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Disciplina: Bioética em Saúde

Prof.: Marcus Nery

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido


Trata-se o Consentimento Livre e Esclarecido de uma decisão voluntária, realizada por
pessoa autônoma e capaz, após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação
de um tratamento específico ou experimentação, sabendo da natureza do mesmo, das suas
consequências e dos seus riscos. A emissão dessa decisão vem corporificada no
documento Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A exigência desse consentimento decorre da observância aos parâmetros éticos na
pesquisa com seres humanos, ditados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), pelo Código de Nuremberg (1947), pelos Códigos Deontológicos e de Ética Médica,
pelas Diretrizes Internacionais propostas para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos
(1985) e, no contexto brasileiro, especialmente pela Resolução CNS n.º 196/96 e pelas
resoluções de temáticas específicas que se lhe seguem e que contemplam também as
diretrizes internacionais.
A Resolução CNS n.º 196/96, ao traçar diretrizes para as pesquisas envolvendo seres
humanos, norteia o processo de obtenção do consentimento livre e informado e sua redução
a termo, de que se passa a tratar.
Inicialmente, convém assinalar que as razões para o tratamento legal do
Consentimento Livre e Esclarecido do Sujeito da Pesquisa fundam-se na garantia e
fortalecimento da autonomia deste, "principalmente em situações controvertidas e às vezes
únicas na vida de uma pessoa", como acrescentam Joaquim Clotet, José R. Goldim e Carlos
F. Francisconi.
Com a Resolução CNS n.º 196/96 não é diferente; o princípio que a orienta é a
salvaguarda da dignidade humana, cujos elementos básicos são a autonomia, a liberdade e
o respeito a essas grandezas. Em decorrência disso, proclama que toda pesquisa deve se
processar após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que, por
si e/ou por seus representantes legais, manifestem a sua anuência à participação na
pesquisa, livre de vícios (coação, simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou
intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus
objetivos, métodos, benefícios previsto, potenciais riscos e o incômodo que esta possa
acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária
na pesquisa.
Para que a obtenção do consentimento do sujeito da pesquisa seja efetivamente uma
etapa destinada a resguardar a eticidade da pesquisa, a Resolução sob comento traça as
diretrizes para tanto, seguindo, a propósito, as Diretrizes Internacionais propostas para a
Pesquisa Biomédica em Seres Humanos. Pelo seu item IV.1, a Resolução CNS n.º 196/96
exige que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que inclua
necessariamente os seguintes aspectos:

a) justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa;


b) os desconfortos e riscos possíveis e os benefícios esperados;
c) os métodos alternativos existentes;
d) a forma de acompanhamento e assistência, assim como seus responsáveis;
e) a garantia de esclarecimento, antes e durante o curso da pesquisa, sobre a
metodologia, informando a possibilidade de inclusão em grupo controle ou placebo;
f) a liberdade do sujeito se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em
qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado;
g) a garantia do sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados
confidenciais envolvidos na pesquisa;
h) as formas de ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa;
i) as formas de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa.

Ao nível de exigências de caráter essencialmente burocrático, dispõe o item IV.2 que o


termo de consentimento livre e esclarecido obedecerá aos seguintes requisitos:

a) ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento de cada


uma das exigências acima;
b) ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação;
c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos
sujeitos da pesquisa ou por seus representantes legais;
d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retida pelo sujeito da pesquisa ou por seu
representante legal e uma arquivada pelo pesquisador.

Ademais, a Resolução CNS n.º 196/96 ainda traça diretrizes especiais, as quais serão
abordadas em pormenores nos itens seguintes, para os casos que denotam vulnerabilidade
do sujeito da pesquisa, crianças e adolescentes, portadores de perturbação ou doença
mental e sujeitos em situação de substancial diminuição em suas capacidades de
consentimento, contemplados em seu item IV.3.
Postas as diretrizes legais acerca do Consentimento de forma dogmática, precisamos
aprofundar nossa pesquisa, a fim de, a partir da lei e da doutrina, afirmar o que representa o
consentimento e o documento que o corporifica (TCLE), quais são seus elementos
fundamentais, como ele deve ser encarado pelos sujeitos da pesquisa, pelo Estado e pela
comunidade científica, quais são as condutas necessárias para torná-lo efetivamente um
instrumento legítimo, hábil a resguardar a eticidade da experimentação com seres humanos.

Diretrizes e normas para pesquisa em seres humanos


A pesquisa em saúde tem tido, nos últimos anos, uma constante ampliação no número
de projetos e pesquisadores envolvidos, na sua abrangência e na complexidade dos temas
abordados. Este desenvolvimento científico trouxe consigo um crescente questionamento
ético sobre os métodos e procedimentos empregados. Muitos países estabeleceram
legislações próprias, outros simplesmente acataram as diretrizes internacionais e,
infelizmente, alguns ainda não tem qualquer orientação a este respeito.
Desde as primeiras legislações nacionais a este respeito, na Inglaterra no século
passado, com relação aos animais, e na Prússia, em 1901, e na Alemanha, em 1931, para
os seres humanos, até as atuais diretrizes e normas brasileiras de 1996, muitos documentos
se sucederam. Neste período inúmeros documentos de caráter internacional foram
elaborados, com destaque para o Código de Nuremberg, que está completando 50 anos, e
as diferentes atualizações da Declaração de Helsinki. Alguns países elaboraram legislações
específicas baseadas em documentos redigidos por pesquisadores, filósofos, advogados e
outros profissionais e representantes da comunidade.
Em todas estas propostas, alguns pontos permaneceram, como a necessidade de
obtenção do consentimento informado e da preservação da integridade dos participantes, e
outros foram continuamente aprimorados, como o estabelecimento e funcionamento de
comitês de ética em pesquisa. O conhecimento destes documentos é fundamental para
todos aqueles que participam direta ou indiretamente de atividades de pesquisa:

 O Código de Nuremberg (1947);


 Declaração de Helsinki (já na sua sétima versão de 2008);
 Diretrizes Éticas para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos (1997).

São os documentos internacionais mais importantes na Ética Aplicada a pesquisa em


seres humanos e à saúde, em particular.
No Brasil, as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres
Humanos, do Conselho Nacional de Saúde (Resolução CNS 196/96, de 16 de outubro de
1996), ampliaram a abrangência da Resolução 01/88 - Normas de Pesquisa em Saúde,
anteriormente vigente. A Resolução 196/96 está sendo progressivamente detalhada em
suas diferentes áreas temáticas. A primeira a receber uma norma específica foi a da
pesquisa em farmacologia, através da Resolução 251/97. Posteriormente outras áreas foram
sendo objeto de normas específicas. A ANVISA também propôs um conjunto de regras para
a condução de pesquisas clínicas (RDC 39/08)
A leitura destes documentos é fundamental para que os pesquisadores conheçam e
aprofundem seus conhecimentos sobre as diferentes abordagens possíveis sobre o tema da
adequação ética da pesquisa realizadas na área da saúde.

Utilização de dados obtidos de pacientes e/ou de bases de dados


A história da Medicina sempre esteve acompanhada de relatos de casos individuais.
Compartilhar uma experiência pessoal com outros profissionais é uma excelente estratégia
de difusão de conhecimentos e de discussão de diagnósticos, de tratamentos e de situações
de aprendizagem envolvendo pacientes.
Uma importante questão é estabelecer se os relatos de caso individual são ou não
considerados como decorrentes de uma atividade de pesquisa. As diretrizes brasileiras e
internacionais definem que a pesquisa visa à geração de conhecimento generalizável. Por
este motivo, muitos autores os caracterizam como sendo uma atividade médica ou
educacional.
Os relatos de caso individual surgem de uma observação assistencial, são situações
não planejadas, onde não há um projeto ou objetivo prévios. Estes relatos documentam
situações que se apresentam a um observador preparado e atento. Nesta perspectiva, não
há como obter, de Comitê de Ética em Pesquisa, uma aprovação prévia à sua realização.
Contudo, se forem apresentados de forma conjunta mais de três relatos de casos, isto já
configura uma série de casos.
Nesta situação há a necessidade da aprovação por um Comitê de Ética em Pesquisa,
por ser considerada uma publicação decorrente de um projeto de pesquisa.
Independentemente de um relato de caso individual ser considerado como atividade de
pesquisa ou não, os autores deverão verificar a adequação ética das questões relativas à
obtenção do consentimento e à preservação da privacidade do paciente.
O profissional, previamente à publicação do relato de caso individual, deverá obter um
consentimento documentado do paciente que terá os seus dados divulgados. Um ponto que
ainda não está devidamente esclarecido é que tipo de documentação é necessária,
considerando que esta autorização está sendo dada em um ambiente assistencial. Uma
alternativa pode ser a utilização do próprio prontuário do paciente para documentar a sua
autorização, com a descrição adequada das informações essenciais ao entendimento da
proposta desta publicação.
O paciente, ou o seu responsável legal, deve assinar este documento no próprio
prontuário. É uma autorização dada para a publicação especificamente deste relato de caso.
Outra possibilidade é a utilização de um documento a parte, ou seja, de um Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido para a publicação de relato de caso. Uma cópia deste
documento fica arquivada com o profissional que o obteve e outra é levada pelo paciente.
Alguns periódicos exigem que este Termo de Consentimento siga um modelo estabelecido
pelo seu próprio Conselho Editorial. Isto dificulta o processo de elaboração do relato de
caso, pois o autor deverá definir o periódico que irá submeter o seu relato de caso individual
antes da obtenção do consentimento do paciente.
É uma inversão da ordem habitualmente utilizada, quando o consentimento precede à
elaboração do relato de caso. Outra dificuldade surge quando há a necessidade de
ressubmeter um mesmo relato a outro periódico. Um novo documento de consentimento do
paciente deverá ser obtido, para atender à exigência de uso de um documento diferente
para cada periódico.
Também podem existir situações em que a obtenção do consentimento seja
impossível, como, por exemplo, quando o autor não conseguir localizar o paciente ou seu
responsável legal. Nestas situações, a alternativa é encaminhar uma carta a um Comitê de
Ética em Pesquisa apresentando estes motivos e solicitando a sua manifestação formal.
Caso o profissional atue em uma instituição que não tenha Comitê estabelecido, poderá
encaminhar esta carta a uma instituição que o tenha, explicando adequadamente esta
situação.
Neste documento, o profissional já deve se comprometer formalmente com a garantia
da preservação da privacidade do paciente e com o uso dos seus dados especificamente
para este relato de caso individual. Pode ser utilizado um Termo de Compromisso para Uso
de Dados, que já é utilizado por algumas instituições para as pesquisas em prontuários e
bases de dados. A preservação dos dados de identificação do paciente ultrapassa em muito
o simples anonimato, a omissão de seu nome. Nos relatos de caso não podem ser
utilizadas: as iniciais do paciente; os números de identificação de prontuário ou de outros
documentos; as datas importantes, como a de nascimento, excetuando-se a citação do ano;
a sua origem geográfica, identificando áreas específicas, como a sua cidade.
Outras características que possam permitir a sua identificação, como plano de saúde,
telefones e endereços eletrônicos, igualmente devem ser omitidas. Todos estes cuidados se
estendem também a outras pessoas citadas no relato a ser publicado.

Projeto Genoma Humano


O projeto genoma humano (PGH) tem como objetivo identificar todos os genes
responsáveis por nossas características normais e patológicas. Os resultados a longo prazo
certamente irão revolucionar a medicina, principalmente na área de prevenção. Será
possível analisar milhares de genes ao mesmo tempo e as pessoas poderão saber se têm
predisposição aumentada para certas doenças, como diabete, câncer, hipertensão ou
doença de Alzheimer, e tratar-se antes do aparecimento dos sintomas.
O objetivo de tal projeto consiste em mapear e sequenciar todos os genes humanos.
Na realidade, ele tem suas raízes na descoberta, por Watson e Crick em 1953, da molécula
de DNA, a “molécula da vida”. É provável que o fio condutor da economia do século XXI será
a engenharia genética com todo conhecimento que virá. A partir do recente anúncio oficial
do sequencialmente do genoma humano em 21 de Junho de 2000, abre-se um cenário
fantástico em que realidade e ficção científica tornam-se, em alguns casos, são
indistinguíveis.
As vacinas de DNA poderão eliminar doenças como a tuberculose ou a Aids. Os
remédios serão receitados de acordo com o perfil genético de cada um, evitando-se assim
os efeitos colaterais. Paralelamente a esses avanços, inúmeras questões éticas já estão
sendo discutidas e outras irão surgir. Mas, por enquanto, as implicações éticas, legais e
sociais dos conhecimentos gerados pelo PGH em relação às características normais e
patológicas e sua integração na clínica médica têm sido discutidas no ambiente acadêmico.
Na prática, entretanto, já estão sendo desenvolvidos testes genéticos para a escolha
do sexo de futuros bebês e bancos de DNA da população. Um número crescente de
laboratórios oferece testes de DNA para doenças hereditárias ou para determinar se uma
pessoa tem maior risco de desenvolver certas doenças como câncer ou doenças cardíacas.
BANCOS POPULACIONAIS DE DNA: UM BENEFÍCIO OU UMA AMEAÇA?
Em um artigo, Dawkins discute os prós e os contras de se ter um banco nacional com
os dados de DNA ("fingerprint" ou impressões genéticas) da população. Seria um benefício
ou uma ameaça? Na Inglaterra, onde já existe um banco de DNA com mais de 300 mil
amostras, seus defensores argumentam que ele é muito importante para identificar
criminosos ou infratores da lei. Mas quais seriam as possíveis implicações do uso negativo
dessas informações, como por exemplo, em testes de paternidade?
Por outro lado, um número crescente de genes com suscetibilidade para algumas
formas de câncer, doenças cardíacas ou doenças neurodegenerativas de início tardio (como
mal de Alzheimer) está sendo identificado. As novas tecnologias que vêm sendo
introduzidas permitirão, em pouco tempo, a identificação de centenas de genes "patológicos"
em uma única reação. É inquestionável que as companhias de seguro-saúde e seguro de
vida teriam o maior interesse em obter essas informações, isto é, saber que doenças
teremos risco de desenvolver e a data prevista da nossa morte. E os nossos empregadores
também não teriam interesse em obter tais informações sigilosas? A questão é: seremos
capazes de manter o caráter confidencial de nosso perfil genético? Poderemos não
concordar em nos submeter a um teste de DNA? Para aqueles que acreditam que
implementar um banco de DNA da nossa população ainda é uma realidade distante, basta
lembrar que recentemente se propôs que todos os recém-nascidos em São Paulo tivessem
uma amostra de DNA coletada (a partir de sangue do cordão umbilical) para se obter uma
impressão genética de cada um. Para encobrir os interesses comerciais (já que haveria um
custo para cada exame), o motivo alegado foi evitar a troca de crianças em maternidade. E
se essa coleta fosse obrigatória?

GENES DE COMPORTAMENTO
A influência genética em doenças psiquiátricas, tais como a doença do humor (ou
psicose maníaco-depressiva), a esquizofrenia ou o alcoolismo, já é amplamente aceita. Em
uma genealogia extensa da Holanda identificaram, em indivíduos com comportamento
agressivo e antissocial, uma mutação recessiva em um gene do cromossomo X (e que
portanto só afeta indivíduos do sexo masculino). Essa mutação causa a deficiência de uma
enzima, a momoamina oxidase A ou MAOA (responsável pelo metabolismo da dopamina,
serotonina e noradrenalina). Felizmente, essa deficiência parece ser rara. Entretanto, outros
estudos realizados em gêmeos sugerem que a delinquência juvenil possa ter pouca
influência genética, mas a delinquência que persiste na idade adulta teria um componente
genético importante.
Nos últimos anos, inúmeros pesquisadores vêm tentando identificar genes de
suscetibilidade para doenças psiquiátricas ou distúrbios de comportamento. Trabalhos
recentes confirmados na nossa população mostraram que pacientes com doença de
Alzheimer e distúrbios psiquiátricos diferem quanto a esse polimorfismo em comparação
com controles normais. Em um estudo muito interessante realizado na Noruega verificou-se
que, entre os alcoólatras, aqueles que se tornam agressivos sob o efeito do álcool também
diferem dos não-agressivos em relação a esse polimorfismo.
Trabalhos recentes em modelos animais têm mostrado que poderiam existir genes que
levam ao alcoolismo ou à dependência de drogas, pois enquanto alguns se tornam
dependentes outros têm aversão às mesmas substâncias. O mesmo comportamento já
havia sido observado em humanos, uma vez que um estudo realizado em um grupo de
voluntários verificou que a injeção de heroína, em teste cego, provocava uma reação de
prazer em alguns e de aversão em outros.
Enquanto os marcadores genéticos responsáveis pelo comportamento humano
continuam sendo pesquisados, a questão central é o seu o uso para identificar traços de
personalidade desejáveis ou não. E novamente as perguntas: Os indivíduos com
predisposição genética para o alcoolismo ou para a dependência de drogas podem ser
julgados culpados? O que são características indesejáveis? Agressividade? Preguiça?
Homossexualismo? Mau humor? Os indivíduos portadores de genes "de distúrbios de
comportamento" serão mais tolerados ou discriminados? Por outro lado, se soubermos que
o mau humor tem uma explicação biológica teremos maior compreensão com as pessoas
birrentas e constantemente mal-humoradas?

ESCOLHA DE SEXO
Uma outra questão ética é a possibilidade de se escolher o sexo de um futuro bebê. Na
Inglaterra, enviaram a um grupo de cerca de 2.300 grávidas um questionário com as
seguintes perguntas: você prefere um menino, uma menina ou é indiferente? A análise dos
resultados mostrou que se a população da Grã-Bretanha pudesse escolher o sexo de seus
futuros filhos isto não causaria um desbalanceamento sexual. Já na China, onde a maioria
dos casais só tem um descendente, o aborto seletivo de fetos do sexo feminino já criou uma
desproporção sexual gigantesca em favor do sexo masculino. E no Brasil, o que aconteceria
se os casais pudessem optar pelo sexo de seus filhos?
Por outro lado, a possibilidade de se determinar o sexo de embriões antes da sua
implantação para casais com risco de doenças genéticas que só afetam o sexo masculino
(como a hemofilia) evitaria o diagnóstico pré-natal e o sofrimento de ter de interromper uma
gestação no caso de fetos portadores. A seleção sexual de embriões por essa técnica, no
entanto, é ética no caso de casais sem risco genético aumentado, que quiserem recorrer a
essa prática somente para escolher o sexo de um futuro bebê? Em algumas sociedades, a
herança material só passa de pai para filho se ele tiver descendentes do sexo masculino,
isto é, não ter um filho varão pode significar perder toda a herança da família e ficar reduzido
à pobreza. Não é difícil imaginar que a procura de testes pré-implantação para determinar o
sexo deva ser muito grande nesses casos. Seria ético negar essa possibilidade em uma
situação como essa?

DOENÇAS GENÉTICAS
Já no caso de doenças genéticas, a identificação de genes deletérios é fundamental
para o diagnóstico diferencial de doenças clinicamente semelhantes, para a prevenção (pela
identificação de portadores com risco de virem a ter filhos afetados e por diagnóstico pré-
natal) e para futuros tratamentos.
Do ponto de vista ético, entretanto, a detecção de portadores de genes deletérios pode
ter consequências totalmente diferentes, pois distinguem-se basicamente dois grupos: os
portadores assintomáticos, nos quais o risco de uma doença genética só existe para a prole,
como no caso da herança autossômica recessiva ou recessiva ligada ao X; e os portadores
sintomáticos ou pré-sintomáticos, nos quais o risco existe tanto para a prole e para si
mesmos, como o caso da herança autossômica dominante.
Detecção de Portadores Assintomáticos de Genes Deletérios: Em relação a testes
genéticos neste grupo, os exemplos seguintes levantam outras questões, tais como: Até
onde vai o nosso direito de interferir? Devemos sempre dizer a verdade? Podemos nos
negar a fazer um teste genético?
Uma consulente vem procurar um serviço de Aconselhamento Genético para
diagnóstico pré-natal. O levantamento da genealogia mostrou que seu pai é hemofílico, o
que significa que ela é portadora assintomática deste gene e portanto um feto, de sexo
masculino, terá uma probabilidade de 50% de vir a ser afetado por hemofilia.
Inesperadamente, o estudo de DNA da consulente e de seus pais revela que "o suposto pai
hemofílico" não é na realidade o seu pai biológico. Isso significa que a consulente não é
portadora do gene da hemofilia e portanto não existe risco para esta ou futuras gestações, o
que dispensa a realização de qualquer teste genético. É ético revelar à consulente que "seu
pai não é seu pai" e arriscar a desestruturação de uma família aparentemente unida? Ou,
por outro lado, é ético submeter a paciente a um exame pré-natal desnecessário, sabendo-
se de antemão que não somente esta como futuras crianças dessa consulente não têm risco
de hemofilia?
Em outro caso, a consulente tem um filho afetado por distrofia de Duchenne (DMD -
ocorre por um defeito localizado no cromossomo X), uma doença letal grave, cujos afetados
raramente ultrapassam a terceira década. O exame de DNA revela que tanto a consulente
como sua mãe são portadoras do gene da DMD e, portanto, há um risco de 50% de virem a
ter descendentes de sexo masculino com DMD. Durante o Aconselhamento Genético (AG) a
consulente é informada sobre seu risco genético e que suas tias, primas e sobrinhas,
também em risco de serem portadoras do gene da DMD, podem recorrer ao exame de DNA
para tentar prevenir o nascimento de novos afetados. A consulente, entretanto, nega-se
terminantemente a alertar seus familiares sobre esse risco.
Pergunta-se: É ético deixar que pessoas em risco ignorem essas informações que
poderiam prevenir o nascimento de uma criança afetada por uma doença genética grave?
Por outro lado, temos o direito de invadir a privacidade dos outros? Ou quebrar o princípio
da confidencialidade deve ser uma norma no AG?
Um terceiro exemplo ilustra uma situação ainda mais complicada. Uma consulente
adolescente é encaminhada para diagnóstico pré-natal pois tem dois irmãos afetados por
DMD. O estudo de DNA revela que ela é portadora do gene da DMD e, portanto, existe 50%
de risco de que venha a ter um filho afetado. Antes de realizarmos o estudo de DNA do feto,
entretanto, somos informados de que há uma suspeita de que o pai biológico da criança
seria o próprio pai da consulente. Somos consultados sobre a possibilidade de confirmar
essa suspeita, pelo exame de DNA, sem o conhecimento da consulente. Do ponto de vista
genético, o risco de uma criança, fruto de uma relação incestuosa (pai-filha), ser afetada por
uma doença genética (retardo mental, doenças recessivas ou malformação congênita) é da
ordem de 50%, independentemente do sexo. Ou seja, é um risco tão grande quanto o da
DMD, mas neste caso sem possibilidades de um diagnóstico pré-natal. As grandes questões
são:

a) é ético realizar um exame de DNA sem o prévio consentimento dos interessados?


b) ou é mais ético não realizar esse exame, mesmo sabendo do alto risco para o feto e
da possibilidade, neste caso, de se interromper a gestação com amparo legal?

Testes Moleculares em Doenças Dominantes de Início Tardio. Doenças Ainda sem


Tratamento: o Exemplo dos Genes Dinâmicos
Em doenças como a Coreia de Huntington (CH) ou a Distrofia Miotônica de Steinert
(DMS), os portadores, além de manifestar a patologia, têm um risco de 50% de vir a
transmitir o gene defeituoso para a sua descendência. Na CH (causada por uma expansão
do número de repetições (CAG)n no gene huntingtina) o quadro clínico geralmente tem início
após a quarta ou quinta década, e leva a uma demência progressiva e irreversível.
Na DMS (causada por uma expansão de repetições (CTG)n no gene da proteína-
quinase da distrofia miotônica) a situação é um pouco diferente, pois o quadro clínico é
muito variável. Indivíduos portadores do gene podem ter como único sinal clínico uma
calvície precoce ou catarata em idade avançada, enquanto no outro extremo existem
aqueles que apresentam um quadro grave, com início na infância, manifestado por: retardo
mental, desenvolvimento, fraqueza e degeneração muscular e esterilidade no sexo
masculino. A forma clássica, a mais comum, tem início em geral na idade adulta.
As questões éticas que se colocam são:

a) Quais seriam os prós e os contras de se testar crianças assintomáticas,


descendentes de afetados, e saber de antemão se elas são portadoras do gene da CH e
DMS?

Os defensores do teste pré-sintomático argumentam que saber precocemente seria


importante na escolha da futura profissão. Por exemplo, poderiam ser evitadas aquelas que
requerem habilidade manual, pois é a primeira a ser comprometida no caso da DMS. Por
outro lado:
b) Vale a pena angustiar-se antecipadamente e saber que se tem uma doença para a
qual não existe cura?

A pesquisadora Nancy Wexler, cuja mãe morreu de CH pergunta: você quer saber
quando e como vai morrer?
Genes de Risco para Doenças com Possível Tratamento: o Exemplo dos Genes
BRCA1 e BRCA2 de Suscetibilidade para Câncer de Mama Hereditário
Mulheres portadoras de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 têm um risco de cerca
de 80% de desenvolver câncer de mama e um risco aumentado para câncer de ovário. A
identificação desses genes levou vários laboratórios a oferecer testes de DNA (a custos
altíssimos) à população feminina, supostamente para identificar as pessoas portadoras de
mutações nesses genes e poder oferecer um tratamento preventivo àquelas com resultados
positivos.
Para as mulheres com história familiar de câncer de mama a detecção precoce pode
ser muito importante para o tratamento preventivo. Entretanto, a questão ética é se esses
testes devem ser feitos na população feminina em geral. Isso porque o risco global (life time
risk) que uma mulher, sem história familiar, tem de desenvolver um câncer de mama ao
longo da vida é da ordem de 10%, enquanto o câncer hereditário constitui apenas 1-2% dos
casos. Assim, é dez vezes mais provável que, se uma mulher vier a desenvolver um câncer
de mama, ele não esteja relacionado a mutações nos genes BRCA1 e BRCA2. A questão
ética é: será que uma mulher cujo teste não revelou mutações nos genes BRCA1 e BRCA2
sabe disso ou vai ficar tranquila achando que está livre do risco de ter câncer de mama?
Além disso, como existem centenas de mutações patológicas ao longo desses genes
(e é ainda inviável testar todas elas), os laboratórios testam apenas as mais comuns, o que
levanta outra questão: sabemos exatamente o que está sendo testado?

DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL E O PROBLEMA ÉTICO DA INTERRUPÇÃO DA


GESTAÇÃO
Os problemas éticos relacionados com o diagnóstico pré-natal e interrupção de
gravidez de fetos portadores de genes deletérios também têm sido amplamente discutidos.
No caso de doenças letais (na primeira ou segunda décadas) ou as incompatíveis com uma
vida independente (como aquelas que causam um retardo mental profundo), a decisão para
um casal em risco de interromper uma gestação é mais fácil.
Por outro lado, para aquelas de início tardio ou prognóstico indefinido, como a CH ou a
DMS, o questionamento é enorme. Alguns indivíduos alegam que não querem transmitir
esse gene para a sua descendência, mas será que não existirá uma cura definitiva nas
próximas décadas? Ou, podemos garantir que um filho nosso terá uma vida saudável por
muitas décadas?

Projeto Manhattan e projeto Apollo


Manhattan
Numa breve retrospectiva do século que ora findou, percebemos que o mesmo foi
marcado por três grandes megaprojetos. O primeiro foi o Projeto Manhatan que resultou na
descoberta e utilização da energia nuclear, criação da bomba atômica e na decisão política
de explodir Hiroshima e Nagasaki. O segundo foi o Projeto Apollo que levou o homem à Lua.
O terceiro e o mais recente é o Projeto Genoma Humano, iniciado oficialmente em 1990 e
que acabamos de debater.
Que as relações entre os cientistas, a guerra e o militarismo sempre permearam a
História Social da Ciência e da Tecnologia é um dado realçado por várias correntes de
estudiosos. Bem antes da Revolução Científica do século XVII europeu, Arquimedes
envolvera-se na defesa de Siracusa contra as galeras romanas.
Como outro exemplo, e desta feita, já no século XX, ao qual já fizemos menção, Fritz
Haber liderou as pesquisas sobre gases venenosos que foram utilizados durante a primeira
grande guerra mundial, de 1914-1918. Como outro exemplo, podemos ver que a politização
extrema, ou ideologização, das pesquisas que pretendiam contribuir para dirimir entre o que
era inato e o que era adquirido, levaram a distorções homéricas com sérias consequências
éticas e cognitivas, que afetaram de maneira nada desprezível o desenvolvimento da ciência
biológica, em especial a genética.
O Projeto Manhattan, ou formalmente Distrito de Engenharia de Manhattan, foi um
esforço durante a Segunda Guerra Mundial para desenvolver as primeiras armas nucleares
pelos Estados Unidos da América com o apoio do Reino Unido e do Canadá. O projeto foi
dirigido pelo General Leslie R. Groves e a sua pesquisa foi dirigida pelo físico J. Robert
Oppenheimer, após ter ficado claro que uma arma de fissão nuclear era possível de ser
desenvolvida.
Após alguns testes, a bomba apelidada de 'Little boy' foi detonada em 6 de agosto,
matando mais de 256.300 pessoas em Hiroshima, Japão. Além de áreas vizinhas, afetadas
por uma chuva radioativa, contaminando pessoas, plantações e rios.
A intenção da bomba, porém, não foi a esperada. Havia expectativa de rendição do
Imperador Hirohito e do gabinete de guerra japonês, mas nos meios de comunicação só foi
falado sobre um novo tipo de bomba desenvolvido.

Truman decepcionado com a falta de reação do Japão ordenou o lançamento da


segunda bomba atômica, desta vez denominada "Fat Man". Esta foi lançada por um
segundo motivo: explicar os gastos com pesquisas e o desenvolvimento da bomba. Foi um
processo caro e o lançamento "justificaria" o custo. Lançada em Nagasaki, no dia 9 de
agosto, o resultado de "Fat Man" juntamente com "Little boy" foi catastrófico. Resultou na
morte imediata de mais de 300 mil pessoas, sem contar com as outras causadas através da
contaminação pela radiação.
Em 14 de agosto o Japão se entrega, assinando no dia 15 a rendição, na baía de
Tóquio. Em Hiroshima apesar da recuperação após 60 anos, ainda há vestígios da
destruição nos filhos e netos.

Appollo:
O sonho de atingir a Lua representava uma ambição humana antiga, ficcionalizada por
muitos autores, mas tornada possível no século XX, em resultado do avanço tecnológico e
científico quer no domínio da aeronáutica, como no da computação automática.
Muita da tecnologia necessária para o projeto foi desenvolvida como resultado do
esforço de guerra durante a Segunda Guerra Mundial (por exemplo, computadores digitais
para cálculos de balística, ente outros), e pelo desenvolvimento de mísseis intercontinentais,
em parte herdeiros da tecnologia das primitivas V-2 nazis) no âmbito da Guerra Fria entre
EUA e URSS.
O Projeto Apollo foi um conjunto de missões espaciais coordenadas pela NASA
(agência espacial dos EUA) entre 1961 e 1972 com o objetivo de colocar o homem na Lua.
O projeto culminou com o pouso da Apollo 11 no solo lunar em 20 de julho de 1969.
A missão incluiu onze voos tripulados (até a Apollo 7, todas as missões foram não
tripuladas). Inclui-se aí o que ficou conhecido como "Apollo 1", em homenagem aos
astronautas, que morreram no solo em um incêndio, dentro da cabine de comando.
O objetivo de explorar a Lua foi abandonado em dezembro de 1972, com o voo da
Apollo 17. Os motivos para esta decisão foram tanto a falta de verbas, cortadas pelo
congresso americano, quanto o desinteresse da opinião pública estadunidense com o
projeto. Ainda que tenha havido três missões tripuladas Skylab que usaram a nave Apollo e
uma missão Apollo 18 (Apollo-Soyuz), estas não tinham como objetivo chegar à Lua.

Big Science:
O advento da Big Science, tal como a que se configurou tanto no Projeto Manhattan
quanto no Projeto Appollo, constitui um extremo dirigismo de atividades, o que,
necessariamente, implica em perda de autonomia e independência dos cientistas nela
envolvidos.
Poder-se-ia argumentar que se trata apenas de um dirigismo político e, se pensarmos
particularmente no caso do projeto Manhattan, de uma severa vigilância, mas que, exceto
isso, o cientista teria espaço para manifestar a sua excelência enquanto cientista sem
grandes peias nem restrições, pois estava perante um desafio de monta.
Assim Fermi, Alvarez, Oppenheimer, Teller e todos os demais que participaram do
Projeto Manhattan estariam desafiados a desenvolver as suas autonomias e independências
científicas da melhor maneira que pudessem.
É interessante enfatizar que apesar desse fato ser, em larga medida, verdadeiro e que,
ademais, todos esses eram espíritos de elevada competência ao nível mesmo da
excelência, isto não implica, por si só, que a institucionalização de um dirigismo político do
gênero não acarretasse consequências deletérias para a própria atividade científica no seu
conjunto. Essa institucionalização, contendo esse grande defeito de origem, implicou uma
degradação célere dos padrões cognitivos e éticos da atividade científica como um todo.
Em função do guarda-chuva abrangente que a expressão Big Science comporta, não
seria nem justo nem correto se viéssemos a considerar que as configurações e as
organizações possíveis dos empreendimentos científicos que envolvem muitos
pesquisadores, financiamentos de vulto, equipamentos complexos e grandes projetos
fossem, todas elas, exatamente iguais quanto às consequências éticas e cognitivas para a
instituição da ciência e para a sua estrutura e seu funcionamento.
Por uma questão de justiça, haveremos de convir que a configuração de uma
organização que acarreta uma Big Science, como a constituída pelo Projeto Manhattan, é
radicalmente diferente de uma configuração de uma Big Science envolvendo cientistas que
trabalham em Física de Altas Energias, como os que estão engajados, direta ou
indiretamente, nos experimentos excitantes e cheios de promessas do LHC (Large Hadron
Collider) um gigante acelerador de partículas recentemente construído em Genebra, Suíça.
No caso do Projeto Manhattan, o que houve foi um empreendimento bélico, secreto,
hegemônico e muito vigiado. No caso do LHC, muito pelo contrário, cientistas de vários
países entram em consórcio em busca de soluções, ainda que parciais, para problemas
complexos, os quais não poderiam ser investigados sem uma colaboração do gênero.
Enquanto no primeiro caso, o caráter secreto impede a circulação de ideias, no segundo
caso há o compartilhamento dos resultados.

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