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TCC em FOCO

REFLEXÕES SOBRE TEMAS


RELEVANTES PARA PRÁTICA CLÍNICA

Rafael Thomaz

WWW.FOCOTCC.COM
Sumário
A Instituição 02

Sobre o autor 03

Como a TCC pode favorecer a 04


melhora da autoestima?

O padrão excessivo de cobrança 10

Como conversamos com nosso 18


cliente sobre o controle dos impulsos?

Tá rindo de quê? Qual é a importância 26


do bom humor para a saúde mental?
Transtorno Bipolar X Transtorno de
Personalidade Borderline: Você sabe 30
diferenciar?

Vivemos uma epidemia de narcisismo? 35


Agradecimento 46

Bibliografia 48

1
A INSTITUIÇÃO
Temos a missão de oferecer ensino de excelência
em psicologia clínica, na abordagem cognitivo-
comportamental, tendo como referência a
prática baseada em evidências;

De favorecer o desenvolvimento de
competências clínicas de terapeutas cognitivo-
comportamentais através de cursos de
especialização e formação, com ênfase na
prática clínica; Proporcionar, a estudantes e
profissionais, capacitação e atualização de
conhecimentos na área de saúde mental;

Propiciar um ambiente de aprendizado com


base no acolhimento e integração entre alunos e
professores, que favoreça a construção
duradoura de uma rede de apoio profissional;

Promover eventos visando compartilhar


conhecimentos na área da saúde mental,
relevantes no atual momento/contexto:
workshops, palestras ou curso de extensão.

2
AUTOR

Rafael Thomaz

CRP: 05/34169
Psicólogo clínico - Terapeuta Cognitivo-Comportamental
-

Mestre e Doutor em Saúde Mental

Pós Doutorando no Instituto de Psiquiatria da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ)

Pesquisador do Laboratótio de Pânico e Respiração


(LabPR)

Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Psicoterapia na


Abordagem Cognitivo Comportamental (NIPPACC)

Professor convidado do IPUB / UFRJ

Professor e coordenador de Cursos de Pós Graduação -


FOCO e UniRedentor

3
COMO A TCC PODE FAVORECER
A MELHORA DA AUTOESTIMA?

Muitos clientes que apresentam sintomas depressivos / ansiosos,


queixam-se por:

Não confiarem em si mesmos;


Não se verem capazes de fazer coisas que consideram ser
importantes;
Ficarem inseguros ao precisarem fazer escolhas / tomar decisões;
Faltar motivação para criarem novas expectativas ou apresentar
dificuldade para dar início a novos projetos;
Terem dificuldade para interagir de forma mais aberta e
autêntica com outras pessoas, especialmente por serem
hipersensíveis à possibilidade de crítica ou rejeição.

4
Nestes casos, fica muito claro que uma questão a
ser trabalhada é a autoestima. Vamos entender
aqui autoestima como sendo o valor que
atribuímos a nós mesmos. O cuidado com a
autoestima requer atitudes voltadas ao
autoaconhecimento, autorrespeito /
autocompaixão e autoaceitação.

Na prática da Terapia Cognitivo-Comportamental


(TCC) é essencial levar em consideração os estudos
de diversos importantes pesquisadores /
psicoterapeutas, os quais nos explicam que a
autoestima está associada ao autoconceito. Nosso
autoconceito está muito atrelado ao senso de
autoeficácia. Vamos entender melhor como se dá
essa correlação?

Aaron Beck e Albert Ellis dedicaram-se a nos


explicar que é a forma como interpretamos a
situação que influencia nossos sentimentos e não a
situação em si. Para estes, a autoestima está
diretamente relacionada a como nos
autodefinimos. O autoconceito tem a ver com as
crenças que temos a respeito de nós mesmos.

5
Beck nos ensina a identificar e tentar
reestruturar o modo de pensar
negativista/pessimista que nos leva a um cenário
recheado de insegurança, angústia e
autorrecrinação. Estes pensamentos costumam
ser ativados de forma automática em função de
crenças que podemos ter a respeito de nós
mesmos: crenças de desamor (“não sou amável”,
“serei rejeitado”, “sou um desajustado”...); crenças
de desamparo (“sou frágil/fraco”, “sou vulnerável”,
...); ou crenças de desvalor (“sou um nada”, “sou
um lixo”, “não tenho valor”,...)

Vale destacar que, além de identificar e debater


as crenças irracionais, Ellis foi influenciado pelo
trabalho de Karen Horney, que enfatizava que o
sofrimento humano se deve em grande parte à
tirania dos deveria (“deveria...”/ “não deveria...”).
Neste caso, estamos ativando pensamentos com
verbos conjugados no pretérito imperfeito. Se
isso acontecer com frequência, haverá grande
sofrimento psíquico. Há uma autorrecriminação
excessiva, visto que estamos revisitando uma
situação que já passou e nos comportando
mentalmente neste lugar.

6
Estudos em psicologia positiva, orientados por
Martin Seligman, confirmaram que tendemos a
apresentar baixa autoestima quando, ao
vivenciar adversidades, nos responsabilizamos
em excesso pelo que aconteceu, não
reconhecendo diversas outras variáveis, não
controláveis por nós, que influenciaram para o
ocorrido. Além disso, a psicologia positiva
incentiva muito para que, na prática clínica,
além de identificarmos limitações/dificuldades
para tentar melhorar, que reconheçamos valores,
forças, virtudes e competências.

Albert Bandura, por sua vez, destacou que nosso


autoconceito é diretamente influenciado pelo
senso de autoeficácia. Autoeficácia diz respeito a
convicção de que somos capazes de
fazer/realizar/atingir algum resultado. Pela
perspectiva de Bandura, se nós entendemos que
somos capazes de fazer / realizar / lidar com
coisas que consideramos importantes em nossa
vida, nossa autoestima será maior.

7
Para auxiliar na melhora da autoestima de
nossos clientes não podemos deixar de estudar o
que nos fala a Terapia Focada na Compaixão.
Paul Gilbert propõe diversas práticas
experienciais com o intuito de desenvolver um
estado de autotranquilização, maior conexão
com o momento presente, aceitação, postura
mais empática (consigo mesmo e com os
outros), expressões faciais e tom de voz
compassivo. Neste caminho podemos reduzir a
autorrecriminação e nos tornar mais integrados
ao senso de autoidentidade.

A TCC apresenta diversas possibilidades de


ferramentas para nós, terapeutas, conseguirmos
avaliar, ajudar no processo de
autoconhecimento e direcionar para mudanças
que proporcionam maior bem estar subjetivo.
Para favorecer a melhora da autoestima é
essencial que haja: a construção de um bom
vínculo terapêutico, o incentivo ao trabalho
colaborativo com o cliente, além da expertise do
terapeuta, para que o mesmo faça de forma
adequada a escolha e aplicação das estratégias /
intervenções.

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Para auxiliar na melhora da autoestima de
nossos clientes não podemos deixar de estudar o
que nos fala a Terapia Focada na Compaixão.
Paul Gilbert propõe diversas práticas
experienciais com o intuito de desenvolver um
estado de autotranquilização, maior conexão
com o momento presente, aceitação, postura
mais empática (consigo mesmo e com os
outros), expressões faciais e tom de voz
compassivo. Neste caminho podemos reduzir a
autorrecriminação e nos tornar mais integrados
ao senso de autoidentidade.

A TCC apresenta diversas possibilidades de


ferramentas para nós, terapeutas, conseguirmos
avaliar, ajudar no processo de
autoconhecimento e direcionar para mudanças
que proporcionam maior bem estar subjetivo.
Para favorecer a melhora da autoestima é
essencial que haja: a construção de um bom
vínculo terapêutico, o incentivo ao trabalho
colaborativo com o cliente, além da expertise do
terapeuta, para que o mesmo faça de forma
adequada a escolha e aplicação das estratégias /
intervenções.

9
O padrão excessivo de
cobrança

No momento presente, mesmo em um


cenário com fortes fatores estressores
proporcionados pandemia de Covid, muitas
pessoas apresentam uma sensação de
cobrança muito intensa para performar e
produzir com a mesma intensidade de
antes. A cobrança excessiva desencadeia um
estado de alerta constante, sentimentos de
apreensão, nervosismo, angústia, em função
de constantes pensamentos automáticos do
tipo “tenho que...”.

10
Após não atender as expectativas elevadas impostas
vem a sensação de impotência, frustração, com um
misto de sentimentos tristeza, culpa, raiva, muito
em função dos pensamentos “deveria...”, distorcendo
a avaliação acerca do grau de responsabilidade que
o sujeito acha que tem para controlar variáveis e
fazer com que as coisas aconteçam da forma como
gostaria. Pacientes com padrão excessivo de
cobrança se esforçam para cumprir regras rígidas
internalizadas com relação ao próprio desempenho,
dificultando o relaxamento, os cuidados com a
própria saúde, a expressão de sentimentos
agradáveis e os relacionamentos íntimos. Isto pode
acontecer em diversos cenários e papéis: ser um
bom funcionário, ser um bom pai ou uma boa mãe,
ser um bom estudante etc.

Nem mesmo as crianças estão livres destes


sentimentos intensos e desagradáveis. Brené Brown
muito bem aponta no livro “A coragem de ser
imperfeito” que as frases que ela mais ouve das
pessoas que sofrem com sintomas depressivos
/ansiosos é: “não sou ou não tenho .... suficiente”.

11
Além da pressão por resultado e a insatisfação com o
fator tempo, outro conceito que tem sido bastante
abordado recentemente é o fenômeno impostor. Há
pessoas que, mesmo com um histórico de sucesso, têm
convicção de que são uma farsa, que à qualquer
momento irão perceber que não são tão bons quanto os
outros dizem. Albert Ellis e Aaron Beck sempre
enfatizaram que não são apenas as situações por si que
ativam os nossos sentimentos e comportamentos.

A forma como interpretamos as situações influencia nas


emoções e ações compatíveis aos pensamentos
ativados. Além dos pensamentos “deveria...” e da
personalização, Beck também destaca a desqualificação
do positivo (ex.: “não fiz mais do que minha obrigação”;
“qualquer um seria elogiado ao realizar esta tarefa”) e a
visão em foco (ex.: “ este detalhe poderia ter sido
melhor”) como sendo distorções cognitivas frequentes
em clientes com este perfil. Estes pensamentos estão
diretamente associados às crenças centrais, que por sua
vez, são estabelecidas principalmente a partir das
experiências iniciais de nossas vidas.

12
Clientes que se cobram em excesso costumam
apresentar crenças de desvalor, como, por exemplo,
“sou um fracasso”. Sendo assim, há regras, atitudes e
suposições que seguem no dia a dia: “tenho que dar
conta de tudo sempre”; “tenho que fazer tudo perfeito,
senão irão me avaliar mal”; “se eu disser que não
consigo/posso, irão pensar que sou fraco”; “se eu
relaxar/descansar e não conseguir o resultado
esperado, a culpa será toda minha”.

Na clínica, ao atender clientes que se cobram em


excesso, perceba que no processo de avaliação e
conceitualização do caso nos deparamos com alguns
cenários comuns. Estes sujeitos costumam relatar
memórias da infância nas quais houve:

1) Pais/educadores extremamente exigentes,


supervigilantes e inibidores;
2) Convivência com pessoas que se cobravam em
excesso: priorizavam cumprir com obrigações, eram
perfeccionistas (modelação) e/ou ;
3) Dificuldades extremas, que os fizeram internalizar
ideias como “eu tenho que dar certo”, “não posso contar
com ninguém”. Interessante observar que alguns
clientes podem nos dizer em sessão: “eu não consigo
acessar o que eu penso na hora”, “eu repito este padrão,
não sei por que”, “diante da situação X ativo este
comportamento de forma automática”. É como se
estivessem presos em um labirinto sem saída,
insatisfeitos por voltarem ao mesmo lugar.

13
Nestes casos, além de explicar quais são as crenças
disfuncionais e como se dá ativação das mesmas, é
importante o terapeuta entender também o que
Jeffrey Young nos fala a respeito do esquemas iniciais
desadaptativos.

Uma pessoa que desenvolveu o esquema do padrão


excessivo de cobrança, diante de uma situação gatilho
(ex.: iniciar um novo projeto, receber um pedido para
um trabalho extra, realizar uma apresentação aos
superiores, fazer escolhas/planos futuros, iniciar
parceria com alguém) pode apresentar diferentes
respostas de enfrentamento.

1) Na resignação não há resistência - o indivíduo segue


o sofrimento emocional e age de maneira a confirmar
o esquema. Exemplo: investe muito tempo tentando
ser perfeito ou se sobrecarrega com horas extras de
trabalho/estudo;

2) No caso da evitação, a pessoa evita entrar em


contato com situações (ou mesmo com pensamentos)
que iriam ativar o padrão excessivo de cobrança.
Exemplo: evitar entrar em novos projetos, porque
entende que não tem controle sobre todas as
variáveis, ou evitar atividades coletivas, pois terá que
dividir tarefas e seu desempenho será avaliado;

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3) Já na hipercompensação há uma tentativa de
lutar/romper com o esquema, mas gera também
sentimentos intensos e desagradáveis. Exemplo:
abandonar momentaneamente todas as obrigações
assumidas que o consumiam ou, por um momento,
não se importar com os padrões e entregar de forma
apressada e descuidada.

Outro aspecto importante a ser trabalhado é o


criticismo. Paul Gilbert nos ensina a diferenciar
autocrítica de criticismo. Autocrítica é uma virtude:
parar, observar, reconhecer um erro/falha, tentar
reparar danos e se imaginar agindo de uma forma
diferente em uma situação semelhante no futuro.
Entretanto, o criticismo é um problema que afeta
muito a saúde mental: a pessoa revisita com
frequência situações passadas nas quais entende
que cometeu um erro/falha, comporta-se
mentalmente neste lugar - ruminando pensamentos
com verbos conjugados no pretérito imperfeito - e
ativa sentimentos/sensações físicas desagradáveis
como se estivesse lá.
15
Alguns bons filmes, mais conhecidos pelo público
em geral, como: “O diabo veste prada” e “Amor sem
escalas”, funcionam bem para promover debates
em terapia.
Eu recomendo muito o filme “Questão de tempo”,
filme de drama que nos leva a uma bela reflexão
sobre os pensamentos “tenho que” e “deveria”. Para
quem gosta de seriados, super recomendo a série
vencedora do emmy “This is us”. Acompanhe o
personagem Randall, brilhantemente interpretado
por Sterling Brown (vencedor do emmy de melhor
ator).

16
Claramente este personagem apresenta os
esquemas de padrão excessivo de cobrança e
autossacrifício. É possível entender como surgiram,
se ativam e se mantêm, e como se dão os estilos de
enfrentamento do padrão excessivo de cobrança.
Vejam também o excelente documentário “Em
busca de bem estar”. Um argentino, que apresenta
um perfil ansioso e características do esquema do
padrão excessivo de cobrança, recebe e guia o
monge budista Matthieu Ricard em uma viagem
para conhecerem as belas paisagens da Patagônia.
Há interessantes diálogos e práticas, que nos trazem
muito aprendizado sobre aceitação, mindfulness e
desapego.

17
Como conversamos com
nosso cliente sobre o
controle dos impulsos?

Em função da pandemia mundial de covid-19


estamos em um momento muito peculiar na
nossa sociedade. Boa parte da população
preenche hoje critérios para transtorno de
adaptação. Muitos fatores estressores externos
e internos surgem e se mantém em função de
diversas condições de mudança necessárias e,
por vezes, forçada. Além disso, há um contato
com informações excessivas, na maior parte
das vezes não bem selecionadas e não
confiáveis, e a expressão de forma inadequada
de opiniões diversas, que geram conflitos
interpessoais mais constantes.

18
Com o nível de estresse muito elevado, a
hipersensibilidade emotiva e o aumento da
irritabilidade são notados com maior frequência.
Clientes que apresentam maior vulnerabilidade
para ativar comportamentos impulsivos ativam
mais a esquiva emocional. Buscam um prazer
momentâneo para “se sedar” ou evitar
desconfortos. Um retrato disto são dados da
indústria e do comércio que apontam que as
vendas de bebidas alcoólicas nos supermercados
triplicaram durante a pandemia.

Afinal, o que é inibição ou controle inibitório?

A inibição ou o controle inibitório é a habilidade


para inibir (ou controlar) respostas impulsivas,
emitindo respostas menos reativas/automáticas e
menos disfuncionais, a partir do bom uso da
atenção e do raciocínio lógico. Esta habilidade
cognitiva é uma de nossas funções executivas. Ter
bom controle inibitório contribui para se antecipar,
planejar e atingir objetivos. O controle inibitório
pode impedir condutas e reações automáticas
inadequadas. É possível a escolha por uma ação
“melhor”, considerada mais adequada para a
situação.

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Clientes que sofrem com problemas de controle dos
impulsos podem chegar na fase de pré-contemplação.
Um estágio no qual não se entende que tem um
problema e que é, ao menos em parte, responsável
pelo mesmo. Nesta fase não há intenção de mudança,
nem mesmo uma crítica a respeito
comportamento/problema.
Caso o profissional não consiga abordar de forma
adequada este tema, o cliente pode ativar resistência,
prejudicar a construção do vínculo terapêutico e até
mesmo abandonar o tratamento. Como terapeuta é
preciso ativar de forma precisa os modos
acompanhamento, orientação ou direcionamento nos
momentos e contextos adequados. Neste caminho, é
recomendável que o profissional entenda e consiga
utilizar a entrevista motivacional, que é um estilo de
aconselhamento para abordar a ambivalência em um
processo de mudança.
Profissionais não bem treinados para oferecer um
tratamento mais eficaz, assim como algumas pessoas
próximas ao sujeito, podem recriminar em excesso e
dizer que o problema é mantido por haver “falta de
força de vontade”. Por isso ressalto a importância de
avaliar, favorecer o autoconhecimento, a
automonitoria, a aplicação de estratégias adequadas e
conduzir bem o processo de prevenção de recaídas.
Sabemos que há muitas estratégias comportamentais
com comprovação de eficácia para favorecer a
regulação do controle inibitório, e é interessante
pontuar que Aaron Beck concorda com o pensamento
Kantiano de que saúde mental está diretamente
atrelada ao controle dos impulsos.

20
Bem, a avaliação bem feita é essencial e, na maior
parte dos casos, será necessário um tratamento
interdisciplinar. Uma avaliação psiquiátrica, por
exemplo, pode definir a necessidade ou não de uso de
um medicamento para ajudar a estabilizar o humor ou
para reduzir um estado de excitação excessiva.
Ademais, em alguns casos, uma avaliação
neuropsicológica também pode ser muito necessária.
Após fazer a conceitualização do caso é possível
compartilhar com o cliente detalhes sobre a origem e
como se dá a manutenção do comportamento
impulsivo: quando e como começou; possíveis gatilhos;
como ocorre o condicionamento operante; frequência,
duração e intensidade; possíveis crenças e distorções
cognitivas. A depender da comportamento impulsivo,
há planilhas que podem ser alimentadas com
informações e ajudar no automitoramento e
autoconhecimento. Atualmente há instrumentos,
escalas e questionários, específicos para ajudar a
identificar e avaliar a presença de alterações ou déficits
no controle inibitório.
Em casos mais graves de falha do controle inibitório, a
pessoa pode preencher critérios diagnósticos para um
transtorno do controle dos impulsos (TCI). TCI envolve
uma série de comportamentos relacionados ao desejo
excessivo e ações impulsivas para se tentar satisfazer
de forma imediata, não levando em consideração
possíveis danos que estes comportamentos podem
causar. Ações impulsivas frequentes, inadequadas e
disfuncionais geram prejuízos em diversas áreas da
vida do sujeito.

21
Os transtornos relacionados ao uso/abuso de substâncias
são os mais frequentes e mais estudados em saúde
mental. Os transtornos aditivos geram graves danos ao
sujeito e na sociedade de um modo geral. Neste caso
pode haver inclusive uma via de mão dupla, porque o
abuso de álcool e algumas outras drogas podem agravar
a falta de controle dos impulsos com o passar do tempo.
Entretanto, há outros TCI; citando apenas os mais
comuns: transtorno explosivo intermitente, cleptomania,
dependência tecnológica (ou nomofobia), dependência
de games e dependência de sexo.
Com o avanço das tecnologias, hoje é possível entender
melhor como se apresenta o funcionamento cerebral de
pessoas que apresentam menor controle inibitório. Um
interessante estudo comparou pessoas que apresentam
transtorno de personalidade borderline com sujeitos que
preenchem critérios para transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade (TDAH). Ambos transtornos são
muito caracterizados pela presença de comportamentos
impulsivos. Achados recentes de estudos de
neurociência comportamental e cognitiva sugerem
componentes do controle de impulsos em diferentes
domínios funcionais, como: atenção seletiva, seleção de
resposta, controle motivacional e inibição
comportamental. O córtex pré-frontal com suas sub-
regiões é a estrutura central na execução dessas funções
de controle de impulso. Pacientes com transtorno
borderline apresentam disfunções pré-frontais em
relação a componentes de controle de impulso nas
regiões dorsomedial e dorsolateral. Entretanto, pessoas
com TDAH apresentam atividade alterada
principalmente nas regiões pré-frontal ventrolaterais e
mediais.

22
Vamos considerar, por exemplo, que estamos
atendendo um cliente que apresenta muita
dificuldade para controlar a expressão da raiva. Se este
sujeito, com frequência - diante de adversidades,
pessoas e contextos diversos - apresenta uma reação
emocional e comportamental “explosiva”, isso
possivelmente indica um quadro de transtorno
explosivo. Entretanto, se este sujeito tem reações
explosivas com a esposa e com o filho, pratica abuso
emocional e físico, mas diante de outras figuras de
autoridade ou com mais força física (cenários nos quais
claramente pode vir a ser punido) demonstra controle
da expressão da raiva, é preciso investigar as crenças e
valores do mesmo. Fiquemos atentos a alguns clientes
podem selecionar momentos para se permitir o menor
controle dos impulsos.

Interessante também destacar que clientes mais


impulsivos muitas vezes não revelam nas primeiras
sessões seus problemas com controle dos impulsos. A
maior parte destes buscam terapia trazendo outras
queixas de início. Comum até usarem palavras no
diminutivo para abrandar o contato com o sentimento
de vergonha e uma possível recriminação: “vou dar
uma saidinha”, “tomei umas cervejinhas”, “tava
precisando comer um docinho”; até mesmo o termo
“foi só uma aglomeraçãozinha” eu ouvi ao longo deste
ano de pandemia. Passa a ser algo preocupante
quando os atos impulsivos são frequentes e geram
significativos danos para pessoa e/ou para outros com
quem se convive.

23
Falando ainda sobre o TDAH, ao tratar um cliente
com este diagnóstico, sugiro que conheçam o modelo
de auto-regulação comportamental. Neste modelo o
Dr. Russell Barkley propõe que o controle inibitório
seja a base do funcionamento adequado do resto das
funções executivas. O controle inibitório é necessário
para alteração, controle da impulsividade (ou das
interferências), memória operacional, regulação
emocional etc. Uma inibição baixa é um dos maiores
problemas no TDAH.

Foco de debate de muitos pensadores, um conflito


que todos seres humanos irão vivenciar em algum
momento da vida: desejo x vontade. O controle
inibitório regula este conflito. Muitos no senso
comum, equivocadamente, entendem os dois como
sinônimos, mas não são. Desejo é instintivamente
ativado (sistema límbico mais ativado) e pode gerar
um impulso para tentarmos satisfazê-lo. Vontade é
uma decisão deliberada, planejada (lobo frontal e giro
do cíngulo mais ativado). Podemos cuidar para que
haja mais raciocínio lógico - pesar prós e contras; mais
visão - imaginar-se em um outro lugar no futuro para
motivar o comportamento pela consequência de um
reforço positivo em médio prazo; e também
compromisso - “just do it” - assumir um acordo em
cumprir o combinado em função de nossos
propósitos e valores, que desejavelmente precisam
priorizar o nosso bem-estar e de quem convive
conosco.

24
É muito óbvio que quando pessoas fazem o que
querem, quando querem, sempre que querem, a
qualquer custo, o custo costuma ser muito alto.
Pessoas, quando impulsivas, são menos empáticas.
Costumam conjugar mais frequentemente os verbos
na primeira pessoa do singular. Entenda que haverá
momentos nos quais será ótimo se entregar e viver de
forma intensa a realização de um desejo, e isso não
será disfuncional. Entretanto, haverá outros contextos
nos quais será necessário conter o impulso gerado
pelo desejo ativado, porque a ação que busca o prazer
momentâneo impedirá ganhos em médio/longo
prazo e irá causar danos a si ou aos outros envolvidos.

Alguns sujeitos pensam ser livres e, por isso, avaliam


que podem se entregar a maior parte do tempo à
busca de um prazer imediato ou alívio do próprio
desconforto. Pelo contrário, quando são muito
impulsivos, os sujeitos são “escravos das
circunstâncias”. Quando se deparam com aqueles
estímulos presentes na situação, ativam o
comportamento de forma automática e disfuncional.
Assim, são os gatilhos quem ativam seus
comportamentos de uma forma reativa, não havendo
neste caso uma escolha voluntária (mais livre) pelo
que irão ou não fazer.

25
TÁ RINDO DE QUÊ? QUAL É A
IMPORTÂNCIA DO BOM HUMOR
PARA A SAÚDE MENTAL?

Sabemos que há uma região do cérebro que apresenta grande


ativação quando há um relato subjetivo de felicidade: o núcleo
accumbens. É uma das estruturas do corpo estriado ventral, que
integra os centros de prazer e de recompensa. Sua atividade é
regulada por neurotransmissores, como a dopamina e a
serotonina. Estes neurotransmissores regulam as emoções
positivas; estão associadas ao bem-estar. Amigdala, hipocampo e
sistema límbico são outras partes do cérebro ativadas quando há
o relato subjetivo de felicidade.

26
É difícil para a neurociência realizar uma pesquisa que
tenha como objetivo entender a sensação de prazer e
felicidade em função natureza dessa experiência subjetiva
e da relação dos componentes hedônicos (prazer ou afeto
positivo propriamente) com os componentes
eudaimônicos (avaliações cognitivas do significado da
experiência e da satisfação). Ainda não há progressos
substanciais na compreensão da neuroanatomia
funcional da felicidade. Há regiões do cérebro que são
importantes nas “redes hedônicas” do cérebro e estudos
recentes especulam sobre a interação potencial destas
com as “redes eudaimônicas”.
Outro ponto interessante é que nós, seres humanos,
quando comparados aos outros animais, temos uma
quantidade muito superior de células neurônio espelho.
Desta maneira, ao interagir com uma pessoa que está
visivelmente feliz, tendemos a nos comportar
mentalmente como ela e, claro, sentir ao menos em parte
a sensação de bem-estar do outro. Não seria exagero
então dizer que a alegria é contagiante. De acordo com
Ryan Niemic, pessoas que apresentam a característica do
bom humor, apresentam correlação positiva com:
inteligência social, entusiasmo, bondade, esperança e
capacidade de expressar amor.
Mas será que o senso de humor é sempre algo bom? Certa
vez, assistindo uma mesa redonda que debatia “Qual é o
limite de humor?”, o experiente ator/redator Felipe
Absalão, que faz parte do grupo Comédia em Pé, disse: "O
limite do humor está em rir COM o outro e não DO outro."
E seguiu seu raciocínio dizendo: "Até mesmo o bobo da
corte, que fazia piadas sobre o rei, era escolhido pelo
mesmo".

27
Vejam, esta é uma importante reflexão. Pessoas pouca
empáticas podem não se sensibilizar com o sofrimento do
outro. Sendo assim, podem expô-lo, fazendo
piadas/brincadeiras inadequadas, que serão gatilhos para
o sujeito ativar sentimentos extremamente
desconfortáveis. A sensação de tristeza, raiva e
inadequação surge em função da ativação de
pensamentos automáticos de menos valia.
As piadas/brincadeiras inadequadas direcionadas a um
sujeito, se forem intensas, frequentes, persistentes, podem
se tornar uma grave violência emocional (bullying). A
pessoa que pratica o bullying está tentando criar uma
autoimagem positiva diante de um grupo. Pode estar se
utilizando da estratégia de: ao mesmo tempo que aponta
um “defeito”, ato vexatório ou característica marcante do
outro, evita que os outros olhem para si e identifiquem
seus próprios “defeitos”.
Bertrand Russel, no ensaio “Elogio ao ócio”, disse que uma
virtude só pode ser considerada uma virtude se vier
acompanhada de uma outra virtude, que é a bondade.
Por essa perspectiva, o bom humor precisa ser um
bondoso humor.

E o outro lado? O mau humor. Há pessoas, que no convívio


com as outras, são vistas como sendo mau humoradas. O
"mau humor" crônico é comumente visto em sujeitos que
preenchem critérios diagnósticos para depressão
recorrente (antes chamada distimia). Neste caso, o modo
de pensar pessimista os fazem enxergar mais
frequentemente aspectos negativos no contexto. Isso leva
ao aumento da irritabilidade e causa consequências ruins
para a saúde mental e piora a qualidade das relações
interpessoais.
28
Outro ponto interessante para observarmos: alguns
pacientes ativam a estratégia de enfrentamento de
usar a ironia/sarcasmo quando se deparam com
situações ativadoras de sentimentos desagradáveis
experimentados pelos outros ou por si mesmos.
Pessoas que apresentam o esquema de inibição
emocional podem na interação com os outros (de
forma habitual e não consciente) disfarçar ou evitar
expressar o que sentem.

Então, nem sempre um sorriso é sinal de bem estar.


Até mesmo em uma sessão de terapia pode acontecer
do cliente apresentar sentimentos não compatíveis
com o contexto. Exemplo: certa vez um cliente que
sofreu grave violência física e emocional contou
sorrindo muito: "Minha mãe amava muito mais o
cachorro do que eu. Ela me amarrava no pé da mesa
com uma corda por horas para poder sair de casa e eu
não aprontar. O cachorro ficava solto pela casa".

Em suma, expressar o bom humor no contexto e


momento adequados faz muito bem. Importante
observar se o sentimento está compatível ao contexto.
Em 2019 o filme Coringa, que rendeu o Oscar de
melhor ator a Joaquin Phoenix, causou grande
impacto e promoveu debates sobre a necessidade de
ativarmos sentimentos mais compatíveis ao contexto.
É difícil achar o ponto de equilíbrio, porque alienar-se
é preciso, mas viver alienado não.

29
Transtorno Bipolar X Transtorno
de Personalidade Borderline:
você sabe diferenciar?

O transtorno bipolar está categorizado nos critérios


diagnósticos internacionais como um transtorno de
humor. É possível a variação de humor para depressão,
hipomania/mania ou episódio misto. Entretanto, o
indivíduo também pode ficar um período de tempo em
eutimia, que seria um estado de humor mais
equilibrado, em especial se estiver em tratamento
adequado.
O transtorno borderline, por sua vez, está listado como
um transtornos de personalidade. Sujeitos com
transtorno bipolar, quando em eutimia, não
necessariamente apresentarão características da
personalidade muito disfuncionais como acontece com
os pacientes borderlines.

30
As variações de humor dos clientes com transtorno bipolar
são mais sujeitas a acontecer diante de fatores estressores
mais fáceis de identificação, mas também podem
acontecer sem estes estarem presentes. Além disso, é mais
comum haver fases melhor demarcadas e variações de
humor que se sustentam por mais tempo.

O humor do cliente com transtorno borderline parece ser


mais reativo, especialmente diante de situações
problemáticas que envolvem relações interpessoais. Para
quem convive com um cliente que apresenta esta
psicopatologia é comum o relato de que estar parece ser
uma pessoa constantemente instável, imprevisível. As
intensas alterações no humor (disforia, irritabilidade,
ansiedade) costumam durar apenas algumas horas. Outra
registro importante é que os clientes com personalidade
borderline se queixam com muito mais frequência da
sensação de vazio constante.

Questionários que avaliam crenças e esquemas


desadaptativos costumam apresentar resultados piores
em sujeitos com transtorno borderline. Clientes com
transtorno de personalidade costumam apresentar
crenças irracionais mais rígidas. É comum externalizarem
com muito mais frequência pensamentos com expressões
mais absolutistas, do tipo: nunca, sempre, toda vez. Além
disso, no questionamento socrático dos pensamentos
automáticos é mais comum aparecerem frases contendo
advérbios de negação (não, nada, nunca) e conjunções
adversativas (mas, porém). O locus de controle externo dos
sujeitos com transtorno de personalidade é um grande
desafio no tratamento psicoterápico, gera resistência e
uma maior desistência dos tratamentos.

31
Em clientes com transtorno bipolar, ideações paranóides
são mais comuns de aparecer quando os mesmos estão
em episódios de mania, hipomania ou misto. No
transtorno bipolar do tipo I os clientes podem apresentar
sintomas psicóticos na fase de mania, a tal ponto de
precisarem até mesmo de internação psiquiátrica. Em
depressão ou eutimia esses sintomas não costumam
aparecer.

Clientes com transtorno borderline mais


costumeiramente expressam ideias de que podem estar
sendo traídos, enganados, manipulados. E em relações
amorosas é mais comum demonstrarem um ciúme
patológico. Outra questão importante de se observar é
que estes apresentam mais problemas com a
autoimagem. Podem inclusive mudar de forma abrupta
objetivos, valores, opiniões, carreira ou amigos. A
alternância entre valorização e desvalorização é uma
queixa comum de quem convive com alguém que tem
transtorno borderline.

Sujeitos com transtorno bipolar podem apresentar


prejuízos no controle dos impulsos, notado em compras,
jogos, sexo em excesso. Podem fazer coisas imprudentes
como dirigir perigosamente ou pedir demissão de um
emprego sem ter um bom motivo ou outra oportunidade
em vista. Entretanto, esses atos impulsivos costumam
acontecer nos quadros de mania/hipomania; e
costumam ser bem controlados diante do uso adequado,
em dose e regularidade, do estabilizador de humor.

32
Quando clientes com transtorno borderline apresentam
uma compulsão, esta não parece ter uma fase
demarcada pra se manifestar. Um outro exemplo da
dificuldade para controlar os impulsos em clientes com
transtorno borderline é a presença de comportamento
de automutilação. O ato de se cortar não é tão frequente
quando o sujeito preenche somente o diagnóstico de
bipolaridade.

Pacientes com transtorno bipolar não necessariamente


irão demonstrar problemas com a empatia. É possível
até mesmo que sejam pessoas muito compassivas em
suas relações.

Pacientes com transtorno de personalidade borderline


demonstram maior dificuldade para serem empáticos.
Nas relações, focam mais em si, parecem querer a
qualquer custo buscar a própria satisfação ou o alívio do
próprio desconforto. Até podem demonstrar empatia e
cuidar de uma pessoa, por exemplo, mas fazem se
acharem que essa outra pessoa estará disponível para
eles sempre que necessário.

Importante ressaltar que nas relações interpessoais é que


conseguimos ver de forma mais marcante a diferença
entre os transtornos. No quesito assertividade, clientes
com transtorno bipolar tendem a ser mais passivos-
agressivos quando estão em estado de humor alterado.
Em eutimia podem mais frequentemente ser assertivos.

33
Já pacientes com transtorno borderline, suas
relações, alternam papéis de vítima e agressor.
Costumam expressar a raiva de forma mais
intensa, frequente e inadequada, especialmente
quando entendem que estão sendo rejeitados ou
negligenciados. A hipersensibilidade ao
abandono é muito comum nestes sujeitos. Eles
apresentam com maior frequência experiências
na primeira infância de desconexão, rejeição e/ou
abuso (físico, emocional e/ou sexual).

Continue estudando as características mais


comuns dos sujeitos com estes transtornos, faça a
avaliação sem pressa e com muito cuidado. Se for
preciso, use instrumentos de avaliação e inclua
um outro profissional de saúde na equipe para
dividir sua impressões e reduzir a probabilidade
de haver erro de diagnóstico. Na fase de
psicoeducação, passar para o cliente textos, livros,
vídeos e filmes que abordem características de
sua hipótese diagnóstica pode favorecer para
coletar mais informações e confirmar se o sujeito
se identifica com os critérios apontados.

34
Vivemos uma epidemia
de narcisismo?

Vamos refletir sobre características


disfuncionais das pessoas com trantorno
de personalidade narcisista? Apresentarei
no texto a seguir dicas sobre avaliação,
informações relevantes para incluir na
conceitualização do caso, cuidados
necessários na construção e manutenção
de um bom vínculo terapêutico,
montagem e condução do plano de
tratamento.

35
Antes, uma curiosidade:
Narciso, na mitologia grega, filho do deus do rio
Cefiso e da ninfa Liríope, era muito belo,
orgulhoso e arrogante. Apesar de ser muito
bajulado, despertando amor em homens e
mulheres, vivia a sensação de vazio e solidão
porque ninguém era bom o suficiente para estar
consigo. A ninfa eco atraiu Narciso para o leito do
rio. Narciso se encantou com a própria imagem
no espelho d’água e definhou, paralisado,
admirando a si mesmo.

Antes, uma curiosidade:


Brené Brown trouxe uma reflexão em seu livro “A
coragem de ser imperfeito”. Ela disse ter a
impressão de que há uma “epidemia de
narcisismo”. Para afirmar isso ela nos faz pensar
com que frequência nos deparamos hoje em dia
com pessoas que apresentam grande
necessidade de expor aspectos de suas vidas que
consideram positivos e esconder aspectos que
entendem que os fariam se sentir expostos de
maneira negativa e vulneráveis. Os principais
aspectos sociais que nos levariam a este cenário
seriam as mídias sociais, o estímulo excessivo ao
consumo e à competitividade.

36
Antes, uma curiosidade:
Na minha opinião há um certo exagero na expressão
“epidemia de narcisismo”, dado que, de acordo com o
DSM-5, há outros critérios que precisam ser levados em
consideração para que uma pessoa seja considerada
narscisista. O transtorno de personalidade narcisista tem
como características mais frequentes a falta de empatia, o
senso de superioridade, busca por “grandeza”, atrelada à
uma preocupação excessiva por admiração.

O comportamento narcisista tem origem em estilos de


apego inadequados; no caso, a pessoa nunca
experimentou uma conexão saudável com seu cuidador
principal, deixando-a sem as ferramentas necessárias
para internalizar uma conexão saudável. De acordo com
os estudos da teoria do apego de John Bolby, um vínculo
seguro e afetuoso no início da vida influencia muito para
um ser humano conseguir estabelecer relações com mais
ingredientes de empatia e confiança. À medida que as
crianças crescem e ampliam o círculo social,
experimentar interações que favoreçam a aquisição de
empatia e de outras habilidades socioemocionais será
essencial para o desenvolvimento e a manutenção de
relações saudáveis.

A terapia do esquema tem ganhado destaque como


opção de tratamento para pessoas que preenchem
critérios diagnósticos para transtorno de personalidade
narcisista. Tanto que na terceira edição do livro “Terapia
cognitiva dos transtornos de personalidade”, são descritas
pelos renomados Beck, Davis e Freeman. Pela visão da
terapia do esquema proposta por Jeffrey Young, que tem
como uma de suas influências a teoria do apego, diversos
esquemas iniciais desadaptativos

37
e modos disfuncionais podem ser identificados com
frequência nos sujeitos que apresentam trantorno de
personalidade narcisista. Há dados relevantes da
infância que são mais comuns em pessoas com traços
narcisistas, quando comparados com a população em
geral: experiências de desconexão/rejeição, limites
prejudicados, problemas na orientação sobre como se
relacionar com os outros e possíveis cobranças,
estímulo à competição de forma excessiva.

Os principais esquemas desadaptativos identificados


em pessoas narcisistas são: defectividade, privação
emocional, fracasso e desconfiança; levam comumente
o sujeito a experienciar sensações de impotência,
vazio/solidão, frustração e apreensão. Como esquemas
desadaptativos de supercompensação são comuns em
pessoas narcisistas, os esquemas de:

(1) autocontrole insuficiente (busca por prazeres


momentâneos, autocalmantes e autoestimulantes, sem
levar em consideração consequências);
(2) merecimento/grandiosidade (podendo haver
padrões exploradores, autoengrandecedores e
intimidadores);
(3) busca de aprovação (um esforço constante para
obter atenção, aprovação); e
(4) padrões excessivos de cobrança (demonstrando
insatisfação constante com o que tem e uma ideia,
sempre presente, de competição). Para quem quer
aprofundar o conhecimento sobre este tema, vale à
pena ler e aprender sobre os modos: onisciente (“deixe-
me explicar como é”); pessoa muito importante (“tenho
regras especiais”); troféu (“imagem é tudo”); e invencível
(“não tenho fraquezas”).

38
Sobre os instrumentos subjetivos que avaliam crenças,
esquemas, modos, é relevante informar que algumas
respostas aos questionários podem se apresentar de
forma não compatível com o que estamos observando
durante os atendimentos, em especial quando o
terapeuta já entende como se dão as relações do sujeito
narcisista com os outros no mundo. Isso acontece porque
muitos sujeitos com transtorno de personalidade podem
apresentar um autoconceito distorcido. Por exemplo,
certa vez atendi um paciente com transtorno de
personalidade narcisista que dizia amar muito o próprio
filho enquanto o mesmo era um bebê. Entretanto, este o
via como um projeto seu, uma espécie de extensão de si
mesmo. No momento em que o filho desenvolveu a
própria individualidade, começou a fazer escolhas
próprias, havendo dissonância nas opiniões, começou a
haver expressão constante e intensa de raiva e frustração
por parte do pai.

Pela linha mais Beckiana também é possível


compreender bem os clientes com características de
narcisismo. Estas pessoas podem deixar transparecer boa
autoestima, entretanto, crenças de desvalor e de desamor
costumam estar presentes: “Eu sou defeituoso”; “Eu sou
incapaz”; “Eu sou um fracasso”; “Eu não sou digno de ser
amado”. Como crença condicional nos deparamos com:
“Se o outro me conhecer tal como sou, irá perceber que
sou... tal coisa ruim”. Por isso, como estratégias
compensatórias estes sujeitos nem cogitam expor a
própria vulnerabilidade e costumam expor os aspectos
que entendem como sendo positivos, que acham que os
levarão a ter boa avaliação, aprovação ou reconhecimento
dos outros que consideram importante naquele
momento.

39
A gravidade do comprometimento da personalidade e o
transtorno que causam na vida das pessoas com quem
convivem depende do grau em que atitudes
compensatórias de superioridade tornam-se
superdesenvolvidas: “sou uma pessoa rara e especial”; sou
superior aos outros”; “os outros precisam saber como sou
especial para que eu possa inspirá-los”; “mereço regras
especiais, diferentes das que os outros seguem, aplicáveis
somente a mim”.

A principais metas no tratamento do transtorno de


personalidade narcisista são: 1) identificar e enfraquecer
crenças disfuncionais e modos desadaptativos de
enfrentamento, 2) aumentar a capacidade de entender e
empatizar com os sentimentos dos outros, levando o
cliente a respeitar com maior aceitação as regras e
normas que regulam as relações, 3) desenvolver
habilidades que favoreçam a regulação emocional,
especialmente visando melhorar a capacidade de
controle dos impulsos, tolerância à frustração, com
expressão adequada das emoções e 4) alinhar a
autoimagem com as características positivas que de fato
o sujeito apresenta: características físicas, forças, virtudes,
competências.

No que diz respeito à relação terapêutica, qualquer


cliente que preencha critérios para transtorno de
personalidade exige do terapeuta grande preparo.
Algumas crenças e pensamentos distorcidos do próprio
terapeuta podem ser ativados e levar o profissional a se
sentir encantado, seduzido, irritado ou ameaçado. Mesmo
com boas competências terapêuticas desenvolvidas é
desejável buscar uma supervisão de caso clínico.

40
Ainda sobre a relação terapêutica, é importante alertar
que a imensa maioria das pessoas com características de
narcisismo procuram inicialmente a psicoterapia por
queixas secundárias, chegam na fase da pré-contemplação.
“Bater de frente é perda total”. Encontrar um momento
apropriado para dar um diagnóstico ou debater de forma
mais consistente crenças é uma tarefa difícil e pode ativar
resistência. Fazer uma avaliação detalhada e uma boa
conceitualização do caso, com mais ingredientes de
acompanhamento empático e orientações, aumenta a
probabilidade de se criar e manter um bom vínculo
terapêutico.

Nas sessões iniciais é possível idenficar e ajudar o cliente a


entender os traços disfuncionais de sua personalidade,
especialmente os dados relevantes do passado e a
influência de eventos na formação de suas crenças e
esquemas. Vale a pena investir tempo nas primeiras
sessões para fazer psicoeducação sobre empatia, controle
dos impulsos e sobre ferramentas que ele pode aprender e,
quando aplicadas, irão favorecer a melhor regulação
emocional.
O uso de imagens mentais, como estratégia mais
experiencial-emocional, e role play, como estratégia mais
cognitiva-comportamental, podem facilitar o
entendimento de como se dão as ativações dos modos
disfuncionais e levar o cliente a experimentar maior
aceitação, sensação de recebimento de afeto genuíno e
atuação dentro da perspectiva do modo adulto saudável.

Treinamento de autocompaixão e práticas de mindfulness


podem surtir bom efeito para construir habilidades
internas de regulação emocional. Exercícios de bondade
amorosa podem ser especialmente benéficos para ajudar a
pessoa com transtorno de personalidade narcisista a se
conectar a um senso de humanidade comum.

41
Nos filmes e nos seriados os roteiristas entenderam que os
personagens com características de transtorno de
personalidade anti social e transtorno de personalidade
narcisista atraem olhares. Impressiona a quantidade de
opções que exploraram esta temática. Cuidado, porque há
muitas obras que exploram mal o tema. Em “cinquenta
tons de cinza”, por exemplo, há uma romantização do que
seria na vida real uma relação de grave abuso emocional e
físico. O detalhe é que Mr. Grey não pensa que é o melhor
ou tenta se vender como sendo o máximo; na ficção ele
tem diversos atributos que são apresentados com a
intenção de se mostrar superiores quando comparado
com a imensa maioria da população em geral: bonito,
inteligente, bem sucedido profissionalmente e
financeiramente, educado, excelente performance na
cama... ...
Então, por fim, darei algumas dicas de obras que
apresentam personagens bem elaborados com
características de narcisismo.
As primeiras temporadas de “House of cards” nos
apresenta uma relação esquemática de um casal com
características de transtornos de personalidade antissocial
e narcisista.
“House” traz um personagem com enorme capacidade de
inteligência lógica, mas muito egocêntrico. O Dr. House
apresenta grande dificuldade para se conectar de forma
empática e baixo senso de autocrítica.
O seriado “The boys” explora, de forma caricata, as
características do narcisismo em personagens com
superpoderes, que foram criados em uma condição de
apego inseguro evitativo. A falta de empatia, a arrogância,
a desconfiança, a falta de controle dos impulsos e a baixa
tolerância à frustração “gritam” nos personagens super.

42
Nos filmes e nos seriados os roteiristas entenderam que os
personagens com características de transtorno de
personalidade anti social e transtorno de personalidade
narcisista atraem olhares. Impressiona a quantidade de
opções que exploraram esta temática. Cuidado, porque há
muitas obras que exploram mal o tema. Em “cinquenta
tons de cinza”, por exemplo, há uma romantização do que
seria na vida real uma relação de grave abuso emocional e
físico. O detalhe é que Mr. Grey não pensa que é o melhor
ou tenta se vender como sendo o máximo; na ficção ele
tem diversos atributos que são apresentados com a
intenção de se mostrar superiores quando comparado
com a imensa maioria da população em geral: bonito,
inteligente, bem sucedido profissionalmente e
financeiramente, educado, excelente performance na
cama... ...
Então, por fim, darei algumas dicas de obras que
apresentam personagens bem elaborados com
características de narcisismo.
As primeiras temporadas de “House of cards” nos
apresenta uma relação esquemática de um casal com
características de transtornos de personalidade antissocial
e narcisista.

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“House” traz um personagem com enorme capacidade de
inteligência lógica, mas muito egocêntrico. O Dr. House
apresenta grande dificuldade para se conectar de forma
empática e baixo senso de autocrítica.

O seriado “The boys” explora, de forma caricata, as


características do narcisismo em personagens com
superpoderes, que foram criados em uma condição de
apego inseguro evitativo. A falta de empatia, a arrogância,
a desconfiança, a falta de controle dos impulsos e a baixa
tolerância à frustração “gritam” nos personagens super.

44
A série “Undoing” conta a história de uma mulher,
interpretada por Nicole Kidman, que convive com um
marido médico que está sendo acusado de um grave
crime. Chama a atenção o esforço e o rompimento
com os limites éticos nas relações para manter “as
aparências e o alto padrão”.

Para trocar uma ideia sobre influências sociais,


recomendo o filme “Pequena Miss Sunshine”. Explora
muito bem a estimulação inadequada por
competição na infância. A necessidade de se
autoafirmar e criar uma autoimagem chancelada pela
opinião dos outros.

“O lobo de Wall Street”, por sua vez, conta com a


brilhante atuação de Leonardo Di Caprio em uma
história baseada em fatos reais. O personagem
principal ilustra os esquemas de grandiosidade,
autocontrole insuficiente e padrão excessivo de
cobrança. Uma vida transtornada, afetando a vida de
todos com quem se relaciona, ultrapassando limites
de regras e normas sociais em busca de dinheiro,
fama, status, poder.

45
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que escolheu cuidar da saúde mental de pessoas que
precisam.

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você quiser aprofundar o seu conhecimento na TCC, visite
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SAIBA MAIS

46
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REFERÊNCIAS
Texto: Como a TCC pode favorecer a
melhora da autoestima?
Referências:

Bandura, A.; Azzi, R.; Polydoro, S. (2008). Teoria


Social Cognitiva: conceitos básicos. Porto
Alegre,RS: Artmed.

Beck, A. (1997). Terapia Cognitiva da Depressão.


Porto Alegre,RS: Artmed.

Lipp, M.; Lopes, T.; Spadari, G. (2019). Terapia


Racional-Emotiva Comportamental na teoria e na
prática clínica. Novo Hamburgo, RS: Sinopsys.

- Paul Gilbert. (2020). Terapia Focada na


Compaixão. São Paulo, SP: Hogrefe.

- Seligman, M. (1991). Aprenda a ser otimista:


como mudar sua mente e sua vida. Rio de Janeiro,
RJ: Objetiva.

47
REFERÊNCIAS
Texto: Como conversamos com nosso cliente
sobre o controle dos impulsos?

Referências:

Hodgins, D; Peden, N. (2008). Tratamento


cognitivo-comportamental para transtornos
do controle de impulsos. Rev. Bras. Psiquiatr,
30(1) : 31-40.
Sebastian, A. et al. (2014). Frontal
dysfunctions of impulse control – a systematic
review in borderline personality disorder and
attention-deficit/hyperactivity disorder.
Frontiers in human neuroscience, 8: 1-17.
Barkley, R. (2011). Vencendo o TDAH adulto.
Porto Alegre: Artmed.
Rollnick, S.; Miller, W.; Butler, C. (2008).
Entrevista motivacional no cuidado da saúde:
ajudando pacientes a mudar o
comportamento. Porto Alegre: Artmed.

48
REFERÊNCIAS
Texto: Padrão excessivo de cobranças

- Brown, B. (2013). A coragem de ser imperfeito.


Rio de Janeiro: Sextante.

- Clark, D.; Beck, A. (2012). Terapia cognitiva para


os transtornos de ansiedade.

Porto Alegre: Artmed.

- Gilbert, P. (2020). Terapia focada na compaixão.


São Paulo: Hogrefe.

- Young, J; Klosko, J.; Weishaar, M. (2008).


Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-
comportamentais. Porto Alegre: Artmed.

49
REFERÊNCIAS
Texto: Vivemos uma epidemia de
narcisismo?

- Brown, B. (2013). A coragem de ser


imperfeito. Rio de Janeiro: Sextante.
- Beck, A.; Davis, D.; Freeman, A. (2017).
Terapia cognitiva dos transtornos de
personalidade. 3a ed. Porto Alegre: Artmed.
Capítulo 14.
- Gilbert, P. (2020). Terapia focada na
compaixão. São Paulo: Hogrefe.
- Young, J; Klosko, J.; Weishaar, M. (2008).
Terapia do esquema: guia de técnicas
cognitivo-comportamentais. Porto Alegre:
Artmed.

50
REFERÊNCIAS
Texto: Transtorno Bipolar X Transtorno
de Personalidade Borderline:
Você sabe diferenciar?

Linehan, M. (2019). Terapia Cognitivo-


Comportamental para Transtorno da
Personalidade Borderline. Porto Alegre:
Artmed.
Basco, M. (2009). Vencendo o Transtorno
Bipolar com a Terapia Cognitivo-
Comportamental: Tratamentos que
Funcionam. Porto Alegre: Artmed.
APA. (2013). Manual de Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição -
DSM-5. Washington, DC: American Psychiatric
Pres.

52
REFERÊNCIAS
Texto: Tá rindo de quê? Qual é a
importância do bom humor para a
saúde mental?
Referências:

Andrew, J. Rosenfeld, M. (2019). The


Neuroscience of Happiness and Well-Being:
What Brain Findings from Optimism and
Compassion Reveal. Child Adolesc Psychiatric
Clin N Am 28 (2019) 137–146.
Dfarhud, D.; Malmir, M.; Hhanahmadi, M.
(2014). Happiness & Health: The Biological
Factors- Systematic Review Article. Iran J
Public Health. Nov;43(11):1468-77.
Niemic, R. (2017). Intervenções com forças de
caráter. Associação Latino Americana de
Psicologia Positiva. São Paulo: Hogrefe.

51

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