de suas limitações físicas próprias da idade,
Rosa foi morar com uma das filhas mais velhas de seu padrasto,
onde dizia ser um “cativeiro”. Nesta casa, relatou trabalhar em troca
de roupas e comida, sendo "quase uma escrava" (sic).

Segundo Sartre (2006) a liberdade é inerente a todo ser humano e é


a escolha entre as distintas possibilidades. Negar essa liberdade seria
o que o autor denomina como má-fé, onde o homem se abstém das
responsabilidades perante as escolhas. Por um tempo, foi desta
forma que Rosa se portou, negando suas possibilidades e
permanecendo no mesmo ambiente, mesmo com a possibilidade de
sair que ela mesma deixava claro nas sessões, permanecendo neste
papel de aprisionada. Mesmo podendo sair da casa ela permanecia,
pois dizia acreditar e a mulher reforçava a idéia de que ela não
conseguiria nada longe desta casa. Percebo um sentimento que
aparenta se relacionar ao rancor, ao falar da mulher, mas logo Rosa
se poda por ser um sentimento “proibido”.
Tal acontecimento pode estar relacionado aos valores morais religiosos que
se assemelham com os valores instituídos socialmente presentes nas falas
da paciente. Ou seja, se aproxima do que é imposto e se afasta de sua
autenticidade. Caes (2011), ao trazer o conceito de indivíduo de Kierkegaard
trata que houve um tempo em que se enxergava a exterioridade em
detrimento da interioridade por meio de uma certa massificação.
Entretanto, o indivíduo torna-se, não por influência superior externa, mas
por decisão própria. Se o contrário fosse possível e se considerasse a
superioridade do que lhe é externo, Rosa estaria fechada em si. Na clínica
psicológica existencial é necessário constantemente questionar as
verdades universais para ser capaz de chegar em uma transformação da
realidade particular, na autenticidade. Ou seja, na abertura do que seria a
medida existencial por meio de afetos transformadores (FEIJOO, 2017).

A paciente relata que sempre teve um grande sonho de estudar, e por isso,
haja vista que a mulher pela qual ela trabalhava não gostava dessa ideia,
Rosa continuava trabalhando, indo pra escola e estudando no tempo que
lhe restava. A paciente responsabiliza essa mulher por ter “tirado dela” o
sonho de estudar, limitado suas possibilidades e não ter concluído os
estudos. Também é possível relacionar aqui a responsabilidade colocada no
mundo. A paciente é uma mulher que permanece em seu passado, presa
na culpa que atribui à aquilo que lhe ocorreu. Segundo Feijoo (2017), como
mundo e homem são indissociáveis, um influenciando a existência do
outro, percebe-se a responsabilidade do mesmo por aquilo que se apropria.
Uma vez que Rosa atribuía a responsabilidade àquilo que lhe era externo,
ficava impossibilitada de mudar sua situação, uma vez que não assumia
essa responsabilidade. Moreira (2009) também aborda a necessidade da
retirada da dicotomia entre mundo e homem, uma vez que o social e o
individual não se dissociam. A autora também trata do momento em que
isso é superado.

Rosa conheceu o homem com o qual se casou, contudo, ele era uma
pessoa que viajava muito. Quando ela ficou grávida, seu esposo não passou
esse período na cidade com ela e sumiu por um tempo. Quando retornou,
muito tempo depois, Rosa disse que não iria mais viver nessa angústia.
Rosa retornou à casa do padrasto e em seguida voltou a morar com a filha
deste, visando não ser uma “despesa” (sic) na casa do marido da mãe.
Quando sua irmã viria para Brasília, Rosa foi junto e deixou a mulher,
momento que considera seu “grito de liberdade” (sic), mas deixou o filho na
cidade junto com a mãe.
É possível hipotetizar um arrependimento de Rosa, por não levar, em
princípio, o filho com ela para Brasília. Segundo De Queiroz (2010), o
arrependimento vem da impossibilidade de anular a escolha que seria
inerente a todo ser humano. A paciente também evidencia muita
culpa por não ter cuidado desse filho no começo de sua vida. Seus
irmãos, seu filho e sua mãe, depois de um período, foram morar com
ela em Brasília, onde ficou sobrecarregada e sustentava praticamente
tudo. Sendo assim:

A liberdade conduz o homem à dúvida em relação à opção que irá adotar. Apesar
disso Sartre fundamenta que o homem nunca deve ter remorso, embora se o tiver,
demonstrará arrependimento pelas opções escolhidas. De certa forma, os remorsos
seriam uma forma de negar a própria atitude humana. (DE QUEIROZ, 2010, p. 12)

A paciente apresenta uma grande contradição na medida em que diz


que o que acontece no passado fica no passado, mas não consegue se
implicar no presente. Ela tenta narrar a sua história se distanciando da
mesma, contudo percebemos a forma como esse passado impacta o
seu presente, falando dele ou não. Pode-se hipotetizar um modus
vivendi focado no passado, ou seja, a paciente atualmente está
“vivendo” o presente sem nem “ver os dias passarem” (sic), como
relata. Segundo Costa e Medeiros (2009), Henry Bergson afirma que o
tempo mensurável não é o tempo em questão. O tempo do relógio,
cronológico, não é aquele que experienciamos. É por meio de uma
experiência interna que se faz o tempo vivido. Na consciência, o
tempo passado é constituído por memória, o presente pelas
sensações e movimentos direcionados ao futuro e o futuro pelas
expectativas. Costa e Medeiros (2009) ressaltam ainda que Minkowski
trabalha a ideia de que a recordação pode nos fazer viver o passado
no aqui e no agora, mas com possibilidade de ressignificação e por
meio desse movimento, é possível ter trabalhado esse aspecto em
terapia. Foi por meio da vivência desse passado no presente em um
ambiente facilitador que a ressignificação foi possibilitada, por meio
dos afetos transformadores. Isso ocorre na medida em que o ser
humano é um ente que se destaca dos demais por sua capacidade de
questionar o próprio ser (FEIJOO, 2017).
A paciente diz que não temos sentido para nossas vidas, uma vez que
o destino é a morte. Bergson (2005), a respeito da temporalidade,
discute o conceito de élan vital. O élan vital é a intencionalidade que
orienta a pessoa para o futuro, direcionando o tempo, que lança à
frente. No caso da paciente, pode se avaliar que esse élan vital se
apaga, ela perde o seu “vir a ser”, perde seu “sentido da vida” quando
não tem mais essa espera e esperança em um propósito. Nessa
acepção, "o tempo não pertence, pois, às coisas do mundo, e sim, à
extensão do próprio espírito, que na experiência cotidiana o vivencia e
o mede, determinando sua duração com base em outras durações
memorizadas" (COSTA; MEDEIROS, 2009, p. 376).

Rosa evidenciou um sentimento de impotência dentro de si diante da


realidade, o que poderia gerar angústia diante da inadiabilidade da
morte. Foi evidenciado para a paciente a indissociação entre vida e
frustração. Sendo assim, que a vontade não implica na
obrigatoriedade do poder. Ou seja, Rosa cuidou de sua filha enquanto
viva, mas ao querer viver algo que não lhe é mais possível, quando se
finda as possibilidades (morte), a paciente se frustra. Com sua filha
Rosa sentiu a dor de ter uma criança diferente das demais e em um
momento que não queria mais engravidar. Também sente dor de
abrir mão de sua calmaria para cuidar de uma criança muito ativa e
posteriormente, a dor por perder essa filha.

É preciso compreender que dor é diferente de sofrimento. A primeira


é algo inevitável e a segunda é a dor da dor, ou seja, é a lamentação
pela dor. Rollo May (1988), apud Moreira (2011, p.176), esclarece e
sintetiza em seu trabalho os três modos de ser no mundo de
Binswanger:

[...] O primeiro modo é o Umwelt, que significa literalmente “o mundo ao redor”. É o


mundo natural, o mundo biológico, conhecido por ambiente. O Umwelt é o mundo
material, que cerca a todos os animais e seres humanos, abrangendo necessidades
biológicas, impulsos e instinto [...] O segundo modo – mitwelt - é o mundo dos inter-
relacionamentos, o mundo com o outro, que caracteriza o humano [...] O Eigenwelt
pressupõe uma autoconsciência, uma percepção de si mesmo, um “auto-
relacionamento” que também está presente apenas nos seres humanos. Não se trata
de uma experiência meramente subjetiva, ao contrário, é a base sobre a qual nos
relacionamos a partir da percepção do que uma coisa qualquer no mundo significa
para mim (ROLLO MAY, 1988 apud MOREIRA, 2011, p.176).
Rosa, em relação ao seu Eigenwelt (o modo de ser, consciência de si),
não conseguia olhar para si na medida em que estava sempre focada
ao seu redor e aos acontecimentos externos. Em relação ao mundo
circundante, Umwelt, haja vista que o ambiente altera nossas próprias
percepções, percebeu sua mudança como uma passagem e novas
formas de ver a vida e o seu redor. Em relação ao Mitwelt, vivia em
uma relação de submissão ao outro, se afastando desse modo de ser
com o tempo, se apropriando de sua autonomia nas relações,
gradativamente. Com o passar do tempo, quando foi começando a
olhar para si, percebeu-se sem sentido, como se a vida fosse só viver e
morrer. Hipotetiza-se que o sentido da vida de Rosa vai se dissolvendo
na medida em que vai perdendo figuras importantes de sua vida.
Primeiramente evidencia-se a perda da mãe do marido, sua sogra,
pela qual sentia muito afeto e que faleceu em seus braços.
Posteriormente a morte de sua filha, a morte de seu irmão e dos
gatos (que segundo ela, pediam por cuidados) que teria adotado após
a morte da filha.

A morte é um fenômeno da vida, que segundo Heidegger, o ser-aí se


encerra e a paciente tem de criar novas formas de ser no mundo já
que o ser-aí não se findou, mas deixou de viver. Ao perder sua filha,
pode-se inferir que ela perde bruscamente sua ocupação, a
identidade que era a de cuidadora. Seu modo de ser no mundo era
dado por meio do cuidado, desde muito nova. Percebe-se a essencial
questão cuidadora que a paciente possui, sua forma de se relacionar
com os outros (Mitwelt). Cuidou da filha de seu padrasto, de sua mãe,
da mãe de seu esposo, de seus irmãos, dos seus gatos e de sua filha.
Desta perda de identidade surge a angústia por ter de olhar para si e
se responsabilizar por ela mesma. O cuidado segundo Heidegger
(1996), não se dá da mesma forma, como uma relação, mas aquelas
abertas para a possibilidade.

No decorrer dos atendimentos, percebe-se que a paciente,


vagarosamente foi se afastando de determinações morais e abrindo
espaço para o diálogo clínico acontecer. Assim, nos afastando da
inautenticidade e nos aproximando da abertura para as
possibilidades. Foi necessário questionar e diferenciar um modelo de
vida ideal construído socialmente do modelo de vida da própria
pessoa, chegando à medida existencial.
Rosa relata ser grata por tudo que lhe ocorreu e nega possuir
sentimentos como raiva e rancor, por exemplo, se distanciando dos
sentimentos tidos como “feios”. Negando as determinações entramos
em contato com a essência e só assim ganhamos liberdade. Foi
necessário auxiliar a paciente para se afastar de suas determinações,
inclusive aquela imposta pela própria idéia de identidade, abrindo
espaço para o diálogo clínico acontecer e assim, negando as
determinações, entramos em contato com a essência e só assim
ganhamos liberdade.

Aguardou-se pela crise existencial, onde o horizonte hermenêutico foi


suspenso (orientações e determinações) e o sujeito se abriu para as
possibilidades (FEIJOO, 2017), conquistando o caráter do “poder ser”
característica do ser-aí. Neste momento, Rosa começou
espontaneamente a relatar, pela primeira vez, acontecimentos que
estariam no seu presente, como ela estava se sentindo e o que a
estava angustiando. Rosa não parou de falar do seu passado, mas
aparentemente parou de se posicionar nele.

Além do presente e passado, a paciente se angustia quando relata


não querer passar por uma fase de doença na velhice em que não se
sabe se morre ou não, se vai continuar naquele processo ou não. Ou
seja, na ausência dessa determinação, Rosa se angustia com o
desconhecido.

Rosa foi uma paciente que me despertou angústia no início dos


atendimentos. Isso aconteceu, primeiramente, por não demonstrar
interesse em participar dos atendimentos. Também se mostrou a
mim como uma pessoa bem resolvida com tudo que havia lhe
ocorrido, me passando a sensação que conseguia tirar proveito de
tudo aquilo que teria acontecido com ela. Tal fato me angustiou, pois
não conseguia ver um problema ou uma forma de ajudar a paciente,
o que seria um sentimento contraditório, pois o que eu acreditava que
ela já teria, seria o que a terapia poderia evidenciar para o próprio
sujeito. Tive de lidar ainda com a minha dificuldade em não agradar o
outro pela insegurança com o prosseguimento da terapia, além de
abandonar um pouco a ansiedade para deixar que a relação
acontecesse e que Rosa se mostrasse na mesma.
Não existe na clínica psicológica existencial, um modelo ou um modo
repetitivo de se fazer algo que seria utilizado da mesma forma em
outra situação clínica. Foi considerando a singularidade de cada caso
que se fez necessário o estudo das suas peculiaridades. Cabe à
fenomenologia o exercício do fazer, para que se possa conhecer
(FEIJOO, 2017). É necessário colocar o homem em evidência e o modo
como esse homem se relaciona com o mundo, compreendendo o
outro a partir do próprio olhar do sujeito.

Referências

BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. São Paulo: Editora UNESP, 2005.


CAES, Valdinei. A concepção de indivíduo segundo Kierkegaard. In: VII
Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar, 7., 2011, São Carlos.
Anais... São Carlos: UFSCar, 2011, p. 437-446.
COSTA, Virginia; MEDEIROS, Marcelo. O tempo vivido na perspectiva
fenomenológica de Eugène Minkowski. Psicologia em estudo, v. 14, n. 2, p.
375-383, 2009.
DE QUEIROZ, Paulo Ricardo Miranda. O conceito liberdade em Aristóteles
e no existencialismo de Sartre. TCC (Licenciatura Plena em Filosofia) –
Faculdade de Filosofia, Universidade de Anápolis. Anápolis, 2010.
DUTRA, Elza. Formação do psicólogo clínico na perspectiva
fenomenológico-existencial: dilemas e desafios em tempos de técnicas.
Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, v. 19, n. 2, p.
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FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo. Existência & psicoterapia: de la psicologia
sin objeto al saber-hacer en la clínica psicológica existencial, 2017.
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MOREIRA, Virgínia. A contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian
para a psicopatologia fenomenológica. Revista da Abordagem Gestáltica:
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MOREIRA, Virginia. Clínica humanista-fenomenológica: estudos em
psicoterapia e psicopatologia crítica. Annablume, 2009.
SARTRE, Jean-Paul. El existencialismo es un humanismo. UNAM, 2006.
SEIBT, Cezar Luís. Heidegger: da fenomenologia "reflexiva" à fenomenologia
hermenêutica. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 19, n. 31, p. 79-98,
2012.
“COMO QUE EU IRIA ME LIBERTAR, SE EU IA TER ERA UM
DONO PORQUE EU ERA DE MENOR?”: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE LIBERDADE, ABSURDO E OUTRAS COISAS

Sara (nome fantasia) procurou a terapia por indicação da terapeuta do


filho, que está sendo atendido na mesma clínica, por entender que ela
estava muito sobrecarregada. Foram realizados atendimentos
semanais na modalidade de Psicoterapia Breve, com duração de
cerca de 1h, no espaço da Afethos. Foram realizados ao todo 16
encontros.

Em princípio Sara não via necessidade ou utilidade de fazer o


acompanhamento e dizia que foi porque a terapeuta do filho pediu
que fizesse, por ser gratuito e por já estar ali naquele horário
esperando o filho. Entendia nosso encontro como uma espécie de
“passatempo” (termo meu) enquanto esperava seu filho, que no caso
sim necessitaria do acompanhamento.

Algo que foi constante em quase todas as sessões foi dizer que não
saberia o que falar ali, apresentando uma grande dificuldade de
relatar seus problemas e o que sentia. Não obstante, a percepção de
que não se beneficiaria da terapia começou a mudar a partir do
segundo atendimento e já era radicalmente contrária no fim das
sessões.

Na primeira sessão ela, de fato, aparentava estar muito cansada,


desanimada e triste. Mesmo relatando que não precisava de ajuda,
não negava os problemas que tinha. Relatou que estava trabalhando
muito e esse seria o motivo do cansaço. Por motivos de organização,
separarei o resumo do caso em quatro tópicos, sem me focar na
descrição de forma temporal na forma que apareceram nas sessões,
mas sim de forma descritiva.
Em seguida, farei uma análise do caso dividindo em outros quatro
tópicos, pelo mesmo motivo, com base em uma perspectiva
fenomenológica-existencial e dialogando em momentos com outras
perspectivas psicológicas e filosóficas. Também não organizarei a
análise de forma temporal e entenderei que, apesar da separação de
tópicos, todos os fenômenos descritos e analisados se correlacionam.

TRABALHO

Ela trabalha “fichada” (sic), de segunda a sexta, com limpeza em uma


empresa terceirizada. Também faz um “bico” (sic) à noite, depois do
expediente e também nos fins de semana, além de todos os serviços
de casa. Relata que esse é o motivo de estar sempre tão exausta e
trabalha tanto por problemas no casamento, que explorarei mais a
seguir. A primeira demanda que apresentou foi o cansaço devido ao
excesso de trabalho. Diz estar trabalhando tanto, pois há cerca de um
ano decidiu, junto ao filho, que eles iriam se mudar de casa, sem seu
marido, e para isso precisavam juntar dinheiro, mas relatou várias
vezes nas primeiras sessões que não estava conseguindo juntar tão
bem o dinheiro.

Um dos motivos, além dos gastos da família que o marido não ajuda,
é que ela não estava recebendo em dia no seu “bico” (sic). Se sentia
muito mal com isso por ficar exausta de trabalhar, pois fazia esse
trabalho todos os dias depois do expediente, e não estava
conseguindo realizar seu objetivo que era juntar dinheiro. Mesmo sem
receber, autocobrava-se de continuar trabalhando lá.

Com tanta carga de trabalho e com pouco retorno, Sara estava


sempre exausta e desmotivada, sem tempo para si. Quando eu
questionava se poderia deixar de fazer algumas tarefas de casa ou
largar o “bico” que não recebia, ela respondia como se tivesse uma
obrigação, um dever de fazer essas tarefas, não conseguindo de forma
alguma não as fazer. Nas tarefas domésticas, relatou que não era
cobrada em nenhum momento por ninguém da casa, mas que
sempre que via algo a fazer sentia uma obrigação muito forte de
fazer, algo "mais forte" do que ela. Também sentia como se não
devesse largar o “bico”, mesmo não tendo motivo para permanecer.
Em uma das primeiras sessões chegou à conclusão que não iria mais
ficar no “bico”, por ser algo que a estava fazendo mal e não rendendo
nada. No fim da sessão deu a si mesma o prazo de sair até o fim do
mês. Não soube responder quando questionada sobre esse prazo,
mas era como se não pudesse sair ainda, mesmo não recebendo. Mas
na sessão seguinte relatou que havia saído de lá no dia seguinte da
sessão, pois ao confrontar sobre os pagamentos e que iria sair, a
mulher que lhe contratara achou melhor ela não ficar mais tempo
para não aumentar mais as dívidas.

Assim que saiu do “bico”, Sara já aparentava muito mais descansada e


motivada, conseguindo se focar mais então no seu processo
terapêutico, nos seus objetivos e em si mesma. No começo acreditei
que a demanda do trabalho seria um fator central nesse processo
terapêutico, mas as questões paralelas acabaram se mostrando mais
focais.

RELACIONAMENTOS

Esse foi uma das questões centrais trabalhadas. O seu relacionamento


atual, o segundo casamento, foi o centro do discurso de Sara. Mas,
seu primeiro relacionamento foi na adolescência, com um homem
mais velho. Namorou com ele dos 12 aos 15 anos, mas terminou pelo
desejo da mãe, algo que explorarei melhor em seguida. Todavia, se
casou em seguida, com outro namorado, o seu primeiro esposo.

Hoje relata que se arrepende muito de ter terminado com o primeiro


namorado e que era muito apaixonada por ele, mas, para satisfazer os
desejos da mãe ela terminou o relacionamento. Há poucos anos se
reencontrou com ele, que teria se separado há pouco tempo, o que a
deixou bastante empolgada. Relata que teve sentimentos por ele
nesse reencontro e que ele chegou a chamá-la para ir para a casa
dele, mas se recusou e se sentiu ofendida com o convite. Ele a teria
tratado “como se fosse puta” (sic), pois estava casada,
independentemente de ter algum clima entre eles. Relatou também
que ele demonstrou muita frieza no contato com ela, o que fez com
que “uma parte morresse” (sic) nesse sentimento.
No entanto, relata que se isso ocorresse hoje ela teria aceitado o
convite, mesmo se sentindo mal por considerar traição, aceitaria sem
hesitação. Nessa fala me parece que a força moral de cometer uma
traição fica mais fraca perante ao desafeto pelo marido e pelo desejo
de ter um bom relacionamento, sexual e/ou afetivo, se movendo para
um passado.

Ainda adolescente se casou com seu primeiro marido, que na época


tinha quase 30 anos, sendo que se relacionaram por pouco tempo
antes do casamento. Ela relata, com bastante clareza, que se casou
para satisfazer a mãe, já que seu marido seria alguém bom para se
casar, diferente de seu primeiro namorado. Além disso, acreditava que
saindo da casa da mãe ela seria livre e relata que, ao menos no
começo, ela alcançou essa liberdade, pois via o casamento como uma
forma de alcançar sua liberdade.

Quando saiu da casa da mãe, ela relata que começou a viver a vida
que lhe era negada, podendo então “ser menina” (sic). Diz que as
pessoas da rua e da família viviam comentando para seu marido que
ele teria se casado com uma criança e não com uma mulher pois ela
estava sempre na rua brincando, descalça e subindo em árvores. Não
tinha nenhum interesse em arcar com as responsabilidades que eram
esperadas de uma mulher casada e simplesmente ignorava tudo e
vivia como queria. Diz que tinha uma cunhada da mesma idade e que
ela era sua companheira nas brincadeiras. Ela estava vivendo a
infância que não tinha vivido, sem grandes responsabilidades.

Relata que o marido a repreendia, mais devido aos comentários das


pessoas do que por uma questão pessoal, já que ele nunca a
restringiu ou impôs nada. Poucos meses depois de casada ela decidiu
se separar, sendo que ele concordou. No entanto, ela acabou
engravidando, o que pouco alterou seu estilo de vida, mas ele se
recusou a se separar para poder cuidar da criança. Relata que com
oito meses de gravidez ainda subia em cima das árvores com as
outras crianças e adolescentes, para o desespero da vizinhança. Mas,
assim que seu filho nasceu, sua postura mudou radicalmente.
Pelo que relata, não houve uma coerção por parte do marido para
isso, mas ela parou de “agir como uma menina” (sic) e passou a
performar as responsabilidades de esposa e mãe. Mas mesmo sem
essa imposição direta do marido, Sara relata que foi forçada a
amadurecer, enquanto o que queria era ser uma criança livre.

A busca pela liberdade aqui foi um grande tema. Diz que se casou
buscando ser livre, mas “como que eu iria me libertar, se eu ia ter era
um dono porque eu era de menor?” (sic). Mesmo se focando mais nos
cuidados do filho e da casa, ela não perdeu o foco na sua própria
liberdade. Relatou que depois disso pensou: “hoje em dia eu sou dona
do meu nariz. Homem nenhum vai mandar em mim. Eu vou fazer o
que eu acho que é certo e vou fazer do meu jeito. Não vou pedir
autorização, eu vou comunicar” (sic).

Alguns anos depois acabou se separando de seu marido por descobrir


que ele era gay e estava tendo casos com homens. Relatou sobre o
caso com uma grande leveza, até rindo às vezes. Pelo seu discurso,
quando descobriu se revoltou com ele, mas por ele estar escondendo
um segredo e a enganando, e não por qualquer sentimento de
traição. Tem muita clareza de que nutria fortes sentimentos de
amizade por ele, e apenas, sendo uma amizade que mantém até hoje.
Ela decidiu então se separar, pois não poderia ficar casada com um
homem que gosta de outros homens. Mas não houve nenhum relato
de preconceito na sua fala, muito pelo contrário, com ela fazendo
questão de deixar isso claro. Sua decisão também era no sentido de
ele poder ser feliz com quem queria.

Relata apenas que teve dificuldades na separação pela dificuldade


afetiva que é se desprender de um casamento e de uma casa para
seguir sua vida e também por ter um ótimo relacionamento com a
família dele, tendo medo de se afastarem, o que acabou não
acontecendo. Seu marido não reagiu tão bem, dizendo até hoje que
ele sente que deve desculpas pra ela e que gostaria que o perdoasse,
mas ela sempre responde que não vai perdoá-lo por não ter motivo
para isso, sendo que nunca guardou rancor dele, pelo contrário. O
filho também não reagiu bem com a separação, sendo que até hoje
não tem uma relação muito boa com o pai.
Alguns anos depois conheceu seu segundo marido. Esse
relacionamento foi um dos principais centros da sua fala, mas
analisando posteriormente percebo que falamos muito pouco sobre
esse relacionamento da mesma forma que os outros. Enquanto ela
detalhava sobre como os outros relacionamentos começaram, seu
desenvolvimento e seu fim, com o seu atual marido o foco era sempre
nos conflitos atuais e nos seus planos futuros sem ele. Mesmo quando
eu perguntava sobre seus primeiros encontros e anos de casamento
ela dava poucos detalhes, não como se fugisse do assunto, mas como
se isso não fosse importante. No geral, relatou que no começo era um
bom relacionamento e que acredita que já o amou um dia (essa
dificuldade de verbalizar exatamente quais seus sentimentos por ele
foram constantes, apesar de parecer sempre certa que não sentia
nada por ele), não sendo mais o caso, mas sempre se voltava para os
conflitos atuais, sendo essa a primeira demanda apresentada.

Sua segunda filha, adolescente, é fruto desse relacionamento. Apesar


de não haver nenhuma requisição direta e verbalizada por parte dele,
Sara se sentia sempre oprimida pelas obrigações de casa (questão
que discutirei no final dessa análise). Pelos seus relatos, ela não é uma
pessoa que gosta de trabalhar e de se ater muito às tarefas
domésticas e paternas. Nesse sentido, ela se via com quase todas
essas obrigações como sua responsabilidade, salvo alguns momentos
em que ele ajuda na questão financeira.

Relata que ele sempre foi assim, mas que foi se intensificando
gradualmente na medida em que seu alcoolismo foi aumentando. Ele
sempre bebeu bastante, mas nos últimos anos seu relacionamento
com o álcool foi ficando abusivo de uma forma que Sara não
conseguia, ou queria, mais lidar. Relata que ele nunca foi agressivo de
forma alguma com ela, ou com os filhos. O marido sempre encarava
esses conflitos de forma simples, como sendo uma questão de ele não
ter vontade de se prender ao trabalho, doméstico ou profissional, e às
obrigações de marido e pai. Ele apresenta de forma bem clara em seu
discurso que ele não mudará, pois essa é uma vontade dos outros e
não dele.
Nesse sentido, ficou muito claro no discurso de Sara que não havia
nenhum interesse em tentar resolver os conflitos do relacionamento e
seu foco agora seria somente em sair de casa e seguir sua vida. No
começo dos atendimentos ela trazia que não tinha tanta pressa para
sair da casa, apesar de estar completamente esgotada, ainda
preferindo levar esse objetivo de forma lenta. Mas nos últimos
atendimentos sua postura em relação a isso teve uma mudança
brusca.

Um dia sua filha foi para a parada de ônibus, enquanto chovia. Na


parada um homem parou com o carro e lhe assediando, lhe chamou
para entrar no carro. Ela estava sozinha e a parada fica em um local
isolado. A filha se afetou muito com o assédio e ficou com medo,
começando então a pegar ônibus em uma parada mais
movimentada, mais longe de casa.

Sara se revoltou com o assédio sofrido pela filha, mas principalmente


pelo fato de o pai estar em casa, ter visto a filha saído de casa na
chuva e não ter se oferecido para acompanhá-la até a parada ou algo
assim. Não foi narrado nenhum comportamento novo por parte dele,
mas esse evento foi como “a última gota d'água" (sic) para que ela de
fato se revoltasse. Teve conversas com ele, não esperando nenhuma
devolutiva, e relatou para ele de forma definitiva que iria se separar.

Ela já havia falado várias vezes nos últimos anos que pretendia se
separar, sem grandes reações dele por não acreditar. A principal
barreira para se separar era conseguir uma casa, pois a casa onde
moravam era da mãe dele. Há cerca de um ano, quando decidiu sair
de fato, combinando com os filhos que iriam se juntar para comprar
uma casa, ela não relatou para ele. Mesmo com os planejamentos
estarem bastante avançados e com uma certeza que sairia, ela
mantinha suas “obrigações” (sic) como dona de casa e esposa.
Preferia manter assim, por uma questão de não conseguir ignorar
muito bem suas “obrigações” e por ser “mais fácil” (sic) assim. Mas
depois desse evento do assédio, seu comportamento mudou
drasticamente.
O sexo no relacionamento já não se dava de maneira prazerosa para
ela há algum tempo. Ele entrava no pacote de “obrigações de esposa”.
Relata que não tinha nenhum desejo de ter relações com ele e até se
sentia muito incomodada às vezes quando ele tocava nela, mas que
ainda mantinha relações por ser “mais fácil” (sic). Mesmo sem nunca
agredir ninguém da casa, quando eles não transavam ele ficava mais
impaciente e difícil de lidar, então ela cedia para "facilitar as coisas"
(sic). E também por sentir que fazia parte do papel de esposa. Os
únicos momentos em que ela se recusava a fazer sexo com ele era
quando ele bebia demais.

Depois desse evento, ela foi direta com ele e disse que eles estariam
morando na mesma casa, mas que não seriam mais casados e que se
ele quisesse poderia dormir na mesma cama, mas nada ocorreria
entre eles. Relatou também que iria se mudar e que já tinha feito um
contrato de aluguel, se mudando depois do natal. O comportamento
dele, como ela relatou, mudou muito depois dessa mudança dela. É
como se ele tivesse percebido de fato que ela iria embora. Ele
começou a ser mais atencioso com a filha e a se dedicar às tarefas
domésticas. Isso a abalou um pouco, a fazendo pensar em dar mais
alguma chance para ele, mas relata que não pensava muito nisso e
que não tinha mais como voltar atrás.

Uma questão que também foi marcante ao falar de seus


relacionamentos, foi dizer que ainda queria sentir aquela paixão que
sentia na adolescência. Na maioria dos encontros ela se focava nos
problemas atuais e no seu futuro pessoal e junto aos filhos. Mas em
uma sessão trouxe com muita força esse desejo, dizendo: “Um dia eu
quero amar intensamente, como eu amei no passado. Eu quero viver
isso na pele intensamente. Eu quero amar e ser amada. Nem que eu
seja velhinha, eu quero que isso aconteça” (sic).

FAMÍLIA

Ela é filha do segundo casamento da mãe, possuindo muitos irmãos,


tanto do primeiro casamento quanto do segundo.
Seu pai então morreu quando ela era bem pequena, e sua mãe não se
casou novamente. Seu pai se dava muito bem com os filhos do outro
casamento, mas não queria ter mais filhos. No entanto, sua mãe não
quis abortar, mas relata que isso não foi uma questão que o fez ter
sentimentos ruins em direção a ela ou aos filhos. Relata que acha o
pai muito guerreiro por ter ficado com sua mãe mesmo sem querer
ter filhos e que sempre sentiu falta de ter tido um pai enquanto
crescia.

Seu relacionamento com a mãe é complexo. Depois que seu pai


morreu, a mãe sofreu muito e colocou muito do peso das
responsabilidades da família nas costas de Sara. Dizia que ela deveria
ser o espelho para os irmãos e que deveria se responsabilizar por eles
pois as suas irmãs mais velhas “não valiam nada e eram putas” (sic).
Relatou que: “Eu não tive infância de brincar, de ir pra rua. Eu não tive
essa história. Eu sempre fui muito proibida de tudo. E minha mãe
tinha essa mania de dizer que as minhas irmãs eram espelho ruim pra
mim e que eu tinha que ser exemplo dentro de casa [...]. Ela criou um
bloqueio na minha cabeça. Se eu não casar com esse aqui agora eu
não vou conseguir outro namorado [...]. Fui a filha que ela escolheu pra
realizar um sonho que era dela” (sic).

Ela relata uma grande mágoa que sentia pela mãe e que a
responsabilizava muito pelos seus sofrimentos na vida. No entanto,
essa revolta se mostrou mais como um afeto passado, pois seu
relacionamento com a mãe hoje é diferente. Ainda tem alguns atritos
com ela, mas diz amar muito a mãe e que não guarda nenhum rancor
pelo que ela fez, estando sempre presente na vida dela e a ajudando.
Tem clareza em seu discurso que atribui sim “parcela da culpa” (sic) à
mãe, mas que não tem motivo para se prender a isso.

Sempre teve um relacionamento bom com os irmãos mais novos e


com os da mesma faixa etária dela, mas não é o caso dos irmãos mais
velhos. Relata que ela sempre sofreu com eles, muito pela mãe não
estar tão presente em casa depois que o pai morreu. Mas se focou
muito ao relatar seus problemas com uma irmã em específico.
O relacionamento com essa irmã foi piorando com o passar dos anos,
e costumam ter fortes atritos quando se encontram. Ela relata afetos
semelhantes com outros irmãos mais velhos, mas nada que se
compare no seu discurso ao que sente por essa irmã, dizendo ter um
grande rancor por ela. Ela relatou várias vezes que não se sente bem
em guardar rancor das pessoas e que já tentou muito não nutrir esse
sentimento pela irmã, mas não consegue.

Quanto aos seus filhos, ela relata um relacionamento muito bom com
eles. Os únicos conflitos que teve com o mais velho foram quando se
separou de seu pai, pois os conflitos ficaram maiores entre ele e o pai.
Hoje em dia ele é sua companhia mais próxima. Diz que “ele acaba se
tornando o meu parceiro, o meu companheiro, o pai da minha filha.
Ele que responde por ela [...]. Atualmente ele é meu porto seguro”
(sic). Assim, ele acaba sendo quase toda a sua rede de apoio primária.

No entanto, ela não se sente confortável em manter o filho nessa


posição. Diz que se sente mal em fazer o filho “parar a vida dele” (sic)
para ajudá-la. Ela tem com muita força o objetivo de não fazer com os
filhos o que sua mãe fez com ela e esse sentimento de não querer que
eles a ajudem é presente em ambos.

De forma geral, seu relacionamento com os filhos se fortaleceu na


medida em que ela foi se permitindo ter um relacionamento menos
unidirecional com eles e a entender que também precisava deles da
mesma forma que eles dela.

OBJETIVOS PESSOAIS

Mesmo apresentando uma grande dificuldade de falar sobre si, seus


sentimentos e desejos, da primeira à última sessão, uma questão
central foi seu foco em alcançar alguns objetivos pessoais. O principal
foi o objetivo de conseguir se mudar junto aos filhos e, a partir desse
movimento de sair do casamento, conseguir dar caminho para outras
questões da sua vida.
No começo Sara parecia não conseguir pensar em outros objetivos
além desse, apesar de querer se mudar para poder mudar de vida.
Aparentava estar exausta e desanimada demais para se focar em
qualquer outra coisa senão sobreviver e sair daquela situação
presente. Na medida em que foi se sentindo menos exausta, foi se
permitindo aos poucos se projetar no futuro mais distante do que os
meses seguintes.

Apesar de estar satisfeita no trabalho, e tendo a chance de ser


afastada no começo do ano, não se focava muito nessa questão. Mas
em uma sessão relatou que gostaria muito de sair da área da limpeza,
por ser um trabalho muito desgastante, mas que precisava se
especializar em alguma coisa que gostasse. Revelou que tinha desejo
e até planos de estudar gastronomia e trabalhar na área, por ser algo
que gosta de fazer. Relatou que às vezes quando via propagandas de
chefs de cozinha em cursos de gastronomia ela costumava “brincar”
com a filha: “olha sua mãe aí no futuro” (sic).

Esse desejo não aparecia como uma questão a ser resolvida no futuro
próximo, por terem figuras mais urgentes, mas também não
apareceu como um sonho distante. Não aparenta também
“romantizar” a questão, trazendo as dificuldades que seriam para ela,
na sua idade, trabalhar e fazer esse curso, e também as dificuldades
de entrar em uma nova área profissional.

De forma geral, na medida que foi se sentindo “menos presa” foi se


abrindo mais para trabalhar objetivos na sua vida pessoal e projetá-los
para o futuro. No final, seu discurso em relação a isso era mais
“realista”, não se prendendo também a esses objetivos em si, mas no
que seria bom para ela e para seus filhos.

Em uma das últimas sessões, perguntou se poderia pegar meu


contato para poder me falar quando conseguisse alcançar seus
objetivos, com uma certa vergonha. Mas por entender que eu seria
uma pessoa muito responsável por ela retomar esse foco na vida e por
ser como “se tivesse que dar satisfação” (sic) ou devolutiva sobre isso.
UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA-COMPULSIVA?

O caso de Sara, em princípio, destaca algumas características


presentes no que se convencionou a chamar de Neurose Obsessiva-
compulsiva, ou Transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva,
mesmo não se assemelhando com casos clássicos dessa
psicopatologia ou se encaixando nos requisitos dos manuais
classificatórios. Santos (2013) parte de uma psicopatologia
fenomenológica, entendendo que o Transtorno Obsessivo-
Compulsivo é uma transformação do mundo vivido onde “de um lado,
uma série de preocupações excessivas e invasivas e, do outro, a falta
de abertura e de flexibilidade” (p. 86), sendo um mundo repleto de
ameaças e impurezas, tomando uma significação mágica no sentido
que a pessoa é consciente dessa sujeira, e tenta se limpar dela por
não conseguir mergulhar na sujeira.

O autor argumenta que o mundo vivido pelos obsessivos se dá por


uma relação entre angústia e culpa, mas a patologia não nasce do
simples contato com esses afetos, sendo eles intrínsecos à experiência
humana. Partindo de uma leitura heideggeriana, entende a angústia
como “condição paradoxal de ser-para-a-morte e ter-que-ser-si-
mesmo como projeto (Entwurf), lidando, dessa forma, entre a
autenticidade e a inautenticidade” (SANTOS, 2013, p. 87) e a culpa
como uma
condição ontológica, já que uma vez não sendo genuinamente autêntico o Dasein se
ocupa também desse chamado de ter-que-ser-si-mesmo. O sentimento de culpa
desvela, então, a impossibilidade do homem ser plenamente si-mesmo, e ao mesmo
tempo receber esse chamado, estando assim sempre em débito consigo mesmo
(SANTOS, 2013 p. 87).

São afetos puramente conflituosos e contraditórios, que ao mesmo


tempo abrem a experiência do ser vivente para uma relação plena e
autêntica com o mundo externo e interno, projetando-se para o
infinito, e uma relação patologizante e estática, prendendo-se à
vivência do passado e uma relação inautêntica com seu mundo
interno. São afetos que nos levam ao mesmo tempo em direção à
liberdade e à servidão. É uma relação que, em termos camusianos,
desvela o caráter absurdo e, logo, inerentemente contraditório da
experiência humana em sua relação constante com o ser, o tempo e o
nada.
O adoecimento nesse caso se dá, de acordo com Boss (1975), quando
essas contradições não são assimiladas pela pessoa vivente, que então
entra em um processo de negação dessa angústia, iniciando uma
cruzada interminável. Há um ciclo vicioso, onde a negação da
angústia e da culpa serve como potencializadora do caráter
patológico desses afetos.

A pessoa percebe o mundo, interno e externo, como repleto de


sujeiras em que é determinada a limpar. Ela não consegue mergulhar
na sujeira. Tem que estar sempre limpa, mas não consegue. Não se
aceita as sujeiras, contradições e angústias do mundo, o que leva à
culpa. A pessoa se sente responsável e determinada a limpar o
mundo, ao mesmo tempo em que se encontra completamente
despotencializada e presa nessas relações. Liberdade seria se livrar
desse peso, mas não saberia como viver sem ele. Nesse sentido,
Santos (2013, p. 87-88) sintetiza:

A culpa, assim como a angústia, pode ser negada, não gerando em reconhecimento
da facticidade e das limitações próprias ao existente. Se por um lado, ela pode
evoluir para um grau de responsabilização frente à existência, nesse caso o
existente assimila a impossibilidade da plena realização e escolhe algo mais viável
em relação a seu projeto existencial. Por outro, na relação com a culpa o existente
pode criar um estado existencial em que se sente que tudo é determinado, não
oferecendo nenhuma possibilidade ou potencialidade de escolha diante à
existência. Esse estado de que se é hiperesponsável pelas circunstâncias à volta,
mesmo sem a participação nisso, é uma das formas como a culpa pode evoluir e se
tornar patológica. O Transtorno Obsessivo Compulsivo em nosso argumento
demonstraria uma das formas em que a culpa se torna patológica.

A principal questão patológica no comportamento de Sara foi a de


não conseguir ignorar as responsabilidades de casa, do trabalho e da
família, mesmo quando ela mesma traz um discurso de que não
precisa fazer isso. A literal sujeira de uma louça suja na pia, por
exemplo, a afetava profundamente. Descrevia uma compulsão em ter
que ir lá e limpar o que está sujo. A sujeira aqui é tanto literal quanto
metafórica. Ela se vê em uma compulsão de limpar a sujeira da casa, a
sujeira do seu relacionamento amoroso, a sujeira das demandas da
sua mãe, e qualquer outra sujeira que lhe aparecer na frente. Não
suporta a sujeira, mesmo quando não é sua, e se coloca como
responsável pela limpeza.
Como fez no seu “bico”, evita os conflitos, internalizando para si a
responsabilidade de resolver toda a sujeira, sendo as louças a se
limpar e o fato de estar sendo explorada por não receber
adequadamente. Tem consciência clara de que não é puramente
responsável pelas injustiças e mazelas do mundo. Não vejo aqui uma
má-fé, em termos sartreanos, mas uma clara consciência da angústia
que é ser responsável por si e pelo mundo. No entanto, seu
comportamento vai em direção a uma extrema internalização da
responsabilidade por “limpar o mundo”. Uma completa compulsão
composta pela culpa.

Nesse sentido, Sara relatou vários momentos de compulsões como


essa. Quase todos os dias quando chegava em casa, sentia uma
obrigação muito grande em limpar qualquer sujeira que tenha na
casa, mesmo reconhecendo que pode deixar para outro momento ou
para os filhos. Relatou um grande conflito uma vez pois queria muito
ir em uma viagem de fim de semana para uma chácara, pois era algo
que gostava muito de fazer, não fazia há um tempo, e seria um raro
momento em que faria algo para si. No entanto, nesse fim de semana
teria uma reunião de um evento da filha. Sara dizia que poderia faltar
à essa reunião sem problemas, sendo que sua filha dizia a mesma
coisa. Era um conflito enorme entre seu desejo de fazer algo
prazeroso para si e o desejo de cumprir com suas obrigações, mesmo
sem necessidade. Não se permitia fazer algo para si, o que desvela
uma culpa. Mas, relatando grande dificuldade, conseguiu ir para a
chácara e se divertir. Depois desse evento, e de ter saído do seu “bico”
que lhe exauria, Sara começou a trabalhar contra suas compulsões e
se permitir, aos poucos, trabalhar em nome de si e não da culpa.

Como Santos (2013) traz, “o sentimento de culpa desvela, então, a


impossibilidade do homem ser plenamente si-mesmo, e ao mesmo
tempo receber esse chamado, estando assim sempre em débito
consigo mesmo” (p. 87). Sara relatou um grande "débito" ao crescer
com a mãe, devido a todas as exigências que ela fazia. Mas com o
tempo, o débito direto com a mãe, junto com a percepção de que a
responsabilidade de seus problemas seria dela, foi perdendo sentido e
sumindo da cena. Ela internalizou todo esse débito. O débito de ser
“limpa e pura” que tinha com a mãe foi internalizado e transformado
em um débito consigo mesma.
Nesse sentido, há uma dificuldade de projetar-se para o futuro ao
mesmo tempo em que o tempo presente é constantemente recriado
com dependência no passado. Sara não relata estar presa em
questões passadas, mas seu comportamento, e compulsão, estão
sempre se atualizando de modo a replicar afetos passados. Santos
(2013) também traz que há correlações fortes na literatura entre o
desenvolvimento de características obsessivas com o crescimento em
ambientes de ordem moral imposta, o que se encaixa com sua
relação materna.

Esses ambientes podem não permitir que os sentimentos de culpa e angústia não
sejam plenamente vivenciados como inerentes à existência, mas negados e
obstruídos, acabando por predominar numa série de sintomas que tendem a
obstruir o tempo (SANTOS, 2013 p. 89).

Ao discutir um caso de Boss, Santos (2013) relata que o vínculo


terapêutico pode proporcionar uma abertura por parte do paciente
para experienciar aquilo a que estava fechado, assimilando outras
possibilidades de ser-no-mundo. No caso de Sara, percebo que o
nosso vínculo teve um efeito semelhante, onde ela se sentiu
confortável em experienciar a angústia e a culpa de outras maneiras,
expandindo seu modo vivente e abrindo as possibilidades para
projeções futuras.

Em alguns momentos, ela projetou os ônus da sua melhora a mim, o


que pode ser um indício dessa relação terapêutica que a faz se sentir
mais confortável e segura para se relacionar com as angústias e
abrindo mais espaço para sua própria potência de vida. Mas ainda
apresentava uma certa falta de confiança em si mesma, dado pela
projeção em mim como responsável pela sua melhora, o que
potencialmente pode se desenvolver em uma relação patológica, mas
isso não ocorreu até o fim do acompanhamento. Pode-se entender
essa relação como uma forma de “mecanismo de defesa” em que
pode exercer uma importante função de defesa do self, e ainda assim
possibilitar que ele se recrie constantemente de forma “saudável”.

O confronto com o não-ser, que é angústia, tem como positividade a capacidade do


indivíduo tolerar a ansiedade, a hostilidade e a agressão, sem repressão,
incorporando essas possibilidades como formas de ser (SANTOS, 2013, p. 88)
CUIDADO DE SI

O medo também aparece como um afeto central aqui, acompanhado


da culpa e da angústia. Partindo de uma leitura spinoziana e
foucaultiana, Furuhashi (2019), propõe práticas de “cuidado de si”
como linhas de fuga para o discurso do medo. Para Spinoza (2017,
p.144), “O medo é uma tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa
futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida”, sendo
um afeto triste que nos leva até a servidão, como discutido também
anteriormente.

A autora traz que as práticas do cuidado de si são retomadas por


Foucault como práticas presentes na filosofia grega antiga, mas que
não é retomada como um romântico retorno aos antigos ou modelo a
ser seguido, mas como formas éticas e belas de se criar a vida que não
são favorecidas pelos modos de subjetivação da nossa sociedade
neoliberal. Não se trata então de um discurso individualizante, pois

Entende-se que no Cuidado de si não é possível haver um amor exagerado a si


mesmo, um egoísmo, narcisismo ou algo qualquer tipo de relação de si que
possibilite negligenciar o outro ou exercer um abuso de poder. Pois, tal relação
incorreria em uma má forma de governar. Além disso, não é a ocupação do eu em
detrimento do outro, pois ocupar-se de si mesmo é estar na complexidade envolvida
na relação com o outro (FURUHASHI, 2019 p. 26)

Nesse sentido, o medo reforçado nas nossas relações


contemporâneas, junto à promessa de segurança e um discurso de
“autocuidado” que desenvolve uma subjetividade assujeitada,
resultando em corpos dóceis úteis para os modelos de produção
capitalista. Os discursos individualizantes em relação ao medo
costumam ser composto por técnicas que não atacam de fato a raiz
da produção do medo. “Nesse cenário, os desejos de segurança
cerceiam a vida através de técnicas em prol do cuidado que em nada
favorece o aumento de potência de vida.” (FURUHASHI, 2019, p.26)

Assim, se desenvolvem relações patológicas com o self e com esses


afetos, como no caso de Sara. Na relação entre angústia, culpa e
obsessão, há sempre um medo. O ciclo vicioso da obsessão ocorre
junto a um medo de que seu “eu” não sobreviva à uma mudança, se
refugiando à segurança da patologia.
Ela também não relatava nenhum cuidado consigo mesma, sendo
que todas suas ações eram relacionadas ao trabalho, aos filhos, ou às
compulsões. Assim se caracteriza o modo-de-ser de Sara no mundo.

Não havia dificuldade por ela de perceber a relação patológica que


tinha e em compreender como elas se desenvolveram e como elas a
afetam. Também nunca perdia de vista, mesmo que no início de
forma distante, suas projeções para o futuro. O que faltava
principalmente então, ao meu ver, era que Sara se voltasse mais para
cuidados de si mesma.

Ela exercia com bastante empenho e prazer o papel de cuidadora dos


filhos, e com menos prazer do marido e do resto do mundo, sempre
enfatizando que eles são a vida dela e que não queria que eles
tivessem a mesma formação que ela. Nesse sentido, Sara exercia um
sacrifício completo de si mesma, sempre exercendo o papel moral
esperado de uma mulher em uma sociedade patriarcal e capitalista;
um papel de servidão. Era quase como se fosse desnecessário, ou um
crime, fazer algo para si.

Durante os atendimentos, meu principal foco foi de intervir para que


Sara se voltasse mais em um cuidado de si, fazendo coisas que não
trariam nenhum outro ganho se não um simples prazer pessoal.
Apesar de demonstrar uma grande dificuldade de falar de si e se
permitir se cuidar, na medida em que o cansaço do trabalho
diminuiu, Sara começou aos poucos a procurar atividades que
serviriam a esse propósito. Coisas simples como fazer exercícios e sair
com amigos, mas que a potencializaram na medida em que
conseguiu ficar menos serva das obsessões.

Em princípio era um grande desafio chegar em casa, depois de um


dia exaustivo, e não ir direto limpar a casa inteira. Nas primeiras
tentativas não conseguiu algumas vezes, mas com o tempo relatava
que, mesmo que quisesse muito, decidia descansar ou fazer algo para
si ao invés de limpar a casa. Em uma sessão relatou que seu sonho
naquele dia seria chegar em casa, deitar na cama, e não fazer nada
até o dia seguinte. Questionei o que a impediria de fazer isso e ela
respondeu que nada, mas que sabia que quando chegasse em casa
iria ver a pia suja e que não conseguiria não limpar.
Na sessão seguinte relatou que naquele dia não conseguiu, mas que
nos dias seguintes, com o apoio dos filhos, começou a conseguir fazer
isso. Desde então ela começou a priorizar o que desejava fazer,
mesmo com dificuldades de resistir às compulsões. Com uma relação
com seu self mais fortalecida, fica mais fácil resistir à culpa e à
obsessão. A falta de cuidado de si também se dava de uma forma que
seus filhos, e principalmente a filha, se viam em uma posição de
constante tentativa de cuidar da mãe, sendo que ela sempre se
afastava desse papel. Relatava que não havia necessidade de ser
cuidada, muito menos pelos filhos. Também manteve até o fim dos
atendimentos uma resistência de falar dos seus sentimentos e de
separar sua psicoterapia com o do filho.

Quando seu filho não tinha, por algum motivo, terapia no mesmo dia
que ela, Sara perguntava se poderia remarcar, ainda como se seu
processo não fosse importante e central como o do filho. Um dia o
jovem não teria terapia, mas queria acompanhar a mãe mesmo assim
da mesma forma que ela sempre o acompanha. Sara não quis que ele
a acompanhasse e quando o filho insistiu de acompanhá-la o proibiu
de ir junto. Sara teve dificuldades de relatar isso, mas não conseguia
se ver no papel de ser cuidada e não queria que seus filhos
sacrificassem sua vida para cuidar da mãe, de forma semelhante à sua
relação com sua mãe. A filha a vê se sacrificando constantemente e
sente necessidade de ajudá-la, mas ela não permite. Trabalhamos nas
sessões seguintes o processo de que cuidar de si também era se
permitir ser cuidada, sendo que nas últimas sessões ela estava se
abrindo mais com os filhos nesse sentido e se apoiando mais neles no
processo de sair de casa, sem sacrificar-se ou sacrificá-los no processo.

POTÊNCIA DA RECUSA E REVOLTA

O famoso escritor Melville (1853) escreveu um conto sobre um escrivão


chamado Bartebly (Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street) que,
apesar de curto e ter pouco agradado aos críticos americanos na
época, influenciou toda uma série de filósofos, sobretudo europeus, a
discutir a grande potência e resistência da simples recusa (COOKE,
2005)
O conto é narrado por um advogado já velho que contrata Bartebly
para trabalhar junto a outros escrivães devido à uma grande
demanda de trabalho. No início Bartebly se mostra como um ótimo e
quieto trabalhador, realizando grandes quantidades de trabalho e
com grande qualidade. Mas com o tempo ele foi fazendo menos
trabalho, até que enfim não fez mais nenhum, mas também sem se
retirar do escritório. A partir desse ponto, quando solicitado qualquer
coisa Bartebly simplesmente respondia "eu preferiria não” (I would
prefer not to). A simples e pacífica recusa do personagem, indo contra
qualquer razão ou lei, gera uma série de conflitos ao narrador e à
sociedade à sua volta.

Deleuze (1997) diz que se Bartebly tivesse se rebelado contra seus


patrões ou contra a lei, ele poderia ter sido lido como um rebelde e
punido de acordo com a lei moral ou legislativa, mas como ele de fato
não se recusa a nada e simplesmente responde “eu preferiria não”, o
personagem não se encaixa em nenhum papel social predefinido.
Não é um ato de resistência que simplesmente contrapõe a lei, mas
age de uma maneira completamente alheia à lei. A potência da
recusa aqui vai em direção ao infinito e à transcendência.

Camus (2019) no Mito de Sísifo, descreve a revolta como uma das


únicas correntes filosóficas coerentes, introduzindo o conceito na sua
filosofia:

Ela é um confronto permanente do homem com sua própria obscuridade. É


exigência de uma impossível transparência. E, a cada segundo, questiona o mundo
de novo. Assim como o perigo apresenta ao homem a insubstituível ocasião de
apoderar-se dela, também a revolta metafísica estende toda a consciência ao longo
da experiência. Ela é presença constante do homem consigo mesmo. Ela não é
aspiração, não tem esperança. Essa revolta é apenas a certeza de um destino
esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la. (n.p)

Já em O Homem Revoltado, Camus (2017) se dedica ao tema. De


forma geral, a revolta aqui como a única e primeira evidência do
absurdíssimo da vida, onde “o escravo, no instante em que rejeita a
ordem humilhante de seu superior, rejeita ao mesmo tempo a própria
condição de escravo” (n.p). A revolta não se limita a rejeitar e destruir
aquilo que lhe oprime, mas em criar. É necessariamente uma força
criadora que mira em direção ao infinito, à transcendência, ao futuro e
à integridade do ser. A revolta é tudo menos passiva.
A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente
aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é
transformar. Mas transformar é agir, e agir, amanhã, será matar, enquanto ela
ainda não sabe se matar é legítimo. Ela engendra justamente as ações cuja
legitimação lhe pedimos. É preciso, portanto, que a revolta tire suas razões de si
mesma, já que não consegue tirá-las de mais nada. É preciso que ela consinta em
examinar-se para aprender a conduzir-se [...]. O que é um homem revoltado? Um
homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que
diz sim, desde seu primeiro movimento. (CAMUS, 2017, n.p)

O processo de Sara comigo começa a caminhar para a finalização


quando ela apresenta a mudança radical de postura em relação ao
marido e aos planos de sair de casa, acelerando os processos
radicalmente. Semelhante a Bartebly, Sara primeiramente disse “eu
preferiria não” para si mesma quando negava os cuidados de si e
posteriormente projetou sua recusa para o mundo. “Eu preferiria não
limpar a louça”; “Eu preferiria não manter o papel de mulher casada
que tanto me fere”.

No entanto, se assemelha mais ao personagem camusiano do


Homem Revoltado do que ao personagem de Melville, sobretudo pelo
caráter mais ativo de sua recusa. Não houve nada de especial nos
eventos que desencadearam as revoltas, mas cansou-se de negar
suas potências e efetuou a recusa à servidão:

Muito frequentemente havia recebido, sem reagir, ordens mais revoltantes do que
aquela que desencadeia sua recusa. Usava de paciência, rejeitando-as talvez
dentro de si, mas, já que se calava, mais preocupado com seu interesse imediato do
que consciente de seu direito (CAMUS, 2017, n.p).

Como o Homem Revoltado, Sara parte da revolta para projetar-se ao


futuro. Ela consegue enfim dar continuidade aos seus objetivos
iniciais e permitiu-se compartilhar seu peso com os filhos. A revolta
aqui exerce uma força extremamente potencializadora, onde Sara
consegue a partir disso tomar uma postura criadora do seu próprio
modo-de-ser de forma não individualista e sem apagar seu próprio
self. A relação com os filhos também mudou depois desse momento
de revolta, sendo que começou a se apoiar mais neles na mesma
medida. O caminho que ela começou a tomar nesse sentido foi na
direção de recusar constantemente a servidão que se acostumou e de
cuidar dos filhos ao mesmo tempo que é cuidada, sem sacrificá-los ou
sacrificar-se.
“Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de
revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos.” (CAMUS,
2017, n.p)

ANÁLISE DE IMPLICAÇÃO

Foi meu primeiro atendimento após a conclusão do curso de


Psicologia - que por si só já proporciona vários afetos como medo e
ansiedade, e já no começo do primeiro encontro me via com
preocupações, saindo sem referências da sessão, pois Sara não
demonstrava nenhum desejo em estar na psicoterapia. Sentimentos
parecidos emergiram ao estagiar na área psicossocial atendendo
casos encaminhados pela justiça, onde em 100% dos meus encontros
a pessoa não queria estar ali ou trabalhar as questões de interesse da
justiça.

“Como vou fazer terapia com alguém que não quer fazer?”, não havia
resposta. Esse quadro rapidamente mudou, mas me fez questionar
como isso toca em dificuldades minhas de lidar com as limitações
como profissional. Quero fazer algo, mas não tenho total ação sobre as
coisas. Nem tudo depende de mim ou da Psicologia, pouco na
realidade, mas sinto uma responsabilidade enorme. Junto disso vem o
medo e a ansiedade. Forçar “ajuda” é algo historicamente usado nas
psicologias alinhadas com processos hegemônicos também para
propagar diversas violências sociais e mecanismos de higienização.
Nesse caso em específico essa foi uma preocupação que durou
pouco, mas ressoa em toda a atuação da classe.

A primeira sessão foi de longe a mais marcante. Antes da verbalização


do não desejo em fazer terapia, era gritante o seu cansaço. Seu modo
de andar, sentar na cadeira, falar, seu olhar. Tudo gritava exaustão. Me
pegava pensando “como essa mulher está de pé?”. Sentia como se ela
tivesse um peso enorme sobre ela, que com o tempo foi se
desvelando melhor. Peso de ser mulher, filha, irmã, mãe, esposa,
trabalhadora, periférica, dona de casa. Saí da primeira sessão com a
mesma exaustão física. Não foi um atendimento que possa considerar
“difícil”, sendo uma primeira entrevista tranquila, mas ainda assim saí
sem energias. No segundo encontro já chegava com receios,
esperando uma série de coisas. Porém me surpreendi com uma
mudança de postura de Sara.
Lembro de uma fala de Deleuze ao falar de Foucault: “Um pouco de
possível, senão eu sufoco…”. Eu, naquela relação, me via sufocar pela
falta de perspectiva de ação, mas rapidamente encontrei o possível ao
me permitir ver a potência de vida de Sara. Estar com abertura para as
quebras de expectativa, para o fenômeno se desvelando e para o
absurdo é essencial para uma Atitude Fenomenológica. Em vários
momentos no decorrer dos atendimentos me surpreendi com Sara.

Essa “mudança brusca” foi como se ela precisasse só de um “leve


empurrão”, ou de um espaço seu para poder respirar e olhar para si. É
como se todas ferramentas para buscar sua liberdade já estivessem
ali a ponto de serem usadas. Nesse sentido, ao final Sara projetou
quase toda sua melhora à mim, o que é complexo, mas me
incomodou em alguns sentidos. Achei que seria importante para ela
reconhecer sua própria ação sobre sua vida e também não consigo
não me remeter às práticas psicológicas que, de alguma forma,
reforçam esse tipo de relação “transferencial”, pois é o que menos
quero fazer. Mas, apesar de ter ressaltado que eu não fiz nada demais,
melhor deixar isso pra lá. Às vezes precisamos de nossas defesas. Não
caberia questionar isso a fundo naquele momento.

No começo ela estava muito apagada, como se ainda estivesse em pé


só pelos filhos, mas rapidamente seus desejos vieram à tona e ela
pode olhar melhor para si, com o tema da liberdade se tornando focal
aqui. Lembro que a fala dela de que “como que eu iria me libertar, se
eu ia ter era um dono porque eu era de menor?” (sic) me afetou
muito. Eu havia acabado de sair da graduação e meu TCC foi sobre
tema correlato ao caso. Sempre com suas diferenças, essa história não
é tão única. Sara é uma pessoa que sempre desejou ser si mesma,
mas sempre lhe foi negado. Com o tempo, aprendeu a não ser ela
mesma. Um modo-de-ser no mundo inautêntico, servil, pesado, triste.

Pode-se entender liberdade, em certos termos, como “agir de acordo


consigo mesmo” e, de alguma forma, muitas vezes acabamos por
escolher a servidão. Importante ressaltar que são sempre processos
complexos e que não podemos cair em moralismos e individualismos
aqui.
Toda servidão individual é também coletiva. Mas foi surpreendente,
uma surpresa alegre, que Sara nunca tinha perdido seu desejo por
liberdade, por ser quem é. É como se tivesse apenas perdido o foco,
ou esquecido que estava ali. Bastou voltar um pouco seu olhar para
achá-lo novamente, e perceber que ainda estava ali com toda sua
potência.

REFERÊNCIAS

BOSS, Medard. Angústia, Culpa e Libertação. São Paulo: Duas


Cidades, 1975.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2017.
Ebook. Não paginado.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2019.
Ebook. Não paginado.
COOKE, Alexander. Resistance, potentiality and the law. Angelaki,
[s.l.], v. 10, n. 3, p.79-89, dez. 2005. Informa UK Limited.
http://dx.doi.org/10.1080/09697250500423066.
FURUHASHI, Denyse. Cuidado de si como linha de fuga ao discurso
do medo. 2019. 34 f. TCC (Graduação) - Curso de Psicologia,
Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2019.
MELVILLE, Herman. Bartleby the Scrivener. [s.i.]: Dreamscape, 1853.
Ebook. Não paginado.
SANTOS, Gustavo Alvarenga Oliveira. A Angústia e a culpa no
transtorno obsessivo-compulsivo: uma compreensão
fenomenológico-existencial. Rev. abordagem gestáltica, Goiânia , v.
19, n. 1, p. 85-91, jul. 2013 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
68672013000100011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 14 fev. 2020.
SOBRE a neurose obsessiva | Christian Dunker | Falando nIsso 260.
São Paulo: Christian Dunker, 2020. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=cPuEH-W1oJA&t=838s>. Acesso
em: 14 fev. 2020.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomas Tadeu – 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
Um Estudo de Caso na Ótica Fenomenológica-
Existencial: Juliana, um eterno vir-a-ser

A paciente

Para que a identidade da paciente seja resguardada foram utilizados


nomes e identificações fictícios. A paciente Juliana é jovem, está
cursando o ensino superior em área da saúde e mora com sua mãe e
seu irmão. O pai da paciente morreu quando ela era pequena.

Juliana tem um histórico de ansiedade e foi aconselhada por sua mãe


a procurar o acompanhamento psicológico por conta das crises que
vinha tendo ao decorrer do período de isolamento por conta da
pandemia do vírus Covid-19. A paciente afirmava não saber
exatamente quais eram os aspectos desencadeadores das crises de
ansiedade, só se lembrava de vir pensamentos negativos que a
deixava muito preocupada em relação ao seu futuro. Sua percepção
acerca de suas crises foram mudando ao longo dos atendimentos e a
paciente conseguiu perceber alguns aspectos que eram
desencadeadores para suas crises de ansiedade, dentre eles sua
relação com o namorado da mãe, por exemplo.

A paciente trouxe questões voltadas ao relacionamento com sua mãe.


Juliana afirmou que por mais que sua mãe esteja sempre presente
em casa, elas não têm o hábito de conversar ou compartilhar
experiências. De acordo com Juliana houve outro momento de sua
vida que se lembra de ter se sentido da mesma forma.
Durante o seu ensino médio a paciente desenvolveu um quadro
bulímico (transtorno alimentar em que ao tentar evitar o ganho de
peso a pessoa induz o expurgo de todo alimento ingerido) e precisou
de acompanhamento médico e psicoterápico. Durante esse período
ela disse que havia vivenciado sensações como as que está vivendo
agora: taquicardia, medo por não ter certeza a respeito do que vai ou
o que pode acontecer, sensação de insegurança e vontade excessiva
de chorar.

Juliana afirmou que apesar de ainda ter ‘’pensamentos bulímicos’’,


desde o tratamento que fez em seu ensino médio, não têm mais
comportamentos bulímicos, mesmo havendo ainda hoje uma
preocupação em relação ao seu peso. O medo de engordar ainda está
presente. O sonho de Juliana é ser médica. A paciente passou dois
anos estudando para o vestibular de medicina, durante esse período
conseguiu uma bolsa integral para cursar o que hoje faz. Mesmo
optando por aceitar fazer o curso superior, Juliana ainda estuda para o
vestibular de Medicina e, segundo ela, poderá aproveitar algumas
disciplinas do curso que faz, por ser na área de saúde.

O pai da paciente faleceu quando ela era pequena. Juliana afirmou


não se sentir confortável para falar sobre o assunto. Após a morte do
pai aconteceram algumas mudanças na família, com familiares
próximos se mudando para outro estado ou remanejando casas.
Juliana permaneceu com a mãe.

Juliana está em um relacionamento sério há um ano e antes do


relacionamento atual a paciente esteve em outro relacionamento,
também por um ano. Juliana relatou que seu relacionamento anterior
era um relacionamento abusivo, no qual ela era completamente
controlada pelas vontades do parceiro.

A paciente também mencionou a respeito de sua dificuldade para


dormir. Segundo ela é comum que ao anoitecer venham
pensamentos negativos em relação ao sono. Juliana tem medo de
dormir e não acordar mais, também é comum que ela tenha
pesadelos.
Processo terapêutico

O processo terapêutico teve início em maio de 2020, foram realizadas


13 sessões e cada uma durou em torno de 45 minutos. O último
atendimento foi realizado em agosto de 2020, totalizando 4 meses de
atendimento psicoterápico. Os encontros foram realizados
semanalmente. Todas as sessões foram por vídeo chamada: a
primeira sessão foi realizada pela plataforma Hangouts, enquanto as
outras 12 sessões foram via Skype. Foram desmarcados dois
atendimentos, o 9º e o 11º, a paciente solicitou que o 4º e o 5º encontro
fossem adiantados para o início da semana, por conta de um
imprevisto e o 7º encontro foi reagendado por mim.

Nos primeiros atendimentos Juliana se mostrou um pouco resistente


ao processo terapêutico, aparentemente havia alguma dificuldade
em falar sobre questões íntimas para ela, como seu transtorno
alimentar e a respeito de seu relacionamento abusivo, por exemplo.
Com o decorrer dos atendimentos Juliana foi se mostrando mais à
vontade e aos poucos foi perdendo a resistência.

A paciente não conseguia nomear alguns sentimentos, em alguns


momentos durante o processo terapêutico ela tentava explicar algo
várias vezes mas não usava a palavra que expressava o que sentia de
fato. Com o decorrer das sessões, a partir da 4ª semana de
atendimento, ela já conseguia dar nome aos sentimentos aos quais se
referia.

O movimento de trazer a paciente para o aqui-agora no setting


terapêutico foi um desafio, já que Juliana demonstrava preocupação
excessiva com o seu amanhã, se preocupando com coisas que ela
nem sabia se aconteceriam ou não, o que é mais um elemento
desencadeador de ansiedade.

Outro desafio foi trabalhar junto a paciente o significado que seus


sonhos tinham para ela, como ela os entendia e como se percebia.
Não foi utilizado nenhum teste e atividade, as sessões se deram de
forma aberta, a discussão foi feita a partir do que foi trazido por
Juliana em cada uma delas. A fala foi o instrumento utilizado.
Quando Juliana trouxe a sua experiência com a bulimia me senti
provocada a ir mais além, procurar referências, estudar casos e buscar
conteúdos a partir de uma perspectiva da clínica fenomenológica-
existencial. Atender Juliana foi desafiador, desde o primeiro
atendimento quando tive contato com a angústia em que a paciente
se encontrava foi mobilizador para mim, me senti ainda mais próxima
a ela. Mas, além de desafiador, foi uma oportunidade incrível de ter
um contato direto e efetivo com a atuação clínica partindo de uma
abordagem específica.

Houveram momentos em que me questionei, questionei minha


capacidade e pude entrar em contato com inseguranças e incertezas
que eu mesma nem sabia que estavam escondidas aqui. Hoje,
percebo que fui capaz de entender minhas próprias questões,
percebo também que esses momentos me fizeram compreender que
ainda tenho muito a aprender e trabalhar em mim mesma.

Ao analisar o processo terapêutico da paciente e perceber que a


psicoterapia a auxiliou de forma efetiva, me sinto encorajada e
motivada a continuar, principalmente quando entendo que estou
apenas começando minha trajetória como psicóloga. Ver na prática
toda transformação não só vivenciada pela paciente, mas também
por mim mesma, foi maravilhoso. Foi perceptível quão disposta a
paciente estava a estar de fato no processo terapêutico. Juliana esteve
presente, disposta e engajada durante os nossos diálogos e trocas, a
cada sessão trazia reflexões acerca do que havia sido discutido no
encontro anterior. Esse movimento da paciente e sua disposição para
a psicoterapia nos proporcionou vivenciar uma relação eu-tu.

As sessões

Durante a primeira sessão Juliana se queixou das crises de ansiedade


que vinha vivenciando ao longo do período de isolamento social, para
a paciente, esse momento de mudanças por conta da pandemia do
Covid-19 tem sido um desafio.
Juliana tem uma rotina regrada, com cada momento do seu dia
planejado. A paciente costuma anotar todas as suas atividades em
agendas e planners e fica insatisfeita caso falte alguma atividade a ser
concluída durante o dia.

Com as mudanças que foram surgindo a partir do período que


estamos presenciando, Juliana se viu obrigada a ficar em casa e
consequentemente produzir menos. De acordo com ela, a ideia de
não estar ‘’sendo produtiva’’ (sic), ou até mesmo a sensação de ‘’estar
perdendo tempo’’ (sic) a deixa frustrada. Juliana afirmou que passava
boa parte do seu tempo se planejando e que era difícil para ela não
ter um dia com muitas atividades a serem realizadas.

Juliana falou algumas vezes sobre sua dificuldade em lidar com o seu
tempo livre, havendo a necessidade de sempre preencher esse
‘’tempo vazio’’ (sic), seja estudando, se programando, ou arrumando a
casa. Momentos de lazer como assistir TV, por exemplo, não são
aceitos por ela. Werle (2003) falou a respeito de como a angústia
aparece quando em meio a nossas ocupações, no nosso dia-a-dia, nos
sobrevém um certo tédio. De acordo com o autor:

Começamos a ficar fartos dos entes que estão ao nosso redor e não encontramos
em nenhum ente um apoio para nos tirar deste tédio. Pelo contrário, acreditamos
mesmo que temos de procurar sempre mais o contato com os entes e as coisas do
mundo, para assim nos ocupar [besorgen], em vez de nos preocupar [fürsorgen], e
sair desta estranha indiferença na qual nos joga o mundo. Mas, com isso, sempre
afundamos mais na angústia. Nos sentimos meio estranhos na angústia (WERLE,
2003, p. 106).

Quando a paciente fala a respeito de sua dificuldade em lidar com


seu ‘’tempo vazio’’ (sic), pode-se entender, de acordo com o trecho
citado acima, a sua angústia relacionada ao seu tédio, uma angústia
que emerge do esvaziamento do ser. De acordo com Heidegger em
Ser e Tempo (1989, p.187) ‘’a angústia retira, pois, do ser-aí a
possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do
mundo e na interpretação pública’’. Voltando para a situação
vivenciada pela paciente, de isolamento social, o seu mundo, o
mundo em que a paciente se relacionava, neste momento não é apto
para lhe oferecer as coisas como o era antes.
Ou seja, Juliana não tem do mundo as relações e a troca social que
estava tendo há alguns meses atrás. Ao contrário, Juliana está sendo
obrigada a se perceber como ser-aí em um ‘’mundo novo’’ e apenas
seu. O precisar voltar seu olhar para si mesma é um dos fatores que
tem lhe gerado angústia. De acordo com a paciente ela nem sempre
foi organizada, Juliana disse que passou boa parte de sua vida sendo
desorganizada, que não se programava para nada, não tinha o
costume de estudar e, inclusive, reprovou o 1º ano do ensino médio. A
paciente viveu um relacionamento abusivo no qual não era permitido
ser ela mesma de fato. Juliana não usava as roupas que tinha vontade,
não ouvia as músicas que gostava e só podia conversar com pessoas
que seu ex-namorado permitisse. Após o término desse
relacionamento ela passou por um período de despersonalização, em
que não sabia mais quem era ela mesma, ou até o que ela gostava de
comer, o que gostava de fazer e etc. Ernildo Stein explicou que:

A angústia da fenomenologia existencial representa o estado de ânimo


fundamental do estar-aí em fuga de si mesmo, precisamente por ter que formar-se
a si mesmo e ao mesmo tempo saber que está jogando e é um projeto finito (STEIN,
1990, p. 100).

Foi possível, então, trabalhar junto a paciente a respeito do seu


processo de ‘’reencontro’’ consigo mesma, entendemos que a
organização externa a qual Juliana estava sempre buscando se
remetia a sua desorganização do lado de dentro, como uma fuga
quanto às suas angústias e emoções. Essa tentativa acabou a
distanciado de si mesma, do que é e das suas questões que
precisavam de atenção de fato.

Juliana demonstrou preocupação excessiva em relação ao seu futuro,


se estaria doente, se já teria pego o vírus Covid-19 e transmitido a sua
família. Suas preocupações são sempre voltadas ao que iria acontecer,
se seu estudo e trabalho valeriam a pena e se conseguiria conquistar
suas coisas. Ainda de acordo com Werle (2003), é por meio da
preocupação que há a possibilidade de que o sujeito faça uma síntese
de todo o seu existir, ou seja, tome consciência de tudo aquilo que
vem vivendo, do seu modo de existir e vivenciar o mundo, e,
consequentemente, entendendo que sua existência tem um caráter
finito.
A paciente se mantém insistentemente em um “e se’’, na incerteza de
coisas que poderiam vir a acontecer no futuro, se seus planos darão
certo ou não, de as coisas não acontecerem da forma como ela
planejou. Quando Heidegger (1989) fala a respeito do conceito de
angústia, o autor traz a ideia de que em situações angustiantes, como
essa vivenciada por Juliana, é que há a possibilidade de que o sujeito
saia de sua inautenticidade para assumir sua autenticidade, tomando
consciência de si mesmo.

Após algumas sessões iniciais, Juliana demonstrou o medo de que


sua vida venha a ser interrompida. Mesmo com dificuldade ela
conseguiu nomear esse sentimento. Juliana afirmou que em alguns
dias ela tem muita dificuldade para dormir, por medo de não acordar
mais. Percebe-se, então, que a angústia de Juliana despertou em sua
consciência a noção de pessoa finita. O fator gerador de sua angústia
é ela mesma. Werle explicou que:

Assim, a angústia desperta para a morte, enquanto dado temporal mais


significativo da existência, e revela a finitude da existência humana, o fato de que o
homem tem um fim, que ele morre e que sua existência acaba, ou seja, remete a
um outro conceito fundamental de Heidegger, que é o ser-para-a-morte [Sein-zum-
Tode]. (...) A morte constitui uma limitação da unidade originária do ser-aí, significa
que a transcendência humana, o poder-ser, contém uma possibilidade de não-ser
(WERLE, 2003, p. 110).

Quando Juliana se percebe como ser finito, essa tomada de


consciência da paciente, como um ser-para-a-morte, a leva a
questionamentos em relação a sua existência. Essa angústia em
relação ao medo da morte e antecipação da sua morte apresenta
como a paciente tem configurado o seu ser-aí, talvez como um
movimento que de fuga de suas próprias manifestações. Para
Heidegger a angústia diante da morte é a angústia diante do próprio
poder-ser, desta forma, quando entendemos que a morte apenas tem
sentido para quem realmente existe de fato e vivencia sua existência
de forma efetiva, fica a reflexão acerca do que Juliana ‘’poderia vir a
ser’’.
Foi possível perceber que ao longo dos encontros havia em seus
relatos aspectos contraditórios. Juliana expunha que estava se
sentindo melhor, que percebia que estava ‘’evoluindo’’ (sic), mas, ao
relatar de fato aspectos a respeito de seu dia-a-dia, das sensações que
estava vivenciando, era perceptível que ainda havia alguns momentos
de crise, o que pode ser percebido em uma de suas falas como:
‘’passei a semana muito preocupada mas apesar disso me sinto
tranquila ultimamente’’ (sic). De acordo com a autora Feijoo (2000, p.
133) ‘’não querer ter consciência, trata-se de um engodo fadado a
vivenciar a angústia em plenitude’’, ao perceber essa incoerência nas
falas da paciente pude sinalizar e trabalhar isso junto a ela.

Juliana não mencionou desde quando exatamente, mas falou que


tem pesadelos com frequência. Os pesadelos seguem um padrão e a
deixam muito assustada. De acordo com ela, em seus sonhos
geralmente há um homem que a deixa com a sensação de estar em
perigo, e ela se sente imobilizada e paralisada, “é como se não
conseguisse me mover ou fugir de algumas situações’’ (sic). Trabalhar
sonhos em psicoterapia não tem como objetivo a interpretação mas
sim a compreensão a respeito do que seu conteúdo está trazendo, a
partir do relato do paciente e como o mesmo vincula-se ao sonho.
Santos (2004, p. 37) explicou que “o sonho externaliza os conflitos
interiores, produzidos pela alienação de aspectos da personalidade,
pela atitude fóbica da pessoa ante a possibilidade de tomada de
consciência de si própria.’’

Ou seja, os pacientes nos contam por meio de seus sonhos quais são
os fenômenos de sua existência que ainda não são acessíveis para
eles. Com isso, é fundamental que o psicoterapeuta tenha o manejo
necessário para fazer com que o paciente tenha mais clareza a
respeito de si mesmo.

Durante o processo terapêutico, no período em que estive atendendo


Juliana, a paciente citou dois de seus sonhos. No sétimo encontro
Juliana falou a respeito de um sonho "diferente’’ (sic), em que ela saía
de seu estado de paralisia. De acordo com a paciente, nesse sonho
havia uma "super-heroína’’ (sic) a qual ela estava tentando ajudar a
prender um assassino.
O assassino era o esposo de sua mãe, mas, curiosamente, Juliana não
via o rosto desse homem, apenas deduziu que seria seu padrasto.
Juliana afirmou gostar desse sonho, levando em consideração que
“conseguiu se movimentar’’ (sic).

O conteúdo dos sonhos podem contribuir de modo importante para o


esclarecimento existencial de um indivíduo (BOSS, 1979), a partir
dessa perspectiva, pode-se entender o movimento de tomada de
consciência que Juliana teve ao esclarecer que se percebeu saindo de
seu estado de paralisia para, enfim, uma movimentação. Trabalhar
sonhos leva os pacientes a perceberem sua existência a partir da
experiência de entrar em contato com os conteúdos dos sonhos,
trazendo-os para suas vivências e os relacionando com sua história.

No segundo sonho relatado pela paciente ela estava em casa e sua


mãe iria fazer um churrasco, porém, Juliana decidiu não ficar,
deixando sua mãe sozinha em casa com o namorado. Ao voltar para
casa, no sonho, Juliana percebeu que sua mãe estava “sozinha em um
lugar abandonado’’ (sic) e estava precisando de sua ajuda. A partir do
que foi trazido por ela foi possível trabalhar junto a paciente sua
relação com a mãe. Juliana conseguiu relacionar seu sonho a forma
como ela percebia e se relacionava com sua mãe, e foi possível, a
partir do sonho, explicar que tinha “muito a sensação de cuidadora’’
(sic) da mãe, que era como se fosse “mais mãe do que filha’’ (sic).

Com base nos padrões apresentados pelos sonhos da paciente, foi


possível identificar que havia sempre uma figura masculina, como
relatado por ela, a deixando angustiada. Todos os episódios de
ansiedade trazidos por Juliana foram desencadeados pela presença
ou por comentários feitos pelo namorado de sua mãe, então, tornou-
se necessário investigar essas relações.

Refleti com Juliana a origem dos seus incômodos frente ao


relacionamento de sua mãe, além de como se dava a relação mãe-
filha entre as duas. A paciente afirmou que a mãe “sempre esteve
distante’’ (sic) e que as duas nunca tiveram muitos momentos de
diálogo mas que desde que sua mãe começou a namorar elas duas se
afastaram ainda mais.
Juliana se queixou também do tempo e atenção que a mãe dedicava
ao companheiro, principalmente porque a paciente assumiu um
lugar de cuidadora de sua mãe, dessa forma, sua ausência a estava
afetando ainda mais. Os sonhos se tratam de uma mensagem
existencial, à vista disso, entendi a importância de trabalhá-los em
psicoterapia com a paciente, eles contribuíram de forma fundamental
para que Juliana pudesse reconhecer aspectos de sua existência que
não conseguia perceber.

A partir do oitavo encontro Juliana passou a relatar mudanças em sua


forma de se perceber, aspectos que ela passou a nomear como “uma
evolução’’ (sic). A angústia da paciente durante o processo terapêutico
voltada à sua vontade de voltar a estudar ficou muito evidente, dessa
forma, Juliana passou a compartilhar com muita euforia aspectos
relacionados aos seus estudos. Juliana voltou a fazer cursos, inclusive,
com conteúdos voltados ao atual curso, em situação de pandemia.

A paciente compartilhou também que não estava mais tendo os


sonhos que costumava ter e que houve uma melhora em seu sono,
levando em consideração que Juliana ficou alguns meses sem dormir
direito por conta de seu medo de não acordar após o sono. Diferente
de como havia sido durante as primeiras sessões, Juliana já
demonstrava uma perspectiva positiva em relação ao seu futuro,
aspecto esse que foi, inclusive, salientado por ela mesma.

Ao compartilhar que vinha se “sentindo positiva’’ (sic) em relação a si


mesma, Juliana afirmou estar “muito impressionada porque há muito
tempo não sabia como era me sentir assim’’ (sic). Curiosamente, a
paciente ficou surpresa por se sentir bem, o que pode ser percebido
em sua fala: “eu estava acostumada a ser assim’’ (sic), Juliana estava
acostumada a não se sentir bem.

A evolução no quadro de ansiedade da paciente pôde ser percebida


evidentemente após a décima sessão, em que Juliana passou a relatar
as mudanças que vinha percebendo em seu dia a dia, principalmente
se tratando de sua volta ao trabalho. Juliana foi convidada para
trabalhar de forma presencial, durante a pandemia.
Mesmo cogitando recusar a proposta para o novo emprego, a
paciente aceitou e afirmou estar “lidando estranhamente muito bem’’
(sic) com sua decisão. Ao contrário do que ela esperava, estava “sendo
bom estar por dentro’’ (sic) das mudanças vivenciadas em sua
profissão e, de acordo com Juliana, mesmo com essa mudança em
sua rotina ela não estava ficando ansiosa.

Na última sessão pude refletir junto a Juliana em relação ao seu


processo terapêutico, como foi a experiência para ela e como se sentia
hoje. Juliana explicou que têm dormido e se alimentado bem, que
voltou a estudar e trabalhar, além de não ter mais pesadelos há
algumas semanas. A paciente afirmou, inclusive, que era ‘’estranho
falar essas coisas’’ (sic). Perguntei a paciente o porquê de estar se
sentindo estranha e ela explicou que “já estava acostumada a ter
medo, a estar isolada’’ (sic), e que era estranho porque ela sempre
esteve muito mal, e que, entre tudo, o que era mais estranho era falar
e se dar conta de que não tem mais pesadelos. Foi trabalhado com ela
como ela vem se percebendo, o porquê ser estranho estar bem, o que
a fez se acostumar em estar com medo e ansiosa. Durante a última
sessão refletimos acerca da evolução de Juliana, em se movimentar,
conseguir trabalhar diretamente com o que era ansiogênico para ela
e ainda estudar sobre o mesmo.

De acordo com Heidegger (1989) aquele que teme a morte evita a


vida, o processo terapêutico de Juliana foi voltada à sua forma de se
perceber em vida e com o seu medo da morte. Juliana já lidava com a
morte, mesmo em vida. A morte do pai que se foi, da família do pai
que se afastou, a morte da Juliana que se perdeu após um
relacionamento abusivo, dentre tantas outras partes dela mesma em
que não se reconhecia mais.

Aqui, a proposta em psicoterapia fenomenológica-existencial foi


voltada a buscar o sentido da paciente que não se percebia em seu
poder-ser. Através do incômodo de Juliana proporcionar que pudesse
se reconhecer apesar de seu temor acerca da realidade de sua
temporalidade, entregando-se a sua existência, mesmo correndo o
risco de deixar de existir.
Referências

BOSS, Medard. Na noite passada eu sonhei. Summus, 1979.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A escuta e a fala em psicoterapia:


uma proposta fenomenológico-existencial. São Paulo: Vetor, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1989.

SANTOS, Ívena Pérola do Amaral. Fenomenologia do onírico: a gestalt-


terapia e a daseinsanálise. Psicologia: ciência e profissão, v. 24, n. 1, p.
36-43, 2004.

STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre "ser e tempo". Vozes, 1988.

WERLE, Marco Aurélio. A angústia, o nada e a morte em Heidegger.


Trans/Form/Ação, v. 26, n. 1, p. 97-113, 2003.
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