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FUNDAMENTOS

DE QUÍMICA
MEDICINAL

Carlos Gustavo
Lopes da Silva
Anestésicos locais
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Identificar o mecanismo de ação dos anestésicos locais, bem como


reações adversas e indicações clínicas.
„„ Compreender a relação entre estrutura química e atividade farmaco-
lógica dos diferentes anestésicos locais.
„„ Analisar de forma química e farmacológica as principais interações e
incompatibilidades medicamentosas.

Introdução
A anestesia local, também denominada bloqueio de condução, é a perda
da sensibilidade parcial ou de um território do organismo obtida pela
aplicação de uma substância capaz de bloquear localmente a condução
dos influxos nervosos provenientes de uma determinada área corporal
(ZANINI; OGA; BATISTUZZO, 2018).
Os anestésicos locais são compostos químicos que produzem anes-
tesia local sem lesar os tecidos de maneira permanente e que precisa ser
reversível e controlável (ZANINI; OGA; BATISTUZZO, 2018).
Neste capítulo, você vai estudar os anestésicos locais, identificar seu
mecanismo de ação, as relações da estrutura química com a atividade
farmacológica e as principais interações medicamentosas dessa classe
de fármaco.

Mecanismo de ação dos anestésicos locais,


reações adversas e indicações clínicas
Os anestésicos locais bloqueiam a condução dos impulsos sensoriais e, em
concentrações mais altas, os impulsos motores da periferia ao sistema nervoso
central (SNC), pois os canais de Na+ são bloqueados, prevenindo o aumento
transitório na permeabilidade da membrana do nervo ao Na+, que é necessário
2 Anestésicos locais

para o potencial de ação. Uma vez bloqueados esses canais, a sensação não
pode ser transmitida desde a fonte de estímulo até o cérebro, como podemos
observar na Figura 1.
O início e a duração da ação dos anestésicos locais recebem influência de
diversos fatores, como o pH do tecido, a morfologia dos nervos, a concentração,
o pK e a lipossolubilidade do fármaco. Entre esses fatores se destacam como
principais o pK e o pH dos tecidos (WHALEN; FINKEL; PANAVELIL, 2016).
No pH fisiológico, esses compostos são ionizados e interagem com o
receptor proteico do canal de Na+, inibindo sua função e produzindo anestesia
local. O pH pode diminuir em locais infectados, retardando o início da ação
ou mesmo impedindo o efeito da anestesia, além do que, dentro dos limites,
maior concentração ou lipossolubilidade melhoram um pouco o efeito dos
anestésicos (WHALEN; FINKEL; PANAVELIL, 2016).
A duração da ação depende do tempo que o anestésico permanece pró-
ximo do nervo bloqueando os canais de Na+. Os anestésicos locais provocam
vasodilatação, levam à rápida difusão para fora do local de ação e diminuem
a duração quando esses fármacos são administrados sozinhos. Por isso, ao
acrescentar um vasoconstritor como epinefrina, a velocidade de absorção e
de difusão do anestésico local diminui, minimizando a toxicidade sistêmica
e aumentando a duração de ação.

As técnicas de administração dos anestésicos locais incluem:


„„ via tópica;
„„ infiltração;
„„ bloqueio de nervo periférico;
„„ bloqueio neuroaxial (espinal, epidural ou caudal).

Os anestésicos locais são indicados para:

„„ aplicação tópica em queimaduras;


„„ aplicação tópica em pequenos cortes;
„„ injeções em tratamento dentário;
„„ bloqueio epidural em cirurgias de grande porte;
„„ bloqueio espinal (intratecal) em cirurgias de grande porte.
Difusão pela Canal de Na+
membrana
–H+
+
Fármaco Fármaco
+H+
Lado externo
Na+

Receptor
Fármaco
Na+

Fármaco+
Lado interno

Difusão citoplasmática

Fármaco –H+ Fármaco+

+H+
Figura 1. Mecanismo de ação dos anestésicos locais.
Fonte: Whalen, Finkel e Panavelil (2016, p. 186).
Anestésicos locais
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4 Anestésicos locais

A função hepática não afeta a duração da anestesia local, pois é determinada pela
redistribuição e não pela biotransformação. Alguns anestésicos locais têm outros
usos terapêuticos, como, por exemplo, a lidocaína, que p ode ser utilizada como um
antiarrítmico intravenoso (IV).

Relação entre estrutura química e


atividade farmacológica
Existe uma grande variedade de anestésicos locais e todos eles apresentam
semelhanças em sua estrutura química. De modo geral, existe uma estrutura
fundamental comum composta de:

„„ uma parte lipofílica, que consiste em uma porção aromática;


„„ uma cadeia intermediária alquílica geralmente com dois átomos de
carbono;
„„ uma parte hidrofílica representada por uma amina secundária ou
terciária.

A única exceção importante é o p-aminobenzoato de etila (benzocaína),


que não tem em sua molécula o grupamento amina. A junção entre o grupa-
mento intermediário e o anel aromático geralmente se faz por ligação éster
(procaína, tetracaína, cocaína, benzocaína) ou amida (lidocaína, prilocaína,
mepivacaína, bupivacaína, etidocaína).
Com base nessas características da cadeia intermediária, os anestésicos
locais podem ser divididos em ésteres, amidas e outros, conforme apresenta
o Quadro 1 (ZANINI; OGA; BATISTUZZO, 2018).

Quadro 1. Divisão dos anestésicos com base nas características da cadeia intermediária

Ésteres Procaína, cocaína, tetracaína, piperocaína

Amidas Lidocaína, prilocaína, mepivacaína, bupivacaína, dibucaína, etidocaína

Outros Fenocaína, promoxina, dimetisoquina, álcool etílico e álcool benzílico.


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Os anestésicos locais possuem uma estrutura uniforme que, de modo geral,


são aminas secundárias ou terciárias. O nitrogênio é ligado a uma porção
lipofílica com frequência, um sistema de anéis aromáticos por meio de uma
cadeia intermediária.
A função amina significa que, nos anestésicos locais, existem aminas
neutras e/ou como cátion amônio carregado com carga positiva, dependendo
de sua constante de dissociação (calor pK) e do valor do pH do meio. O pK
dos anestésicos típicos fica entre 7,5 e 9.
Na forma protonada, a molécula possui uma porção polar hidrofílica (ni-
trogênio protonado) e uma porção apolar lipofílica (sistema de anel), sendo,
portanto, anfílica. No pH fisiológico, e dependendo do pK, de 5 até 50% do
fármaco ativo podem estar presentes na forma lipofílica 1 não carregada. Essa
proporção é importante, porque representa a forma que o anestésico local
permeia a membrana lipídica e que deve assumir sua forma catiônica anfílica
para exercer sua ação (LULLMANN; MORH; HEIN, 2017).
A Figura 2 apresenta a estrutura química de alguns anestésicos locais.
Podemos observar um componente hidrofóbico (aromático na cor preta), uma
região de ligação (cor laranja) e uma amina substituída (região hidrofílica na
cor vermelha). A procaína é o protótipo dos anestésicos locais do tipo éster, em
contrapartida, a lidocaína é o protótipo dos anestésicos locais do tipo amida.

Figura 2. Estrutura química de alguns anestésicos locais.


Fonte: Hilal-Dandan e Brunton (2015, cap. 20).
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Os anestésicos locais utilizados de forma clínica são os ésteres ou as ami-


das ácidas. Os anestésicos locais do tipo éster já estão sujeitos à inatividade
pelas esterases teciduais, o que se torna uma vantagem, pois reduz o risco de
intoxicação sistêmica; porém se torna uma desvantagem pelo fato da rápida
inativação, que leva a uma curta duração da ação de anestesia do local (ZA-
NINI; OGA; BATISTUZZO, 2018).
A procaína não pode ser utilizada como anestésico de superfície, pois é
inativada rapidamente em velocidade maior do que sua penetração na derme
ou na mucosa. Um de seus derivados, a cloroprocaína, é utilizada em anestesia
espinal.
A lidocaína é hidrolisada principalmente no fígado por meio da desal-
quilação oxidativa no nitrogênio. É considerada um bom anestésico local em
soluções de 0,25 a 1%. Em anestesia de superfície, é utilizada na forma de
pomadas (géis) a 5%.
A ropivacaína é o S-enantiômero de um derivado da bupivacaína, tem longa
duração de ação (várias horas) e é ideal para anestesias nas proximidades da
medula.
A benzocaína é a representante dos anestésicos locais que não possui
átomo de nitrogênio que possa ser protonado em pH fisiológico, por isso é
utilizada apenas como anestésico de superfície. Para anestesia superficial há
o polidocanol (macrogol lauril éter, lauromacrogol) não carregado, que possui
a seguinte fórmula:

CH3 – (CH2)11 – (O-CH2-CH2)9-OH

Esse fármaco se constitui de uma porção hidrofóbica e uma hidrofílica. Em


concentrações elevadas, o polidocanol é tóxico aos tecidos e é utilizado pata
atrofiar, por exemplo, varizes esofágicas na cirrose hepática (LULLMANN;
MORH; HEIN, 2017).
No Quando 2, apresentamos as propriedades farmacológicas de alguns
anéstesicos locais:
Anestésicos locais 7

Quadro 2. Propriedades farmacológicas de alguns anestésicos locais

Amidas (lidocaína,
Ésteres (procaína, bupivacaína,
Características cloroprocaína, ropivacaína,
tetracaína, cocaína) mepivacaína,
prilocaína)

Biotransformação Rápida pela colinesterase Lenta, hepática


plasmática

Toxicidade sistêmica Pouco provável Mais provável

Reações alérgicas Possível — forma derivados Muito rara


do ácido 4-aminobenzóico

Estabilidade em solução Hidrolisa em ampolas Muito estável


(calor, sol) quimicamente

Inicio de ação Lenta como regra geral Moderada à rápida

pK Maior do que o pH Próximo do pH


fisiológico (8,5-8,9) fisiológico (7,6-8,1)

Fonte: Whalen, Finkel e Panavelil (2016, p. 188).

No Quadro 3, são apresentadas a potência, o início e a duração de alguns


fármacos.

Quadro 3. Potência, início e duração de alguns fármacos

Fármaco Potência Início Duração

Procaína Baixa Rápido Curta

Cloroprocaína Baixa Rápido Curta

Tetracaína Alta Lento Longa (espinal)

Lidocaína Baixa Rápido Intermediária

Mepivacaína Baixa Moderado Intermediária

Bupivacaína Alta Lento Longa

Ropivacaína Alta Moderado Longa

Fonte: Whalen, Finkel e Panavelil (2016, p. 188).


8 Anestésicos locais

Principais interações e incompatibilidades


medicamentosas
Os anestésicos locais podem ser aplicados por infiltração no tecido a ser
anestesiado (anestesia infiltrativa), por injeção próxima ao ramo do nervo que
fornece fibras sensitivas à região a ser anestesiada (anestesia de condução, no
caso dos nervos, e anestesia espinal, na medula espinal) ou pela aplicação na
superfície da pele ou mucosa (anestesia se superfície). Independentemente
do caso, o anestésico local precisa difundir-se até o nervo envolvido a partir
de seu local de aplicação no tecido ou sobre a pele (WHALEN; FINKEL;
PANAVELIL, 2016).
Reações alérgicas ao uso dos anestésicos locais são bastante comuns,
mas, de modo geral, os registros de alergias se referem aos efeitos colaterais
da epinefrina acrescentada ao anestésico. As verdadeiras alergias a um anes-
tésico local amida são muito raras, embora o éster procaína seja um pouco
mais alergênico.
A alergia a um éster exclui o uso de outro éster, porque o componente aler-
gênico é o metabólito ácido paraminobenzoico produzido por todos os ésteres.
Em contrapartida, a alergia à amida não exclui o uso de outra (WHALEN;
FINKEL; PANAVELIL, 2016).

No caso de gestantes, é necessário um cuidado em relação aos anestésicos locais,


pois as amidas costumam atravessar a barreira placentária por apresentarem menor
grau de ligação proteica, como a lidocaína e a mepivacaína, que, em hipótese alguma
devem ser utilizadas em razão do alto grau de toxicidade para recém-nascidos. Nesses
casos, devem ser indicadas a ropivacaína ou a bupivacaína.

O local de ação dos anestésicos locais é o canal de Na+ rápido que, com sua
abertura, desencadeia o potencial de ação. Sendo assim, temos outros tecidos
que funcionam com os canais de Na+ rápidos, como as células nervosas do
cérebro, dos músculos e os tecidos condutores especializados do coração.
Anestésicos locais 9

Assim, a ação dos anestésicos locais não é limitada ao tecido nervoso,


por causa disso podem ocorrer efeitos adversos graves quando os anestésicos
entram na corrente sanguínea de forma muito rápida ou em grande concentração
(LULLMANN; MORH; HEIN, 2017), que podem ser:

„„ no coração, a condução do impulso é alterada e pode provocar bloqueio


atrioventricular ou, em casos mais graves, a parada ventricular;
„„ no SNC, diversas regiões são perturbadas, resultando em perda da
consciência e em desenvolvimento de convulsões.

Como não há antídoto específico disponível contra os anestésicos locais,


são necessárias contramedidas sintomáticas imediatas. Se os sinais de inibição
cardíaca forem predominantes, deve ser administrada epinefrina IV ou, se
estiver presente toxicidade ao SNC, é preciso administrar anticonvulsivantes
como o diazepan IV.
Com relação à administração de um anestésico local em crianças, é preciso
ter cuidado. Deve ser feito o cálculo baseado na sua massa corporal para evitar
dose excessiva acidental. Também é preciso tomar cuidado na administração de
anestésicos em pacientes idosos, pois a função hepática pode ser comprometida.
Além disso, a dose de epinefrina deve ser reduzida para não haver problemas
cardiovasculares (LULLMANN; MORH; HEIN, 2017),
A adrenalina atua na vasoconstrição local, ajuda na ação do anestésico local,
mas também auxilia a perda sanguínea em casos de trauma. Ainda pode-se
usar também o bicarbonato, que aumenta o pH do meio e, com isso, melhora
a ação da anestesia. A glicose é utilizada algumas vezes em conjunto com a
bupivacaína, para melhorar a dispersão intratecal do anestésico.
As concentrações tóxicas do fármaco no sangue podem ser ocasionadas
por injeções repetidas ou por uma injeção IV única e inadvertida. Os sinais,
os sintomas e o tempo da toxicidade sistêmica dos anestésicos locais são
imprevisíveis. O importante é considerar o diagnóstico de qualquer paciente
com alteração do estado mental ou com instabilidade cardíaca após a injeção
do anestésico local (WHALEN; FINKEL; PANAVELIL, 2016).
O tratamento da toxicidade sistêmica dos anestésicos locais inclui a ma-
nutenção da via aérea, o apoio à respiração e à circulação, o controle de
convulsões e, se necessário, a ressuscitação cardiopulmonar.
Com relação às interações medicamentosas e os anestésicos locais, é preciso
uma atenção especial ao uso de anestésicos com antidepressivos, quando o
vasoconstritor é utilizado em conjunto, pois pode causar efeitos adversos na
circulação, especificamente no coração.
10 Anestésicos locais

O Quadro 4 apresenta alguns anestésicos locais com seus respectivos nomes comerciais.

Quadro 4. Principais anestésicos locais e seus nomes comerciais

Nome comercial
Anestésico Vasoconstritor
(Brasil)

Lidocaína Adrenalina Alphacaine

Noradrenalina Xilocaína, Xylestesin

Fenilefrina Biocaína, Novocol

Sem vasoconstritor Xilocaína, Xylestesin

Prilocaína Felipressina Citanest, Citocaína,


Biopressin

Mepivacaína Adrenalina/ Scandicaíne, Mepiadre,


Noradrenalina Mepinor, Mepivalem AD

Sem vasoconstritor Mepivalem SV,


Mepisv, Scandicaíne,
Mepivacaína

Levonordefrina Carbocaíne

Sem vasoconstritor

Bupivacaína Adrenalina Neocaína


Sem vasoconstritor

HILAL-DANDAN, R.; BRUNTON, L. L. (Org.). Manual de farmacologia e terapêutica de


Goodman & Gilman. 2. ed. Porto Alegre: AMGH, 2015.
LULLMANN, H.; MOHR, K.; HEIN, L. Farmacologia: texto e atlas. 7. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2017.
Anestésicos locais 11

WHALEN, K.; FINKEL, R.; PANAVELIL, T. A. Farmacologia ilustrada. 6. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2016.
ZANINI, A. C.; OGA, S.; BATISTUZZO, J. A. O. Farmacologia aplicada. 6. ed. São Paulo:
Atheneu, 2018.

Leituras recomendadas
BARREIRO, E. J.; FRAGA, C. A. Química medicinal: as bases moleculares da ação dos
fármacos. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015.
KATZUNG, B. G.; TREVOR, A. J. Farmacologia básica e clínica. 13. ed. Porto Alegre: AMGH,
2017.
TOY, E. C. et. al. Casos clínicos em farmacologia. 3. ed. Porto Alegre: AMGH, 2015.
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