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Capítulo I.
A subjectividade internacional
BIBLIOGRAFIA. SILVA CUNHA, A Sociedade Internacional, pp. 9 e ss.; MUGERWA, Sujetos de Derecho Internacional, in Sørensen,
pp. 261 e segs.; BIN CHENG, Les sujets de Droit International, Introduction, in BEDJAOUI, I, pp. 23 e segs.; CASSESE, pp. 97-100;
FRIEDMANN, La nueva estructura del Derecho Internacional, 259-262; SHAW, pp. 135-137; STARKE, pp. 56-67.
A palavra “pessoa” deriva do latim persona, que designa, na origem, a máscara usada em
cena pelos actores e, mais tarde, o personagem representado por um actor. Aliás, na altura, os
actores actuavam sempre com uma máscara, e esta mudava consoante o papel a desempenhar.
É neste sentido, algo figurado, que falamos nos actores da sociedade internacional — uma vez
que cada uma das entidades dotadas de personalidade jurídica internacional desempenha um
determinado papel5; e, em alguns casos, a sua existência como sujeitos deste ordenamento
jurídico tem na base razões de natureza funcional (é o caso das organizações internacionais)6.
É que, num sistema de direito, as entidades que possuem personalidade jurídica são aquelas
que desempenham directamente um papel nesse sistema. Trata-se, em consequência, de uma
espécie de teatro, em que nem todos os que intervêm na produção são actores. “O trabalho do
jurista difere, neste aspecto, do do sociólogo, do historiador ou do politólogo. Enquanto que
estes se interessam talvez mais pela produção do que pela própria peça, aquilo a que se atém
antes de mais o jurista é a procurar saber quais os personagens que o sistema jurídico colocou
na cena do direito, e como é que este distribuiu os papéis”7.
1
BIN CHENG, p. 23; demonstrando o carácter circular de qualquer definição jurídico-formal de pessoa internacional, cf.
FITZMAURICE, General Principles of International Law, RCADI, 1957, II, p. 13. Uma das soluções é a de colocar o
problema parcialmente “fora” do Direito, recorrendo ao método descritivo-físico que, aliás, como se verá a seguir, adopta-
mos. Daqui não decorre, porém, qualquer opção prévia quanto à natureza factual ou jurídica do surgimento do Estado.
2
SILVA CUNHA, A Sociedade Internacional, p. 9; JORGE MIRANDA, p. 265.
3
MOURA RAMOS, p. 98.
4
Quer dizer, que tem a possibilidade de “relação directa e imediata com formas de institucionalização da vida jurídica
internacional ou com outros sujeitos”. JORGE MIRANDA, pp. 266-267.
5
Cf. porém P.-M. DUPUY, p. 20, para quem há que distinguir “a forma técnica como se coloca a questão (…) da
qualidade de sujeito do direito internacional e aquela como se fala dos actores das relações internacionais, numa perspectiva
ao mesmo tempo política e sociológica muito mais alargada”.
6
Referindo-se a esta questão, ROGÉRIO SOARES, Lições de Direito Constitucional, Coimbra, 1971, p. 5; BAPTISTA
MACHADO, Introdução, p. 10.
7
BIN CHENG, p. 24
Introdução. A subjectividade internacional 2
De um ponto de vista jurídico, só serão actores aqueles a quem o direito reconhece a capaci-
dade de desempenhar um papel directo na actividade jurídica, aqueles a quem as suas regras
podem atingir directamente8.
8
STARKE, p. 59; MUGERWA, p. 261.
9
Esta é uma categorização assente em perspectiva histórica — sendo sujeitos originários essencialmente os Estados e a
Santa Sé. Cf. JORGE MIRANDA, p. 269. Com particular destaque para este aspecto, Albino SOARES, p. 199.
10
SILVA CUNHA, A Sociedade Internacional, pp. 9-13; JORGE MIRANDA, pp. 269-274.
11
SILVA CUNHA, A Sociedade Internacional, p. 10.
12
SILVA CUNHA, A Sociedade Internacional, loc. cit.
13
MOURA RAMOS, p. 98.
Introdução. A subjectividade internacional 3
14
Cf. supra, nº 5.2.; CASSESE, p. 97; P.-M. DUPUY, p. 19.
15
V. contudo o que se diz infra, nº…, acerca do caso particular do Estado como sujeito internacional.
16
MUGERWA, p. 262.
Introdução. A subjectividade internacional 4
víduo17. Deve notar-se, contudo, que o direito lida permanentemente com ficções jurídicas, e
que estas não teriam qualquer utilidade se não fossem tratadas como reais, como realidades 18.
Por outro lado, mesmo se a técnica jurídica, enquanto meio de regulação social, é neutra e
universal, o que lhe confere um carácter unitário numa perspectiva científica e técnica, o certo
é que os diferentes sistemas jurídicos pertencem a sociedades que, com as mesmas técnicas e
a partir dos mesmos princípios gerais, elaboram regras específicas para reger os seus próprios
assuntos, distinguindo-se, por isso, uns dos outros.
Independentemente da resolução do dilema que opõe dualistas e monistas (e deixamos esta
questão para outras calendas), interessa acentuar que o direito internacional, enquanto sistema
jurídico independente, não pode deixar de considerar as regras dos sistemas jurídicos internos
senão como simples factos, que ele pode decidir (livremente) tomar ou não em consideração,
segundo a sua própria conveniência. No caso Intérêts allemands en haute Silésie (questão de
fundo), o TPJI entendeu, acolhendo esta tese, que “relativamente ao direito internacional e ao
Tribunal que é um seu órgão, as leis nacionais são simples factos, manifestações de vontade e
da actividade dos Estados, no mesmo plano que as decisões judiciárias ou as medidas
administrativas”19.
Desta conclusão decorrem outras consequências. Entre elas, é de destacar o facto de não ser
possível fundar a personalidade jurídica internacional de uma dada entidade num instrumento
jurídico (mesmo que internacional) que apenas se pronuncie sobre a personalidade jurídica
interna ou estadual dessa entidade. Neste sentido, o TIJ, num parecer consultivo de 1949
(caso Réparation des dommages subis au service des Nations Unies), considerou que o art.
104º da Carta das Nações Unidas só se referia à personalidade jurídica interna da
organização20. Por esta razão, o Tribunal decidiu que, baseando-se naquele preceito, não podia
responder à questão sobre se a organização podia apresentar uma reclamação internacional
pelos danos sofridos por um seu agente. Este não demonstrava a personalidade internacional
da organização, pronunciando-se apenas sobre a personalidade das Nações Unidas no
“território de cada um dos seus membros”. Então, a queixa internacional só poderia ser feita
por a protecção funcional dos seus agentes “decorrer, necessariamente, da Carta”21. O que,
note-se, é bem diferente.
Em confirmação do que se acaba de dizer, apontar-se-á o exemplo de duas convenções
relativas à protecção internacional dos direitos do Homem. Sem necessidade de entrarmos, di-
rectamente, na questão discutida da subjectividade internacional do indivíduo, verificamos,
pela análise dos arts. 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e 16º do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que cada um destes preceitos estabelece que cada
um terá direito ao reconhecimento da sua personalidade jurídica22.
Se confrontarmos estas duas normas convencionais com o art. 2º, nº 1 do Pacto, chegamos à
conclusão que aquela personalidade se refere apenas ao direito interno, e não ao direito
internacional. Com efeito, esta disposição estatui que “[c]ada um dos Estados Partes no
presente Pacto compromete-se a respeitar e a garantir a todos os indivíduos que se encontrem
no seu território e estejam submetidos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente
Pacto (…)”.
17
Mas é certo, porém, que as pessoas colectivas são sempre “uma extensão analógica do conceito de personalidade na
base do indivíduo” (JORGE MIRANDA, p. 266). V. ainda, por último, HEINRICH HÖRSTER, A Parte Geral do Código
Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1992, pp. 357-366.
18
Tratando esta questão com detalhe, STARKE, pp. 56-58.
19
TPJI, Rec., 1926, série A, nº 7, p. 19.
20
V. JIMÉNEZ DE ARÉCHAGA, El Derecho Internacional Contemporaneo, Madrid, 1980, p. 206.
21
TIJ, Rec., 1949, p. 184.
22
Art. 6º DUDH (1948). — “Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua
personalidade jurídica”; Art. 16º PIDCP (1966). — “Todo o ser humano tem direito em todos os lugares ao reconhecimento
da sua personalidade jurídica”.
Introdução. A subjectividade internacional 5
Outra ideia fundamental nesta matéria é a de que estamos perante direitos e obrigações
jurídicos, e não apenas simples vantagens, privilégios ou encargos (aqueles decorrem de um
regra de direito internacional); e, além disso, o sujeito deve ser o destinatário directo e real
destes direitos e obrigações23.
Estes dois aspectos podem ser analisados conjuntamente. O direito internacional deverá ter a
intenção real de atribuir direitos e obrigações. Em alguns casos, a regra de direito é enunciada
de uma forma alíptica, de modo que ocorre uma transposição (apenas formal) dos direitos e
obrigações do sujeito de direito em favor do objecto sobre que incidem. Vejam-se os arts. 17º
e 39º da Convenção de Montego Bay. Nos termos do art. 17º, que se refere ao direito de
passagem inofensiva, os navios de todos os Estados, costeiros ou sem litoral, gozam daquele
direito no mar territorial. Dispõe por outro lado o art. 39º que, no exercício do direito de pas-
sagem em trânsito, os navios e aeronaves atravessam ou sobrevoam o estreito.
Tais disposições, declaratórias do direito internacional geral, conferem de modo expresso o
direito de passagem inofensiva no mar territorial aos navios de todos os Estados, e precisam
as obrigações de todos os navios e aeronaves no exercício do direito de passagem em trânsito
nos estreitos internacionais. No entanto, seria errónea a dedução de que o direito internacional
geral, ou a Convenção de Montego Bay, em particular, reconhecem a capacidade dos navios e
das aeronaves de serem directamente titulares de direitos e obrigações em direito
internacional e, de maneira reflexa, a sua personalidade jurídica internacional. O que o art. 17º
diz é que todos os Estados têm o direito do reconhecimento aos seus navios do privilégio de
navegar em passagem inofensiva nas águas territoriais de um outro Estado24. O art. 39º, por
seu turno, impondo em primeira análise obrigações jurídicas aos navios e aeronaves que
exercem o seu “direito” de passagem em trânsito, não faz mais do que enunciar as condições
segundo as quais aqueles podem gozar do privilégio da passagem em trânsito, em virtude de
um direito que, em direito internacional, é titulado no Estado de que têm a nacionalidade ou
numa entidade equivalente, por exemplo, uma organização internacional com competência
para proceder ao registo e matrícula desses navios e aeronaves.
Por conseguinte, supondo a existência de um diferendo sobre a interpretação ou aplicação
desta disposições ou regras, este terá como partes o Estado territorial e o Estado nacional, ou a
entidade sob cujo pavilhão está a navegar o navio ou a voar a aeronave. É confirmação
suficiente desta tese a Parte XV da Convenção de Montego Bay, onde se diz que os di-
ferendos opõem, em sentido estrito, as Partes na Convenção.
As considerações expendidas são ainda aplicáveis em todos os casos de protecção diplomática
dos nacionais no estrangeiro. As regras vigentes nesta matéria foram já explicitadas, em
diversas ocasiões, pelo TPJI, por exemplo no caso, célebre, das concessões Mavrommatis, de
1924. O Tribunal, na altura, declarou o seguinte: “[é] um princípio elementar do direito
internacional aquele que autoriza o Estado a proteger os seus nacionais lesados por um outro
Estado, de que não puderam obter satisfação pelas vias ordinárias. Fazendo causa por um dos
seus, pondo em movimento, em seu favor, a acção diplomática ou a acção judiciária
internacional, este Estado faz, a bem dizer, valer o seu direito próprio, o direito que tem de
fazer respeitar, na pessoa dos seus nacionais, o direito internacional”25.
23
Mas é entendido de forma diferente o princípio da imediatidade normativa (que traduz submissão directa ao direito
internacional) de que falam QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, por ser associado, em exclusivo, à soberania estadual (cf.
pp. 406-407)
24
Sobre esta questão, veja-se, por todos, GIUSEPPE CATALDI, Il Passaggio delle navi straniere nel mare territoriale,
Milão, 1990, pp. 147 e ss.
25
TPJI, caso Concessions Mavrommatis en Palestine (compet.), Rec., 1924, série A, nº 2, p. 12.
Introdução. A subjectividade internacional 6
Por isso, só as pessoas internacionais são verdadeiros sujeitos de direito internacional, mesmo
se as vantagens ou encargos que resultam das regras de direito em questão beneficiam ou in-
cumbem, efectivamente, aos seus navios e aeronaves, aos seus nacionais, aos seus
funcionários ou agentes26.
No parecer consultivo sobre a reparação dos danos sofridos ao serviço das Nações Unidas, o
TIJ teve de responder à questão sobre a capacidade da organização para apresentar uma
reclamação internacional contra um Estado não-membro (no caso, Israel) pelos danos sofridos
por um dos seus agentes no exercício das suas funções. E declarou, então, que “cinquenta
Estados, que representam uma larga maioria dos membros da comunidade internacional,
tinham o poder, de acordo com o direito internacional, de criar uma entidade que possuísse
uma personalidade internacional objectiva — e não uma personalidade reconhecida apenas
por eles — bem como capacidade para apresentar reclamações internacionais”27.
Contudo, este modo de ver as coisas não é pacífico. Uma das críticas admissíveis advém do
estipulado no art. 34º da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, nos termos do qual
um tratado não cria nem obrigações nem direitos para terceiros Estados sem o seu
consentimento (expressão do princípio da relatividade dos tratados — res inter alios acta).
Sendo a Carta das Nações Unidas um tratado, esta objecção ganha consistência, tanto mais
que o Tribunal podia ter-se bastado, para dar uma resposta positiva à questão que lhe tinha
sido colocada, com a existência de uma obrigação assumida pelo Estado terceiro perante a
Organização. Como aquele órgão jurisdicional referiu, “quando [a Organização] exige repara-
ção devido a uma violação destas obrigações, invoca um direito próprio, o direito de ver
respeitadas as obrigações assumidas para com ela”28.
No caso, a assunção desta obrigação pelo Estado não membro corresponde ao reconhecimento
da personalidade internacional da Organização. Se assim não fosse, só com muita dificuldade
a ONU poderia fundar uma reclamação internacional face a um Estado que se recusasse a
reconhecer “o estatuto oficial do agente e das suas actividades, e [que não tivesse] reconhe-
cido de nenhum modo a capacidade jurídica da organização”29. Em relação a sujeitos não
estaduais, e num sistema jurídico horizontal como o é o internacional, a personalidade jurídica
continua, por isso, a ser (no essencial) subjectiva e, consequentemente, relativa.
O princípio é, vistas as coisas nestes termos, o da inoponibilidade da personalidade
internacional da organização a Estados terceiros.É por isso que a União Soviética e os países
do bloco de leste recusaram durante muito tempo reconhecer a personalidade jurídica
internacional das Comunidades Europeias. Na prática, o “reconhecimento” da organização
aproxima-se (na dose de subjectivismo que contém) ao “reconhecimento” de Governo, na
medida em que é concedido ou recusado de forma livre, com base em considerações de
oportunidade política. Este subjectivismo vai mesmo mais longe, uma vez que a existência do
Estado repousa num facto jurídico, enquanto que a organização deve o seu surgimento na
cena internacional a um acto jurídico, o tratado constitutivo30.
26
BIN CHENG, p. 31.
27
TIJ, Rec., 1949, p. 185.
28
TIJ, Rec., 1949, p. 184.
29
BIN CHENG, p. 39.
30
P.-M. DUPUY, p. 120.
Introdução. A subjectividade internacional 7
31
Referindo-se, neste contexto, a direitos dos Estados que revelam a existência de soberania, JORGE MIRANDA, p. 276.