Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
INTRODUÇÃO
Este trabalho consiste numa leitura dos poemas 83 e 108 dos Poemas
1
Inconjunctos de Alberto Caeiro. A escolha destes dois poemas deve-se ao facto de
partilharem uma temática comum, a saber: «a injustiça do mundo» e a atitude a ter
perante o sofrimento que desta decorre. Além disso, parecem fazer referência a um
mesmo interlocutor («o pregador de verdades d’elle») e, nessa medida, cremos que
a leitura de um suscita naturalmente a leitura do outro. Não obstante, a nossa
atenção recairá principalmente sobre o poema 108, uma vez que este parece conter
um ponto crucial para compreender a perspectiva de Caeiro.
O trabalho está divido em três partes. Primeiro, tentamos clarificar o que se
deve entender por «injustiça do mundo». Em seguida, abordamos as diferenças
entre a posição do «pregador» e a de Caeiro. Por fim, procuramos explicar o que
está na base da atitude deste último.
(Os poemas citados encontram-se integralmente transcritos no final.)
1
Pessoa, 2016, pp. 102 e 116, respectivamente.
melhor, i.e. é capaz de as tornar mais justas. Por outro lado, não acreditamos que
seja possível contornar a morte, e, se alguém nos tentasse convencer do contrário,
como que nos sentiríamos impelidos a perguntar, como o faz Caeiro no poema 83
(vv. 8-9):
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
2
Pessoa, 2018.
3
op. cit., pp. 10-11.
verdades d’elle», o qual lhe terá falado de pelo menos duas coisas: i) «do
soffrimento das classes que trabalham» (v. 3); e ii) «da injustiça de uns terem
dinheiro, / E de outros terem fome» (vv. 5-6). Ora, uma vez que a nossa atitude
tende a ser semelhante à do «pregador», cremos que tanto i) como ii) são injustiças
da segunda espécie. Por conseguinte, parece plausível afirmar que «Aquillo a que
chamam a injustiça do mundo» (repare-se no distanciamento da voz enunciadora) é
composto por coisas como i) e ii), i.e. injustiças sociais. Tendo isto em conta,
vejamos o que nos diz Caeiro acerca destes dois pontos.
II
Caeiro nota que o «pregador de verdades d’elle» lhe falou «do soffrimento
das classes que trabalham» e não do sofrimento «das pessoas que soffrem». O
«pregador» parece identificar o primeiro sofrimento com o segundo, mas Caeiro
revela alguma desconfiança em relação a essa identificação. Ao dizer que as
pessoas que sofrem são «afinal quem soffre», Caeiro parece estar a relembrar-nos
que não existe qualquer relação necessária entre as pessoas que trabalham e as
pessoas que sofrem. Isto é, uma pessoa pode trabalhar e não sofrer, bem como
pode sofrer sem trabalhar. Ainda a este respeito, no poema 83, o seu interlocutor,
que presumimos ser o tal «pregador», ter-lhe-á dito que, se «as cousas humanas»
«fossem differentes», as pessoas «soffreriam menos» (vv. 4-5), mas Caeiro desconfia
novamente de uma tal mudança, alegando (v. 12) que
É de notar, também, que esta ideia parece ter uma contraparte no poema
108 (vv. 17-18):
Mil passos que desse para isso [alterar «a injustiça do mundo»]
Eram só mil passos.
Digo contraparte — o que implica que a relação entre ambas não seja de
identidade — porque, apesar de a atitude do seu interlocutor ser a mesma nos dois
poemas, as objecções de Caeiro são diferentes num e noutro e isso vê-se na
diferença entre estas duas citações. O v. 12 do poema 83 trata de dois estados de
coisas diferentes. Por outro lado, ao falarem de «passos», os vv. 17-18 do poema 108
parecem estar a referir-se a um processo (precisamente, o processo que tem como
objectivo criar um estado de coisas diferente). Tendo isto em conta, vejamos,
então, as objecções apresentadas em cada poema.
No poema 83, creio que a principal crítica à atitude do «pregador» se
encontra resumida nos vv. 9-10:
5
Vejam-se, por exemplo, os poemas X e XVIII do Guardador de Rebanhos, ou o poema 71 dos Poemas
Inconjunctos.
bónus. Daí que Caeiro se pergunte «se é só fome da sobremesa alheia».
Entendemos, assim, que a «fome da sobremesa alheia» é uma fome de algo que não
faz falta, ao passo que a «fome de comer» parece ser uma fome de algo que faz
falta. Além disso, podemos dizer que a primeira extravasa o domínio do indivíduo,
uma vez que se refere a algo que lhe é alheio, enquanto que a segunda não diz
respeito senão a quem a tem. Isto é, quem tem «fome de comer» tem fome
independentemente do que os outros têm, ao contrário do que acontece com a
«fome da sobremesa alheia», que depende da existência do luxo dos outros.
Tendo isto em conta, torna-se possível estabelecer um paralelo entre os dois
sofrimentos de que falámos atrás e estas duas fomes. Abordar o problema da fome
visando a «fome de comer» parece ser equivalente a abordar o problema do
sofrimento visando o sofrimento «das pessoas que soffrem». Do mesmo modo,
abordar o problema da fome visando a «fome da sobremesa alheia» parece ser
equivalente a abordar o problema do sofrimento visando o sofrimento «das classes
que trabalham». Daqui se conclui que apenas no primeiro caso se está a tratar do
que realmente importa, pois, se afinal quem sofre são as pessoas que sofrem,
também se pode dizer que afinal quem tem fome são as pessoas que têm «fome de
comer».
À luz destas considerações, percebemos que, para Caeiro, questões como
«ter falta de tinta / Ou o caixote não ter aros de ferro» são questões da ordem da
«fome da sobremesa alheia». Assim, visto que ter realmente fome não é ter «fome
da sobremesa alheia», torna-se claro que sofrer por «ter falta de tinta / Ou o caixote
não ter aros de ferro» não é realmente sofrer. Com isto em mente, talvez possamos
ainda dizer, seguindo o mesmo raciocínio, que, tal como a verdadeira fome, a
«fome de comer», não diz respeito senão ao indivíduo que a tem, também o
verdadeiro sofrimento não diz respeito senão ao indivíduo que sofre. Se tal for o
caso, não é de admirar que nos seja dito que a infelicidade «não se cura de fóra», e,
já agora, que «ter falta de tinta [etc.]» não é sofrer, uma vez que questões como esta
se situam no exterior do indivíduo. Por isso, e respondendo à pergunta de há
pouco, é, de facto, bastante possível que Caeiro esteja aqui a dizer que a
infelicidade ou o sofrimento não se curam senão de dentro.
III
Por conseguinte, creio que podemos ler estes versos (vv. 19-20) substituindo
«injustiça» por «morte». Mas o que significa aceitar que uma pedra seja redonda ou
que um sobreiro não tenha nascido pinheiro? Talvez a melhor abordagem a esta
questão seja a mais trivial. Um sobreiro não nasceu pinheiro porque não foi isso
que aconteceu. Uma pedra que não é redonda não o é porque o que aconteceu
determinou que não o fosse. Se as coisas se tivessem passado de outro modo, é
possível que o sobreiro tivesse nascido pinheiro ou que a pedra fosse agora
redonda. Mas como não foi isso que aconteceu, nem o sobreiro é pinheiro, nem a
pedra é redonda. Aplicando este raciocínio à morte, Caeiro parece estar a dizer
que a aceita simplesmente porque foi isso que (lhe) aconteceu. Isto é, aconteceu
7
que, pelo facto de ter nascido humano , Caeiro vai morrer, e o que está aqui a ser
dito é que Caeiro aceita que vai morrer precisamente em virtude desse facto.
Esta é realmente uma posição difícil de adoptar (porque ideal?). Contudo,
parece estar alinhada com o sentimento que terá originado a «personagem» Caeiro:
6
Aliás, poder-se-á mesmo dizer que Caeiro se recusa a admitir que exista sequer injustiça. Pelo
menos é isso que a pergunta do último verso do poema parece implicar. Para não falar do
fraseamento do v. 16: «Aquillo a que chamam (...)». Como quem diz: esse estado de coisas que
alguns descrevem de determinado modo, mas que, na realidade, não é de todo desse modo (Caeiro
diria, talvez: é apenas do modo que é).
7
Evidentemente, estou aqui a passar ao lado do problema ontológico dos heterónimos. Contudo,
creio que não será controverso afirmar que Caeiro é humano, embora não tenha sido (seja?)
humano da mesma forma que Pessoa foi humano. É um facto que a consciência da mortalidade é
explicitamente abordada em alguns dos seus poemas, e isso é tudo o que importa para o meu
argumento.
(...) desde a origem (conhecida), a consciência poética de Pessoa glosa o abismo que
separa consciência e realidade, abismo que vive como insuportável ausência de si a
si mesmo e de si mesmo ao mundo. A cura fulgurante para o que não tem cura
8
manifestar-se-á justamente sob a forma Caeiro (...)
Segundo Eduardo Lourenço, portanto, Caeiro surgiu para curar uma certa
«ausência de si a si mesmo e de si mesmo ao mundo» que teria acometido «a
consciência poética» de Pessoa. Ora, que melhor ilustração deste sentimento que o
problema da morte? E que melhor forma de o tratar que aceitando a morte como se
aceita que um sobreiro não nasceu pinheiro? Assim, para concluir, dada esta
função de Caeiro, creio que compreenderemos melhor o contraste entre este e o
«pregador» se tivermos em conta o que o próprio Pessoa pensava acerca de tudo
isto:
Não sei mesmo se um proletário tem alma; se tem, é possível que a tenha. Mas,
ainda assim, eu duvido. Morrer é uma parte importante da vida. Deve saber-se
9
morrer — e um pobre ou um grosseiro nunca sabe morrer.
(3002 palavras)
8
Lourenço, p. 40.
9
Pessoa, 2003, p. 373.
POEMA 83
Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estupido se não sabe que a infelicidade dos outros é d’elles,
Ela não se cura de fóra,
Porque soffrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!
id. (2014). “Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro” in Obra Completa de
Álvaro de Campos (ed. J. Pizarro e A. Cardiello), Tinta-da-China, 1ª edição, pp.
453-85.