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PONTO 14: FARMACOLOGIA DOS ANESTÉSICOS LOCAIS

 A anestesia regional depende dos anestésicos locais para produzir uma perda transitó ria da funçã o
sensitiva, motora e autonô mica em uma regiã o do corpo

Teorias de ação dos anestésicos locais


 Como outras células, as células nervosas têm um potencial de membrana de repouso. A atividade de
ATPases gera um gradiente de concentraçã o (favorece a difusã o extracelular do K e intracelular do
Na) e a célula é muito mais permeá vel ao K que ao Na normalmente → Isso gera um potencial de
repouso negativo (-70mV)
 Canais de Na e K na membrana eletricamente controlados produzem despolarizaçã o (apó s estímulos
elétricos, químicos e mecâ nicos). Se a despolarizaçã o atinge um limiar (-55mV), abrem-se canais de
Na da membrana gerando influxo de Na e um potencial de açã o, conduzido ao longo do axô nio.
# O aumento da permeabilidade ao Na gera um excesso relativo de cá tions intracelular e um
potencial de membrana de +35mV
# A queda da permeabilidade ao Na e aumento da condutâ ncia ao K fazem a célula voltar à
voltagem normal (potencial de repouso) e gradientes sã o reestabelecidos pelas ATPases
 Açã o → A maioria dos anestésicos locais liga-se à subunidade alfa dos canais de Na, bloqueando-os,
impedindo sua ativaçã o e interferindo com o grande influxo transitó rio de saída secundá rio à
despolarizaçã o da membrana
# A açã o de anestésicos locais NÃ O altera o potencial de repouso → Sua açã o é lentificar a
conduçã o de impulsos, diminuir a magnitude e a velocidade de elevaçã o do potencial e
elevar o limiar de excitaçã o progressivamente → Até que nã o possa ser gerado potencial de
açã o e seja abolida a propagaçã o de impulsos
# Os anestésicos locais têm maior afinidade pelo canal nos estados “ativado” e “desativado” do
que em “repouso” → Efeito elétrica e temporalmente dependente → Maior efeito quando as
neurofibras estã o tendo descargas rá pidas

 Outras açõ es → Também podem bloquear canais de Ca e K, além de receptores NMDA em graus
variá veis → Diferenças responsá veis por parte da diferença clínica entre os agentes locais
 Outras drogas que também bloqueiam o canais de Na → ADT (p.ex. amitriptilina), meperidina,
anestésicos volá teis, cetamina
 Efeito diferente nas neurofibras → Nem todas as fibras sã o igualmente afetadas. A sensibilidade do
bloqueio é dada pelo diâ metro axonal, grau de mielinizaçã o e outros fatores anatô micos e
fisioló gicos → Pequeno diâ metro e falta de mielina aumentam a sensibilidade aos anestésicos locais
# Em nervos espinais, a sensibilidade é → Autô noma > Sensitiva > Motora
Relação entre estrutura e atividade
 Bloqueio sensitivo diferencial pode ser propriedade desejá vel na anestesia. A bupi e a ropivacaína
têm uma pequena seletividade para nervos sensitivos, mas em geral anestesia sensitiva suficiente
para incisã o da pele nã o pode ser obtida sem comprometimento motor.

Estrutura química
 Têm um grupo lipofílico (em geral anel benzeno) + um grupo hidró filo (em geral amina terciá ria)
ligados por uma cadeia intermediá ria (éster ou amida) → Os anestésicos locais sã o, portanto, bases
fracas, com carga positiva na amina terciá ria em pH fisioló gico

Potência
 Potência é diretamente proporcional à lipossolubilidade → Potência e lipossolubilidade em geral
aumentam com o tamanho molecular (mais á tomos de C)
 Outros fatores que aumentam a potência → Halida acrescentada ao anel aromá tico (clorprocaína
procaína), uma ligaçã o éster (procaína procainamida) e grupos alquila grandes no N da amida
terciá ria
 Medidas de potencia → Cm é a concentraçã o anestésica mínima que bloqueará a conduçã o do
impulso nervoso. É afetada por vá rios fatores:
# pH (mais á cido antagoniza o bloqueio)
# Eletró litos (hipoK e hiperCa antagonizam o bloqueio)
# Frequência de estimulaçã o nervosa

Latência
 Depende de vá rios fatores, inclusive da lipossolubilidade e da concentraçã o relativa da forma
lipossolú vel nã o-ionizada (B) e da forma hidrossolú vel ionizada (BH+)
 O pKa expressa essa relaçã o: é o pH em que a quantidade de droga ionizada e nã o ionizada é igual.
# Agentes menos lipossolú veis em geral têm menor latência (pKa menor, mais pró ximo do
fisioló gico) → Com concentraçõ es maiores de base nã o ionizada que pode atravessar a
membrana da célula, têm início de açã o mais rá pido
Obs.: o conceito correto é “quanto mais pró ximo do fisioló gico o pKa, menor a latência por ter menos formas
inonizadas). No entanto, como os anestésicos locais sã o todos base, seus pKa costumam ser altos (muito acima
do fisioló gico). Por isso diz-se que quanto menor o pKa, menor a latência
# Uma vez dentro da célula, a base entra em equilíbrio com sua forma ionizada
Obs.: p.ex. a lidocaína tem pKa de 7,8. Em pH fisioló gico (7,4), mais da metade da lidocaína existirá sob a forma
de cá tions (BH+). Comparando com a bupivacaína (pKa 8,1) → A lidocaína tem < pKa, por isso agirá mais rá pido
(< latência)
 Outras influências na latência:
# Facilidade de difusã o através do tecido conjuntivo → Explica a latência relativamente
pequena da clorprocaína, que tem pKa alto
# Nem todos os anestésicos locais existem na forma ionizada (p.ex. benzocaína) e
provavelmente atuam por mecanismos alternativos (p.ex. expansã o da membrana lipídica)
 Implicaçõ es clínicas das formas B/BH+
# Preparaçõ es comerciais sã o feitas com sal cloridrato hidrossolú vel (pH 6-7). Se for
acrescentar adrenalina, esta é instá vel em ambiente alcalino (precisa de pH 4-5) → Por isso,
preparaçõ es com adrenalina têm menos base livre (nã o-ionizada) e início de açã o mais lento
(pois está em pH menos pró ximo do fisioló gico)
# Anestésicos locais injetados em tecidos á cidos (p.ex. infectados) tem mais formas ionizadas
(maior latência: pH menos pró ximo do fisioló gico) → A taquifilaxia (diminuiçã o da eficá cia
em doses repetidas) em parte deve-se à exaustã o da capacidade de tamponamento
extracelular para doses repetidas em um local á cido
# Acrescentar bicarbonato de Na ao anestésico local (lidocaína 1% 9ml + BIC 8,4% 1ml)
aumenta a quantidade de base livre (nã o ionizada) → Menor latência, bloqueio mais
prolongado (base livre é + lipossolú vel) e melhora a qualidade do bloqueio
Duraçã o de açã o
 A duraçã o de açã o correlaciona-se com a lipossolubilidade → Duraçã o de açã o mais longa quanto
maior a lipossolubilidade (menos chance de serem removidos pelo fluxo sanguíneo)
 Os anestésicos locais muito lipossolú veis têm alto grau de ligaçã o a proteínas plasmá ticas
(glicoproteína alfa-1-á cida e, em menor escala, albumina) → Eliminaçã o prolongada
Relaçõ es diretamente proporcionais entre estrutura e atividade

Farmacocinética
 Como os anestésicos locais em geral sã o injetados muito perto do seu local de açã o pretendido, seus
perfis farmacocinéticos mais importantes sã o de distribuiçã o, eliminaçã o e toxicidade

Absorçã o
 A mucosa é uma barreira fraca para a penetraçã o, enquanto a pele intacta requer altas doses e fraçã o
alcalina para penetraçã o (apesar de existir o creme EMLA para punçã o de AVP, ela é feita somente
1h apó s o curativo)
 A absorçã o sistêmica de anestésicos locais depende primariamente do fluxo sanguíneo. Este é
determinado pelos fatores:
# Local da injeçã o (vascularizaçã o) → EV > Traqueal > Intercostal > Caudal > Paracervical >
Epidural > Plexo braquial > Isquiá tico > SC
# Presença de vasoconstritores: Epinefrina, fenilefrina ou nora vasoconstringem o local de
injeçã o → Diminuem absorçã o → Melhora analgesia local, prolonga duraçã o e limita efeitos
colaterais tó xicos (se em bloqueio de neuroeixo, aumenta a captaçã o neuronal).
Obs.: efeitos mais pronunciados em agentes de curta duraçã o. P.ex., epinefrina aumenta 50% a duraçã o da
analgesia da lidocaína, mas nã o possui efeito significativo na bupi (sua > duraçã o se deve ao > grau de ligaçã o
com proteínas)
# Agente anestésico local → Os que se ligam mais fortemente aos tecidos sã o absorvidos mais
lentamente (p.ex. etidocaína), e alguns tem propriedades vasodilatadoras intrínsecas

Distribuiçã o
 Depende da captaçã o dos ó rgã os:
# Perfusã o tecidual → Ó rgã os altamente perfundidos (cérebro, pulmõ es, fígado, rins, coraçã o)
fazem a captaçã o inicial (fase alfa), ocorrendo depois uma distribuiçã o mais lenta (fase beta)
para tecidos moderadamente perfundidos (mú sculos e alças)
# Coeficiente de partiçã o tecido/sangue → Forte ligaçã o a proteínas plasmá ticas tende a reter
os anestésicos no sangue, enquanto alta solubilidade lipídica facilita a captaçã o tecidual
# Massa tecidual → Mú sculo é o maior reservató rio de anestésicos locais (maior massa)

Metabolismo e eliminaçã o
 É steres → Metabolizados principalmente pela pseudocolinesterase (colinesterase plasmá tica)
# A hidró lise dos ésteres é bastante rá pida → Metabó litos solú veis em á gua eliminados na urina
# Pacientes com pseudocolinesterase anormal → Risco elevado de efeitos tó xicos
# O LCR nã o possui essas enzimas → Término da açã o de anestésicos locais do tipo éster no
neuroeixo depende de sua absorçã o pela corrente sanguínea
 Amidas → Metabolizados por enzimas microssomais P-450 no fígado
# A N-desalquilaçã o e hidroxilaçã o das aminas é muito mais lenta que a hidró lise dos ésteres
# Metabolismo depende do agente → Prilocaína > Lidocaína > Mepivacaína > Ropi > Bupi
# Funçã o hepá tica anormal (p.ex. cirrose) ou reduçã o do fluxo sanguíneo hepá tico (p.ex. ICC,
vasopressores, bloqueadores H2) → Reduzem o metabolismo e predispõ em efeitos tó xicos
# Uma quantidade muito pequena é eliminada inalterada pelos rins (porém seus metabó litos
sã o dependentes de clearance renal)
Metemoglobinemia
 Pilocarpina (>10mg/kg) ou aerossol de benzocaína podem converter a Hb em metemoglobina
 Fatores de risco → Pacientes com baixa reserva cardio-pulmonar (suscetíveis a alteraçã o no
transporte de O2) e neonatos (gestantes com anestésicos locais para o parto)
 Tratamento → Azul de metileno 1% (1-2mg/kg em 5min) → Reduz a metHb (Fe3+) em Hb (Fe2+)

Efeitos nos sistemas orgânicos


 O bloqueio dos canais de Na afeta todo o corpo → Em geral, a toxicidade é diretamente proporcional
à potencia do anestésico local
 Misturas de anestésicos locais devem ser consideradas como tendo toxicidade aditiva → P.ex., 50%
da dose tó xica de lidocaína + 50% da dose tó xica de bupi terá ~ 100% dos efeitos tó xicos de cada
uma das drogas

Neuroló gico
 Sinais iniciais (torpor, parestesia da língua, tontura) podem evoluir para
# Queixas sensoriais → Tinido e embaçamento visual
# Sinais excitató rios → Inquietaçã o, agitaçã o, nervosismo, paranoia
# Depressã o do SNC (apó s excitaçã o) → Fala arrastada, sonolência, inconsciência
# Convulsõ es tô nico-clô nicas → Por reduzir o fluxo sanguíneo cerebral (menor exposiçã o à
droga tó xica), benzodiazepínicos e hiperventilaçã o aumentam o limiar convulsivo de
anestésicos locais. Tratamento: tiopental (1-2mg/kg) interrompe a atividade convulsiva
 Lidocaína EV (1,5mg/kg) → Diminui o fluxo sanguíneo cerebral e atenua elevaçã o de pressã o
intracraniana que acompanha a IOT de pacientes com complacência intracraniana reduzida
 Cocaína estimula o SNC (efeito: euforia) → Intoxicaçã o: inquietaçã o, êmese, tremores, convulsõ es
 Síndrome da cauda equina → A droga se acumula ao redor da cauda equina, gerando dano neuronal
permanente. Lidocaína = Tetracaína > Bupivacaína > Ropivacaína
 Sintomas neuroló gicos transitó rios (até 1 semana) podem ocorrer por irritaçã o radicular apó s
anestesia espinal (disestesia e dor em queimaçã o em MMII e ná degas). Fatores de risco: lidocaína,
posiçã o de litotomia, obesidade, cirurgia ambulatorial

Respirató rio
 Lidocaína deprime a resposta hipó xica (resposta ventilató ria a baixa PaO2)
 Apneia pó s anestésicos locais → Depressã o do centro respirató rio ou paralisia de nervo frênico
 Relaxam a musculatura lisa do brô nquio (xilo EV 1,5mg/kg reduz a broncoconstriçã o reflexa da IOT)
(lidocaína aerossol pode desencadear broncoespasmo em pacientes com reatividade das VA)

Cardiovascular
 Agem diretamente no mú sculo cardíaco (canais de Na) e por bloqueio de SNA → Inicialmente
deprimem o automatismo miocá rdico (despolarizaçã o espontâ nea: fase IV) e diminuem a duraçã o do
período refratá rio → Concentraçõ es mais altas deprimem velocidade de conduçã o e contratilidade
Obs.: estimulaçã o cardiovascular transitó ria (taquicardia e hipertensã o) pode ocorrer inicialmente e deve-se à
excitaçã o do SNC
 O resultado combinado (bradicardia, hipotensã o, bloqueio cardíaco) pode resultar em PCR. Mas a
toxicidade cardiovascular grave requer quase 3x a dose que produz crise convulsiva
 A hipertensã o pela laringoscopia é atenuada por lidocaína 1,5mg/kg 1-3min antes da IOT
 Injeçã o EV de bupi → Hipotensã o, BAV, arritimas (como FV)
# Fatores de risco: gestante, hipoxemia, acidose respirató ria, pré-escolares
# Torna a RCP difícil e prolongada (alto grau de ligaçã o a proteínas): altas doses de vasopressor
 A ropivacaína é similar à bupivacaína em potencia, latência e duraçã o → Mas a ropi tem 70% menos
chance de causar disritmias graves que a bupi, além de ter maior tolerâ ncia no SNC
 Reaçõ es cardiovasculares à cocaína sã o diferentes: inibe a receptaçã o de norepinefrina liberada por
terminais nervosos adrenérgicos → Potencializa estimulaçã o adrenérgica
# EAs da cocaína: hipertensã o e ectopia ventricular (+ vasoconstriçã o tó pica)
# Arritmias induzidas por cocaína → Tratar com antagonistas adrenérgicos e do canal de Ca
Outros sistemas
 Imunoló gico → Hipersensibilidade aos anestésicos locais é rara, mas ocorre mais com os ésteres
(derivados do á cido p-aminobenzó ico, um alérgeno conhecido). As preparaçõ es comerciais das
aminas podem conter metilparabeno (semelhante ao PAPA), que também pode gerar alergia
 Musculoesquelético → Sã o miotó xicos quando injetados diretamente na musculatura esquelética
(bupi > lido > procaína). Podem gerar necrose muscular, com regeneraçã o em 3-4 semanas. A injeçã o
concomitante de esteroides ou epinefrina piora a necrose muscular. Ropivacaína tem menor
potencial lesivo que bupivacaína
 Hematoló gico → Lidocaína tem efeito anticoagulante e aumenta a fibrinó lise (previne trombose e
diminui agregaçã o plaquetá ria). Pode explicar a eficá cia reduzida do tampã o sanguíneo necessá rio
logo apó s a administraçã o de anestésicos locais e a baixa incidência de embolia em pacientes com
anestésicos epidurais

Interações medicamentosas
 Lidocaína e procaína EV podem reduzir a CAM de anestésicos volá teis em até 40%
 Anestésicos locais potencializam bloqueio neuromuscular adespolarizante
 Succinilcolina associada a anestésicos locais aumenta os efeitos de ambos (dependes de pseudo-
colinesterase para o metabolismo)
 Inibidores da pseudo-colinesterase podem diminuir o metabolismo dos anestésicos locais ésteres
 Cimetidina e propranolol diminuem o fluxo sanguíneo hepá tico e o clearance de lidocaína → Níveis
mais elevados no sangue → Aumenta potencial tó xico
 Opió ides e agonistas alfa-2 adrenérgicos potencializam a analgesia de anestésicos locais (entretanto,
a bupivacaína peridural pode interferir nas açõ es analgésicas do fentanil)

Tabela-resumo de anestésicos locais

Discussão: injeção EV acidental de anestésico local


 Paciente recebe dose inferior à tó xica de lidocaína epidural e queixa-se de torpor nos lá bios e
apreensã o logo apó s (sintomas de SNC precedem os sintomas vasculares na toxicidade por AL)
# HD: injeçã o EV acidental
# CD (profilá tica) imediata:
→ Hipocapnia (aumenta o limiar convulsivo)
→ Tiopental dose pequena (50mg)
# Se sintomas evoluírem até convulsã o → CD: Diazepam (2,5-10mg) ou tiopenal (50-75mg) EV
# Prevenir esse quadro com → Dose-teste adequada, Fracionamento da dose em pequenas
alíquotas e Menor dose possível
 Se, ao invés de lidocaína, fosse bupivacaína → Taquiarritmias ventriculares e possível PCR
# CD em taquiarritmias induzidas por anestésicos locais → Amiodarona
# Vasopressores SN: adrenalina, nora, vasopressina

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