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Estudos Pessoanos

Diogo Filipe Boto Vitor


Nº 154389 29-11-2021

INTRODUÇÃO

Este trabalho consiste numa leitura dos poemas 83 e 108 dos Poemas
1
Inconjunctos de Alberto Caeiro. A escolha destes dois poemas deve-se ao facto de
partilharem uma temática comum, a saber: «a injustiça do mundo» e a atitude a ter
perante o sofrimento que desta decorre. Além disso, parecem fazer referência a um
mesmo interlocutor («o pregador de verdades d’elle») e, nessa medida, cremos que
a leitura de um suscita naturalmente a leitura do outro. Não obstante, a nossa
atenção recairá principalmente sobre o poema 108, uma vez que este parece conter
um ponto crucial para compreender a perspectiva de Caeiro.
O trabalho está divido em três partes. Primeiro, tentamos clarificar o que se
deve entender por «injustiça do mundo». Em seguida, abordamos as diferenças
entre a posição do «pregador» e a de Caeiro. Por fim, procuramos explicar o que
está na base da atitude deste último.
(Os poemas citados encontram-se integralmente transcritos no final.)

Dos dois poemas acima mencionados, o v. 14 do poema 108 é provavelmente


aquele que mais nos capta a atenção:

Haver injustiça é como haver morte.

Confrontados com esta afirmação, a nossa primeira reacção é perguntar:


como? De que modo é que a existência da injustiça se equipara à existência da
morte? Normalmente, tendemos a ter atitudes diferentes em relação a uma e a
outra. Por um lado, acreditamos que é possível alterar as coisas de modo a que
deixem de ser injustas. Basta pensar, por exemplo, no sufrágio político. Votamos
num determinado candidato ou partido porque acreditamos que tal candidato ou
partido é capaz, não só de alterar as coisas, mas, o que é mais, alterá-las para

1
Pessoa, 2016, pp. 102 e 116, respectivamente.
melhor, i.e. é capaz de as tornar mais justas. Por outro lado, não acreditamos que
seja possível contornar a morte, e, se alguém nos tentasse convencer do contrário,
como que nos sentiríamos impelidos a perguntar, como o faz Caeiro no poema 83
(vv. 8-9):
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.

Isto porque, dada a nossa mundividência, não podemos deixar de qualificar


semelhante esforço como inútil. Porém, parece que, para Caeiro, aquele que
pretende acabar com a injustiça e alterar «as cousas humanas» está exactamente na
mesma posição daquele que nos tenta convencer de que é possível contornar a
morte. Assim, pela mesma razão por que não costumamos fazer nada no sentido de
nos furtarmos à inevitabilidade desta, Caeiro prossegue, dizendo no poema 108 (vv.
15-16):
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquillo a que chamam a injustiça do mundo.

Contudo, para compreender melhor a sua atitude, torna-se premente


clarificar o que se deve entender aqui por «injustiça do mundo».
Neste ponto, talvez valha a pena recordar a distinção que o banqueiro do
2
conto «O Banqueiro Anarquista» faz entre injustiça natural e injustiça social, uma
vez que me parece dar conta do conceito de uma forma bastante intuitiva. Diz o
banqueiro que a primeira espécie de injustiça é constituída por desvantagens ao
nível das nossas qualidades naturais, i.e. aquelas qualidades com que um indivíduo
sai do «ventre da mãe»; ao passo que a segunda espécie de injustiça é constituída
por diferenças «postiças», como ser «filho de um milionário» e ter «a vida
facilitada», ou ser «um operário vulgar» e ter de «andar direitinho como um prumo
3
para ser ao menos tratado como gente» . A diferença entre estas duas espécies de
injustiça é clara: não podemos alterar as instâncias da primeira, mas podemos
alterar as da segunda. Um indivíduo baixo não se pode tornar alto, mas um pobre
pode tornar-se rico.
Com isto em mente, regressemos ao poema 108. Este parece ter sido
motivado por um eventual encontro que Caeiro terá tido com «o pregador de

2
Pessoa, 2018.
3
op. cit., pp. 10-11.
verdades d’elle», o qual lhe terá falado de pelo menos duas coisas: i) «do
soffrimento das classes que trabalham» (v. 3); e ii) «da injustiça de uns terem
dinheiro, / E de outros terem fome» (vv. 5-6). Ora, uma vez que a nossa atitude
tende a ser semelhante à do «pregador», cremos que tanto i) como ii) são injustiças
da segunda espécie. Por conseguinte, parece plausível afirmar que «Aquillo a que
chamam a injustiça do mundo» (repare-se no distanciamento da voz enunciadora) é
composto por coisas como i) e ii), i.e. injustiças sociais. Tendo isto em conta,
vejamos o que nos diz Caeiro acerca destes dois pontos.

II

Caeiro nota que o «pregador de verdades d’elle» lhe falou «do soffrimento
das classes que trabalham» e não do sofrimento «das pessoas que soffrem». O
«pregador» parece identificar o primeiro sofrimento com o segundo, mas Caeiro
revela alguma desconfiança em relação a essa identificação. Ao dizer que as
pessoas que sofrem são «afinal quem soffre», Caeiro parece estar a relembrar-nos
que não existe qualquer relação necessária entre as pessoas que trabalham e as
pessoas que sofrem. Isto é, uma pessoa pode trabalhar e não sofrer, bem como
pode sofrer sem trabalhar. Ainda a este respeito, no poema 83, o seu interlocutor,
que presumimos ser o tal «pregador», ter-lhe-á dito que, se «as cousas humanas»
«fossem differentes», as pessoas «soffreriam menos» (vv. 4-5), mas Caeiro desconfia
novamente de uma tal mudança, alegando (v. 12) que

Se as cousas fossem differentes, seriam differentes: eis tudo.

É de notar, também, que esta ideia parece ter uma contraparte no poema
108 (vv. 17-18):
Mil passos que desse para isso [alterar «a injustiça do mundo»]
Eram só mil passos.

Digo contraparte — o que implica que a relação entre ambas não seja de
identidade — porque, apesar de a atitude do seu interlocutor ser a mesma nos dois
poemas, as objecções de Caeiro são diferentes num e noutro e isso vê-se na
diferença entre estas duas citações. O v. 12 do poema 83 trata de dois estados de
coisas diferentes. Por outro lado, ao falarem de «passos», os vv. 17-18 do poema 108
parecem estar a referir-se a um processo (precisamente, o processo que tem como
objectivo criar um estado de coisas diferente). Tendo isto em conta, vejamos,
então, as objecções apresentadas em cada poema.
No poema 83, creio que a principal crítica à atitude do «pregador» se
encontra resumida nos vv. 9-10:

Que tenho eu com o que deveria ser?


O que deve ser é o que não ha.

Afirmações como esta última, que parecem funcionar como critérios


ontológicos, são comuns na poesia de Alberto Caeiro. Neste caso, o que está a ser
dito é que o que existe não é «o que deve ser». Assim, impõe-se a pergunta: o que é
«o que deve ser»?
Depreende-se da leitura do poema que «o que deve ser» constitui um estado
de coisas da mesma espécie daquele que terá sido sugerido pelo interlocutor,
estado esse que se opõe àquele que a expressão «as cousas humanas postas desta
maneira» visa denotar, i.e. o estado de coisas actual. Ora, creio que esta relação é
bastante semelhante, no que concerne a ontologia de Caeiro, à que liga um rasto
ao objecto (metafísico, entenda-se) que o deixou.
4
No poema 94 do mesmo livro, define-se uma contemplação «de longe» (v. 2)
como um olhar de alguém que está «doente» (v. 4) e que, por isso, abarca mais
informação do que aquela que lhe dão os seus sentidos. Neste poema, Caeiro
começa precisamente por estar doente, o que faz com que veja a pétala «dobrada
para traz» (v. 1), i.e. pensa na rosa de que supõe provir e questiona-se como terá
chegado até si. Com efeito, pensar no passado da pétala parece ser a causa da
deformação que nos é sugerida pela expressão «dobrada para traz». Porém, depois
de se curar (no v.4: «chego de longe de repente»), conclui que (vv. 5-7):

Nenhum vento te trouxe agora.


Agora estás aqui.
O que tu foste não és tu, se não toda a rosa estava aqui.

Assim, parece que o critério ontológico são (por oposição a «doente») é: um


objecto existe se e só se existir agora e aqui. Por conseguinte, a rosa em que Caeiro
pensou ao olhar para a pétala não existe, pois, ainda que exista agora, certamente
não existe aqui: «Não há rosas no meu quintal» (v.3).
4
op. cit., p. 107
Neste sentido, poder-se-á dizer que o «pregador de verdades d’elle»
contempla «de longe» a questão que visa tratar. Ao falar «de civilização, e de não
dever ser» (v. 1), o «pregador» está a deformar o objecto que tem à sua frente. Ou
seja, do mesmo modo que, estando doente, Caeiro vê a pétala «dobrada para traz»,
poder-se-á dizer que o interlocutor do poema 83, ao imaginar um estado de coisas
que considera mais justo, está a ver o estado de coisas actual dobrado para a frente,
o que significa que está a ver algo que não existe e, consequentemente, que não
está a ver as coisas como elas realmente são, i.e. como elas são agora e aqui. Em
suma, a objecção do poema 83 parece ser: a atitude do pregador está errada porque
implica ver o que não existe. Note-se, também, como isto parece dar conta da
insistência de Caeiro (vv. 6 e 13) no carácter pessoal da proposta do «pregador»
(aliás, «de verdades d’elle»), pois é uma ideia recorrente na sua poesia a de que uma
5
pessoa, quando vê o que não existe, não está senão a ver-se a ela própria .
Por outro lado, no poema 108, a principal objecção de Caeiro parece
centrar-se no facto de o seu interlocutor «pensar na infelicidade dos outros» (v. 9) e
tentar curá-la «de fora» (v. 11), quando, na verdade (vv. 10-13),

(...) a infelicidade dos outros é d’elles,


Ella não se cura de fóra,
Porque soffrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Devemos, então, concluir que, para Caeiro, a infelicidade se cura de dentro?


Vejamos.
No ponto ii), o «pregador» qualifica como injusto o facto de «uns terem
dinheiro» e «outros terem fome». Porém, sempre desconfiado, Caeiro põe em causa
a fome a que o «pregador» se refere, dizendo (vv. 6-7):

(...) não sei se é fome de comer,


Ou se é só fome da sobremesa alheia.

Ora, as expressões «fome de comer» e «fome da sobremesa alheia» parecem


dizer respeito, respectivamente, a uma necessidade e a uma futilidade. A
sobremesa é o que se come depois de comer. É, por assim dizer, um luxo, um

5
Vejam-se, por exemplo, os poemas X e XVIII do Guardador de Rebanhos, ou o poema 71 dos Poemas
Inconjunctos.
bónus. Daí que Caeiro se pergunte «se é só fome da sobremesa alheia».
Entendemos, assim, que a «fome da sobremesa alheia» é uma fome de algo que não
faz falta, ao passo que a «fome de comer» parece ser uma fome de algo que faz
falta. Além disso, podemos dizer que a primeira extravasa o domínio do indivíduo,
uma vez que se refere a algo que lhe é alheio, enquanto que a segunda não diz
respeito senão a quem a tem. Isto é, quem tem «fome de comer» tem fome
independentemente do que os outros têm, ao contrário do que acontece com a
«fome da sobremesa alheia», que depende da existência do luxo dos outros.
Tendo isto em conta, torna-se possível estabelecer um paralelo entre os dois
sofrimentos de que falámos atrás e estas duas fomes. Abordar o problema da fome
visando a «fome de comer» parece ser equivalente a abordar o problema do
sofrimento visando o sofrimento «das pessoas que soffrem». Do mesmo modo,
abordar o problema da fome visando a «fome da sobremesa alheia» parece ser
equivalente a abordar o problema do sofrimento visando o sofrimento «das classes
que trabalham». Daqui se conclui que apenas no primeiro caso se está a tratar do
que realmente importa, pois, se afinal quem sofre são as pessoas que sofrem,
também se pode dizer que afinal quem tem fome são as pessoas que têm «fome de
comer».
À luz destas considerações, percebemos que, para Caeiro, questões como
«ter falta de tinta / Ou o caixote não ter aros de ferro» são questões da ordem da
«fome da sobremesa alheia». Assim, visto que ter realmente fome não é ter «fome
da sobremesa alheia», torna-se claro que sofrer por «ter falta de tinta / Ou o caixote
não ter aros de ferro» não é realmente sofrer. Com isto em mente, talvez possamos
ainda dizer, seguindo o mesmo raciocínio, que, tal como a verdadeira fome, a
«fome de comer», não diz respeito senão ao indivíduo que a tem, também o
verdadeiro sofrimento não diz respeito senão ao indivíduo que sofre. Se tal for o
caso, não é de admirar que nos seja dito que a infelicidade «não se cura de fóra», e,
já agora, que «ter falta de tinta [etc.]» não é sofrer, uma vez que questões como esta
se situam no exterior do indivíduo. Por isso, e respondendo à pergunta de há
pouco, é, de facto, bastante possível que Caeiro esteja aqui a dizer que a
infelicidade ou o sofrimento não se curam senão de dentro.
III

Como vimos no início deste trabalho, Caeiro equipara a existência da


injustiça à existência da morte (v. 14), e declara, por isso, ser inútil todo o esforço
no sentido de abolir a primeira (da mesma forma que é inútil tentar abolir a
segunda). Dissemos que esta era uma atitude estranha e que a nossa intuição nos
impelia a tomar uma posição mais próxima da do «pregador». No entanto, esta
talvez seja uma leitura demasiado simplista do poema.
Depreende-se que a atitude do «pregador» em relação à injustiça nasce de
uma vontade de erradicar o sofrimento que vê, nomeadamente o «das classes que
trabalham» (para dar conta do ponto ii), presumimos que o que faz o «pregador»
«zangar-se» com a «injustiça de uns terem dinheiro, / E de outros terem fome» é o
facto de estes últimos, por «terem fome», padecerem de algum tipo de sofrimento).
Percebemos também que as eventuais alterações que gostaria de fazer nesse
sentido procurariam tratar de questões como faltas de tinta, caixotes sem aros de
ferro, etc. Mas já vimos que, segundo Caeiro, não é aí que reside o verdadeiro
sofrimento. Tendo isto em conta, podemos perguntar: onde, então, reside o
verdadeiro sofrimento para Caeiro?
A este respeito, o facto de a comparação entre injustiça e morte surgir
imediatamente após nos ser dito o que sofrer não é afigura-se-me relevante. A
minha proposta é a seguinte: talvez não seja completamente descabido dizer que,
ao equiparar a existência da injustiça à existência da morte, Caeiro está a apontar
na direcção daquilo que para ele constitui o verdadeiro sofrimento: o processo de
lidar com a morte.
Depois de fazer esta comparação, Caeiro passa a explicar-nos o modo como
lida (leia-se: o modo como acha que se deve lidar) com a injustiça, que, não nos
esqueçamos, é a fonte do sofrimento que o «pregador» pretende erradicar. Porém,
como notámos logo no início do trabalho, a atitude de Caeiro em relação à
injustiça parece mais uma atitude a ter perante a morte. Ora, isto é assim, creio,
porque é a morte que dita essa atitude.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar eguaes.


Para qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?
Assim termina o poema (vv. 21-22), e a ideia chave aqui parece ser a de que,
no final de contas, torna-se fútil falar d’«Aquillo a que chamam a injustiça do
mundo», uma vez que todos os indivíduos, independentemente de serem ricos ou
pobres, sofrerão o mesmo destino, i.e. morrerão — tal como as duas partes da
6
laranja serão igualmente comidas, apesar da diferença entre ambas . Com isto em
mente, torna-se evidente que a morte ocupa uma posição subordinante em relação
à injustiça, sendo por isso natural que a atitude que devemos ter perante esta seja
influenciada pela atitude que devemos ter perante aquela.

Acceito a injustiça como acceito uma pedra não ser redonda,


E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Por conseguinte, creio que podemos ler estes versos (vv. 19-20) substituindo
«injustiça» por «morte». Mas o que significa aceitar que uma pedra seja redonda ou
que um sobreiro não tenha nascido pinheiro? Talvez a melhor abordagem a esta
questão seja a mais trivial. Um sobreiro não nasceu pinheiro porque não foi isso
que aconteceu. Uma pedra que não é redonda não o é porque o que aconteceu
determinou que não o fosse. Se as coisas se tivessem passado de outro modo, é
possível que o sobreiro tivesse nascido pinheiro ou que a pedra fosse agora
redonda. Mas como não foi isso que aconteceu, nem o sobreiro é pinheiro, nem a
pedra é redonda. Aplicando este raciocínio à morte, Caeiro parece estar a dizer
que a aceita simplesmente porque foi isso que (lhe) aconteceu. Isto é, aconteceu
7
que, pelo facto de ter nascido humano , Caeiro vai morrer, e o que está aqui a ser
dito é que Caeiro aceita que vai morrer precisamente em virtude desse facto.
Esta é realmente uma posição difícil de adoptar (porque ideal?). Contudo,
parece estar alinhada com o sentimento que terá originado a «personagem» Caeiro:

6
Aliás, poder-se-á mesmo dizer que Caeiro se recusa a admitir que exista sequer injustiça. Pelo
menos é isso que a pergunta do último verso do poema parece implicar. Para não falar do
fraseamento do v. 16: «Aquillo a que chamam (...)». Como quem diz: esse estado de coisas que
alguns descrevem de determinado modo, mas que, na realidade, não é de todo desse modo (Caeiro
diria, talvez: é apenas do modo que é).
7
Evidentemente, estou aqui a passar ao lado do problema ontológico dos heterónimos. Contudo,
creio que não será controverso afirmar que Caeiro é humano, embora não tenha sido (seja?)
humano da mesma forma que Pessoa foi humano. É um facto que a consciência da mortalidade é
explicitamente abordada em alguns dos seus poemas, e isso é tudo o que importa para o meu
argumento.
(...) desde a origem (conhecida), a consciência poética de Pessoa glosa o abismo que
separa consciência e realidade, abismo que vive como insuportável ausência de si a
si mesmo e de si mesmo ao mundo. A cura fulgurante para o que não tem cura
8
manifestar-se-á justamente sob a forma Caeiro (...)

Segundo Eduardo Lourenço, portanto, Caeiro surgiu para curar uma certa
«ausência de si a si mesmo e de si mesmo ao mundo» que teria acometido «a
consciência poética» de Pessoa. Ora, que melhor ilustração deste sentimento que o
problema da morte? E que melhor forma de o tratar que aceitando a morte como se
aceita que um sobreiro não nasceu pinheiro? Assim, para concluir, dada esta
função de Caeiro, creio que compreenderemos melhor o contraste entre este e o
«pregador» se tivermos em conta o que o próprio Pessoa pensava acerca de tudo
isto:

Não sei mesmo se um proletário tem alma; se tem, é possível que a tenha. Mas,
ainda assim, eu duvido. Morrer é uma parte importante da vida. Deve saber-se
9
morrer — e um pobre ou um grosseiro nunca sabe morrer.

(3002 palavras)

8
Lourenço, p. 40.
9
Pessoa, 2003, p. 373.
POEMA 83

Fallas de civilização, e de não dever ser,


Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos soffrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas d’esta maneira.
Dizes que se fossem differentes, soffreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Que tenho eu com o que deveria ser?
O que deve ser é o que não ha.
Se as cousas fossem differentes, seriam differentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a machina de fazer felicidade!
POEMA 94

Petala dobrada para traz da rosa que outros diriam de velludo,


Apanho-te do chão e, de perto, contemplo-te de longe.
Não ha rosas no meu quintal: que vento te trouxe?
Mas chego de longe de repente. Estive doente um momento.
Nenhum vento te trouxe agora.
Agora estás aqui.
O que foste não és tu, senão toda a rosa estava aqui.
POEMA 108

Hontem o pregador de verdades d’elle


Fallou outra vez commigo.
Fallou do soffrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que soffrem, que é afinal quem soffre).
Fallou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Fallou de tudo quanto pudesse fazel-o zangar-se.

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estupido se não sabe que a infelicidade dos outros é d’elles,
Ela não se cura de fóra,
Porque soffrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Haver injustiça é como haver morte.


Eu nunca daria um passo para alterar
Aquillo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Acceito a injustiça como acceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar eguaes.


Para qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?
BIBLIOGRAFIA

LOURENÇO, Eduardo (2000). “A curiosa singularidade de «mestre Caiero»” in


Pessoa Revisitado, Gradiva, 1ª edição, pp. 37-49.

PESSOA, Fernando (2003). «Reflexões Pessoais» in Escritos Autobiográficos,


Automáticos e de Reflexão Pessoal (ed. Richard Zenith), Assírio & Alvim, pp. 347-87.

id. (2014). “Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro” in Obra Completa de
Álvaro de Campos (ed. J. Pizarro e A. Cardiello), Tinta-da-China, 1ª edição, pp.
453-85.

id. (2016). Obra Completa de Alberto Caeiro (ed. J. Pizarro e P. Ferrari),


Tinta-da-China, 1ª edição.

id. (2018). O Banqueiro Anarquista, Antígona, 9ª edição.

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