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De um ponto n’outro, eis um conto!

Contar, narrar em pequeno espaço, poucos personagens e a imaginação solta.


Por pra fora o que incomoda lá no peito da memória, que insiste em falar, em se libertar,
desoprimir, assim se compõe um conto, fruto da imaginação posta em linguagem, num
estilo.

O escritor em sua seleta característica, observa, olha mais a fundo, e,


incomodado, põe pra fora como vê o mundo, cria, imagina e falseia ou não, com a
realidade. Processo de produção escrita que interage com o leitor lá nos refúgios de sua
sensibilidade. No conto há liberdade, o escritor fantasia e vai além. Os sentimentos,
coisas do mundo da subjetividade representados em figuras, pensamentos, lembranças,
quase uma crônica, quase um conto, quase poesia.

A evolução do conto segue a esse caminho, agora não há regras, porém, o criar
o conto é uma regra, mas, numa situação em que cada criador cria o caminho que
traçará; se o mundo me incomoda, pra você também incomoda. A junção entre escritor e
leitor está na composição de cada escritor, no seu estilo, e, daí então, as diferenças
vistas no modo do fazer literário.

Numa posição de não conforto o leitor deve ir mais a fundo. Lê o conto, porém,
se não formar essa reflexão, num processo de ler e reler, chegar, adentrar a história, daí
essa sua leitura não serve de nada, não sentiu, não levou para o seu lugar íntimo a
leitura.

O conto Amor, de Clarice Lispector é uma dessas joias que o tempo faz objeto
valioso, escrita impar, um sensível estilo intimista da escritora. A personagem central,
Ana, sai à rua, vai fazer compras e na sua volta para a casa dela, no ônibus, quando,
duma freada, cai sua sacola de compras e ela junta tudo depois. A vida dela, que era
toda certinha, por ela controlada, como que numa redoma em seu lar, agora bagunçada,
ovos quebrados, a confusão na cabeça da mulher.

Lispector, na construção de uma rotina doméstica, tira a sua personagem da área


de conforto, põe-na diante do inesperado. Tudo, quando sai ao seu controle a incomoda.
O personagem central de Amor, que desconhece a vida, a realidade das coisas, se
assusta, está agora entre os comuns.

“Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas” e a perda de
controle sobre elas, a presença de um cego quando ela desce do ônibus, mas um cego
que mascava chicles incomoda. Naquele dia tudo acaba sendo diferente na vida de Ana,
ao menos o que ela imaginava, foge tudo abaixo de seus pés. O leitor que montará o
quebra cabeça em sua leitura, não uma leitura passiva, mas, uma que dialoga com cada
trecho do conto.
Por vezes, um título, um exemplo, uma relação metafórica das coisas, tudo isso
pode direcionar o leitor a decifrar o grande enigma. Sequência, um conto de Guimarães
Rosa, do seu livro Primeiras estórias, é outro feliz exemplo de produção textual. O
título do conto antecipa um momento e depois outro. Uma vaquinha que foge de seu
destino atual e quer voltar, segue estrada afora, daí a sequência e, espaço a espaço, passa
rio, passa matas, fazendas.

Numa das fazendas por onde a vaca passa um rapaz a segue e com seu cavalo
segue a vaquinha entre matas, rios, estradas e cantos de pássaros. Por fim, a vaquinha e
o rapaz que a seguia entram num caminho que termina numa fazenda, o destino da
vaquinha. Ao chegar à fazenda o rapaz vê quatro moças, numa delas um click, olhares
se fixam, o rapaz a moça, e, o desfecho no texto: “O mel do maravilhoso, vindo a tais
horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se”.

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