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MAYOMBE

De Pepetela

Adaptação para Teatro: Tony Frampênio


NOTA DA ADAPTAÇÃO

Mudou-se quase tudo e arrumou-se de uma maneira que, do ponto de vista dramático,
pudesse prender a atenção do espectador. Alguns personagens ganharam o nome de seus
perfís psicológicos. Outros adoptaram falas daqueles espíritos aniquilados neste
processo intermodal, justificando, deste modo, as mortes na luta anti-colonial no
coração do Mayombe. Diferente do romance, aqui no Teatro, ficou interessante
tecnicamente, contar a história de trás para frente, de modos a induzir o espectador a um
estado catártico desde o início até ao final da trama. Entretanto, manteve-se o grande
conflito original – o tribalismo, causa de todas as façanhas imperialistas e de todos os
atrasos do desenvolvimento do País. Paralelamente a isso, enfatizou-se a luta entre
homens por uma única mulher: uma Eva que enlouquece a Cobra, o Adão e o próprio
Deus! O Autor – Pepetela, que nos perdoe tamanha ousadia, pois ele mesmo deixa claro
no prólogo da sua obra, que essa é a história de Ogun, o Prometeu africano. Alguns
antenados saberão que, foi com o ‘Guia metodológico para o teatro fundado no texto
literário – O Teatro da Ampulheta’, que se procedeu a adaptação.

Tony Frampênio - 19 de Abril de 2023


I CENA
Uma luz de fundo rasga a cena ao meio, qual efeito solar na floresta do Mayombe.
Várias personagens vão surgindo, em silueta, pois a luz, - o sol, os bate nas costas,
deixando passar apenas alguns raios de luz e, tal efeito, dá à impressão de troncos em
movimento. Nesta atmosfera, em memória aos combatentes, entoa-se o Hino Nacional:

Ó Pátria, nunca mais esqueceremos

Os heróis do 4 de Fevereiro

Ó Pátria, nós saudamos os teus filhos

Tombados pela nossa independência

Honramos o passado e a nossa história

Construimos no trabalho um homem novo

Honramos o passado e a nossa história

Construimos no trabalho um homem novo

Angola, avante

Revolução, pelo Poder Popular

Pátria unida, liberdade

Um só povo, uma só nação (Refrão 2 X)

Levantemos nossas vozes libertadas

Para glórias dos povos africanos

Marchemos, combatentes angolanos

Solidários com os povos oprimidos

Orgulhosos lutaremos pela paz

Com as forças progressistas do mundo

Orgulhosos lutaremos pela paz

Com as forças progressistas do mundo

Angola, avante

Revolução, pelo Poder Popular

Pátria unida, liberdade

Um só povo, uma só nação (Refrão 2 X)


II CENA
Coloca-se a Bandeira Nacional sob um cadáver... Em semí circulo, uma das
personagens profere, depois de um ritual com dança e canto, palavras de honra:

LUTAMOS – A morte de Sem Medo constitui para mim a mudança de pele dos
quarenta e sete anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda a metamorfose. Só me
apercebi do que perdera, quando o inevitável se deu.

TALVEZ – Sem Medo resolveu o seu problema fundamental: para se manter ele
próprio, teria de ficar aqui, no Mayombe. Terá nascido demasiado cedo ou demasiado
tarde? Em todo o caso, fora do seu tempo, como qualquer herói de tragédia. Eu evoluo e
construo uma nova pele. Há os que precisam de escrever para despir a pele que lhes não
cabe já. Outros mudam de país. Outros de amante. Outros de nome ou de penteado. Eu
perdi o amigo.

MUNDO NOVO – Do coração do Bié, a mil quilómetros do Mayombe, depois de


uma marcha de um mês, rodeado de amigos novos, onde vim ocupar o lugar que ele não
ocupou, contemplo o passado e o futuro. E vejo quão irrisória é a existência do
indivíduo. É, no entanto, ela que marca o avanço no tempo.

VERDADE – Penso, como ele, que a fronteira entre a verdade e a mentira é um


caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois lados da fronteira. Quantos há que
sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia? Existem, no entanto, e
eu sou um deles.

MILAGRE – Sem Medo também o sabia. Mas insistia em que era um caminho no
deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho cortando, nítido, o verde do
Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no meio do verde.

INGRATIDÃO – Tal é o destino de Ogun, o Prometeu africano.

TODOS – Tal é o destino de Ogun.


III CENA
As mulheres põem-se a chorar, com dança e cânticos em honra ao seu amor Sem Medo,
Ogun – o Prometeu africano.

INGRATIDÃO – (enciumado, chama) Ondina!

A Ondina, (todas elas) levanta-se e vai embora com outro homem, outro Prometeu.

ONDINA 1 – (consolada) Ingratidão!

ONDINA 2 – (consolada) Talvez!

ONDINA 3 – (consolada) Verdade!

ONDINA 4 – (consolada) Lutamos!

ONDINA 5 – (consolada) Sim, Mundo Novo!

ONDINA 6 – (consolada) Oh, Milagre, meu amor!

IV CENA
Sem Medo, sozinho, acrobaticamente, no meio de uma fumaça, o seu espírito deixa o
corpo para ir reclamar a paz, pela qual perdeu a vida.

SEM MEDO – (griot) Só o fumo podia libertar-se do Mayombe e subir, por entre as
folhas e as lianas, dispersando-se rapidamente no alto, como água precipitada por
cascata estreita que se espalha num lago. Há vezes em que um homem precisa de sofrer,
precisa de saber que está a sofrer e precisa ultrapassar o sofrimento. Para quê? Porquê?
Às vezes, por nada. Outras vezes, por muita coisa que não sabe, não pode ou não quer
explicar. O problema é que se trata de uma operação de guerra e não de um passeio.
Num passeio, um tipo pode agir contra a razão, só porque lhe apetece ir pela esquerda
em vez de ir pela direita. Na guerra não tem esse direito, arrisca a vida dos outros...
Vêem? Uma parte de mim jaze aqui no Mayombe, mas há uma outra parte que vive em
Dolisie. É lá, na fronteira, onde acontecem as grandes batalhas. Não é a toa que Pepetela
deu-me este nome: Sem Medo, guerrilheiro de Henda. Antes chamavam-me Esfinge,
ninguém sabia porquê. Quando fui promovido a Chefe de Secção, deram-me este nome,
por ter resistido sozinho a um grupo inimigo que atacara um posto avançado, o que deu
tempo a que a Base fosse evacuada sem perdas. Teoria, o Talvez – professor na missão,
sentia que eu tinha um segredo. Como cada um dos outros. E era esse segredo de cada
um que os fazia combater, frequentemente por razões longíquas das afirmadas. Porquê
Sem Medo abandonara o curso de Economia, em 1964, para entrar na guerrilha? Porquê
o Comissário Verdade abandonara Caxito, o pai velho e pobre camponês arruinado pelo
roubo das terras de café, e viera? Talvez o Comissário Verdade tivesse uma razão mais
evidente que os outros, sim. Porquê o Chefe de Operações Milagre abandonara os
Dembos e a família? Porquê o Lutamos Muatiânvua, o desenraizado, o marinheiro,
abandonara os barcos para agora marchar a pé, numa vida de aventura tão diferente da
sua? Porquê um tal dito Mundo Novo veio cá parar? E o Ingratidão do André, aquele
ingrato?! Como é que um estranho se incorpora assim, com tanta facilidade, no seio do
bereau? E porquê ele, Teoria, o professor Talvez, abandonara a mulher e a posição que
podia facilmente adquirir? Consciência política, consciência das necessidades do povo!
Palavras fáceis, palavras que, no fundo, nada diziam. Como age em cada um deles essa
dita consciência? Pois é, essa é a história de Ogun. Aos guerrilheiros do Mayombe, que
ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a
história de Ogun, o Prometeu africano (Sai).

V CENA
Entra o professor Teoria, o Talvez. Como um griot, encena a sua própria história.
TALVEZ – (griot) Manuela sorriu-me e embrenhou-se no mato, no mato denso do
Amboím, onde despontava o café, a riqueza dos homens. O café vermelho pintava o
verde da mata. Assim Manuela pintava a minha vida. Manuela, Manuela, onde estás tu
hoje? Na Gabela? Manuela da Gabela, correndo no mato de Amboím, o mato verde das
serpentes mortais, como o Mayombe, mas que pare o fruto vermelho do café, riqueza
dos homens. Manuela, perdida para sempre. Amigada com outro, porque a deixei,
porque Manuela não foi suficientemente forte para me reter no Amboím e eu escolhi o
Mayombe, as suas lianas, os seus segredos e os seus exilados. Perdi Manuela para
ganhar o direito de ser – talvez -, café com leite, combinação, híbrido, o que quiserem.
Os rótulos pouco interessam, os rótulos só servem os ignorantes que não vêem pela
coloração qual líquido encerrado no frasco. Entre Manuela e o meu próprio eu, escolhi
este. Como é dramático ter sempre de escolher, preferir um caminho a outro, o sim ou o
não! Porque no Mundo não há lugar para o talvez? Estou no Mayombe, renunciando a
Manuela, com o fim de arranjar no Universo manequeísta o lugar para o talvez. Fugi
dela, não a revi, escolhi sozinho, fechado em casa, na nossa casa, naquela casa onde em
breve uma criança iria viver e chorar e sorrir. Nunca vi essa criança, não a verei jamais.
Nem Manuela. A minha história é a dum alienado que se aliena, esperando libertar-se.
Criança ainda, queria ser branco, para que os brancos me não chamassem negro.
Homem, queria ser negro, para que os negros me não odiassem. Onde estou eu, então?
E Manuela, como poderia ela situar-se na vida de alguém perseguido pelo problema da
escolha, do sim ou do não? Fugi dela, sim, fugi dela, porque estava a mais na minha
vida; a minha vida é o esforço de mostrar a uns e a outros que há sempre lugar para o
talvez. Manuela, Manuela, amigada com outro, dando as suas carícias a outro. E eu,
aqui molhado pela chuva-mulher que não pára, fatigado, exilado, desesperado, sem
Manuela. Os meus conhecimentos levaram-me a ser nomeado professor da Base. Ao
mesmo tempo, sou instrutor político, ajudando o Comissário Verdade. A minha vida na
Base é preenchida pelas aulas e pelas guardas. Por vezes, raramente, uma acção. Desde
que estamos no interior, a actividade é maior. Não actividade de guerra, mas de patrulha
e reconhecimento. Ofereço-me sempre para as missões, mesmo contra a opinião do
Comando: poderia recusar? Imediantamente se lembrariam de que não sou igual aos
outros. Uma vez quis evitar ir em reconhecimento: tivera um pressentimento trágico.
Havia tão poucos na Base que o meu silêncio seria logo notado. Ofereci-me. É a
alienação total. Os outros podem esquivar-se, podem argumentar quando são
escolhidos. Como o poderei fazer, eu que trago em mim o pecado original do pai-
branco? (Sai).

VI CENA
Entra o Milagre. Como um griot, encena a sua própria história.

MILAGRE – (griot) Sacanas colonialistas, vão à merda... Viram como o


Comandante se preocupa tanto com os cem escudos desse traidor de Cabinda? Não
perguntam porquê, não se admiram? Pois eu vou explicar-vos. O Comandante é
kikongo; embora ele tenha ido pequeno para Luanda, o certo é que a sua família veio do
Uije. Ora, o fiote e o kikongo são parentes, é no fundo o mesmo povo. Por isso ele está
tão furioso por se ter roubado um dos seus primos. Por isso ele protege o Lutamos,
outro traidor. E viram a raiva com que ele agarrou o Ingratidão? Porquê? Ingratidão é
kimbundo, está tudo explicado. Eu nasci em Quibaxi, região kimbundo, como o
Comissário e o Chefe das Operações, que são dali próximo. Fugi de Angola com a mãe.
Era um miudo. Fui para Kinshasa. Depois vim para o MPLA, chamado pelo meu tio,
que era dirigente. Na altura! Hoje não é, foi expulso. Os intelectuais têm a mania de que
somos nós, os camponeses, os tribalistas. Mas eles também o são. O problema é que há
tribalismo e tribalismo. Mas, o que se vê agora aqui? São os mais atrasados que querem
mandar. E eles vão apanhando os lugares-chave, enquanto há dos nossos que os ajudam.
É como esse parvo do Comissãrio, que não percebe nada do que se passa. Eu sofri o
colonialismo na carne. O meu pai foi morto pelos tugas. Como posso suportar ver
pessoas que não sofreram agora mandarem em nós, até parece que sabem do que
precisamos? Vejam a injustiça. Eu, Milagre, vim de Quibaxi, onde os homens atacavam
o inimigo só com catanas e a sua coragem, eu vim de longe, o meu pai foi morto, a
cabeça levada pelo tractor, para ver agora um dos nossos, amarrado, seguir para o
Congo, amarrado, porque ficou com cem escudos dum traidor de Cabinda! Eu, Milagre,
nasci para ver isto! Ingratidão foi condenado a seis meses de cadeia. E quantos traidores
não são castigados, são mesmo aceites? Lutamos foi castigado? Tentou avisar os
trabalhadores que íamos prendê-los, tentou sabotar a missão, foi castigado? E Ekuikui,
que guardou o dinheiro em vez de o entregar logo, foi ele castigado? Só um dos nossos
é que foi. Quem decidiu? O Comandante. Quem fez pressão para que fosse condenado?
O Comandante, sempre o Comandante. Um intelectual, que nada conhece da vida, que
não sofreu, um homem desses é que pode condenar-nos? Assim vai a vida. Ah, na
Primeira Região... Na Primeira Região, isto não ficaria assim! Esse Comandante há
muito teria ido já para a tuga, para escapar ao nosso castigo. E o Comissãrio seguia-o,
esse miúdo que só faz o que lhe diz o Sem Medo. Sem Medo? Quem lhe deu esse
nome? Nunca vi que fosse assim tão corajosos. É corajoso, sim, mas também não tanto.
É esta a injustiça a que assistimos, sem poder fazer nada. Quando mudará isto? Oh,
Nzambi, quando mudará isto? (Sai).

VII CENA
Entra o Lutamos. Como um griot, encena a sua própria história.

LUTAMOS – (griot) A mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras à frente
dos homens, a mata gerou montanhas intransporníveis, feras, aguaceiros, rios
caudalosos, lama, escuridão, Medo. A mata abriu valas camufladas de folhas sob os pés
dos homens, barulhos imensos no silêncio da noite, derrubou árvores sobre os homens.
E os homens avançaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braços folhas
brotaram, e flores, e a mata curvou-se em abóbada, e a mata estendeu-lhes a sombra
protectora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. E Prometeu dava
impunemente o fogo aos homens, e a inteligência. E os homens compreendiam que
Zeus, afinal, não era invencível, que Zeus se vergava à coragem, graças a Prometeu que
lhes dá a inteligência e a força de se afirmarem homens em oposição aos deuses. Tal é o
atributo do herói, o de levar os homens a desafiarem os deuses. Assim é Ogun, o
Prometeu africano (Sai).
VIII CENA
Entra o Mundo Novo. Como um griot, encena a sua própria história.

MUNDO NOVO – (griot) Recuso-me a acreditar no que diz Sem Medo. Lá está
ele, ali, no meio dos jovens, rasgando nas raízes da mata, rastejando, triturando os
ombros contra o solo duro, putrefacto e húmido de Maombe, enrouquecendo com os
gritos e imprecações que blasfema, emasculando-se no sémen da floresta, no sémen
gerador de gigantes, suando a lama que sai da casca das árvores, beliscando-se nos
frutos escondidos por baixo das folhas caídas, lá está ele, no meio dos jovens, ensinando
o que sabe, totalmente, entregando-se aos alunos, abrindo-se como coxas duras duma
virgem, e ele, que está ali, diz que o faz interesseiramente. Como se fosse possível
fazer-se uma Revolução só com homens interesseiros, egoístas! Eu não sou egoísta, o
marxismo-lelinismo mostrou-me que o homem como indivíduo não é nada, só as
massas constróem a História. Se fosse egoísta, agora estaria na Europa, como tantos
outros, trabalhando e ganhando bem. Porque vim lutar? Porque sou desinteressado. Os
operários e os camponeses são desinteressados, são a vanguarda do povo, vanguarda
pura, que não transporta com ela o pecado original da burguesia de que os intelectuais
só muito dificilmente se podem libertar. Eu libertei-me, graças ao marxismo. Por isso
Sem Medo está errado. Mas como explicar-lho, como fazer-lhe compreender que a sua
atitude anarquista é prejudicial à luta? Mas foi ele que correu a peito descoberto para
salvar Muatiânvua, quando caíram na emboscada, e que chorou ao vê-lo ileso (Sai).

IX CENA
Entra o Verdade. Como um griot, encena a sua própria história.

VERDADE – (griot) Meu pai era um trabalhador bailundo da Diamang, minha mãe
uma kimbundo do Songo. Nasci no meio de diamantes, sem os ver. Onde eu nasci,
havia homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e miseráveis da
Companhia. Onde eu cresci, no bairro Benfica, em Benguela, havia homens de todas as
línguas, sofrendo as mesmas amarguras. O primeiro bando a que pertenci tinha mesmo
meninos brancos, e tinha miúdos nascidos de pai umbundo, tchokue, kimbundo, fiote,
kuanhama. Querem hoje que eu seja tribalista! De que tribo? Pergunto eu. De que tribo,
se eu sou de todas as tribos, não só de Angola, como de África? Entrei na guerra,
sabendo que tudo que fizesse para acabar com a exploração era correcto. E tudo fiz.
Mas não foi tão rápido como se imaginava. Os traidores impediram a luta crescer.
Traidores de todos os lados. Eu vi-os de todas as línguas e cores. Eu vi os nossos
próprios patrícios que tinham roças quererem aproveitar para aumentar as roças. E
alguns colaboraram com a Pide. Por isso, Sem Medo tem razão. Ele está sozinho aqui,
em Dolise. Rodeado de inimigos ou, pelo menos, de pessoas que não o compreendem.
Por isso não durmo, para que haja justiça. Por isso fico acordado (Sai).

X CENA
Entra o Ingratidão. Como um griot, encena a sua própria história.

INGRATIDÃO – (griot) Eis-me a caminho de Brazzaville, a caminho do desterro,


sentado à frente dum homem que não responde senão por monossílabos, grave como
deve ser um membro da Direcção. A pasta vai ao lado dele, fechada à chave, cheia de
documentos que me hão-de comprometer. Basta ver a sua cara para saber que o
processo me será desfavorável. E onde estão os meus companheiros que me não
defenderam? Fugiram todos, nenhum ousou abrir a boca a meu favor. Todos aqueles
que me lisonjeavam, que andavam à minha volta esperando uma migalha, fugiram com
medo dos kimbundos. Não há dúvida que são os kimbundos que fazem a lei. No fundo,
no fundo, quem se vai tramar é o Sem Medo. Eu irei para outro sítio onde subirei na
mesma: há tal falta de quadros que quem tem um olho é rei em terra de cegos. Ele ficará
aqui com todos os problemas, agora agravados (Sai).
XI CENA
Entra o Ondina. Como um griot, encena a sua própria história.

ONDINA – (griot) Também eu, Ondina. Isso é o que me enraivece. Queremos


transformar o mundo e somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos
ser livres, fazer a nossa vontade, e a todo o momento arranjamos desculpas para
reprimir os nossos desejos. E o pior é que nos convencemos com as nossas próprias
desculpas, deixamos de ser lúcidos. Só covardia. É medo de nos enfrentarmos, é um
medo que nos ficou dos tempos em que temíamos Deus, ou o pai ou o professor, é
sempre o mesmo agente repressivo. Somos uns alienados. O escravo era totalmente
alienado. Nós somos piores, porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes que já
quebraram mas continuamos a transportá-las connosco, por medo de as deitarmos fora e
depois nos sentirmos nus. Com o amor é assim. Se se torna igual, a paixão desaparece.
A culpa foi minha que me acomodei à situação, que não me apercebi que a rotina é o
pior inimigo do amor. Eu tive outras possibilidades: podia trocar os números da tabela
periódica, inventar a equação perfeita e a matemática do amor. Devia ter sido um Sun
Tsu ou Maquiavel femenino e com os meus quadrís ensinar a arte da guerra. Talvés
ficasse em casa, uma fera domada por um caçador no Mayombe; cozinhar, lavar,
engomar e ser possuida por um político na lama. Aceitaria qualquer decreto, como um
vagabundo abrigado em Terrafal. Mas não, preferi ser uma Mãe Coragem ao estilo
Berthold Brecht e, zungar paz e esperança no meio da guerra colonial, porém, tribal.
Sou eu, Ondina, a reparadora dos feridos, dos corpos moribundos, daqueles cujo o
fólego da vida é o beijo da morte. Eu, Ondina, também trato os doentes com o meu
feitiço, que os faz homens corajosos, dispostos a morrer por uma noite de prazer. Quem
comigo está, com Deus há de estar. Sou o próprio Judas na Cruz, um Barrabás africano,
a desobediência e a revolução em pessoa. Aliás, eu Ondina, sou também Sem Medo.
Depois apareceu o outro, metido a poeta, fazendo-me versos, falando bem. Tocou na
corda sentimental... Toda a mulher gosta de ser a musa dum poeta (palmas).

A Ondina é mulher de mil ofícios: é professora, é doméstica, é zungueira, é enfermeira,


é quimbandeira, é cristã.
XII CENA
Entra o Ingratidão. Diálogo com a Ondina 1, a professora.

INGRATIDÃO – (com um buquê de flores) Há mulheres que me fazem poeta.


Ondina... (Todas olham-se, mas ele prefere a Ondina 1).

ONDINA – Todo mundo a tua procura e é a mim que vens oferecer flores?!

INGRATIDÃO – Qual é o espanto?

ONDINA – Espanta-me a corrupção.

INGRATIDÃO – A corrupção?

ONDINA – Sim. As pessoas estão revoltadas. Há muito que não abasteces a Base.

INGRATIDÃO – É a fome.

ONDINA – A fome?

INGRATIDÃO – Sim. A falta de comida gera instabilidade emocional. Até cães


começam a falar política.

ONDINA - Tens dinheiro e gastas com as amantes.

INGRATIDÃO – Em tempos de guerra inventam-se muitas teorias.

ONDINA – Mas tu és casado, André.

INGRATIDÃO – Casado com o bureau.

ONDINA – É um facto.

INGRATIDÃO – Sigo ordens superiores.

ONDINA – Ou devo te chamar Ingratidão?

INGRATIDÃO – Deste jeito ofendes o movimento.


ONDINA – Que belo movimento.

INGRATIDÃO – E tu, Ondina? Ficarás a espera do teu noivo, o Comissãrio


Político, mais quanto tempo? (Ondina recebe as flores e saem).

XIII CENA
Entra o Verdade. Diálogo com a Ondina 2, a cristã.

VERDADE – (chateado, com uma carta a mão) Que mujimbo é este?!

ONDINA 2 – (demora à responder) Escrevi e contei tudo... É verdade.

VERDADE – E o André?

ONDINA – Que pensas fazer em relação a ele?

VERDADE – Nada. Claro que não lhe vou fazer nada. O Movimento que se
encarregue.

ONDINA – Pensei que te quisesses vingar.

VERDADE – Vingar de quê? Não a violou! (instiga) Violou? (Ondina abaixa a


cabeça)

ONDINA – (vira de costas) Era melhor não teres vindo.

VERDADE – Recebi a tua carta. Tinha de falar contigo.

ONDINA – Para quê, Verdade? Pra quê?! Não há nada a esconder.

VERDADE – Quero os detalhes. Tudo.

ONDINA – (retoma a posição frontal) Isso é masoquismo.


VERDADE – Talvez, não me importo.

ONDINA – (suspira e limpa as lágrimas) Bem. Há uma semana talvez, encontrei o


André no caminho para Dolise.

VERDADE – (desiludido) Ingrato de merda! (instiga) E depois?

ONDINA – Depois fomos para o capim.

VERDADE – (agarra-a aos ombros) Só assim? Ah? Responda, Ondina!

ONDINA – Que mais queres saber?

VERDADE – Não irias assim para o capim, conheço-te.

ONDINA – (explode de raiva e solta-se) Bem, se queres saber... Ele beijou-me no


jipe. Quando me propôs para irmos para o capim, aceitei.

VERDADE – Mas porquê? Isso não acontece à toa.

ONDINA – Comigo pode acontecer à toa. Depende das circuntâncias, depende do


homem... Eu sentia-me só, e o André é...

VERDADE – O quê?

ONDINA - Um belo homem.

VERDADE – Um belo homem mais é a ova! Ele é um cabinda, um traidor, um


corrúpo. Sacana diabo! (saca a arma e sai seguido da Ondina)

XIV CENA
Entra o Milagre. Diálogo com a Ondina 3, a doméstica.

MILAGRE – Eu amo-te, Ondina.


ONDINA – Isso é que é um Milagre!

MILAGRE – Talvez. É certo. É mesmo o que complica as coisas. Tudo poderia ser
tão fácil... Poderíamos continuar a ser amigos. Ou amantes ou inimigos.

ONDINA – Entre nós a amizade não é possível.

MILAGRE – Eu sei, é pena.

ONDINA – Eu sou noiva de um Kimbundo. Me envolvi com um Kikongo. Vés o


romance tribal em que me meti?

MILAGRE – Não é preciso ser feiticeiro para adivinhar o clima que reinará em
Delosie. O tribalismo aqui cresce como o capim. Só com essa tática o colono já ganhou
a guerra.

ONDINA – Qual tática?

MILAGRE – O divisionismo.

ONDINA – Mas eu consigo controlar essa lixeira. Sou faxineira sénior do bureau.

MILAGRE – É um trabalho duro.

ONDINA – Sim. Limpo, engomo e cozinho leis.

MILAGRE – Ouvi que cozinhaste a galinha do Movimento.

ONDINA – Bungle bang. Aqui o jantar é sempre comunas.

MILAGRE – Maldita guerra. Já o esqueleto me quer abandonar o corpo.

ONDINA – Jesus Cristo pregado na cruz! Vou no quarto trocar de roupa. (Milagre a
segue esfregando as mãos)
XV CENA
Entra o Mundo Novo. Diálogo com a Ondina 4, a quimbandeira. Ambiente místico.

MUNDO NOVO – Bom dia, Ondina. Ainda não nos tínhamos visto.

ONDINA – Quem és?

MUNDO NOVO – Mundo Novo.

ONDINA – (riso seco) Esses vossos nomes de guerra! Tudo utopia.

MUNDO NOVO – Mas nos deixa inspirado.

ONDINA – Não seria muita ousadia pedir-lhe um cigarro? Agora já posso fumar à
vontade. Evitava fazê-lo para não chocar as pessoas.

MUNDO NOVO – (oferece um cigarro à Ondina) Tens muitos segredos, Ondina!

ONDINA – No amor é a mesma coisa. Se uma pessoa se mostra toda ao outro, o


interesse da discoberta desaparece. O que conta no amor é a descoberta do outro, dos
seus pecadilhos, das suas taras, dos seus vícios, das suas grandezas, os seus pontos
sensíveis, tudo o que constitui o outro. O amante que se quer fazer amar deve dosear
essa descoberta. Tem de ser ao conta-gotas. E a alma humana é tão rica, tão compexa,
que essa descoberta pode levar uma vida.

MUNDO NOVO – Isso depende das mulheres.

ONDINA – Há mulheres que querem saber exctamente como o homem é, para se


acomodarem a ele, para moldarem o seu comportamento segundo o do marido.

MUNDO NOVO – São as escravas.

ONDINA – Não é dessas que falo. Falo das que são adversários sérios e que, portanto,
são capazes de dar o maior prazer e os maiores desgostos a um homem. A mulher sem
personalidade, que vive em função do outro, a submissa, é como o homem que aceita a
desgraça sem se revoltar. Uns mediócres!

MUNDO NOVO – Eu sou o Mundo Novo.

ONDINA – Conheço muito bem essa canção. (saem)

XVI CENA
Entra o Talvez. Diálogo com a Ondina 5, a zungueira.

TALVEZ – O que vendes?

ONDINA – Depende.

TALVEZ – Do quê?

ONDINA – Do que quiseres comprar.

TALVEZ – Não compreendo.

ONDINA – No meio da guerra é assim: vende-se a vontade do cliente.

TALVEZ – Porque dizes isso?

ONDINA – Tu és o género de homem que as mulheres gramam. Tu passas por elas,


indiferente e altivo. As mulheres são mosoquistas, gostam de quem as trata como
mercadoria cara, mas acessível para os recursos do comprador.

TALVEZ – Isso é uma declaração de amor, Ondina?

ONDINA – Talvez. Talvez sim, talvez não.

TALVEZ – É o que diria a minha mãe e a minha tia, e a tia da minha tia...
ONDINA – Não estou tão certo como tu. Raciocinamos em função da nossa
sociedade assimilada à cultura judaico cristã europeia, em que o homem tem de ser
ciumento, porque é o bode do rebanho e a mulher é a sua propriedade.

TALVEZ – O que acontece a propriedade que é arrendada a outro?

ONDINA – Às vezes até fica renovada, rejuvenescida, com empate de capital e de


trabalho.

TALVEZ - Estás a dizer que o corno é cultural?

ONDINA – Olha, um congolês que apanhou a mulher em flagrante aí na buala perto


da fronteira, exigiu o pagamento pela ofensa. Um camarada perguntou-lhe se não ficou
zangado. Ele respondeu: porquê? Isso não gasta a mulher. E esta é a maneira de pensar
do africano que tem pouco contacto com a religião cristã. Nós estamos aculturados,
corrompidos, muito mais alienados.

TALVEZ – O que disseste mesmo que estavas a vender, Ondina?

ONDINA – Já disse: aqui na guerra vendemos a vontade do cliente. (saem)

XVII CENA
Entra o Lutamos. Diálogo com a Ondina 6, a enfermeira.

LUTAMOS – (acamado, grita) Emergência! Fui atingido por uma bala perdida,
uma bala oriunda do norte, do sul e do leste, sei lá. Fui atingido no meio de uma guerra
tribalista.

ONDINA – (socorrendo) Onde foste atingido?

LUTAMOS – (muito sofrido, porém fingindo) No coração.


ONDINA – (desiludida) Que desilusão! Vejo que já estás morto.

LUTAMOS – Sim, Ondina. Eu morri e fui enterrado junto com o camandante Sem
Medo, lá no meio do Mayombe. Lutamos juntos.

ONDINA – Agora até os kazumbis me vêem investigar a vida?! (tenta sair)

LUTAMOS – (levantando-se) O meu espírito não descansa em paz com o ferimento


no coração. Morri sem os primeiros cuidados. A pátria a mim, deve amor.

ONDINA – Eu não sou a Pátria. Não sou o Movimento e muito menos o Bureau! Sou
apenas uma mulher: um território que foi ocupado e dominado por um estranho e, luto,
comigo mesma, luto em busca da independência. Além de Sem Medo eu também sou
Mayombe, sou Ogun, o Prometeu africano.

LUTAMOS – É por isso que as guerras nunca acabam. Todo mundo é deus. (Ondina
sae)

XVIII CENA
Entra o Sem Medo. Contorcendo-se de dor. Depois é seguido pelo resto dos colegas.

LUTAMOS – O que se passa? (recebe nos braços o amigo)

SEM MEDO – Fui atacado por uma surucucu.

TODOS – Surucucu?!

SEM MEDO – Recebi o beijo da morte. Tal é a vida. Morri para salvar um
kimbundo. (Ondina chora)

LUTAMOS – (griot) As flores de mafumeira caíam sobre a campa, docemente,


misturadas às folhas verdes das árvores. O tronco da amoreira ainda se afirma,
debatendo-se, nem os obuses, nem as rajadas de AKA o mataram... A morte de Sem
Medo constitui para mim a mudança de pele dos 47 anos, a metamorfose. Dolorosa,
como toda a metamorfose. Só me apercebi do que perdera, quando o inevitável se deu.
Sem Medo resolveu o seu problema fundamental: para se manter ele próprio, teria de
ficar ali, no Mayombe. Terá nascido demasiado cedo ou demasiado tarde? Em todo o
caso, fora do seu tempo, como qualquer herói de tragédia. Eu evoluo e construo uma
nova pele. Há os que precisam escrever para despir a pele que lhes não cabe já. Outros
mudam de país. Outros de amante. Outros de nome ou de penteado. Eu perdi o amigo.
Foi essa a bala perdida que me atingiu o coração. Eu, Lutamos, morri junto com o Sem
Medo.

TODOS – Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo


um caminho na floresta obscursa, vou contar a história de Ogun, o Prometeu africano.

São ambos enterrados...

Fim

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