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Resumo: O objeto deste estudo é a liberdade contratual no direito administrativo, tal como no direito
privado, consistente no poder atribuído às partes para fixar livremente a disciplina de seus interesses
de modo juridicamente vinculativo, desdobrando-se nas liberdades de contratar ou não contratar, de
escolher com quem contratar e de fixar o conteúdo contratual. Esta última vertente, por sua vez, com-
preende a liberdade de escolha entre os diversos tipos contratuais e a liberdade de celebrar contratos
administrativos atípicos e, então, de modificar os tipos legais estipulando cláusulas exorbitantes em
contratos paritários ou a renúncia de prerrogativas exorbitantes ou, ainda, a renúncia de direitos sub-
jetivos do particular.
Palavras-chave: Contrato administrativo. Discricionariedade. Liberdade contratual. Cláusulas exorbi-
tantes.
Sumário: 1 Introdução – 2 A liberdade contratual no direito privado e no direito administrativo – 3 A
liberdade de contratar ou não contratar – 4 A liberdade de escolha da contraparte – 5 A liberdade de
estipulação do conteúdo contratual – 6 Conclusão – Referências
1 Introdução
Procura-se com a presente investigação conhecer em que termos se propõe
o princípio da liberdade contratual no direito administrativo. Assim, o problema da
pesquisa consiste em desvendar em que medida tem lugar no âmbito dos contratos
administrativos a desagregação da liberdade contratual, tradicional na esfera das
relações entre pessoas privadas, nas liberdades (a) de contratar ou não contratar;
(b) de escolher com quem contratar; e (c) de fixar o conteúdo contratual.
Trata-se de tema relevante por suas implicações na província do contrato
administrativo tanto como ao nível das relações clássicas da Administração Pública
com a legalidade administrativa, em última instância, despertando interesse por
proporcionar uma reflexão sobre os contornos da competência discricionária
envolvendo a atividade contratual de direito público.
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1
Por todos, cf. João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, v. I, 10ª ed., Coimbra: Almedina,
2013, p. 226-227.
2
Cf. Enzo Roppo, O contrato, Coimbra: Almedina, 2009, p. 127-128, e José Manuel Sérvulo Correia, Legalidade
e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra: Almedina, 2013 (reimpressão da edição
de 1987), p. 438 e 444, aqui cuidando do princípio em caso no direito civil.
3
Por todos, cf. João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, v. I, p. 230-232 e Enzo Roppo, O
contrato, p. 132-133.
4
Cf. João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, v. I, p. 233-244.
5
Cf. João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, v. I, p. 245-246.
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regulados por lei.6 Portanto, essa faculdade habilita as partes a escolher entre
os tipos contratuais nominados e a celebrar contratos atípicos puros (distintos
daqueles que a lei regula e nomeia) e contratos atípicos mistos (caracterizados por
reunirem elementos de dois ou mais contratos).7 Tal como as outras manifestações
da liberdade contratual, também a liberdade de estipulação é exercida dentro dos
limites da lei, em especial, respeitando as regras estabelecidas para proteção
da parte considerada econômica ou socialmente mais fraca (arts. 421 e 422 do
Código Civil).
Na esfera pública, como propõe Sérvulo Correia, é de se recortar uma situação
estruturalmente próxima, que se pode designar liberdade contratual de direito
administrativo, consistente na “margem de livre decisão de que a Administração
dispõe na contratação e na estipulação dos contratos administrativos”.8 Para o autor,
será uma faculdade que integra a categoria mais ampla da autonomia pública, que
é a “permissão de criação, no âmbito dos actos administrativos e dos contratos
administrativos, de efeitos de direito não predeterminados por normas jurídicas”.9
Não é possível no quadro desta investigação refutar (ou comprovar) defini-
tivamente a identificação da liberdade contratual de direito administrativo com a
concepção tradicional sobre a discricionariedade administrativa.10 De toda sorte,
6
Cf. João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, v. I, p. 246-247. A propósito, o Código Civil
brasileiro admite a livre celebração de contratos atípicos: “Art. 425 É lícito às partes estipular contratos
atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”. No ponto, todavia, é mais didático o Código
Civil português, utilizado pelo referido autor como paradigma: “Art. 405º 1. Dentro dos limites da lei, as
partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos
previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir
no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.
7
Nesse sentido, cf. José Manuel Sérvulo Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos
administrativos, p. 448-449, citando diversos autores civilistas. Para um profundo estudo sobre o tema,
cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 211-218.
8
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 469. Já antes o autor registrou que o
seu “tema é o da natureza e dos limites da margem de livre decisão da Administração quando opta pela
celebração de contratos administrativos e estipula o conteúdo destes”, de modo que a análise sobre o
princípio da liberdade contratual no direito privado se justifica apenas para “poder concluir sobre se é ela
(ou outra, ou ela e outra) a ideia ou as ideias que fundamentam a liberdade de criação de efeitos de direito
pela Administração através dos contratos administrativos” (ob. cit., p. 429).
9
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 470.
10
A propósito, interessante uma das críticas formuladas por ocasião da apreciação da tese de Sérvulo Correia,
concluindo que “o conceito de autonomia pública contratual, tão promissoramente anunciado por Sérvulo
Correia, se desmorona por completo às suas próprias mãos. Não há, afinal, dentro dos parâmetros que
ele define, nenhum caso de autonomia pública contratual: porque, nos contratos típicos e nos contratos
atípicos com objeto passível de contrato privado, não havendo pré-determinação legal de fins específicos,
estaremos fatalmente perante manifestações claras de autonomia privada; e nos contratos atípicos com
objeto passível de acto administrativo, como Sérvulo Correia confessa, estamos diante da discricionariedade
pura e simples. Numa palavra: o que se infere da análise crítica da obra de Sérvulo Correia é que, no
domínio dos contratos administrativos, entre as noções de autonomia privada e de discricionariedade não
há espaço para a figura da autonomia pública contratual. Tertium non datur. Não pretendo com isto significar
que seja esta a melhor construção dogmática do instituto, mas tão somente que esta é a conclusão a
que inevitavelmente se chega pelo caminho que o Lic. Sérvulo Correia trilhou, e pela forma como nesse
caminho conduziu sua investigação” (Diogo Freitas do Amaral, Estudos de direito público e matérias afins,
v. II, Coimbra: Almedina, 2004, p. 347).
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Como registra Hart: “Legal rules defining the ways in which valid contracts or wills or marriages are made
do not require persons to act in certain ways whether they wish or not. Such laws do not impose duties
or obligations. Instead, they provide individuals with facilities for realizing their wishes, by conferring legal
powers upon them to create, by certain specified procedures and subject to certain conditions, structures
of rights and duties within the coercive framework of the law. The power thus conferred on individuals to
mould their legal relations with others by contracts, wills, marriages, &c, is one of the great contributions
of law to social life; and it is a feature of law obscured by representing all law as a matter of orders backed
by threats” (The concept of law, 3ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 27-28).
12
Em sentido semelhante, mas especificamente sobre a admissibilidade de contratos administrativos atípi-
cos, Vera Monteiro assevera: “É preciso reler o princípio da legalidade em sua formulação clássica, para
que a Administração Pública possa celebrar contratos (e estruturar modelos de negócio) que não tenham
sido previamente tipificados pela lei, mas que estejam em conformidade com o Direito” (Concessão, São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 60 e 69). No mesmo sentido, Marçal Justen Filho escreve: “Não existe a deter-
minação de que a Administração se valha apenas de contratos típicos (nominados). Ainda reconhecendo
que a atividade administrativa se sujeita ao princípio da legalidade, isso não significa que os modelos de
contratação pública tenham de ser previamente definidos em lei. A lei concede autorização para o Estado
contratar, mas não fornece parâmetros exaustivos dos modelos de contratação. Justamente por isso, a Lei
8.666/1993 não contém um elenco exaustivo de tipos contratuais, mas restringe-se a disciplinar gêneros
contratuais. Trata, basicamente, de ‘obras’, ‘serviços’, ‘compras’, ‘alienações’. Por exemplo, não existe
previsão sobre o contrato de ‘transporte’, o que não significa vedação à sua utilização: trata-se de uma
modalidade de prestação de serviços. Não há impedimento algum a que a Administração produza distintas
espécies de ‘contratos de prestação de serviço’, cada qual com características próprias” (Comentários à
lei de licitações e contratos administrativos, 16ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 924).
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Para aprofundamento sobre a gestão direta e indireta e a ideia de níveis de transferência de gestão
(estratégica, operacional e executiva), cf. Pericles Ferreira de Almeida, Participação dos administrados na
gestão da atividade administrativa de fomento, RDPE, n. 61, 2018, p. 193-217.
14
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 656.
15
Cf. Sérvulo Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 657-658, acres-
centando: “Em todas essas hipóteses, a decisão ou deliberação de contratar limitar-se-á à especificação
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sumária dos elementos essenciais do contrato e de eventuais cláusulas especiais que se considerem
condição imprescindível da realização do interesse visado. A predeterminação do conteúdo do contrato no
momento da decisão ou deliberação de contratar pode conhecer um limite de ordem procedimental quando
das normas aplicáveis resulte que certos elementos devam ser especificados em fases subsequentes
através de formalidades a isso adequadas”.
16
Para uma crítica à dicotomia atividade-fim e atividade-meio no âmbito do direito do trabalho, cf. Sergio Pinto
Martins, A terceirização e o direito do trabalho, 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 130-133. Declinando
razões para considerar insuficiente a dicotomia no âmbito do direito administrativo, por exemplo, cf.
Flavio Amaral Garcia, A relatividade da distinção atividade-fim e atividade-meio na terceirização aplicada
à Administração Pública, Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado – RERE, n. 19, 2009, p. 10-16, e
Dora Maria de Oliveira Ramos, Terceirização na Administração Pública, São Paulo: LTr, 2001, p. 123-127.
17
De modo semelhante, por exemplo, Flavio Amaral Garcia, A relatividade da distinção atividade-fim e atividade-
meio na terceirização aplicada à Administração Pública, RERE, n. 19, 2009, p. 9-10.
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Nesse sentido, Flavio Amaral Garcia, A relatividade da distinção atividade-fim e atividade-meio na terceirização
aplicada à Administração Pública, RERE, n. 19, 2009, p. 17-20, e Carlos Pinto Coelho Motta, Terceirização
e funcionalização: conflito ou complementaridade, BDA, n. 12, 1997, p. 801-805.
19
STF, ADPF 324 e RE 958.252 – Informativo de 30 de agosto de 2018.
20
STF, ADI 1.923, Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 16/04/2015.
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21
Sobre o assunto, por exemplo, Fernando Vernalha Guimarães, Parceria público-privada, São Paulo: Saraiva,
2012, p. 216-225 e Maurício Portugal Ribeiro e Lucas Navarro Prado, Comentários à Lei de Parceria público-
privada, São Paulo: Malheiros, 2010, p. 88-94. Estes últimos autores, obtemperando: “O que, definitivamente,
não se pode deixar acontecer em um país com as ingentes necessidades de investimento, como o nosso,
é o que se tem chamado de paralysis by analysis, consistente na paralisia na implementação dos projetos
por conta da suposta necessidade de novas análises. Reconheçamos a necessidade de criação futura de
base de dados para realizar análises quantitativas mais específicas sem perder de vista que, por ora, diante
da grave deficiência de infraestrutura que inibe o aumento da taxa de crescimento desse país, é preciso
promover a implementação dos projetos conforme os mecanismos de análise disponíveis atualmente” (ob.
cit., p. 92-93).
22
Por todos, cf. Marçal Justen Filho, Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 16ª ed., São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 484-485 e 498-501.
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23
Para aprofundamento, cf. Caio Mario da Silva Pereira Neto e Mateus Piva Adami, Restrições concorrenciais
nos editais de licitação de projetos de infraestrutura. In: PEREIRA NETO, Caio Mario da Silva; PINHEIRO,
Luís Felipe Valerim. Direito da infraestrutura, v. 2, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 340-351.
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24
Para aprofundamento, cf. Caio Mario da Silva Pereira Neto e Mateus Piva Adami, Restrições concorrenciais
nos editais de licitação de projetos de infraestrutura, p. 351-361.
25
Para aprofundamento, cf. Caio Mario da Silva Pereira Neto e Mateus Piva Adami, Restrições concorrenciais
nos editais de licitação de projetos de infraestrutura, p. 368-374.
26
Sobre a necessidade de motivação para essas restrições, TCU, Acórdão 1.555/2014, Rel. Min. Ana Arraes,
Acórdão 2.666/2013, Rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti e Acórdão 3.026/2013, Rel. Min. Weder
Oliveira, todos do Plenário, também citados por Caio Mario da Silva Pereira Neto e Mateus Piva Adami,
Restrições concorrenciais nos editais de licitação de projetos de infraestrutura, p. 366-367 e 373.
27
É apropriado falar em tipicidade e atipicidade de contratos administrativos? Não parece possível concretizar
nesta pesquisa um estudo completo sobre o assunto, sem embargo, pode-se afirmar que é estreito o
paralelismo entre essa classificação no direito privado e no direito público, reservada para os casos em
que o contrato tem, ou não, na legislação, um modelo suficientemente completo de disciplina própria. A
propósito – conquanto com olhos no direito privado – é esclarecedora a lição de Pedro Pais de Vasconcelos
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ao trabalhar o tema referido tanto aos tipos legais como aos tipos sociais: “No primeiro caso, são atípicos
os contratos que não contêm na lei um modelo regulativo típico; no segundo, são atípicos aqueles que
não têm um modelo regulativo típico, nem na lei, nem na prática. Quando se fala de contratos atípicos
quase nunca se distingue e quase sempre se está, na verdade, a falar de contratos legalmente atípicos.
No entanto, há muitos tipos contratuais que estão consagrados na prática e não na lei. Não são poucos
os casos de contratos legalmente atípicos, que são socialmente típicos”. Já concentrando a atenção nos
tipos contratuais legais – aqueles que nos interessam nesta investigação – o autor acrescenta: “Para que
um contrato seja tido como legalmente típico é necessário que se encontre na lei o modelo completo da
disciplina típica do contrato. Este modelo regulativo pode ser mais ou menos amplo e até mais ou menos
completo mas, para que se possa dizer que o contrato é legalmente típico, é necessário que a regulação
legal corresponda pelo menos aproximadamente ao tipo social e seja suficientemente completa para dar
às partes a disciplina básica do contrato. Também aqui não é possível fixar limites rígidos e pode concluir-
se, em casos concretos, que o contrato está muito ou pouco tipificado na lei” (Contratos atípicos, 2ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2009, p. 211 e 214).
28
Christophe Guettier, Droit des contrats administratif, 3ª ed., Paris: PUF, 2011, p. 31-32. No mesmo local
citando eloquente passagem de Drago, “desejar em um espírito de rigidez doutrinária manter um regime único
do contrato administrativo recai no desafio ou mesmo na teimosia” (Le contrat administratif aujorurd’hui,
Droits, 1990, nº 12, p. 128).
29
Christophe Guettier, Droit des contrats administratif, p. 31-32, citando diversos autores.
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Do mesmo modo, e não sem antes registrar que a distinção entre contratos
administrativos e contratos privados da Administração remete a regimes jurídicos
em boa parte próximos, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández
observam que “tais regimes não são unitários e compactos”, pois “não há um só
regime jurídico para os contratos administrativos e outro para os contratos privados,
mas vários regimes distintos em cada lado da linha divisória”.30
E esclarecem que “falar de um regime jurídico específico dos contratos
administrativos só é possível, em sede doutrinária, sobre a base de uma série de
generalizações sucessivas”, sendo certo que “um regime unitário para todos os
contratos administrativos nunca existiu, nem existe tampouco na atualidade”.31 Daí
se depreender que “o regime jurídico dos contratos administrativos não é, portanto,
unitário e puro, mas variável e misto, aparecendo sempre mesclados em distintas
proporções o direito administrativo e o direito privado”.32
A partir dessas premissas, não será difícil constatar que uma mesma neces-
sidade pública poderá ser resolvida por diversos modelos contratuais alternativos
quando eles apresentarem uma causa-função com contornos semelhantes. De
fato, não será pouco comum a hipótese de dois ou mais tipos legais de contrato
administrativo se revelarem intercambiáveis para a satisfação de um certo interesse
público tutelado pelo sujeito administrativo.33
A escolha entre uma das opções disponíveis se desenvolverá no domínio de
uma discricionariedade de planejamento das atividades da Administração, que
dispõe de liberdade para optar por um determinado contrato como o instrumento
a utilizar, afastando outro cuja finalidade prática da mesma forma permitiria fosse
ele conjugado com aquela situação em concreto.
Esse fenômeno foi capturado com exatidão por Jacintho Arruda Câmara.
Com os olhos na implantação de projetos de infraestrutura, o autor assevera que
reflete uma opção discricionária a escolha do modelo contratual que será adotado,
destacando que são cinco os modelos de aplicação geral previstos na legislação para
tal finalidade: (a) a empreitada de obras públicas, prevista na Lei nº 8.666/1993;
30
Curso de derecho administrativo, v. I, 15ª ed., Madri: Civitas, 2011, p. 730.
31
Curso de derecho administrativo, v. I, p. 732.
32
Curso de derecho administrativo, v. I, p. 733.
33
Não é relevante para a presente investigação uma discussão sobre as diferentes teorias da causa, mas
é de se esclarecer que a noção é aqui adotada como a função econômico-social de um tipo de negócio
jurídico considerado em abstrato, assim, como diz Emílio Betti, trata-se da “razão prática típica” ou “escopo
prático típico” do negócio jurídico (Teoria geral do negócio jurídico, Tomo I, Campinas: LZN, 2003, p. 248 e
258). Assim concebida, a causa-função é um elemento diferenciador das diversas figuras contratuais, pois
cada uma tem uma certa finalidade prática que lhe é peculiar; segundo ensina Darcy Bessone, forte em
Galvão Teles: “Ela ‘diverge de categoria para categoria de atos, mas todos os atos pertencentes ao mesmo
tipo têm uma causa única – sempre a mesma, constante, uniforme’, que seria a ‘função social típica, ou
seja, a função própria de cada tipo ou categoria de negócios jurídicos’, imprimindo-lhe caráter específico,
modelando-lhe a estrutura” (Do contrato: teoria geral, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 131).
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Contratações públicas para projetos de infraestrutura. In: MARCATO, Fernando S.; PINTO JÚNIOR, Mario
Engler. Direito da infraestrutura, v. 1, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 59-63.
35
Jacintho Arruda Câmara, Contratações públicas para projetos de infraestrutura. In: MARCATO, Fernando S.;
PINTO JÚNIOR, Mario Engler. Direito da infraestrutura, v. 1, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 59 e 60.
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36
Cf. o Contrato de Concessão Administrativa nº 30/2010, disponível em: https://www.sefaz.ba.gov.br/
administracao/ppp/projeto_hospitalsuburbio.htm
37
Cf. os Contratos de Concessão Administrativa nº 01/2014 (lote 01) e 02/2014 (lote 02), disponíveis em:
http://www.saude.sp.gov.br/ses/perfil/cidadao/ppp-complexos-hospitalares/ppp-complexos-hospitalares
38
Cf. os Contratos de Gestão, disponíveis em: http://www.portaldatransparencia.saude.sp.gov.br/.
39
Por exemplo, Consórcio Intermunicipal de Saúde do Centro Noroeste do Paraná (CISCENOP) (http://ciscenop.
com.br/) e Consórcio Intermunicipal de Saúde Costa Oeste do Paraná (CISCOPAR) (https://www.ciscopar.
com.br). Consultar também a página do Programa Estadual de Apoio aos Consórcios Intermunicipais de
Saúde (COMSUS), com a lista completa de consórcios intermunicipais de saúde (http://www.saude.pr.gov.
br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=2890).
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40
Contratos atípicos, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 211.
41
Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 215.
42
Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 215-218. Vale
transcrever a seguinte passagem: “Na maior parte dos casos, os contratos atípicos não são puros; são
construídos a partir de um ou mais tipos que são combinados ou modificados de modo a satisfazerem os
interesses contratuais das partes. Estes são os chamados contratos mistos. Na prática, quase todos os
contratos atípicos são mistos. Os contratos mistos não são um ´tertium genus` em relação aos contratos
típicos e aos atípicos, nem uma categoria intermédia; os contratos mistos são atípicos, embora estejam
mais próximos dos típicos do que os contratos atípicos puros” (ob. cit., p. 217).
43
Para aprofundamento no que respeita exclusivamente à diferença entre tipos e classes de contratos,
abordando o exemplo da prestação de serviços no direito civil português, cf. Pedro Pais de Vasconcelos,
Contratos atípicos, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 167-169.
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44
Essa hipótese de contrato atípico foi trabalhada por Marçal Justen Filho, A Administração Pública e os
edifícios construídos sob medida. In: ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; e outros (Coord.). Direito
público em evolução: estudos em homenagem à Professora Odete Medauar, Belo Horizonte: Fórum, 2013,
p. 669-684.
45
Cf. Marçal Justen Filho, A Administração Pública e os edifícios construídos sob medida, p. 673-674.
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46
A propósito, entre outros, cf. Egon Bockmann Moreira, Direito das concessões de serviço público, São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 135-139, e Floriano de Azevedo Marques Neto, Concessões, Belo Horizonte:
Fórum, 2015, p. 247-256, ambos defendendo que a concessão de obra pública é espécie autônoma em
relação à concessão de serviço público e recenseando os autores que, em sentido contrário, pensam
inexistir concessão de obra dissociada da concessão de serviço público.
47
Para aprofundamento, cf. Floriano de Azevedo Marques Neto, Concessões, Belo Horizonte: Fórum, 2015,
p. 313-320.
48
Vera Monteiro, Concessão, São Paulo: Malheiros, 2010, p. 182-191. Em especial, a seguinte passagem,
que oferece material para a nossa crítica: “Trata-se do reconhecimento de verdadeira permeabilidade entre
as espécies de concessão, a partir do pressuposto de que são instrumentos que desempenham a mesma
função. Isso só é possível com a caracterização do gênero ´concessão` pela sua função principal (viabilizar
a realização de investimentos significativos para a disponibilização de bens e serviços à sociedade), e
não como forma de delegação de atividade pública ao privado. Se, no entanto, a opção tivesse sido no
sentido de caracterizar a concessão a partir do traço da delegação, não seria possível deduzir a conclusão
acima apontada, pois em razão da amplitude da ideia haveria o risco de confusão entre os vários regimes
jurídicos existentes no sistema brasileiro para delegar atividades públicas a terceiros. E não é isso que se
propõe” (ob. cit., p. 182).
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Nesse sentido, cf. Carlos Ari Sundfeld, Licitação e contrato administrativo, p. 199-200 e 207, Lúcia Valle
49
Figueiredo, Curso de direito administrativo, 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p.510-511, e Lucas Rocha
Furtado, Curso de licitações e contratos administrativos, Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 382-383.
204 R. bras. de Dir. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 187-217, out./dez. 2020
50
Curso de direito administrativo, 10ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 584.
51
Licitação e contratos administrativos. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Tratado de direito
administrativo, v. 6, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 315-316.
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Na teoria francesa do contrato administrativo – que se propagou para o Brasil – sempre se reconheceu
53
que não é legítimo à Administração de antemão renunciar às cláusulas exorbitantes, reputadas inerentes
à natureza do contrato administrativo e existentes mesmo no silêncio da lei e da convenção das partes. Já
na sistematização clássica de Gaston Jèze é respondido que “la Administración no puede, de antemano,
renunciar a su derecho de modificación o de supresión, porque ella no puede prever lo que exigirá el
funcionamiento del servicio público. La facultad de la Administración para modificar la extensión de las
prestaciones o aun para suprimirlas por la rescisión del contrato, es una regla de orden público, que no
puede derogarse por convención de las partes. Toda cláusula del contrato, que importe una limitación directa
de esta facultad, es nula de orden público. El ejercicio de la competencia de la Administración para el buen
funcionamiento del servicio público, es inalienable” (Principios generales del derecho administrativo, t. 4,
Editorial Depalma: Buenos Aires, 1950, p. 235; tradução de Les principes généraux du droit administratif, t.
4, 3ª ed., 1934). Atualmente, persiste a mesma a ideia, cf. Jacqueline Morand-Deviller, Droit administratif,
13ª ed., Paris: LGDJ, 2013, p. 407; e Laurent Richer, Droit des contrats administratifs, 9ª ed., Paris: LGDJ,
2014, p. 232-233, no entanto, este último reconhecendo que os textos legais ou regulamentares podem
suprimir o poder de modificação unilateral, citando exemplos.
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54
O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo,
Mutações do direito administrativo, 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 419. O estudo está igualmente
publicado em ARAGÃO, Alexandre dos Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.), Direito
administrativo e seus novos paradigmas, Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 571-592. As desvantagens
sintetizadas pelo autor são as seguintes: “1ª – a imprecisão e insegurança de direitos resultantes do
manejo público das prerrogativas da Administração nas transações, pela ambivalência de sua origem e
justificativa, ou seja, o fato de decorrerem ou da natureza dos contratos (relativas) ou da natureza da própria
administração pública (absolutas); 2ª – o agravamento dos custos de transação pelo aumento do risco,
enquanto a redução e a abolição dessas cláusulas minimiza o chamado risco soberano; 3ª – o déficit de
transparência da transação, pois as prerrogativas são genericamente estabelecidas nas leis, sem evidente
relação com as situações fáticas específicas e as peculiaridades de cada contrato; e 4ª– o sacrifício da
confiança legítima do administrado na transação, pois as prerrogativas tanto podem servir a propósitos
legítimos como disfarçar intenções ilegítimas, como a difundida e gravosa corrupção pelo temor” (ob. cit.,
2007, p. 419).
55
O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, 2007, p. 423. Todavia, é de se notar,
aparentemente, a proposta é no sentido de que se dê na órbita legislativa a alteração de paradigma, o que
seria constitucional segundo o autor: “[...] essa imposição da generalização de cláusulas inafastáveis nos
contratos administrativos não repousa sobre qualquer assento constitucional, senão que é de previsão
meramente legal, nada impedindo, portanto, que o legislador ordinário delegue ao administrador público esta
incumbência de avaliar a legitimidade do emprego de qualquer delas, depois de examinadas as hipóteses,
caso a caso” (ob. cit., p. 423-424).
56
Contrato administrativo, São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 371. O mesmo raciocínio é desenvolvido
anteriormente pelo autor, embora não com a mesma profundidade, em Mecanismos de consenso no Direito
administrativo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito
administrativo e seus novos paradigmas, Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 421-440.
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57
Contrato administrativo, São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 373.
58
Exemplificativamente, promovendo crítica explícita a Fernando Dias Menezes de Almeida e Diogo de Figueiredo
Moreira Neto, cf. Alice Gonzales Borges, Considerações sobre o futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos
administrativos. In: BORGES, Alice Gonzales. Temas de direito administrativo atual. V. 2. Belo Horizonte:
Fórum, 2010, p. 157-165. E para uma posição que refuta a possibilidade de escolha discricionária entre
o regime jurídico de direito público e de direito privado, inclusive ventilando a inviabilidade da substituição
de um contrato administrativo por um análogo contrato privado, cf. Ricardo Marcondes Martins, Princípio
da liberdade das formas no direito administrativo, Interesse Público – IP, n. 80, 2013, p. 83-124.
59
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 706-707.
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60
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 708-709.
61
Nesse sentido, realçando a necessidade de compatibilizar esses poderes com a autonomia do concessionário
na prestação de serviços concedidos, bem assim a situação peculiar dos contratos de obra pública, em que
são mais amplos os poderes de fiscalização tal como nos contratos privados de empreitada, cf. Christophe
Guettier, Droit des contrats administratis, p. 430-434 e Laurent Richer, Droit des contrats administratis,
p. 238-239. No mesmo sentido, e defendendo a premissa de que a aplicação desses poderes é quase
sempre limitada a casos equivalentes aos quais são eles reconhecidos nos análogos contratos privados
(v.g., contratos de empreitada e de prestação de serviços), cf. Maria João Estorninho, Requiem pelo contrato
administrativo, Coimbra: Almedina, 2003, p. 120-127.
62
Cf. art. 58, III, da Lei nº 8.666/1993, art. 3º, 23, VII, 30 e 31, V, da Lei nº 8.987/1995.
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63
Cf. Fernando Dias Menezes de Almeida, Contrato administrativo, São Paulo: Quartier Latin, 2012,
p. 333-335.
64
La figura del contrato administrativo. In: Studi in memoria di Guido Zanobini, v. II, Milano: Giuffrè Editore,
1965, p. 661-662.
65
Gaston Jèze, Principios generales del derecho administrativo, v. 4, p. 236, e André de Laubadère, Du
pouvoir de l´administration d´imposer unilatéralement des changements aux dispositions des contrats
administratifs, Revue du droit public et de la Science Politique, Paris: LGDJ, 1954, p. 36-63.
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66
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, p. 738.
67
Cf., por exemplo, arts. 69, X, e 81, §8º, da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais); art. 9º, §5º, da Lei
nº 12.462/2011 (Lei do RDC); arts. 4º, VI, e 5º, III, da Lei nº 11.079/2004 (Lei de PPPs); e art. 10 da
Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões), embora o último com redação lacônica, dispondo: “Sempre que
forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido seu equilíbrio econômico-financeiro”.
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art. 65, II, “d”, da Lei nº 8.666/1993, é fácil constatar que apenas será devido o
restabelecimento da relação inicial entre os encargos e as vantagens na hipótese
de fatos que configurem álea extracontratual (ver a parte final do dispositivo), ou
seja, eventos não convencionados como de responsabilidade exclusiva de uma
das partes. Esse preceito legal, portanto, representa norma supletiva, significando
que será aplicável a disciplina legal na medida em que se constatar o silêncio do
instrumento contratual sobre a alocação a uma das partes do risco por determinado
evento incerto.68
Outra hipótese diz respeito ao direito à indenização como contrapartida pelo
exercício do poder de rescisão unilateral. É indubitável que não poderá a Adminis-
tração de antemão estabelecer em todas as suas convenções a exoneração de
responsabilidade pelo exercício de suas prerrogativas unilaterais. Impor irrestrita e
abstratamente à contraparte a renúncia aos seus direitos subjetivos consubstanciaria
evidente abuso de poder.
Nada obstante, poderá ser objeto de convenção a renúncia ao direito à indeniza-
ção quando em situações concretas for identificado um suficiente fundamento jurídico
e econômico para atribuir àquela relação jurídica a característica da precariedade.
Nada impediria, por exemplo, em contratos de serviços decorrentes de situação
emergencial ou em termos aditivos de prorrogação excepcional (respectivamente,
art. 24, IV, e art. 57, §4º, da Lei nº 8.666/1993), a fixação de cláusula de renúncia
à indenização em caso de extinção antecipada do vínculo por força da celebração
de novo contrato resultante da licitação à época pendente.69
Outro exemplo, ainda mais claro: o contrato de permissão de serviço público.
Dentre as diversas tentativas de sua distinção com a concessão de serviço público
68
Nesse sentido, Maurício Portugal Ribeiro e Lucas Navarro Prado: “Essa lógica também presidiu a interpretação
no sentido da atribuição à Administração Pública, pelo art. 65, II, ‘d’, da Lei 8.666/1993, dos riscos de
força maior, caso fortuito, fato do príncipe etc. nos contratos de obras e de prestação de serviços, como
se o contrato não pudesse dispor de forma diferente. Todavia, essa interpretação passa ao largo do fato
de que o dispositivo exige, para que seja possível o reequilíbrio, que o evento seja extracontratual. Assim,
por exemplo, se eventos considerados de força maior tiverem sido tratados no contrato como hipóteses que
não ensejam a recomposição de equilíbrio econômico-financeiro do contrato, então, por certo, não se poderá
recorrer ao art. 65, II, ‘d’. Por isso, pensamos que não há propriamente na Lei 8.666/1993 um sistema
de distribuição de riscos positivado. Aliás, assim deve ser, pois a distribuição de riscos é uma questão
de eficiência econômica, e não axiológica. No caso da Lei 8.666/1993, por força dos parágrafos contidos
no art. 65, os únicos riscos que devem necessariamente restar com o Poder Público são os relativos a (i)
modificação unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, (ii) modificação da legislação
que repercuta nos preços contratados e (iii) danos no caso de supressão de obras por determinação da
Administração [...]. Em relação a todos os demais riscos, no entanto, não há impedimento legal para que
sejam atribuídos livremente a cada uma das partes por meio do contrato” (Comentários à Lei de PPP, São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 122).
69
Essas cláusulas são muito comuns na prática administrativa e não se tem notícia de lhes ter sido questionada
a validade. Recomendando que o termo aditivo de prorrogação excepcional deve consignar a possibilidade de
extinção antecipada do ajuste no caso de novo contrato ser assinado antes do tempo estimado, confira-se o
Parecer nº 07/2016, da Câmara Permanente de Licitações e Contratos Administrativos da Advocacia-Geral
da União.
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6 Conclusão
A partir da análise efetuada, é legítimo assentar algumas conclusões.
Em primeiro lugar, a liberdade de contratar pressupõe a escolha administrativa
entre a própria pessoa pública promover a atividade de que é titular ou, inversamente,
acordar com terceiros a transferência da gestão daquela atividade. Essa fórmula
teórica permite o correto enquadramento das questões associadas aos limites da
decisão de contratar, afastando a concepção tradicional baseada na dicotomia
70
Por todos, citando diversos autores, cf. Marçal Justen Filho, Teoria geral das concessões de serviço público,
São Paulo: Dialética, 2003, p. 115-116, e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Parcerias na Administração Púbica,
5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 148-149.
71
Lei nº 8.987/1995. Art. 37. Considera-se encampação a retomada do serviço pelo poder concedente
durante o prazo da concessão, por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e após
prévio pagamento da indenização, na forma do artigo anterior.
72
Lei nº 8.987/1995. Art. 40. A permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão,
que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto
à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente.
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