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Medicina Insana, Capítulo 4: A Fabricação de


Transtornos do Espectro do Autismo (Parte 1)

Nota do editor: O Mad in Brasil vem publicando uma versão seriada


do livro de Sami Timimi, Medicina Insana (Insane Medicine). Nesta
parte, ele discute a história do diagnóstico do autismo e a expansão
do autismo para o transtorno do espectro do autismo.
Quinzenalmente será publicada uma nova seção do livro, e todos os
capítulos serão arquivados aqui.

O que é a transtorno do espectro do autismo (TEA)? A resposta


convencional a esta pergunta é que, tal como o TDAH, é um
“transtorno de desenvolvimento neurológico” e que se manifesta
principalmente em dé cits na capacidade de compreender as
emoções das pessoas e, portanto, di culdades na comunicação
social. O autismo é agora utilizado indistintamente com o TEA e
tornou-se a estrela em ascensão da patologia psiquiátrica infantil e,
tal como o TDAH, tem cavado o seu caminho para se tornar um
conceito cada vez mais popular que também pode ser utilizado com
os adultos. Tal como o TDAH, o autismo e o TEA são fatos da cultura
e não fatos da natureza.

O uso do positivismo, o teste de hipóteses, a busca orientada para a


medição do objetivo, o conhecimento livre de valores sobre o mundo
“lá fora” (para além da nossa imaginação) funciona bem para
sistemas e fenômenos governados por “leis da natureza”, mas não é
o método mais apropriado para compreender a vida consciente
subjetiva, geradora de sentido. A corrupção da ciência pode
acontecer por métodos tais como o uso repetitivo de linguagem
“cientí ca” para fornecer um tom de autoridade, ao mesmo tempo
que ignora, não publicando, a prospecção de dados, e/ou minimiza
fatos ou pesquisas que contradizem as opiniões expressas.

O TEA tornou-se envolto em cienti cismo psiquiátrico, onde a ideia de


ser cientí co e fazer ciência supera o que a ciência real encontra e
marginaliza as abordagens não-empíricas para se compreender a
vida mental daqueles que obtêm este rótulo. Muitos são seduzidos
pela ideia de que a ciência acabará por responder à pergunta
“porquê” que nos levará a ser capazes de fazer diagnósticos como o
TEA (ou seja, uma classi cação baseada em explicações causais) da
mesma forma que fazemos no resto da medicina.

TEA não consegue encontrar nada de de nitivo, recorre ao


cienti cismo. Com o tempo, a linguagem e os conceitos associados a
esta ideologia (de TEA existente como sendo um fato da natureza)
tornam-se parte de instituições, livros, formações, e, claro, do nosso
“senso comum” cultural mais amplo. Uma vez difundido no nosso
senso comum cultural, pensamos em conceitos, como o autismo,
como se já fossem fatos cientí cos estabelecidos, enquanto os fatos
e incertezas reais se desvanecem em espaços culturais menores
(como este livro).

Esta mistura de cienti cismo e ciência falsa que estabeleceu o


autismo como um fato cultural tem sido mais difícil de criticar do que
qualquer outro chamado diagnóstico psiquiátrico. As suas origens
residem no fato de ser um rótulo raro aplicado àqueles que tinham
di culdades de aprendizagem marcadas, muitos dos quais tinham
provas de lesões neurológicas ou anomalias genéticas. A maioria não
conseguia manter qualquer tipo de conversa signi cativa e muitos
tinham outras condições neurológicas, como a epilepsia. A sua
expansão para incluir gênios como Einstein (sim, foi-lhe dado um
diagnóstico retrospectivo de TEA), abrangendo assim todo o espectro
da capacidade intelectual, parece ter acontecido sem uma
sobrancelha levantada nos círculos acadêmicos que a estudaram. Os
fenômenos culturais como o lme Rain Man e a controvérsia da
vacina MMR transformaram esta condição raramente falada ou
notada numa “de ciência” central no cenário.

Estou ciente de que há muitos críticos da medicalização do autismo,


mas que, ao contrário de mim, veem o autismo com uma narrativa de
“neurodiversidade” e que têm feito muitas coisas positivas para
ajudar a capacitar algumas pessoas a quem foi dado o rótulo de
autismo, permitindo-lhes aceitar, em vez de lutar contra, quem eles
são. Reconheço e valorizo a coragem e o discernimento que estes
ativistas têm.

Mas eu luto com a parte “neuro” da “neurodiversidade” – a prova


simplesmente não existe. Somos todos neurodiversos, por isso,
como conceito, não tem sentido no plano biológico. Como
construção cultural, ele cria divisões desnecessárias, corroendo a
multiplicidade que compõe as nossas vidas mentais e pode
aprisionar as pessoas de volta aos porões, em vez de as libertar dos
estereótipos.

Também tem sido muito mais difícil criticar o autismo do que rótulos
como o TDAH, uma vez que o autismo não tem nenhum tratamento
farmacêutico especí co ligado a ele e, portanto, a questão do con ito
de interesses não é tão facilmente visível. Desde a expansão do
autismo para o TEA, temos um verdadeiro pacote misto de
apresentações, problemas e níveis de funcionamento. Quando vejo
tal expansão de “diagnóstico”, co descon ado de que não estamos
lidando com um diagnóstico, mas sim com um produto de marca que
tem apelo no mercado e que, por isso, é vulnerável ao que eu chamo
o “efeito de banda elástica”, onde os limites podem ser esticados de
forma quase interminável.

As descrições do que é o TEA têm “fronteiras difusas” que estão


abertas à interpretação subjetiva, dado que não existem marcadores
físicos para ajudar a medir e categorizar com precisão qualquer
indivíduo.

A construção prevalecente do autismo

É fácil car confuso sobre os diferentes termos que são utilizados.


Os critérios de “diagnóstico” são diferentes em diferentes sistemas e
mudaram ao longo dos anos, sendo alargados para incluir termos
como “síndrome de Asperger” e, mais recentemente, um termo que
não aparece em nenhum manual de diagnóstico, “prevenção da
procura patológica” (PPP) – quanto menos se falar deste último
mecanismo de geração de dinheiro, melhor.

De acordo com a Classi cação Estatística Internacional de Doenças e


Problemas de Saúde Relacionados, 10ª Edição (CID-10, o manual de
diagnóstico que se deve utilizar no Reino Unido), o autismo está
listado num grupo de doenças chamado “Perturbações do
desenvolvimento pervasivo”. Estas incluem:

O autismo infantil, que é de nido como “um tipo de distúrbio de


desenvolvimento generalizado que é de nido por: (a) a presença de
desenvolvimento anormal ou prejudicado que se manifesta antes da
idade de três anos, e (b) o tipo característico de funcionamento
anormal nas três áreas da psicopatologia: interação social recíproca,
comunicação e comportamento restrito, estereotipado e repetitivo.
Para além destas características de diagnóstico especí cas, é
comum uma série de outros problemas não especí cos, tais como
fobias, distúrbios do sono e da alimentação, birras temperamentais, e
agressões (auto-direcionadas)”.

O autismo atípico, que é de nido como “um tipo de distúrbio de


desenvolvimento generalizado que difere do autismo infantil, quer na
idade de início, quer no não cumprimento de todos os três conjuntos
de critérios de diagnóstico. Esta subcategoria deve ser utilizada
quando existe um desenvolvimento anormal e prejudicado que só
está presente após os três anos de idade, e uma falta de anomalias
su cientemente demonstráveis em uma ou duas das três áreas da
psicopatologia necessárias para o diagnóstico do autismo
(nomeadamente, interações sociais recíprocas, comunicação, e
comportamento restrito, estereotipado e repetitivo) apesar das
anomalias características na(s) outra(s) área(s). O autismo atípico
surge mais frequentemente em indivíduos profundamente retardados
e em indivíduos com um grave distúrbio de desenvolvimento
especí co da linguagem receptiva“.

Síndrome de Asperger, que é de nida como “um transtorno de


validade nosológica incerta, caracterizada pelo mesmo tipo de
anomalias qualitativas de interação social recíproca que tipi cam o
autismo, juntamente com um repertório restrito, estereotipado e
repetitivo de interesses e atividades. Difere do autismo
principalmente pelo fato de não haver atraso ou retardamento geral
na linguagem ou no desenvolvimento cognitivo. Este transtorno está
frequentemente associado a uma marcada falta de jeito. Há uma
forte tendência para que as anomalias persistam na adolescência e
na vida adulta. Os episódios psicóticos ocorrem ocasionalmente no
início da vida adulta“.

Embora o CID-10 seja o manual o cialmente utilizado no Reino Unido,


o Manual Americano de Diagnóstico e Estatística de Doenças
Mentais (DSM) é in uente na prática a nível mundial e
frequentemente referido até por pro ssionais no Reino Unido. A sua
5ª edição (DSM-5), publicada em 2013, reviu os critérios para o
autismo e inclui “comportamentos sensoriais” como parte da nova
de nição.

O DSM-5 dispensou subcategorias como a síndrome de Asperger e


de ne TEA como “di culdades persistentes com a comunicação
social e interação social” e “padrões restritos e repetitivos de
comportamentos, atividades ou interesses” (isto inclui
comportamentos sensoriais), presentes desde a primeira infância, na
medida em que estes “limitam e prejudicam o funcionamento diário“.

As de nições acima são as “o ciais” atualmente em uso. Já se pode


ver como a família dos TEAs se confunde em semântica. Em termos
gerais, autismo e TEAs referem-se a um ” transtorno” que mostra
sinais desde a primeira infância e que se caracteriza por “anomalias”
nas interações sociais, capacidades de comunicação, e
comportamentos, interesses e atividades repetitivas restritas. Quem
decide e como decide, e segundo que padrões, que existem
“anomalias” é, evidentemente, o “especialista”.

Na típica circularidade louca que infesta o conhecimento psiquiátrico,


é o perito que de ne como identi car anomalias na comunicação
social, linguagem, e comportamentos, e o perito sabe o que são,
porque é o perito que de ne o que são anomalias na comunicação
social, linguagem e comportamentos.

Uma breve história

A palavra “autismo” foi usada pela primeira vez em 1911 pelo


psiquiatra Eugen Bleuler que usou o termo “autista” para denotar o
estado de espírito de indivíduos psicóticos que mostravam um
extremo afastamento do contexto da vida social. É provavelmente a
utilização mais precisa do termo, uma vez que Bleuler usou a palavra
para descrever um estado de espírito e não como um diagnóstico.

Depois, em um artigo publicado em 1943, o psiquiatra infantil Leo


Kanner foi o primeiro a propor o “autismo” como diagnóstico e usou o
termo para rotular um grupo de 11 crianças de pais de classe média
que eram emocionalmente e intelectualmente de cientes e que
demonstravam uma “extrema solidão”, além de outras características
inusitadas, tais como bater com as mãos e fazer eco do que um
orador lhes dizia. Foi sugerido que Kanner cunhou este novo
diagnóstico a m de ter uma palavra diferente para usar diante da
pressão de alguns pais que não desejavam que o seu lho fosse
rotulado com o termo mais estigmatizante de “retardamento mental”.

O autismo permaneceu então como um diagnóstico raro dado aos


jovens que tinham de ciências consideráveis no funcionamento
diário e di culdades de aprendizagem moderadas a graves com,
segundo os primeiros estudos epidemiológicos, uma taxa de
prevalência estimada de 4 em 10.000 (0,04%). O conceito e as
descrições que Kanner elaborou formaram a base para o diagnóstico
do autism, até ao início dos anos 90 no Reino Unido.

No ano após Kanner ter proposto pela primeira vez o “autismo” como
diagnóstico, o pediatra vienense Hans Asperger publicou um artigo
em 1944, amplamente ignorado na época, no qual descrevia quatro
crianças sem de ciência intelectual facilmente reconhecível, mas
com problemas de comunicação social. Asperger trabalhou na
Áustria ocupada pelos nazis, numa sociedade organizada pela
ideologia nazi. Como os nazis estavam preocupados com a tarefa de
classi car os tipos humanos, o trabalho de Asperger deve ser
entendido como parte desse esforço.

Asperger tinha conseguido fazer avançar a sua carreira sob o regime


nazi. Isto deveu-se sobretudo às oportunidades criadas pela
convulsão política após a anexação da Áustria à Alemanha em 1938,
incluindo a expulsão de vários médicos judeus da pro ssão. Asperger
havia aderido à Clínica Infantil da Universidade de Viena em Maio de
1931, que na altura era dirigida por Franz Hamburger, um fervoroso
nazi.

Em 1935, Asperger tomou a seu cargo a enfermaria Heilpädagogik na


clínica. Asperger ainda não tinha obtido a sua quali cação de
especialista em pediatria e tinha publicado apenas um único trabalho,
levantando a questão de porquê é que o colega mais experiente de
Asperger, Georg Frankl, não havia sido promovido ao cargo. Dois anos
após a promoção de Asperger, Frankl emigrou para os EUA, onde,
curiosamente, se juntou a Leo Kanner na John Hopkins, levando
alguns a especular se ele introduziu Kanner à ideia do autismo como
um diagnóstico.

As universidades austríacas nesta altura eram locais de virulenta


agitação antijudeu. Os médicos judeus enfrentavam di culdades
crescentes em assegurar posições universitárias, com algumas
clínicas e departamentos praticamente fechados aos judeus. Com a
nomeação de Hamburger como presidente em 1930, a clínica infantil
em Viena tornou-se uma bandeira das políticas antijudaicas muito
antes da tomada do poder por parte dos nazis.

Sejam quais forem as motivações especí cas da decisão de


Hamburgo de nomear Asperger como chefe da ala Heilpädagogik em
1935, a promoção de Asperger foi ajudada pelas tendências
antijudaicas e misóginas que dominavam então a vida social e
política da Áustria. Embora Asperger não tenha aderido ao partido
nazi, ele compartilhou um considerável terreno comum ideológico
com Hamburger e a sua rede, permitindo-lhe misturar-se sem atritos
aparentes.

A historiadora americana Edith Sheffer, com base em registos


descobertos pela investigadora austríaca Herwig Czech, documenta
que Asperger escreveu descrições totalmente degradantes de pelo
menos 42 dos seus pacientes, transferindo-os para a famosa clínica
Am Spiegelgrund onde quase 800 crianças foram deliberadamente
autorizadas a morrer por negligência ou overdoses letais. Asperger
apoiou ativamente as leis de esterilização forçada, acreditando que
algumas pessoas eram um fardo para a comunidade, e nas suas
ações está implícito que ele apoiou a eutanásia daqueles
considerados como tendo “uma vida que não valia a pena viver”.

Uma das tarefas de Asperger como pediatra na clínica infantil era


peneirar crianças potencialmente educáveis para evitar que se
tornassem vítimas do programa secreto de eutanásia “T4” (que
levaria ao assassinato de centenas de milhares de pessoas
de cientes e/ou institucionalizadas). O signi cado na altura de
escrever o seu trabalho sobre quatro jovens que descreveu como
tendo “psicopatologia autista” foi que acreditava que estes jovens
doentes problemáticos eram potencialmente educáveis e, portanto,
podiam ser poupados de serem enviados para o hospital da morte. O
alargamento do autismo ao TEA começou, portanto, nos hospitais e
clínicas de assassinato de crianças nazis.

Em 1955, Kanner tinha relatado um total de 120 casos do que ele


descreveu como “autismo infantil”. Ele diferenciou esta condição da
esquizofrenia infantil, pois sentiu que o autismo era evidente quase
desde o nascimento. Kanner, escrevendo com Eisenberg em 1956,
formulou hipóteses sobre etiologia, e concluiu que era inútil tentar
ligar a etiologia apenas a causas biológicas ou ambientais, sugerindo
que os argumentos que contrapusessem “hereditário” versus
“ambiental” eram inúteis.

Na década de 1960, o diagnóstico de Kanner de autismo infantil


tinha-se tornado um diagnóstico reconhecido para o que era
considerado uma doença rara encontrada principalmente em
crianças com de ciências intelectuais moderadas a graves.

No nal dos anos 70, a psiquiatra Lorna Wing viu uma semelhança
em algumas pessoas que ela via e naquelas descritas pelo Asperger.
As ideias da Dra. Wing cruzaram-se com outro psiquiatra, Michael
Rutter, e formaram a base para a expansão do conceito de autismo
em perturbações do espectro do autismo (TEA).

A revisão dos artigos seminais de Wing and Rutter revela até que
ponto esta expansão do conceito de autismo não foi o resultado de
quaisquer novas descobertas cientí cas, mas sim de novas
ideologias. Por exemplo, no seu artigo de 1981 propondo o
diagnóstico da “síndrome de Asperger”, Wing descreve seis histórias
de casos que parecem ter pouco em comum com os quatro casos
Asperger descritos no seu artigo de 1944, para além de partilhar uma
falta de empatia social.

Quatro dos casos de Wing eram adultos, enquanto todos os de


Asperger eram crianças; dois tinham algum grau de de ciência de
aprendizagem, enquanto nenhum de Asperger tinha; a maioria dos
casos de Wing falavam tarde, enquanto a maioria de Asperger falava
cedo; a maioria dos casos de Wing foram descritos como tendo
pouca capacidade de pensamento analítico, enquanto que os casos
de Asperger foram descritos como altamente analíticos; e nenhum
dos casos de Wing foi descrito como manipulador, ameaçador,
atrevido, con ituoso, ou vingativo (termos que Asperger usou sobre
os seus casos) e assim por diante.

No seu artigo seminal de 1978 sobre o assunto, o conhecido


psiquiatra infantil britânico Michael Rutter sugeriu que o autismo
existe provavelmente em um espectro, com uma forte contribuição
genética para a sua expressão. Ele formulou a tríade familiar de
sintomas de comunicação de ciente, habilidades sociais de cientes,
e uma imaginação restrita que conduz a interesses restritos, que,
juntamente com a síndrome de Asperger de Wing, formaram a base
para uma nova “imaginação” de um espectro alargado de autismo.

Nenhum destes desenvolvimentos foi acompanhado por quaisquer


novas descobertas cientí cas sobre os corpos e cérebros daqueles
que agora se pensava terem autismo, embora agora se falasse dele
como um transtorno geneticamente predeterminado, permanente e
neuro-desenvolvimentista.

Durante as décadas seguintes, o conceito de autismo começou a


atrair mais interesse pro ssional e público, impulsionado pela
cobertura mediática popular, tal como através do lme Rain Man e
das controvérsias sobre a vacina MMR. Mais pessoas falavam sobre
esta “coisa” chamada autismo. Em breve houve cursos, ferramentas
de avaliação, investigação, serviços, documentários, especialistas e
instituições, todos dedicados a aprofundar o nosso conhecimento e
compreensão do autismo, das suas causas, e de como identi cá-lo,
tratá-lo ou preveni-lo. O autismo era agora um fenómeno de cultura.
As taxas de diagnóstico expandiram-se, levando a mais serviços,
investigação, falar sobre ele (e assim por diante).

Agora surgiu um grupo de adultos que se identi cava com a ideia de


autismo, mas que rejeitava a noção de que se tratava de um
transtorno. Estes ativistas começaram a falar do autismo como uma
diferença – uma forma diferente, mas igualmente válida, de ver e
interagir com o mundo como resultado de uma ” ligação ” neurológica
diferente. Por vezes surgiram tensões entre este último grupo que
falava de si próprio como parte do espectro da “neurodiversidade” e
aqueles (muitas vezes pais) que lutavam para lidar com os
comportamentos das crianças diagnosticadas, que estavam
frequentemente desesperados para encontrar “tratamentos” e
sentiam o lado “desordem” das coisas.

O autismo tinha-se tornado um discurso visível e vigoroso, por esta


altura, supunha-se simplesmente que representava uma “coisa” real,
tangível e identi cável que podia ser diferenciada de outros
problemas potenciais (se se identi casse com o lado da desordem)
ou que produzia algo fundamentalmente diferente de sujeitos
“neurotípicos” (se se identi casse com a perspectiva da diferença).
Ninguém, segundo me pareceu, estava a fazer a pergunta óbvia: Em
que base probatória pode concluir que o autismo representa uma
categoria natural que pode ser diferenciada de outras categorias
naturais, seja transtorno ou diferença?

Quando estava a fazer formação como psiquiatra infantil, no início


até meados da década de 1990, deparei-me com duas crianças
diagnosticadas com autismo em durante os meus quatro anos de
estágio. Ambas tinham de ciências funcionais acentuadas e tiveram
de frequentar escolas especializadas. De acordo com alguns dados
locais recentes que vi, 1,6% das crianças em idade escolar na minha
área têm um diagnóstico de autismo. Isto signi ca que no espaço de
duas ou três décadas, a prevalência passou de 0,04% para 1,6%, um
aumento fenomenal de 4000%.

Hoje em dia, tenho a impressão de que qualquer criança que


frequenta os nossos Serviços de Saúde Mental para Crianças e
Adolescentes pode acabar por receber um “diagnóstico” de TEA.
Ouço frequentemente, particularmente quando o jovem não está a
responder ao que é considerado o tratamento ” correto “, sugerindo-
se o autismo como uma possível razão para os problemas ou falta de
resposta ao tratamento. Assim, acabamos naquilo a que eu chamo
“jogos semânticos”, uma espécie de ” o que devemos chamar a isto”
em vez de uma compreensão do que pode estar a contribuir para a
sua apresentação ou do que pode fazer a diferença para eles.

A nomenclatura é compreensivelmente popular entre muitos, tais


como outros pro ssionais, professores, pais, e alguns adolescentes.
Mas na minha experiência pode tornar-se uma armadilha, uma vez
que as pessoas confundem (compreensivelmente) o que lhes foi
vendido como diagnóstico com o fato de ser realmente um
diagnóstico. Por outras palavras, imaginam que por “terem autismo”
os ajuda a compreender as razões dos seus problemas e, portanto,
os pro ssionais saberão agora como melhor os ajudar.

O meu consultório tem muitas pessoas que seguiram este caminho,


mas para quem as coisas voltaram a car más e agora pensam que
deve haver outro diagnóstico e, portanto, outro tratamento, e por isso
escorregam mais para o caminho de se tornarem um
paciente/parente desamparado e indefeso à mercê de serem
prescritos mais tratamentos, muitas vezes inúteis, (sejam
medicamentos ou psicológicos) que desamparam ainda mais o seu
poder. É um ciclo muito difícil para todos (pro ssional, criança e
família) de sair.

Assim sendo, de onde vem o TEA?

Dado que o conceito de autismo surgiu a partir de uma nova proposta


(inicialmente da autoria de Kanner), sem apoio de provas cientí cas e
expandiu-se exponencialmente nas últimas duas a três décadas, mais
uma vez sem qualquer apoio de provas cientí cas, uma questão
legítima a ponderar é porque é que isto aconteceu e o que pode estar
a impulsionar a nossa xação com a nossa capacidade de socializar
e ler as emoções dos outros. Os parágrafos seguintes são algumas
das minhas especulações sobre os potenciais motores sociais,
culturais e políticos.

Uma doença médica/psíquica distinta chamada autismo não poderia


ter surgido até que os padrões de normalidade tivessem sido
formalizados e estreitados e a preocupação com o desenvolvimento
das crianças estendida aos primeiros anos de vida da criança para
que as crianças com TEA pudessem ser “identi cadas”. Isto não quer
dizer que não tenham existido pessoas ao longo da história que
mostrassem os comportamentos que agora pensamos como sendo
autistas, mas para lembrar ao leitor que chamar a este autismo é
simplesmente um “truque” de classi cação, em vez de ser o
resultado de novos conhecimentos cientí cos.

Desenvolvimento infantil e escolas

À medida que as autoridades educativas e psicológicas foram sendo


desenvolvidas durante o século passado para satisfazer as
exigências de ajustamento social em mutação, as fronteiras entre o
que era considerado normal e “patológico” foram sendo criadas e
gradualmente expandidas. Também mudaram à medida que as
tendências sociais mudaram e novas áreas de emoção ou
comportamento se tornaram locais de preocupação. Psicólogos,
psiquiatras e pediatras envolveram-se assim cada vez mais na
“descoberta” de indicadores aparentes de uma gama cada vez maior
de perturbações entre as crianças por eles inquiridas.

Estes desenvolvimentos na forma como pensamos a infância e os


seus problemas interagem com as mudanças políticas, econômicas e
sociais observadas nas últimas décadas no Ocidente, algumas das
quais são o movimento para redes familiares e sociais mais
pequenas, a diminuição da quantidade de tempo que os pais passam
em torno dos lhos, o consumismo agressivo que predomina no
desejo de estimulação das crianças, um maior envolvimento de
pro ssionais em atividades de educação de crianças (e conselhos
sobre educação de crianças), e um sentimento de pânico sobre o
desenvolvimento dos meninos.

A psiquiatria e a psicologia podem facilmente tornar-se instrumentos


políticos, como no passado, não só em sociedades totalitárias mas
também em sociedades democráticas. As necessidades de uma
economia baseada nos serviços são diferentes das de uma economia
essencialmente industrial. Nas economias de serviços, as fracas
capacidades de socialização (da variedade super cial) da força de
trabalho são vistas como colocando a economia em desvantagem. A
necessidade de inculcar precocemente competências sociais e
“inteligência emocional” torna-se assim uma preocupação para as
classes dirigentes, professores, e em última análise para os pais.

Embora poucas escolas na sociedade ocidental atual se assemelhem


às escolas autoritárias mais rígidas da Europa do século XIX, os
mecanismos para disciplinar as crianças não desapareceram,
assumindo simplesmente uma forma mais sutil. Na prática de
diagnosticar e medicar uma criança com TDAH, por exemplo, vemos
vigilância e identi cação seguidas de uma tentativa de intervir para
corrigir e “disciplinar” crianças que não correspondem às
expectativas dos professores e/ou dos pais, que,
compreensivelmente, se preocupam com o fato de a criança não
estar a cumprir os padrões de conduta socialmente esperados.

Embora as escolas possam reconhecer a individualidade de cada


criança, é pouco provável que escapem às de nições do que é
considerado “normal” para crianças de uma certa idade, e isto
moldará o que esperam das crianças nas suas turmas e o que fazem
quando identi cam um indivíduo que temem não estar a cumprir
estas expectativas baseadas na idade. Professores e pais, como os
psicólogos, psiquiatras e terapeutas a que se referenciam estas
crianças, tornam-se então parte da imposição de uma forma
diferente de disciplina para tornar uma criança dócil e obediente o
su ciente para que um professor desempenhe o seu trabalho ou os
pais dirijam uma família, sem infringir a lei sobre o bem-estar e os
direitos das crianças através de formas mais evidentes de castigo.

A psiquiatria e a psicologia ocidentais construíram uma série de


fases “normais” de desenvolvimento pelas quais as crianças devem
progredir. Os professores fazem então parte dos sistemas de
vigilância em vigor para apanhar aqueles que se considera não terem
conseguido atingir adequadamente qualquer uma destas fases
estreitas, dependentes da idade, e que são então referidos para obter
“ajuda” extra (uma palavra mais simpática do que “disciplina”).

Os tipos de cuidados pro ssionais e de peritos que se obtêm serão


então através dos sistemas e serviços que têm toda a ideologia não
cientí ca que tenho vindo a descrever ao longo deste livro. É provável
que consagrem e solidi quem a suspeita de ” transtorno” que se
pensa ter uma criança e assim satisfaçam as suspeitas do professor
e dos pais. As consequências involuntárias disto são tornar a criança
rotulada com um selo potencialmente vitalício que limita o que elas,
os seus pais e os seus professores podem agora esperar delas, ao
mesmo tempo que liberta os prestadores de cuidados de con arem
nos seus próprios conhecimentos, aptidões e intuições, uma vez que
é agora o trabalho destes “especialistas” saber o que se está a passar
e o que fazer em relação a isso.

A nossa visão da infância muda com o tempo. Em determinado


momento, na era vitoriana, quando a economia precisava de um
grande número de trabalhadores para tarefas manuais que exigiam
tutoria em vez de aprendizagem escolar extensiva, o trabalho infantil
era visto como um estado normal para as crianças, e algo que lhes
ensinava disciplina, aritmética, e as preparava para as
responsabilidades da idade adulta numa era de relações hierárquicas
fortemente baseadas na classe. Agora olhamos para trás com horror
para a ideia de que as crianças poderiam ter sido enviadas para
trabalhar no fosso ou na chaminé, vendo uma vida como ” a roubar”
às crianças da sua ” infância”. No entanto, o trabalho infantil era a
expectativa normal das crianças na Europa e na América do Norte há
cerca de 150 anos (não há muito tempo atrás na escala da história
humana).

O que irão as gerações futuras olhar para trás e dizer hoje sobre a
infância? Irão interrogar-se sobre a crueldade de criar estas
instituições obrigatórias que as crianças têm de frequentar durante a
maior parte dos primeiros 18 anos de vida, onde se espera que se
conformem às expectativas cada vez mais estreitas de
comportamentos baseados na idade, etc.?  No mínimo, parece
legítimo especular sobre como as forças econômicas atuais e as
escolhas de estilo de vida in uenciaram a nossa própria visão da
infância, como isto pode afetar a forma como pensamos e criamos
as crianças de hoje, e como isto, por sua vez, pode impactar o seu
comportamento real.

Como os pais lidam com horários de trabalho mais longos, ambos os


pais trabalham, deslocações de maior distância, e menos tempo
familiar, as crianças que anteriormente eram vistas de formas mais
vulgares como meramente nervosas ou inquietas, tímidas, ou que
falavam demais, são agora vistas como sofrendo de doenças
psiquiátricas. A expectativa de que as crianças deveriam querer
prestar atenção, cooperar e demonstrar independência e empatia
dentro de contextos de grupo estruturados passou a ser vista como
uma “necessidade” mais importante para os nossos lhos do que
seria o caso há algumas décadas atrás.

Mudanças no conceito do self

Com o m do “estado do bem estar social” na política pós-Thatcher


dos anos 80, e o crescimento de uma ideologia de mercado livre mais
agressivamente competitiva, os governos ocidentais modernos
promoveram a ideia do indivíduo “livre” capaz de competir no
mercado livre pelos melhores empregos. As proteções da sociedade
diminuíram, a solidariedade social foi vista como suspeita, e uma
narrativa tomou conta de que as nossas comunidades eram
constituídas por duas classes principais de pessoas: os lutadores e
os esquivos.

Esta divisão em anjos ou demónios individuais tem sido e continua a


ser uma poderosa forma de distrair as nossas atenções coletivas da
miséria que as desigualdades estruturais provocam – ao perceberem
a estrutura de classe subjacente que se torna mais visível em
momentos de crise, como após o colapso nanceiro de 2008.

Estou a escrever isto neste momento, sentado em casa no Reino


Unido, no meio da crise da pandemia de Covid-19. Estamos de novo a
escrever. Embora haja, tardiamente, algum reconhecimento de que a
mão-de-obra mal remunerada se revelou muito mais importante para
o funcionamento da sociedade, grande parte da cobertura mediática
parece ser 24 horas por dia a transmitir histórias sobre indivíduos que
são ou “heróis” (lutando na linha da frente, celebrando a doação de
um pouco dos seus milhões, etc.) ou “vilões” (egoisticamente não
observando corretamente as regras).

A maioria dos trabalhadores da linha da frente preferem ter


equipamento de proteção pessoal adequado do que ser heróis; a
maioria dos vilões está apenas a tentar manter-se sãos num mundo
louco. Espero para ver se, após esta crise, a fragilidade e injustiça do
nosso sistema econômico e os valores que daí advêm se tornaram
su cientemente visíveis para tornar as intermináveis perturbações
difíceis de suportar.

A personalização com histórias de vergonha e/ou valorização


signi ca que o policiamento já não envolve apenas o exército, a lei, e
as prisões. Há uma maior ênfase nos sistemas que governam por
consentimento em levar as pessoas a policiar elas próprias. Uma
colega minha que cresceu na Polónia da era da Cortina de Ferro
comentou como sentiu que sabia o que esperar e quais eram as
regras para se manter fora de problemas na Polônia socialista da
guerra fria. Após muitos anos de vida e trabalho no Reino Unido, ela
começou a sentir que a vida pessoal era muito mais precária no
Reino Unido.

Seja no trabalho, em público, ou em casa, ela sentia que havia muitas


regras e expectativas não escritas sobre como se devia comportar, a
sua atitude, as palavras e expressões que utilizava e assim por
diante. Sentia uma carga muito maior de vigilância no Reino Unido do
que na pré-queda da Cortina de Ferro na Polónia. Há um sentimento
generalizado de que os indivíduos estão sempre a desempenhar e a
tentar evitar que a sua falibilidade humana comum seja vista.

Muito do trabalho de de nição de quem se encaixa e não se encaixa


nos nossos padrões sociais é feito pelos próprios indivíduos. Numa
economia capitalista e orientada pelo mercado, o consumo em
massa é vital para a manutenção do sistema e, portanto, torna-se
uma parte importante da nossa consciência. Numa tal sociedade,
mesmo as relações pessoais tornam-se nubladas pelo sistema de
valores “comparar e competir”. Tal como a esposa estereotipada do
consumidor comparando a brancura dos seus lençóis com os dos
seus vizinhos, as pessoas nas sociedades de consumo comparam
constantemente as suas próprias inadequações com as dos outros.

Esta prática de autoexame provoca um culto de autoconscientização.


Ao fazê-lo, pode criar qualidades interiores, incluindo o que quer que
passe para o crescimento pessoal, com cada dia que se procura fazer
de si mesmo um produto melhor – novo, melhorado, melhor e mais
brilhante até agora. Esta monitorização interna pode tornar-se tão
draconiana como a polícia secreta: ou se controla a si próprio, se
acha inadequado de alguma forma e por isso continua a consumir
para preencher qualquer buraco que tenha descoberto e assim
manter a economia em movimento e encaixar-se, ou se não o zer,
arrisca-se a que uma variedade de pro ssionais se preocupe com o
seu bem-estar.

Sendo o objetivo de autorrealização e grati cação tão difícil de


alcançar, e a descon ança competitiva de que as nossas relações
pessoais são promovidas pela cultura de consumo, não é difícil
perceber porque é que cada vez mais a população se preocupa com o
seu estado psicológico e/ou o dos seus lhos. À medida que os
governos tomam consciência dos problemas de empatia e falta dela,
cresce também o interesse em condições consideradas como
baseadas ou causadas por esta falta, e cresce o apoio aos
investigadores e serviços que a rmam estar interessados na
identi cação precoce, prevenção, e tratamento desta situação.

A emergência da economia de serviços tem assistido a uma


exploração e manipulação dos desejos humanos e da sexualidade,
especialmente através da publicidade, ao serviço do aumento da
procura de uma grande variedade de produtos. A economia de
serviços está dependente da venda, incluindo a venda de si próprio.
Num tal enquadramento, que lugar há para a “verdade” ou para a
incapacidade de manipular a sua expressão facial e linguagem
corporal para vender um produto? Numa tal sociedade, a
incapacidade de o fazer “adequadamente” torna a pessoa menos
produtiva e, portanto, um problema potencial para o bom
funcionamento de um sistema econômico deste tipo.

A adoção do autismo como rótulo de escolha para tais alienados e


rotulados como “aberrações”, ” nerds” e “esquisitos” proporciona uma
forma de afastar este problema de um ser humano gerado em grande
parte pelo sistema sociopolítico que as pessoas estão a tentar
sobreviver, em direção a um problema técnico para que o perito
transforme numa mercadoria que possa ser rotulada e vendida.
Assim, obtemos uma indústria de especialistas, tratamentos, livros,
cursos, investigação, institutos etc., crescendo em torno de
“diagnósticos” populares como o TDAH e o TEA.

O consumismo individualizado criou uma consciência acentuada da


aparência e do estilo. A invasão de imagens da comunicação social e
da publicidade cria um mundo de sonho, uma realidade virtual para
fantasiar, uma vez que os comerciais nos vendem imagens de estilos
de vida ideais que eles anexam aos seus produtos. A nossa cultura
tornou-se tão consumida por estas imagens perpétuas, que agora
podemos literalmente retirar uma identidade e deslizar noutra à
medida que trocamos de roupa, maquilhagem, sapatos etc. Somos
seduzidos a car tão preocupados com a nossa identidade
super cial que nos submetemos a longos procedimentos cirúrgicos
para mudar a forma e aparência dos nossos corpos.

Neste mundo de capitalismo de consumo, tudo se torna potenciais


objetos de exploração e lucro. As crianças recebem publicidade
dirigida a elas desde a mais tenra idade. A publicidade dirigida
especi camente às crianças é um complemento dos mercados de
brinquedos, alimentos, equipamento educativo, moda, vestuário
desportivo etc. De fato, o domínio da ideia de “saúde” mental é um
produto, pelo menos em parte, do capitalismo de consumo da
economia de mercado.

A conceituação dos problemas como “saúde” individualiza o


sofrimento (absolvendo e misti cando assim o papel dos fatores
sociais) e cria novos mercados (por exemplo, através da indústria
farmacêutica). É dentro da ideologia que cria tais identidades
fraturadas e super ciais que descobrimos a mesma rotulagem
super cial de identidades sobre as decretadas pelas instituições
modernas como doentes mentais ou desordenadas de alguma forma.

Um dos resultados deste meio cultural é um afastamento da


compreensão baseada na profundidade e numa ligação com a
realidade física e a funcionalidade quotidiana, em direção a uma
cultura onde os factores de superfície, tais como imagem, aparência,
o curto prazo e o imediato, se tornaram mais duradouros e
característicos. Estes têm impacto tanto na nossa visão das crianças
como no seu comportamento (que são assim mais susceptíveis de
serem moldados por sinais super ciais – como o TEA enquanto
rótulo explicativo fácil), bem como efeitos mais profundos na nossa
consciência em termos do que consideramos importante para trazer
algum sentido de contentamento às nossas vidas.

A mercantilização das nossas economias, em particular o


crescimento de uma economia nanceira separada, levou a um
declínio nos setores de manufatura e ao crescimento da indústria de
serviços. As comunidades integradas, como as que rodeiam as
minas de carvão, de nharam e morreram. Comunidades de homens
que utilizavam os seus corpos em trabalhos manuais duros e depois
se socializavam juntos, desapareceram. A ideia de solidariedade e de
camaradagem do trabalhador que se formava em torno do sindicato
e dos princípios de justiça social foi substituída pela individualização
de problemas sob a forma de “stress” no local de trabalho que
requeria aconselhamento.

As empresas trocaram segurança no emprego, estabilidade, e uma


força de trabalho sindicalizada por serviços de bem-estar dos
empregados, aulas de atenção e dias de saúde mental. Ansiedade,
stress, depressão são coisas que acontecem ao trabalhador que a
nossa abordagem esclarecida da saúde mental pode agora tratar,
para que possa voltar às merdas, aos empregos inseguros que
oferecemos sem se queixar.

Este novo mundo da linguagem pseudo-emocional da saúde mental,


com a exigência de ter fortes “competências pessoais” na força de
trabalho e a mudança dos papéis dos homens no local de trabalho,
signi ca que existe agora uma maior exigência política e pessoal
para que os homens tenham o tipo de exibilidade social e emocional
reforçada de que anteriormente não precisavam.

Em relação ao autismo, isto conduz a um paradoxo interessante. Uma


das características centrais do diagnóstico implica uma falta de
empatia. No entanto, melhorar a “inteligência emocional” da força de
trabalho é com o propósito de utilizar a empatia para explorar e
manipular com sucesso os seus clientes e a sua força de trabalho
para fazer o que deseja para seu próprio ganho pessoal.

Parece estranho que as pessoas que têm di culdade em


compreender as nuances emocionais, mas que podem ser
compassivas sejam patologizadas, no entanto aqueles que podem
usar uma compreensão do estado emocional dos outros para os
manipular para ns egoístas são recompensados. Isto é
precisamente o que tem acontecido no setor bancário e em muitas
outras empresas, com legislação, regulamentação econômica, e o
sistema de valores que está na base disto, encorajando e cazmente
o tipo de comportamento narcisista que derrubou economias inteiras
através da busca legalizada do lucro sem consideração pela
responsabilidade social.

A cultura ocidental moderna, particularmente através da publicidade


e das necessidades das indústrias de serviços de serem
(pseudo)amistosos e acolhedores de uma forma (pseudo)amigável,
exige formas mais complexas e complicadas de socialização do que
no passado ou em muitas outras culturas. Agora é preciso ser bom a
vender-se e a pôr o cliente à vontade para que ele compre a última
merda inútil que lhe está a oferecer.

Nesta cultura de sobrevivência dos mais espertos, não é de admirar


que aqueles que não são particularmente bons nessa habilidade
possam car marcados como tendo algo de “errado” com eles. A
maioria de nós, no fundo, sabe que esta não é uma cultura agradável.
É uma cultura que nos deixa abertos a ser enganados e, por isso, faz-
nos descon ar dos motivos dos outros. As expectativas sociais que
surgem desta pseudo-feminização da cultura macho neoliberal são
mais preocupantes para mim do que a diversidade de estilos
socializantes que potencialmente possuímos.

O problema com os meninos

Como na maioria dos chamados diagnósticos psiquiátricos, não


podemos escapar à única classe socialmente construída de pessoas
com diferenças biológicas que vão mais fundo do que a superfície –
que é o sexo. As condições psiquiátricas, em geral, seguem o padrão
dos rapazes, sendo as questões de comportamento os principais
clientes entre as crianças; as diferenças sexuais nos clientes
começam então a aumentar mesmo na adolescência à medida que
mais raparigas se apresentam com problemas de humor; as
mulheres tornam-se então os principais clientes quando entramos na
idade adulta. Embora o sexo seja obviamente um fato biológico, a
forma como construímos as nossas crenças sobre as expectativas
dos homens e das mulheres é socialmente construída e muito
debatida. O sexo, portanto, é socialmente construído.

O TEA, tal como o TDAH, é dominado pelos meninos na infância, com


um aumento do número de mulheres que se identi cam com a
autismo à medida que entramos no nal da adolescência e na idade
adulta. Então o que é que se passa com os rapazes e a
masculinidade (a construção social da infância) de uma forma mais
ampla?

Embora a maioria das sociedades em todo o mundo permaneça


patriarcal, o comportamento dos rapazes como uma preocupação
social e médica é relativamente recente e em grande parte con nado
ao Ocidente, embora a exportação de valores ocidentais também
signi que que os números estão a ser identi cados com estes ”
transtornos ” da infância como o TEA, estão a aumentar.

Em algumas culturas, os rapazes são mais apreciados do que as


jovens por uma variedade de razões. Os rapazes crescem então
numa posição mais privilegiada e muitas vezes com uma visão de si
próprios que re ete o tratamento preferencial que receberam. Os pais
têm então menos preocupação com o policiamento ou com o
comportamento destes rapazes. Em vez disso, pode haver uma maior
preocupação com a sexualidade feminina emergente e as meninas e
as mulheres jovens são então mais susceptíveis de serem alvos do
olhar e do controle.

Este sexismo culturalmente institucionalizado que favorece os


meninos terá obviamente um impacto na forma como os meninos e
os homens se vêem a si próprios. Mas antes de nós, no Ocidente,
sermos convencidos de que a cultura ocidental é mais avançada e
libertada na sua política sexual, eu argumentaria que a cultura
ocidental é mais encoberta por ideais masculinos (machistas) e que
por vezes fornece uma imagem ainda pior do que é ser um homem.

Os modelos de “o que signi ca ser um homem” estão presentes em


todas as culturas. Na maioria das culturas há uma diferenciação
entre as expectativas de meninos e meninas desde a primeira
infância, muitas vezes desde o nascimento (assim, os meninos
recebem roupa azul, as meninas rosa, etc.). Em muitas culturas
ocidentais (ao contrário da maioria das outras culturas), os meninos
entram então em instituições (em particular escolas) que têm
expectativas não sexuadas em relação à maioria das coisas (tais
como comportamento, estilo de aprendizagem, métodos de ensino,
etc.). No entanto, dentro do recreio das sub-culturas de grupos de
pares, as crenças e expectativas de gênero continuam a ser
construídas.

Vivemos numa época em que as crianças são frequentemente


caracterizadas por ansiedades polarizadas sobre os riscos que
enfrentam e os riscos que representam. Estas ansiedades têm
frequentemente um preconceito de gênero, sendo as meninas vistas
como “em risco” e os meninos como representando riscos (através
de comportamentos indisciplinados, violentos e impulsivos). Esta
preocupação sobre o potencial de os meninos se tornarem ladrões e
bandidos sem empatia é posta em causa nos meios de comunicação
social e nos lares, para cima e para baixo do país.

Inicia-se muito jovem. Ouve-se agora em conversas entre pais e


educadores ou professores cujos lhos estão no berçário ou
acabaram de começar a escola. São quase sempre os pais de
meninos para quem a preocupação com o seu comportamento está a
ser levantada. Os cuidadores institucionais (como os educadores de
infância e os professores da escola) têm tantas exigências e regras
sobre o que podem e não podem fazer, que as questões sobre as
capacidades de socialização dos meninos e os comportamentos
agressivos começam antes mesmo de conseguirem juntar uma frase.

E o autismo parece ser a atual explicação potencial favorita. Não que


sejam jovens, que se desenvolvam a velocidades diferentes, que
sejam mais enérgicos, ou curiosos, ou apenas meninos, não, estão a
comportar-se assim talvez porque têm autismo. Plante essa semente
na cabeça de um pai com uma criança pequena e observe-a crescer.
Mesmo que não acredite nisso, será que consegue largar esse
pensamento? Como irá moldar posteriormente a sua ansiedade em
relação ao seu lho e como irá isso afetar as suas interações com
ele?

Uma vez que estas inquietações sobre os meninos estejam no


sistema escolar, eles irão experimentar diferentes pressões e
expectativas que têm de aprender e negociar. No recreio, serão
expostos a variedades de formas em que “o que signi ca ser homem”
estão disponíveis, mas haverá um modelo dominante, uma forma
principal de compreender como os meninos e os homens devem ser.
No Ocidente em geral, esse modelo dominante que vemos em lmes,
histórias e situações do dia-a-dia é construído em torno da ideia de
que os homens exibem poder através das suas capacidades
corporais (capacidades no desporto e no atletismo), da não exibição
de emoções (para além da raiva), da capacidade de estar no controle
e de ser um artista competitivo.

Este é o modelo associado ao que por vezes é referido como “o


dividendo patriarcal”, ou seja, a expectativa da sociedade de estar
numa posição mais poderosa e in uente do que as mulheres. Os
meninos que se afastam deste modelo dominante podem tornar-se
alvos de bullying, provocação e exclusão pelos seus pares
masculinos.

Até agora, temos um quadro emergente onde os meninos são os


principais clientes de um diagnóstico TEA quando criança, onde a
preocupação e o escrutínio dos comportamentos dos pais e outros
prestadores de cuidados (como professores) começa cedo, e onde
encontram modelos de masculinidade no recreio e grupos de pares
que enfatizam uma “hiper-masculinidade” de força, poder,
desempenho competitivo, e controle como o principal modelo a
aspirar. Mas não é a isto que as cuidadoras principalmente femininas
e as instituições em que trabalham querem que aspirem.

O capitalismo de mercado livre pode ser visto como o exemplo mais


completo e organizado de um sistema político, social e econômico
baseado nos valores da masculinidade. Os seus valores sociais e
psicológicos baseiam-se numa competitividade agressiva, colocando
as necessidades do indivíduo acima das da responsabilidade social,
uma ênfase no controle (e não na harmonia), o uso de análises
racionais (cientí cas e empíricas), e o constante empurrar de
fronteiras.  Tal sistema produz desigualdades grosseiras (tanto
dentro das nações como entre elas), reduz o estatuto e a importância
da educação e, portanto, a estima atribuída ao papel de mãe.

À medida que cada vez mais mulheres são trazidas para o local de
trabalho – uma necessidade econômica para aumentar a força de
trabalho necessária para servir as economias de mercado – é
necessário desenvolver novas formas de autoestima para que essa
mudança no papel social da mulher seja sustentável. Como
resultado, a carreira pro ssional das mulheres tem agora mais estima
do que o papel da maternidade, que tem perdido cada vez mais o seu
estatuto de papel culturalmente valorizado dentro de uma sociedade
individualista. Este movimento para fora da esfera familiar e para a
esfera pública e do trabalho não foi igualado por um movimento
inverso correspondente de homens para fora da esfera pública e do
trabalho, para mais papéis familiares e acolhedores.

Ao mesmo tempo que tem havido um movimento de adultos para


fora da família; tem havido um movimento no sentido de os cuidados
infantis se tornarem uma atividade pro ssional (principalmente
mulheres trabalhadoras com baixos salários). Assim, o que parece
estar a acontecer no espaço psicológico da infância é uma
feminização crescente de alguns aspectos, particularmente
educativos, e uma pro ssionalização da tarefa de criar os lhos.

Existe agora uma extensa literatura que sugere que os métodos


educacionais correntemente utilizados na maioria das escolas
ocidentais (tais como avaliação contínua e chas de trabalho
socialmente orientadas) são mais preferidas pelas meninas do que
pelos meninos. Isto é então espelhado nos resultados dos exames
nacionais, onde as meninas estão agora frequentemente a obter
notas mais elevadas do que os meninos na maioria das disciplinas.
Os meninos também dominam a previsão das necessidades
especiais, onde são marcados como tendo uma quantidade
desproporcionalmente elevada de problemas com má leitura e mau
comportamento.

Com as escolas sob pressão política de economia de mercado a


competirem nas tabelas de classi cação nacional, e os meninos a
di cultarem mais o desempenho das escolas do que as meninas,
correm maior risco de exclusão e de maus resultados escolares. Não
é surpreendente que os meninos tenham chegado a ser o gênero
“falhado”, provocando ansiedade nos seus prestadores de cuidados
(principalmente femininos) e professores.

A feminização de certos aspectos da cultura capitalista masculina


em que vivemos também teve um impacto nos ambientes de trabalho
para os quais a nossa educação nos está a preparar. Ideias como o
cultivo da “inteligência emocional” na gestão e nas relações de
trabalho começaram a tornar-se mais populares nos anos 90.

Longe de ser um movimento de esclarecimento em direção a uma


sociedade carinhosa e acolhedora, isto faz parte do desenvolvimento
de formas “melhores” de motivar a força de trabalho e manipular o
consumidor. Assim, a cultura ocidental moderna exige formas mais
complexas e complicadas de socialização (numa era obcecada pela
imagem) do que no passado (ou em muitas outras culturas), no
contexto da diminuição do tamanho das famílias, resultando num
contato emocional mais intenso entre os membros destas unidades
menores, e menos oportunidades de contacto com um maior número
de pessoas.

A busca pela solução tecnológica

Uma das características das sociedades de consumo modernas,


economicamente desenvolvidas, é o contínuo avanço das
tecnologias e a nossa cada vez maior con ança nelas na vida
moderna. Quando as tecnologias funcionam adequadamente, elas
funcionam em segundo plano e a sua e ciência, função e utilização
são, assim, tidas como garantidas. Quanto melhor a tecnologia,
menos temos de pensar nela – ela está lá, funcionando fora da nossa
consciência e facilitando-nos a vida.

Assim, nos nossos esforços para chegar de A a B, tivemos primeiro a


bicicleta, depois o carro que tornou a viagem mais fácil e mais
e ciente. O carro evoluiu então para se tornar mais rápido, mais
seguro, mais suave e mais confortável, e a tecnologia continua a
evoluir, por isso obtemos o carro automático, navegação por satélite,
luzes que acendem e apagam automaticamente, um ambiente
climatizado, e assim por diante.

A sedução do avanço tecnológico tem tido um grande impacto na


nossa vida quotidiana e, de fato, na nossa consciência. Tão atraentes
são os apelos do desenvolvimento de tecnologias que aparentemente
tornam a vida mais fácil, mais e ciente e racionalizada, que
di cilmente se pode encontrar uma disciplina que não se tenha
voltado, em certa medida, para a tecnologia para encontrar novas
soluções inovadoras.

A este respeito, a medicina é um bom exemplo de uma pro ssão cujo


sistema de valores essenciais se deslocou de um foco primário na
ética dos cuidados para um foco primário numa ética mais orientada
tecnologicamente, que gira em torno da e ciência, precisão, e cácia
e economia. O foco centra-se agora em aspectos mais técnicos, com
notícias de avanços e inovações a receberem um estatuto mais
elevado do que os aspectos humanos do trabalho.

Esta tecni cação geral da vida encorajou-nos a procurar soluções


simples onde con amos na perícia técnica de vários técnicos no seu
ofício. Estes especialistas trazem consigo os seus conhecimentos
cientí cos e concebem uma solução técnica simples que requer um
mínimo de re exão por parte do utilizador e que, quando aplicada,
lidará com o problema e o fará passar para segundo plano como
todas as boas tecnologias deveriam.

É fácil ver o apelo da ideia de que os problemas interpessoais que a


vida inevitavelmente traz, podem ser reduzidos a uma simples
desordem subjacente (como o TEA) e pode ser corrigida pelo perito
que diagnosticou a natureza do problema. Também é fácil perceber
por que razão, num contexto cultural deste tipo, abordagens mais
demoradas que requerem pensamento, re exão, esforço mental, e
um maior envolvimento com assuntos que evoluem e mudam com o
passar do tempo, têm recuado em popularidade.

Mas, talvez haja boas razões para acreditar que a ciência tenha
levado a avanços que justi cam esta tecni cação. Talvez possamos
justi car a utilização do TEA como uma categoria por razões
cientí cas?

Iremos explorar a base cientí ca do TEA daqui a quinze dias, na Parte


2 do Capítulo 4.

[trad. e edição, Fernando Freitas]

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