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De Pepetela
Mudou-se quase tudo e arrumou-se de uma maneira que, do ponto de vista dramático,
pudesse prender a atenção do espectador. Alguns personagens ganharam o nome de seus
perfís psicológicos. Outros adoptaram falas daqueles espíritos aniquilados neste
processo intermodal, justificando, deste modo, as mortes na luta anti-colonial no
coração do Mayombe. Diferente do romance, aqui no Teatro, ficou interessante
tecnicamente, contar a história de trás para frente, de modos a induzir o espectador a um
estado catártico desde o início até ao final da trama. Entretanto, manteve-se o grande
conflito original – o tribalismo, causa de todas as façanhas imperialistas e de todos os
atrasos do desenvolvimento do País. Paralelamente a isso, enfatizou-se a luta entre
homens por uma única mulher: uma Eva que enlouquece a Cobra, o Adão e o próprio
Deus! O Autor – Pepetela, que nos perdoe tamanha ousadia, pois ele mesmo deixa claro
no prólogo da sua obra, que essa é a história de Ogun, o Prometeu africano. Alguns
antenados saberão que, foi com o ‘Guia metodológico para o teatro fundado no texto
literário – O Teatro da Ampulheta’, que se procedeu a adaptação.
Os heróis do 4 de Fevereiro
Angola, avante
Angola, avante
LUTAMOS – A morte de Sem Medo constitui para mim a mudança de pele dos
quarenta e sete anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda a metamorfose. Só me
apercebi do que perdera, quando o inevitável se deu.
TALVEZ – Sem Medo resolveu o seu problema fundamental: para se manter ele
próprio, teria de ficar aqui, no Mayombe. Terá nascido demasiado cedo ou demasiado
tarde? Em todo o caso, fora do seu tempo, como qualquer herói de tragédia. Eu evoluo e
construo uma nova pele. Há os que precisam de escrever para despir a pele que lhes não
cabe já. Outros mudam de país. Outros de amante. Outros de nome ou de penteado. Eu
perdi o amigo.
MILAGRE – Sem Medo também o sabia. Mas insistia em que era um caminho no
deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho cortando, nítido, o verde do
Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no meio do verde.
A Ondina, (todas elas) levanta-se e vai embora com outro homem, outro Prometeu.
IV CENA
Sem Medo, sozinho, acrobaticamente, no meio de uma fumaça, o seu espírito deixa o
corpo para ir reclamar a paz, pela qual perdeu a vida.
SEM MEDO – (griot) Só o fumo podia libertar-se do Mayombe e subir, por entre as
folhas e as lianas, dispersando-se rapidamente no alto, como água precipitada por
cascata estreita que se espalha num lago. Há vezes em que um homem precisa de sofrer,
precisa de saber que está a sofrer e precisa ultrapassar o sofrimento. Para quê? Porquê?
Às vezes, por nada. Outras vezes, por muita coisa que não sabe, não pode ou não quer
explicar. O problema é que se trata de uma operação de guerra e não de um passeio.
Num passeio, um tipo pode agir contra a razão, só porque lhe apetece ir pela esquerda
em vez de ir pela direita. Na guerra não tem esse direito, arrisca a vida dos outros...
Vêem? Uma parte de mim jaze aqui no Mayombe, mas há uma outra parte que vive em
Dolisie. É lá, na fronteira, onde acontecem as grandes batalhas. Não é a toa que Pepetela
deu-me este nome: Sem Medo, guerrilheiro de Henda. Antes chamavam-me Esfinge,
ninguém sabia porquê. Quando fui promovido a Chefe de Secção, deram-me este nome,
por ter resistido sozinho a um grupo inimigo que atacara um posto avançado, o que deu
tempo a que a Base fosse evacuada sem perdas. Teoria, o Talvez – professor na missão,
sentia que eu tinha um segredo. Como cada um dos outros. E era esse segredo de cada
um que os fazia combater, frequentemente por razões longíquas das afirmadas. Porquê
Sem Medo abandonara o curso de Economia, em 1964, para entrar na guerrilha? Porquê
o Comissário Verdade abandonara Caxito, o pai velho e pobre camponês arruinado pelo
roubo das terras de café, e viera? Talvez o Comissário Verdade tivesse uma razão mais
evidente que os outros, sim. Porquê o Chefe de Operações Milagre abandonara os
Dembos e a família? Porquê o Lutamos Muatiânvua, o desenraizado, o marinheiro,
abandonara os barcos para agora marchar a pé, numa vida de aventura tão diferente da
sua? Porquê um tal dito Mundo Novo veio cá parar? E o Ingratidão do André, aquele
ingrato?! Como é que um estranho se incorpora assim, com tanta facilidade, no seio do
bereau? E porquê ele, Teoria, o professor Talvez, abandonara a mulher e a posição que
podia facilmente adquirir? Consciência política, consciência das necessidades do povo!
Palavras fáceis, palavras que, no fundo, nada diziam. Como age em cada um deles essa
dita consciência? Pois é, essa é a história de Ogun. Aos guerrilheiros do Mayombe, que
ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a
história de Ogun, o Prometeu africano (Sai).
V CENA
Entra o professor Teoria, o Talvez. Como um griot, encena a sua própria história.
TALVEZ – (griot) Manuela sorriu-me e embrenhou-se no mato, no mato denso do
Amboím, onde despontava o café, a riqueza dos homens. O café vermelho pintava o
verde da mata. Assim Manuela pintava a minha vida. Manuela, Manuela, onde estás tu
hoje? Na Gabela? Manuela da Gabela, correndo no mato de Amboím, o mato verde das
serpentes mortais, como o Mayombe, mas que pare o fruto vermelho do café, riqueza
dos homens. Manuela, perdida para sempre. Amigada com outro, porque a deixei,
porque Manuela não foi suficientemente forte para me reter no Amboím e eu escolhi o
Mayombe, as suas lianas, os seus segredos e os seus exilados. Perdi Manuela para
ganhar o direito de ser – talvez -, café com leite, combinação, híbrido, o que quiserem.
Os rótulos pouco interessam, os rótulos só servem os ignorantes que não vêem pela
coloração qual líquido encerrado no frasco. Entre Manuela e o meu próprio eu, escolhi
este. Como é dramático ter sempre de escolher, preferir um caminho a outro, o sim ou o
não! Porque no Mundo não há lugar para o talvez? Estou no Mayombe, renunciando a
Manuela, com o fim de arranjar no Universo manequeísta o lugar para o talvez. Fugi
dela, não a revi, escolhi sozinho, fechado em casa, na nossa casa, naquela casa onde em
breve uma criança iria viver e chorar e sorrir. Nunca vi essa criança, não a verei jamais.
Nem Manuela. A minha história é a dum alienado que se aliena, esperando libertar-se.
Criança ainda, queria ser branco, para que os brancos me não chamassem negro.
Homem, queria ser negro, para que os negros me não odiassem. Onde estou eu, então?
E Manuela, como poderia ela situar-se na vida de alguém perseguido pelo problema da
escolha, do sim ou do não? Fugi dela, sim, fugi dela, porque estava a mais na minha
vida; a minha vida é o esforço de mostrar a uns e a outros que há sempre lugar para o
talvez. Manuela, Manuela, amigada com outro, dando as suas carícias a outro. E eu,
aqui molhado pela chuva-mulher que não pára, fatigado, exilado, desesperado, sem
Manuela. Os meus conhecimentos levaram-me a ser nomeado professor da Base. Ao
mesmo tempo, sou instrutor político, ajudando o Comissário Verdade. A minha vida na
Base é preenchida pelas aulas e pelas guardas. Por vezes, raramente, uma acção. Desde
que estamos no interior, a actividade é maior. Não actividade de guerra, mas de patrulha
e reconhecimento. Ofereço-me sempre para as missões, mesmo contra a opinião do
Comando: poderia recusar? Imediantamente se lembrariam de que não sou igual aos
outros. Uma vez quis evitar ir em reconhecimento: tivera um pressentimento trágico.
Havia tão poucos na Base que o meu silêncio seria logo notado. Ofereci-me. É a
alienação total. Os outros podem esquivar-se, podem argumentar quando são
escolhidos. Como o poderei fazer, eu que trago em mim o pecado original do pai-
branco? (Sai).
VI CENA
Entra o Milagre. Como um griot, encena a sua própria história.
VII CENA
Entra o Lutamos. Como um griot, encena a sua própria história.
LUTAMOS – (griot) A mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras à frente
dos homens, a mata gerou montanhas intransporníveis, feras, aguaceiros, rios
caudalosos, lama, escuridão, Medo. A mata abriu valas camufladas de folhas sob os pés
dos homens, barulhos imensos no silêncio da noite, derrubou árvores sobre os homens.
E os homens avançaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braços folhas
brotaram, e flores, e a mata curvou-se em abóbada, e a mata estendeu-lhes a sombra
protectora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. E Prometeu dava
impunemente o fogo aos homens, e a inteligência. E os homens compreendiam que
Zeus, afinal, não era invencível, que Zeus se vergava à coragem, graças a Prometeu que
lhes dá a inteligência e a força de se afirmarem homens em oposição aos deuses. Tal é o
atributo do herói, o de levar os homens a desafiarem os deuses. Assim é Ogun, o
Prometeu africano (Sai).
VIII CENA
Entra o Mundo Novo. Como um griot, encena a sua própria história.
MUNDO NOVO – (griot) Recuso-me a acreditar no que diz Sem Medo. Lá está
ele, ali, no meio dos jovens, rasgando nas raízes da mata, rastejando, triturando os
ombros contra o solo duro, putrefacto e húmido de Maombe, enrouquecendo com os
gritos e imprecações que blasfema, emasculando-se no sémen da floresta, no sémen
gerador de gigantes, suando a lama que sai da casca das árvores, beliscando-se nos
frutos escondidos por baixo das folhas caídas, lá está ele, no meio dos jovens, ensinando
o que sabe, totalmente, entregando-se aos alunos, abrindo-se como coxas duras duma
virgem, e ele, que está ali, diz que o faz interesseiramente. Como se fosse possível
fazer-se uma Revolução só com homens interesseiros, egoístas! Eu não sou egoísta, o
marxismo-lelinismo mostrou-me que o homem como indivíduo não é nada, só as
massas constróem a História. Se fosse egoísta, agora estaria na Europa, como tantos
outros, trabalhando e ganhando bem. Porque vim lutar? Porque sou desinteressado. Os
operários e os camponeses são desinteressados, são a vanguarda do povo, vanguarda
pura, que não transporta com ela o pecado original da burguesia de que os intelectuais
só muito dificilmente se podem libertar. Eu libertei-me, graças ao marxismo. Por isso
Sem Medo está errado. Mas como explicar-lho, como fazer-lhe compreender que a sua
atitude anarquista é prejudicial à luta? Mas foi ele que correu a peito descoberto para
salvar Muatiânvua, quando caíram na emboscada, e que chorou ao vê-lo ileso (Sai).
IX CENA
Entra o Verdade. Como um griot, encena a sua própria história.
VERDADE – (griot) Meu pai era um trabalhador bailundo da Diamang, minha mãe
uma kimbundo do Songo. Nasci no meio de diamantes, sem os ver. Onde eu nasci,
havia homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e miseráveis da
Companhia. Onde eu cresci, no bairro Benfica, em Benguela, havia homens de todas as
línguas, sofrendo as mesmas amarguras. O primeiro bando a que pertenci tinha mesmo
meninos brancos, e tinha miúdos nascidos de pai umbundo, tchokue, kimbundo, fiote,
kuanhama. Querem hoje que eu seja tribalista! De que tribo? Pergunto eu. De que tribo,
se eu sou de todas as tribos, não só de Angola, como de África? Entrei na guerra,
sabendo que tudo que fizesse para acabar com a exploração era correcto. E tudo fiz.
Mas não foi tão rápido como se imaginava. Os traidores impediram a luta crescer.
Traidores de todos os lados. Eu vi-os de todas as línguas e cores. Eu vi os nossos
próprios patrícios que tinham roças quererem aproveitar para aumentar as roças. E
alguns colaboraram com a Pide. Por isso, Sem Medo tem razão. Ele está sozinho aqui,
em Dolise. Rodeado de inimigos ou, pelo menos, de pessoas que não o compreendem.
Por isso não durmo, para que haja justiça. Por isso fico acordado (Sai).
X CENA
Entra o Ingratidão. Como um griot, encena a sua própria história.
ONDINA – Todo mundo a tua procura e é a mim que vens oferecer flores?!
INGRATIDÃO – A corrupção?
ONDINA – Sim. As pessoas estão revoltadas. Há muito que não abasteces a Base.
INGRATIDÃO – É a fome.
ONDINA – A fome?
ONDINA – É um facto.
XIII CENA
Entra o Verdade. Diálogo com a Ondina 2, a cristã.
VERDADE – E o André?
VERDADE – Nada. Claro que não lhe vou fazer nada. O Movimento que se
encarregue.
VERDADE – O quê?
XIV CENA
Entra o Milagre. Diálogo com a Ondina 3, a doméstica.
MILAGRE – Talvez. É certo. É mesmo o que complica as coisas. Tudo poderia ser
tão fácil... Poderíamos continuar a ser amigos. Ou amantes ou inimigos.
MILAGRE – Não é preciso ser feiticeiro para adivinhar o clima que reinará em
Delosie. O tribalismo aqui cresce como o capim. Só com essa tática o colono já ganhou
a guerra.
MILAGRE – O divisionismo.
ONDINA – Mas eu consigo controlar essa lixeira. Sou faxineira sénior do bureau.
ONDINA – Jesus Cristo pregado na cruz! Vou no quarto trocar de roupa. (Milagre a
segue esfregando as mãos)
XV CENA
Entra o Mundo Novo. Diálogo com a Ondina 4, a quimbandeira. Ambiente místico.
MUNDO NOVO – Bom dia, Ondina. Ainda não nos tínhamos visto.
ONDINA – Não seria muita ousadia pedir-lhe um cigarro? Agora já posso fumar à
vontade. Evitava fazê-lo para não chocar as pessoas.
ONDINA – Não é dessas que falo. Falo das que são adversários sérios e que, portanto,
são capazes de dar o maior prazer e os maiores desgostos a um homem. A mulher sem
personalidade, que vive em função do outro, a submissa, é como o homem que aceita a
desgraça sem se revoltar. Uns mediócres!
XVI CENA
Entra o Talvez. Diálogo com a Ondina 5, a zungueira.
ONDINA – Depende.
TALVEZ – Do quê?
TALVEZ – É o que diria a minha mãe e a minha tia, e a tia da minha tia...
ONDINA – Não estou tão certo como tu. Raciocinamos em função da nossa
sociedade assimilada à cultura judaico cristã europeia, em que o homem tem de ser
ciumento, porque é o bode do rebanho e a mulher é a sua propriedade.
XVII CENA
Entra o Lutamos. Diálogo com a Ondina 6, a enfermeira.
LUTAMOS – (acamado, grita) Emergência! Fui atingido por uma bala perdida,
uma bala oriunda do norte, do sul e do leste, sei lá. Fui atingido no meio de uma guerra
tribalista.
LUTAMOS – Sim, Ondina. Eu morri e fui enterrado junto com o camandante Sem
Medo, lá no meio do Mayombe. Lutamos juntos.
ONDINA – Eu não sou a Pátria. Não sou o Movimento e muito menos o Bureau! Sou
apenas uma mulher: um território que foi ocupado e dominado por um estranho e, luto,
comigo mesma, luto em busca da independência. Além de Sem Medo eu também sou
Mayombe, sou Ogun, o Prometeu africano.
LUTAMOS – É por isso que as guerras nunca acabam. Todo mundo é deus. (Ondina
sae)
XVIII CENA
Entra o Sem Medo. Contorcendo-se de dor. Depois é seguido pelo resto dos colegas.
TODOS – Surucucu?!
SEM MEDO – Recebi o beijo da morte. Tal é a vida. Morri para salvar um
kimbundo. (Ondina chora)
Fim