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Concurso MAGISTRATURA TJ PR
Disciplina: Empresarial
RESUMO
*
Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Associado de Direito
Empresarial nas Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Docente permanente do PPDG
da UERJ, linha de pesquisa Empresa e Atividades Econômicas. Líder do Grupo de Pesquisa
Empresa e Atividades Econômicas do CNPq. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Email: asaa@uol.com.
br
**
Graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Email:
mboliveira@demarest.com.br
ABSTRACT
The study goes through the judicial reorganization plan exploring its private
interest by the decision that grants the judicial reorganization and homologates
the judicial reorganization plan. The Law n. 11,101, of February 9, 2005, has
given the creditor, debtor and judge decisive roles in the restructuring of economic
activity in crisis. Nevertheless, after 10 years of law effectiveness, many gaps
are identified by the doctrine and Courts whereas the sophistication of the cases
examined under the brazilian’s bankruptcy law, demanding sometimes extensive
interpretation by the operator of the law. The judicial review carried out on the
judicial reorganization plan content, prepared by debtor and creditor, requires
accurate dexterity of the judge for not replacing the role of private actors in the
judicial recovery procedure. In this sense, the study of understanding issues of
the Courts is essential to the understanding and development of legal institutions,
seeking to analysis the jurisprudence construction around the matter.
Introdução
A Lei nº 11.101/2005 (“LFRE”) inovou ao trazer para o cenário
jurídico nacional o regime da recuperação judicial e introduzir significativas
mudanças ao procedimento judicial destinado à manutenção da
atividade empresarial em crise, anteriormente regulado pelo rígido e
estreito regime de concordata preventiva, previsto no Decreto-Lei nº
7.661/1945. Em franco contraste ao Decreto-Lei ab-rogado, a lei vigente
compreende a flexibilização, em parte, das condições para a concessão
da recuperação como caminho ao atendimento de seus princípios
basilares, franqueando certa autonomia negocial ao devedor e seus
credores para o desenvolvimento de um plano de recuperação judicial
destinado a reerguer a atividade econômica em apuros.
Não obstante, se por um lado a autonomia conferida às partes
lhes assegura papel fundamental na negociação do conteúdo do
plano de recuperação, por outro a submissão do ato à homologação
judicial para a efetiva concessão da recuperação judicial conduz a um
1
A definição proposta sintetiza as definições elaboradas pelos autores Jairo Saddi (2006, p. 27),
Sérgio Campinho (2012, p. 77) e Fábio Ulhôa Coelho (2013).
2
“Art. 55. Qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial
no prazo de 30 (trinta) dias contado da publicação da relação de credores de que trata o § 2o do
art. 7º desta Lei. Parágrafo único. Caso, na data da publicação da relação de que trata o caput
deste artigo, não tenha sido publicado o aviso previsto no art. 53, parágrafo único, desta Lei,
contar-se-á da publicação deste o prazo para as objeções.”
3
Nesse sentido, SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 005.45.5824400. Rel.
Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 26/03/2008.
4
No procedimento de concordata preventiva, o credor estava municiado dos “embargos à
concordata”, pelo qual poderia se opor à concessão do regime ao devedor perante o juiz, conforme
os artigos 142 e 143 do Decreto-lei n. 7.661/1945. Diferentemente dos embargos, a objeção
ao plano não será apreciada pelo Juízo, destinando-se à suscitar a convocação de assembleia
geral de credores para deliberação da matéria no conclave. Nesse sentido, o seguinte trecho
do acórdão proferido no julgamento do Agravo de Instrumento n. 0047459-81.2009.9.19.0000,
pela Décima Quinta Câmara Cível do Estado do Rio de Janeiro, sob relatoria do Des. Sergio
Lucio Cruz, em 26/01/2010: “Não competia ao juiz, portanto, na decisão que homologou o
“Plano”, examinar as objeções apresentadas, por ser isso matéria de exclusiva competência da
assembleia geral.”
5
“Art. 37. A assembléia será presidida pelo administrador judicial, que designará 1 (um) secretário
dentre os credores presentes. §2º A assembléia instalar-se-á, em 1a (primeira) convocação, com
a presença de credores titulares de mais da metade dos créditos de cada classe, computados
pelo valor, e, em 2a (segunda) convocação, com qualquer número”.
6
“Art. 41. A assembléia-geral será composta pelas seguintes classes de credores: I – titulares
de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; II –
titulares de créditos com garantia real; III – titulares de créditos quirografários, com privilégio
especial, com privilégio geral ou subordinados. IV - titulares de créditos enquadrados como
microempresa ou empresa de pequeno porte.”
7
“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise
econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do
emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação
da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
8
“Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor
cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido
aprovado pela assembléia-geral de credores na forma do art. 45 desta Lei. §1º O juiz poderá
conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art.
45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos
presentes à assembléia, independentemente de classes; II – a aprovação de 2 (duas) das
classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com
credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores,
computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45 desta Lei. §2º A recuperação judicial somente
poderá ser concedida com base no § 1º deste artigo se o plano não implicar tratamento
diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado”.
9
“Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará
a assembleia geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação. [...] § 4º Rejeitado o
plano de recuperação pela assembleia geral de credores, o juiz decretará a falência do devedor.”
10
“Art. 53. O plano de recuperação será apresentado pelo devedor em juízo no prazo improrrogável
de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação
judicial, sob pena de convolação em falência, e deverá conter: I – discriminação pormenorizada
dos meios de recuperação a ser empregados, conforme o art. 50 desta Lei, e seu resumo; II –
demonstração de sua viabilidade econômica; e III – laudo econômico-financeiro e de avaliação
dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa
especializada.
Parágrafo único. O juiz ordenará a publicação de edital contendo aviso aos credores sobre
o recebimento do plano de recuperação e fixando o prazo para a manifestação de eventuais
objeções, observado o art. 55 desta Lei.”
11
Cabe, outrossim, ressaltar que o legislador não considerou a ocorrência de razões de força maior
que justificariam a entrega intempestiva do plano. Tampouco a lei deu ao juiz ou assembleia de
credores a faculdade de examinar tais justificativas, pois determinou a decretação de falência ex
officio na hipótese de apresentação extemporânea do plano.
12
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
70043342070. Rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 31/08/2011; e RIO GRANDE
DO SUL. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n 70035509736. Rel.
Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, j. 24/11/2010.
13
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Agravo de
Instrumento n. 994.09.319061-0, j. 06/04/2010, destacando-se que: “Por fim, em relação à
inviabilidade do plano, tem-se que é matéria de exclusivo exame por parte dos credores, que
o aceitaram, escapando ao Poder Judiciário deliberação em sentido contrário. Destinatário do
plano de recuperação são os credores. Não há previsão normativa de atuação jurisdicional com
a finalidade de julgar o plano de recuperação. A menos que alguma previsão do plano venha a
incidir em ofensa a norma de ordem pública, em alguma espécie de inconstitucionalidade ou,
enfim, em algum tipo de abuso, o Poder Judiciário não examina o plano de recuperação e sua
viabilidade.”
14
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, Sexta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
70037009958, rel. Des. Luís Augusto Coelho Braga, j. 9/9/2010. Sustentou a Turma Julgadora
que: “Compulsando-se os presentes autos (fl. 534/544), infere-se não terem sido apresentados os
laudos mencionados no inciso III, do dispositivo acima transcrito, cuja falta ensejou a realização
de laudo pericial já referido, pelo qual se observou a ausência do requisito contido no inciso II;
viabilidade econômica. Logo, o Magistrado a quo atuou com respaldo da legislação incidente
à espécie, segundo a qual, uma vez desatendido o prazo para a apresentação do plano de
recuperação com as respectivas especificações, será decretada a falência.”.
15
JORNADA DE DIREITO COMERCIAL I., 23-24 de outubro de 2012. Brasília: Conselho da Justiça
Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2013.
16
Adotando o mesmo entendimento, cf. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, Quinta
Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0091278-87.2014.8.21.7000. Rel. Des. Isabel Dias
Almeida, j. 30/04/2014, no qual a ausência de apresentação do laudo econômico-financeiro
foi imediatamente constatada pelo Juízo que, diante da improrrogabilidade do prazo de sua
apresentação, decretou a falência da devedora: “A apresentação do laudo econômico-financeiro
no processo de recuperação judicial decorre de exigência legal, porquanto visa demonstrar a
viabilidade da empresa, apesar das dificuldades apresentadas. [...] Certo é que o prazo para a
apresentação do Plano de recuperação judicial, com o atendimento de todos os seus requisitos,
é de sessenta dias, contados da publicação que deferiu o seu processamento. Na hipótese
em comento, não houve a observância da determinação legal, sendo descabido o pedido de
prorrogação de prazo”.
17
Nesse sentido: MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento
n. 1.0079.10.017400-6/004. Rel. Des. Teresa Cristina da Cunha Peixoto, j. 10/11/2011, no qual foi
destacado que: “Além disso, o próprio art. 56, §3º da Lei 11.101/2005 mencionado pelos credores
irresignados estabelece a possibilidade de que o plano possa sofrer alterações na assembleia-
geral, desde que haja expressa concordância do devedor e em termos que não impliquem a
diminuição dos direitos exclusivamente dos credores ausentes, o que se amolda no caso em
tela”.
legalidade18. Parece claro que, como qualquer negócio jurídico, não basta
o consenso (ou a aprovação da maioria) para que o plano de recuperação
judicial seja válido e eficaz entre as partes, devendo incorporar os
requisitos legais destinados a lhe qualificar como negócio jurídico perfeito.
Nessa lógica, e revelando-se o viés processual da recuperação
judicial, ao juiz foi atribuído papel chancelador da decisão assemblear,
de modo a submeter o plano de recuperação - e também a própria
assembleia geral - ao controle jurisdicional. A esse respeito, Paulo
Fernando Campos Salles de Toledo (2013, p. 307) pontua:
É certo que a Lei dispõe que o juiz ‘decretará a falência
do devedor’ se o plano tiver sido rejeitado, ou ‘concederá
a recuperação judicial’ quando não tiver sofrido objeção ou
tiver sido aprovado pela assembleia geral. Não quer isto
dizer, no entanto, que o juiz deverá sempre, em qualquer
caso, chancelar automaticamente a manifestação de
vontade coletiva dos credores. O pronunciamento judicial
terá forçosamente que aplicar a lei ao caso concreto, e para
isso deverá levar em conta o preenchimento ou não dos
requisitos legais.
18
É possível extrair de inúmeros dispositivos da LFRE, que impõem proibições ou exigências ao
devedor na elaboração do plano (ou na fase de sua execução) a necessidade de exame de
legalidade, tais como: afastar a variação cambial sem o consentimento expresso do credor (art.
50, §2º); suprimir ou substituir a garantia real sem o consentimento do credor (art. 50, §1º);
estender os efeitos da recuperação aos coobrigados solventes nas obrigações que assumir
(violação ao art. 49, §1º) ou aos credores incluídos no art. 49, §§ 3ª e 4ª; estabelecer prazos
para o pagamento dos créditos trabalhistas em desacordo com o art. 54; prever, como meio
de recuperação, a cisão, incorporação, fusão ou transformação da sociedade empresária,
constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, sem respeitar os direitos dos
sócios previstos na legislação (art. 50, II); prever a redução salarial, compensação de horários e
redução da jornada, sem acordo ou convenção coletiva prévios. (art. 50, VIII); incluir cláusulas
que impliquem tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado,
na situação prevista no art. 58, §1º (aprovação do plano por metade ou maioria das classes
votantes). Ademais, se o devedor optar pelo plano especial para ME e EPP, seu conteúdo é
limitado aos incisos do art. 71.
validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos
a controle judicial”19; e “é certo que se submete ao controle jurisdicional
a análise do preenchimento das condições prévias à concessão da
recuperação e exigências legais relativas à elaboração e à aprovação do
plano” (cf. Lei nº 11.101/2005, art. 58). Por fim, destaca-se o enunciado
no 44 aprovado na I Jornada de Direito Comercial: “A homologação de
plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao
controle judicial de legalidade.”.
Embora o controle judicial de legalidade seja consectário lógico da
exegese dos princípios de direito e esteja manifestamente presente na
LFRE, maiores embates afloram para definir o grau de incursão do juiz,
constitucionalmente munido do poder jurisdicional, para circunscrever
o exercício da autonomia da vontade pelas partes à luz dos híbridos
direitos e interesses tutelados na LFRE.
A rigor, segundo a dicção do art. 58 da LFRE, cumpridas as
exigências da lei, o juiz concederá a recuperação judicial ao plano de
recuperação que não foi alvo de objeções ou aprovado na forma do
art. 55. Ao que transparece, não lhe é conferida discricionariedade
para análise do conteúdo do plano ou da manifestação de vontade dos
credores, limitando-se a verificar o cumprimento das exigências formais
de desenvolvimento da Assembleia Geral de Credores, restando
vinculado ao seu resultado20 (MOREIRA, 2005, p. 253-254).
Por outro lado, há autores que defendem maior autonomia ao juiz,
cabendo-lhe ponderar a deliberação assemblear frente aos princípios
da LFRE – especialmente o da preservação da empresa – para analisar,
19
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n 1314209. Rel. Min. Nancy Andrighi, j.
22.05.2012.
20
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
1.0707.12.028102-7/004. Rel. Des. Fernando Caldeira Brant, j. 11/07/2014, destacando-se
o seguinte trecho do acórdão: “Ora, cabe ao judiciário fazer uma análise objetiva quanto ao
preenchimento das condições prévias à concessão da recuperação judicial, bem como aos
requisitos formais impostos para que ocorra a aprovação de um plano, os quais, no caso concreto,
foram devidamente preenchidos”.
21
Nesse sentido, cf.: MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. 3ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento
n. 1.0702.07.347636-9/018. Rel. Des. Kildare Carvalho, j. 06/02/2014. Extrai-se do acórdão o
seguinte fragmento: “No tocante a possibilidade de controle judicial das deliberações tomadas
pela assembleia geral de credores, devo dizer que, de fato, o Estado-juiz, ao exercer o caráter
jurisdicional do processo de recuperação judicial, detém o poder decisório. É dizer, o juiz não fica
vinculado às deliberações tomadas na assembleia de credores.”.
22
A propósito, Miguel Reale (2002, p. 133) destaca que a imperatividade de uma norma jurídica
também pode advir da doutrina e jurisprudência, pois é através das pesquisas e decisões judiciais
que se extraem os limites de sua expressão verbal, segundo exigências fatuais e valorativas,
para que correspondam às contingências sociais e econômicas.
23
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial n. 1359311. Rel. Min Luís
Felipe Salomão, j. 30/09/2014.
24
“Art. 61, §2º. Decretada a falência, os credores terão reconstituídos seus direitos e garantias nas
condições originalmente contratadas, deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados
os atos validamente praticados no âmbito da recuperação judicial.”
25
Assim também já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça: BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n. 1260301/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14/08/2012.
26
“Art. 49, §1o Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e
privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”.
27
O mesmo entendimento é compartilhado pelo Superior Tribunal de Justiça e diversos Tribunais
Estaduais brasileiros: BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Segunda Seção. Conflito de
Competência n. 112.620, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. 24/11/2010; SANTA CATARINA.
Agravo de Instrumento n. 2013.001316-2. Rel. Guilherme Nunes Born, j. 19/09/2013; SÃO PAULO.
Tribunal de Justiça. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Agravo de Instrumento nº
0137526-29.2011.8.26.0000. Rel. Des. Elliot Akel, j. 13/12/11; RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de
Justiça, Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 70041336363. Rel. Des. Pedro
Celso Dal Pra, j. 31/03/2011;
28
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Agravo de
Instrumento n. 0282057-82.2009.8.26.0000. Rel. Des. Romeu Ricupero, j. 06/04/2010.
29
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo
de Instrumento n. 2041474-29.2014.8.26.0000, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 14/08/2014. No
mesmo sentido: RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sexta Câmara Cível. Agravo de
Instrumento n. 0234977-73.2013.8.21.7000. Rel. Des. Ney Wiedemann Neto, j. 24/10/2013.
30
BAHIA. Tribunal de Justiça. Terceira Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0015363-
32.2011.8.05.0000. Rel. Des. Lisbete Mª Almeida Cézar Santos, j. 13/11/2012.
31
Cf. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial.
Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 31/07/2012. Afirmando-se “No que concerne à
liberação de garantias reais e fidejussórias, tal cláusula só tem eficácia para os credores que
votaram favoravelmente ao plano, consoante expressa ressalva constante da ata e na estrita
observância do art. 50, § 1º, da LFR.”; e BAHIA. Tribunal de Justiça. Terceira Câmara Cível.
Agravo de Instrumento n. 0015363-32.2011.8.05.0000. Des rel. Lisbete Mª Almeida Cézar
Santos, j. 14/11/2012.
32
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Nona Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0047257-
65.2013.8.19.0000. Rel. Des. José Roberto Portugal Compasso, j. 03/12/2013.
33
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Câmara Especial Regional de Chapecó. Agravo de
Instrumento n. 2013.067640-7. Rel. Des. Eduardo Mattos Gallo Junior, j. 10/03/2014.
34
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 0036314-91.2013.8.26.0000. Rel. Des. Tasso Duarte de Melo, j. 19/08/2013.
35
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça, Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento
0051870-65.2012.8.19.0000. Rel. Des. Jorge Luiz Habib, j. 04/12/2012, assim fundamentado: “A
decisão da Assembleia Geral de Credores é soberana, não sendo concebível que se venha fazer
prevalecer interesse de outrem sobre o dos próprios credores, que decidiram conforme a citada
cláusula “5.4.1” ao aprovar o plano de recuperação.”
36
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça, Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento
0051870-65.2012.8.19.0000. Rel. Des. Jorge Luiz Habib, j. 04/12/2012, assim fundamentado: “A
decisão da Assembleia Geral de Credores é soberana, não sendo concebível que se venha fazer
prevalecer interesse de outrem sobre o dos próprios credores, que decidiram conforme a citada
cláusula “5.4.1” ao aprovar o plano de recuperação.”
37
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 0076455-55.2013.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 29/08/2013.
38
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo
de Instrumento n. 2110784-25.2014.8.26.0000. Rel. Des. Fernando Antonio Maia da Cunha, j.
11/09/2014.
39
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo
de Instrumento n. 0055083-50.2013.8.26.0000. Rel. Ricardo Negrão, j. 25/07/2014. Com o
mesmo entendimento: SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito
Empresarial. Agravo de Instrumento n. 0109227-71.2013.8.26.0000. Rel. Des. Lígia A. Bisogni, j.
16/07/2014.
40
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
1.0024.12.283623-2/027. Rel. Des. Fernando Caldeira Brant, j. 25/09/2014.
41
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 0020538-51.2013.8.26.0000. Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 04/07/2013.
42
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 2071805-91.2014.8.26.0000. Rel. Des. Ramon Mateo Júnior, j. 17/11/2014.
43
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Nona Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0047152
88.2013.8.19.0000. Rel. Des. José Roberto Portugal Compasso, j. 26/11/2013.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Resumo: O artigo trata da ação revocatória como instrumento necessário para declaração de
ineficácia subjetiva de atos fraudulentos praticados em prejuízo da massa falida e credores, nos
termos do artigo 130 da Lei n. 11.101/2005. O objetivo é demonstrar que as decisões de
improcedência nas ações revocatórias baseiam-se nas hipóteses de imperícia do administrador
judicial, na dificuldade na coleta de provas e na assimetria de informações detidas pela massa
falida e pelo réu. O método utilizado foi o dedutivo e a pesquisa bibliográfica também se
apoiou no estudo de casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça
estaduais.
Palavras-chave: Falência; Massa Falida; Ineficácia Subjetiva; Ação Revocatória; Artigo 130
da Lei nº 11.101/2005.
Abstract: This article discusses the revocation suit as a necessary instrument for stating
subjective inefficacy of fraudulent acts performed to the loss of bankrupt estate and of
creditors, as per article 130, Law#11101/2005. The purpose is to demonstrate that revocation
suits dismissal decisions are grounded on assumptions regarding lack of expertise by the court
appointed administrator, difficulties in collecting evidence, and asymmetry of information held
by the bankruptcy estate and by revocation suit defendant. Deductive method was adopted, and
bibliographic research also leaned in the study of cases judged by the Higher Court of Justice
and by Brazilian Courts of Justice.
INTRODUÇÃO
1
Mestre e Doutor em Direito. Professor Associado nas Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Docente
permanente do PPGD da UERJ; alexandreas@direito.uerj.br
2
Advogada e Consultora nas áreas de Direito Empresarial, Contencioso Cível, e Contratos; sócia do escritório
Bastos-Tigre, Coelho da Rocha. Lopes e Freitas Advogados. Atualmente cursa o mestrado na linha de pesquisa
Empresa e Atividades Econômicas no PPGD da UERJ; thalita.almeida@bastostigre.adv.br
79
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
O vocábulo revocatória tem origem no verbo latino revocar, que significa fazer voltar,
3
Segundo a Revista Valor Econômico, somente no ano de 2016, foram registrados 1.863 pedidos de recuperação
judicial no país. Disponível em <https://www.valor.com.br/brasil/4824392/pedidos-de-recuperacao-judicial-
batem-recorde-em-2016-nota-serasa>. Acesso em 28/08/2018.
80
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
restituir a, chamar de volta. (Requião, 1998, p. 224). Para Carlos Roberto Claro (2015, p. 83),
a compreensão da etimologia da palavra é relevante para a correta interpretação sistemática
desse instrumento do procedimento falimentar. Em sentido material, a finalidade da ação
revocatória é revogar negócios jurídicos praticados no período que precede a falência, com
objetivo de restituir à massa falida os bens que foram extraídos do seu ativo em conluio
fraudulento com consequente prejuízo dela e dos credores do falido.
Em termos processuais, a revocatória prevista no art. 130 da LRF pode ser descrita
como procedimento ordinário (“comum” na terminologia do atual CPC), de natureza
constitutiva negativa, eficácia relativa e que se materializa como medida de proteção coletiva,
cujo exercício só tem lugar depois da decretação da falência da devedora.
Yussef Said Cahali indica a origem da revocatória falencial nos estatutos comerciais
das comunas italianas, elucidando interessante questão sobre a evolução da medida: “[...]
igualmente na legislação italiana, o Código Comercial francês de 1808 [sic] adotou uma
solução radical: equiparando o falido ao interdito, inquinava de nulidade abosluta atos por
ele praticados desde a data da cessação de pagamentos[...].” (2013, p. 517). [grifo nosso]
O raciocínio supra é reforçado pela literalidade dos arts. 4444 e 4455 do Code de
Commerce francês, nos quais se verifica tratamento de nulidade e anulabilidade aos atos
fraudulentos. A mesma lógica era acompanhada pelo Código português de 1833, em seus
parágrafos. 1.1366 e 1.1377, pelo Código Comercial de 1850, no artigo 8288, pelo Decreto n.
917 de 1890, no seu artigo 30, b9, bem como pela Lei n. 859 de 1902, em seu artigo 36, b10.
4
Art. 444. Tous actes translatifs de propriétés immobilières, faits par le failli, à titre gratuit, dans les dix jours qui
précèdent l’overture de la faillite, sont nuls et sans effect relativement à la masse des créanciers; tous actes du
même genre, à titre onéreux, sont susceptibles d’être annullés, sur la demande des créanciers, s’ils paraissent aux
juges porter des caractères de fraude.
5
Art. 445. Tous actes ou engagemens pour fait de commerce, contractés par le débiteur dans les dix jours qui
précèdent l’overture de la faillite, sont présumés frauduleux, quant au failli: ils sont nuls, lorsqu’il est prouvé qu’il
y a fraude de la part des autres contractans.
6
Art. 1.136. Todos os atos translativos de propriedade móve1 ou de raiz, a titulo oneroso, todas as obrigações,
todos os pagamentos feitos em qualquer época podem ser anulados a requerimento dos credores, provando-se
fraude de qualqner das partes.
7
Art. 1.137. Todos os atos ou obrigações, contraídas pelo devedor com fim comercial nos vinte dias precedentes à
abertura da falência, presumem-se fraudulentos quanto ao falido; e são nulos, provando-se que houve fraude da
parte dos outros contratantes.
8
Art. 828 - Todos os atos do falido alienativos de bens de raiz, móveis ou semoventes, e todos os mais atos e
obrigações, ainda mesmo que sejam de operações comerciais, podem ser anulados, qualquer que seja a época em
que fossem contraídos, enquanto não prescreverem, provando-se que neles interveio fraude em dano de credores.
9
Art. 30. São anuláveis somente em beneficio da massa: b) todos e quaisquer atos, seja qual for a época em que
tenham sido feitos, sem que se possa alegar prescrição ordinária, provando-se fraude de uma e outra parte
contratante.
81
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
Interessante notar que o Código Comercial espanhol de 1829, parece ter inaugurado a distinção
entre os atos anuláveis, previstos no art. 1.04111, e a revocação (revocar) para os atos
praticados en fraude de sus acreedores (revocação), nos termos do art. 1.04212.
No Brasil, com a promulgação da Lei n. 2.024, de 1908, finalmente ocorreu a
distinção dos efeitos que se pretendia emprestar aos atos que, objetivamente, não seriam
oponíveis à massa falida (art. 55)13, e a revogação de atos praticados de forma fraudulenta na
forma do art. 5614. A redação do dispositivo legal que previu a ação revocatória não sofreu
alteração substancial no Decreto n. 5.746, de 1929, nos seus arts. 5515 e 5616, seguido do
Decreto-lei n. 7.661, de 1945, que previu as medidas de ineficácia em seus arts. 5217 e 5318.
Na legislação falimentar vigente, a revocatória se acha prevista no Capítulo V da Lei
n. 11.101/2005, que trata da ineficácia objetiva e da revogação19 de atos praticados antes da
falência em seus arts. 129 e 130. No artigo 129 e seus incisos estão previstas as hipóteses de
ineficácia objetiva e, no artigo 130, as de ineficácia subjetiva. É fundamental fazer a distinção
entre as situações previstas nesses dois dispositivos, porque ela se reflete na correta aferição
dos elementos necessários para aplicação de um ou de outro procedimento, bem como da
necessidade ou dispensa de produção de determinadas provas.
1.1 Distinção entre as hipóteses de ineficácia previstas nos artigos 129 e 130 da LRF
10
Art. 36. São anuláveis somente em beneficio da massa: b) todos e quaisquer actos, seja qual for a época em que
tenham sido feitos, sem que se possa alegar prescrição, provando-se fraude de uma e outra parte contratante.
11
Art. 1041. Podrán anularse á instancia de los acreedores, mediante la prueba de haberse obrado en fraude de sus
derechos: [...].
12
Art. 1042. Todo contrato hecho por el quebrado en los cuatro años anteriores á la quiebra , en que se pruebe
cualquiera especie de suposicion ó simulacion hecha en fraude de sus acreedores, se podrá revocar á instancia de
estos.
13
Art. 55. Não produzirão efeito relativamente à massa, tenha ou não o contratante conhecimento do estado
econômico do devedor, seja ou não intenção deste fraudar os credores: [...].
14
Art. 56. Poderão ser revogados, também, relativamente à massa, todos e quaisquer atos, enquanto não prescritos,
praticados pelo devedor, na intenção de prejudicar credores, provando-se fraude de ambos os contraentes.
15
Art. 55. Não produzirão efeitos relativamente à massa, tenha ou não o contratante conhecimento do estado
econômico de devedor, seja ou não intenção deste fraudar os credores: [...]
16
Art. 56. Poderão ser revogados, também relativamente à massa, todos o quaisquer atos, enquanto não prescritos,
praticados pelo devedor, na intenção do prejudicar credores, provando-se fraude, de ambos os contraentes.
17
Art. 52. Não produzem efeitos relativamente à massa, tenha ou não o contratante conhecimento do estado
econômico do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: [...]
18
Art. 53. São também revogáveis, relativamente à massa, os atos praticados com a intenção de prejudicar
credores, provando-se a fraude do devedor e do terceiro que com ele contratar.
19
O termo revogação não é etimologicamente adequado para tratar da revocatória, mas foi utlizado no texto, em
razão de sua propagação na doutrina e nos textos legais. No entanto, é pertinente registrar que o sentido que se
deve emprestar ao termo é de revocar (chamar para trás, mandar voltar) e não de revogar (tornar sem efeito,
anular, desfazer, fazer com que não mais vigore). (CLARO, 2015, p. 146)
82
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
Apesar de ser comum o objetivo dos arts. 129 e 130 da LRF, isto é, declarar a
ineficácia de determinado negócio jurídico em relação à massa falida, há diferenças de natureza
procedimental e material que separam as duas hipóteses. Enquanto a declaração de ineficácia
objetiva pode ser reconhecida e declarada de ofício pelo juiz, os efeitos pretendidos com a
ineficácia subjetiva dependem do ajuizamento da ação revocatória, com a necessária
demonstração do fato constitutivo do direito do autor, com a necessária observância dos
requisitos da petição inicial, nos termos do art. 319 do Código de Processo Civil e da
comprovação do consilium fraudis e do eventus damni.
Além disso, a declaração de ineficácia objetiva somente pode se dar nas situações
previstas pelo art. 129, enquanto que a ação revocatória prevista no art. 130 tem cabimento
apenas quando houver fraude no ato que se pretende revogar, sem necessidade de que o ato
esteja especificamente previsto pela lei, como ocorre no primeiro caso. A esse respeito, traz-se
à colação escólio de Carlos Roberto Claro (2015, p. 272): “[...] na revocatória falimentar, cabe
prova robusta a respeito dos fatos; na ação declaratória de ineficácia relativa de ato, basta a
subsunção do fato concreto à letra da lei (art. 129)”.
Nos termos do artigo 129, os atos são tidos por objetivamente ineficazes em relação à
massa, mesmo que provada a boa-fé do terceiro contratante, tendo este conhecimento ou não
do estado econômico do devedor, haja ou não a intenção de fraudar credores. Assim, se o ato
atacado se subsumir a uma das hipóteses do artigo 129, será desnecessária a produção da prova
do consilium fraudis. Trata-se, portanto de presunção absoluta, juris et de jure. 20
A simples leitura dos incisos I, II e III do artigo 129 permite concluir que o dispositivo
cuida de atos praticados dentro do termo legal da falência e prevê como objetivamente
ineficazes em relação à massa: (i) o pagamento de dívidas não vencidas; (ii) o pagamento de
dívidas vencidas e exígiveis, por qualquer forma que não seja a prevista pelo contrato; e
(iii) o favorecimento de dívida contraída em data anterior com a constituição (posterior) de
direito real de garantia, incluindo a retenção. Em todos é requisito fundamental a prática do ato
dentro do termo legal. Sobre esse termo, Antonio Martin esclarece:
Salienta-se na doutrina moderna a importância da fixação do termo legal de forma
mais ampla. De fato, em legislações passadas, chegou-se a falar em 40 (quarenta) dias
20
Análise mais completa dessa questão pode ser verificada no acórdão exarado pela Quarta Turma do STJ no
Agravo Interno em Recurso Especial n. 901.010/SC, julgado em 23/08/2016, sob a relatoria do Min. Luis Felipe
Salomão.
83
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
e no Dec.-lei 7.661/1945 deixou-se esta fixação a critério do Juízo, que poderia fixá-
lo em até 60 (sessenta) dias. Agora, na Lei 11.101/2005, o termo legal é de 90
(noventa) dias contados do pedido de falência, ou do pedido de recuperação judicial,
ou do primeiro protesto por falta de pagamento, excluindo-se, para esta finalidade, os
protestos que tenham sido cancelados. Como se vê do texto da Lei, a fixação do termo
legal tem importância decisiva para a declaração de ineficácia dos atos nela
mencionados. (2007, p. 473)
Com base nos precedentes judiciais a serem analisados, o inciso VI do art.129 parece
ser o de interpretação mais tormentosa para os autores da ação revocatória e para os julgadores.
O dispositivo trata da ineficácia do trespasse de estabelecimento, realizada sem o
consentimento dos credores a esse tempo existentes. Tal misuso poderia ser evitado se o autor
da ação revocatória verificasse a correta aplicação do dispositivo legal. Eventuais dúvidas
sobre o conceito de estabelecimento e as condições para o consentimento prévio dos credores
poderiam ser dirimidas por consulta aos arts. 1.142 e 1.14521 do Código Civil.
Do conceito da norma cível, compreende-se que é possível requerer a declaração de
ineficácia objetiva em relação à massa, quando a hipótese versar sobre a alienção dos bens
essenciais ao exercício da atividade da falida. Por essa razão, quando o negócio jurídico versa
sobre um bem móvel ou imóvel, que não esteja relacionado ou não seja necessário ao
exercício da empresa antes da falência, a aplicação do dispositivo se torna equivocada.
No que diz respeito à interpretação do inciso VII do art. 129, não há celeuma, uma vez
que o texto legal determina clara e expressamente que serão objetivamente ineficazes em
21
Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por
empresário, ou por sociedade empresária.
Art. 1.145. Se ao alienante não restarem bens suficientes para solver o seu passivo, a eficácia da alienação do
estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou
tácito, em trinta dias a partir de sua notificação.
84
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
85
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
ação revocatória cabe apelação, nos termos do parágrafo único do art. 135 da LRF.
Verificadas algumas das distinções entre as situações previstas nos arts. 129 e 130 da
LRF, torna-se importante analisar a legitimição para propositura da ação revocatória.
Nos termos do art. 132 da LRF, a ação revocatória poderá ser proposta,
alternativamente, pelo administrador judicial, por qualquer credor ou pelo Ministério Público,
no prazo de 3 (três) anos da decretação da falência. Os mesmos legitimados podem reclamar a
declaração da ineficácia objetiva, prevista no art. 129 e incisos da LRF22.
A LRF inovou em relação à legislação precedente ao acrescer no rol dos legitimados
para propositura da ação revocatória o Ministério Público, sendo pertinente lembrar que a
atuação do parquet, do administrador judicial ou do credor interessado para propositura da
ação revocatória se dará sempre em favor da massa. A respeito Yussef Said Cahali pontua:
Na realidade, há muita discussão acadêmica quanto à legitimatio ativa da ação – se o
administrador judicial ou se da massa -, na medida em que não ocorre uma antinomia
entre os conceitos apresentados, pois, em síntese, o administrador judicial atua em
nome da massa, da qual é representante, na defesa dos interesses da coletividadede de
credores, e no exercício de uma atribuição que interessa à correta prestação
jurisdicional do Estado.” (2013, p. 619)
Embora o art. 132 da LRF mencione como um dos autores o “administrador judicial”,
é a massa falida que deve figurar no polo ativo da revocatória, sendo que aquele não se
beneficia da ação, por se tratar de medida de proteção coletiva. (LEONEL, 1951, p.26).
Em relação ao polo passivo, o art. 133 da LRF prevê que podem ser demandados: (a)
os que figuraram no ato ou que por efeito dele foram pagos, garantidos ou beneficiados; (b)
terceiros adquirentes, se tiveram conhecimento, ao se criar o direito, da intenção do devedor de
prejudicar os credores; e (c) os herdeiros ou legatários dos sujeitos referidos anteriormente.
Jayme Leonel esclarece a desnecessidade de citação do falido:
A razão é simples. Decretada a falência, perde o falido, em consequência do princípio
do desapossamento, o direito de comparecer pessoalmente em juízo, quer ativa, quer
passivamente. [...] Logo, se o falido tivesse de ser citado, como réu, na revocatória,
iríamos segundo arguta observação de MARCONDES FILHO, encontrar, no
processo, esta situação paradoxal: - o liquidatário (hoje, o síndico), em tais processos,
teria de figurar, ao mesmo tempo, como autor, impugnando o ato do falido, e, como
réu, para defender a validade do mesmo. (1951, p. 29-30)
22
O parágrafo único do artigo 129 prevê que a ineficácia pode ser declarada de ofício pelo juiz, alegada
incidentalmente no curso do processo falencial ou mediante a propositura de ação própria.
86
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
Nos termos do art. 135 da LRF, a procedência da ação revocatória tem como efeito
imediato a determinação de retorno dos bens à massa falida em espécie, com todos os
acessórios, acrescidos de perdas e danos. O dispositivo ratifica o objetivo da ação, que é de
devolver à massa os bens extraídos do seu ativo de forma fraudulenta antes da falência. Assim,
não importa que um credor, de qualquer classe, tenha se sub-rogado nos direitos da massa para
ingressar com a ação revocatória. Com o retorno dos bens à massa, eventual pagamento
estendido aos credores da falência respeitará a ordem de preferência prevista no art. 83 da LRF,
não sendo determinante, para fins de recebimento, a atuação de determinado credor na
revocatória, por se tratar de medida de defesa coletiva.
Cabe esclarecer que o efeito da revocatória não é anular o ato, como se jamais
praticado, e sim garantir o restabelecimento do status quo ante em relação à massa e não ao
falido. Portanto, a sentença de procedência da ação revocatória não opera efeitos de anulação
do ato, mas de ineficácia relativa, deixando de produzir efeitos apenas em relação à massa e
conservando sua validade interpartes. A respeito, Yussef Said Cahali comenta:
A sentença que julga a ação revocatória decide quanto à eficácia do ato do falido, em
relação à massa, não quanto a sua validade jurídica erga omnes, ou nulidade; o ato
jurídico não é desconstituído na sua formação, nem fica insubsistente in totum, mas
apenas deixa de ser oponível em relação aos créditos concursais; portanto, continua
válido entre as partes, com possibilidade de oportuna pós-eficacização. (Rubens
Requião, Pontes de Miranda, Jayme Leonel, Walter T. Álvares, Rubens Aguiar) [...]
Efetivamente, encerrada a falência e extintas as obrigações do falido, o ato atingido
pela revocatória readquire sua vigência entre aquele que veio a falir e o que com ele
contratara. (2013, p. 602)
87
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
Tratar de ação revocatória pressupõe a fraude como elemento nuclear dessa ação. Nas
palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 410):
Fraude contra credores é, portanto, todo ato suscetível de diminuir ou onerar seu
patrimônio, reduzindo ou eliminando a garantia que este representa para pagamento
de suas dívidas, praticado por devedor insolvente, ou por ele reduzido à insolvência.
[grifo do autor]
88
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
para ele (adquirente) ampla e facilmente acessíveis informações públicas que noticiam o estado
de dificuldade financeira enfrentada pelo devedor, pois a boa-fé que se espera na prática de
negócios jurídicos é de caráter objetivo e demanda a coleta de informações (e até de certidões)
que atestem a idoneidade da operação e demonstrem a adoção de cuidados mínimos no
momento de contratar. Sobre o tema, Carlos Roberto Gonçalves sumariza:
O art. 159 do Código Civil presume a má-fé do adquirente “quando a insolvência (do
alienante) for notória, ou houver motivo para ser reconhecida do outro contratante”.
A notoriedade da insolvência pode se revelar por diversos atos, como, por exemplo,
pela existência de títulos de crédito protestados, de protestos judiciais contra
alienação de bens e de várias execuções ou demandas de grande porte movidas contra
o devedor. (2007, p. 411)
89
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
A ação pauliana tem origem no direito romano e é assim denominada como referência
ao pretor Paulo. A medida foi criada para coibir a prática de atos fraudulentos por parte do
devedor (CAHALI, 2013, p. 83). A ação revocatória, objeto de análise desse trabalho, possui
muitas similaridades com a ação pauliana. Segundo Jayme Leonel “Muitos autores chegam a
afirmar que elas são absolutamente idênticas” (1951, p. 83). Não é possível afirmar, contudo,
que a ação revocatória e a ação pauliana sejam idênticas, porque existem diferenças
substanciais entre elas. A primeira diferença pode ser apontada quanto ao momento de
ajuizamento das ações. Na ação pauliana, basta que o crédito preexista ao ato que pretende
anular para intentar sua propositura. Já na ação revocatória falencial, a decretação da falência
do devedor é pressuposto de cabimento da medida.
Se na ação pauliana o devedor deve integrar o polo passivo em litisconsórcio com o
terceiro adquirente de má-fé, nos termos do art. 161 do Código Civil, a ação revocatória não
comporta esta hipótese, uma vez que a massa falida é autora. Tal providência se justifica
porque a massa falida se aproveita da revogação do ato jurídico cuja ineficácia se pretende
decretar, pois os bens serão a ela restituídos com a procedência do pedido e não aos credores.
Não obstante as distinções quanto ao procedimento, tanto a ação revocatória como a
ação paulina têm como finalidade a devolução dos bens necessários para cumprimento das
obrigações do falido perante seus credores. Sobre o tema, cite-se escólio do Recurso Especial
n. 1.180.714/RJ, julgado em 05/04/2011, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão:
[...] A primeira (revocatória) visa ao reconhecimento de ineficácia de determinad o
negócio jurídico tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação de ato
praticado em fraude a credores, servindo ambos os instrumentos como espécies de
interditos restitutórios, no desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente, os
bens necessários ao adimplemento dos credores, agora em igualdade de condições
(arts. 129 e 130 da Lei n. 11.101/05 e art. 165 do Código Civil de 2002). [...]
90
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
91
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
A massa falida, representada por seu síndico dativo, ingressou com ação revocatória
com fulcro no artigo 52, VIII, do Decreto-lei n.7.661/45 (correspondente ao art. 129, VI, da
LRF), objetivando ver declarada a ineficácia da venda do imóvel integrante do
estabelecimento, alienado dentro do termo legal. Tratava-se de terreno vazio, posteriormente
fracionado em duas partes e alienado a terceiros, que também se tornaram réus na ação.
Apesar de se ter reconhecido na fundamentação do pedido que a alienção se deu
dentro do termo legal, os terceiros adquirentes sustentaram, no mérito, ofensa ao artigo 53 do
Decreto-lei n. 7.661/45 (correspondente ao art. 130 da LRF), alegando necessária comprovação
do consilium fraudis. O pedido foi julgado procedente em 1ª e 2ª instâncias, tendo se verificado
que a alienação ocorreu dentro do termo legal, motivo pelo qual o ato foi considerado
objetivamente ineficaz em relação à massa.
A improcedência do pedido de ineficácia somente foi reconhecida quando o recurso
foi apreciado pela Quarta Turma do STJ, sob o argumento de que o imóvel objeto da ação
revocatória não integrava o estabelecimento da falida e, assim, não constituía parte necessária à
realização do objeto da sociedade. Segundo entendimento dos julgadores, essa era a razão para
que o artigo 52, VIII, previsse a ineficácia do negócio, ao menos em relação à massa falida.
Nesse caso, a Turma entendeu que o bem alienado era um lote vazio, situado em local diferente
daquele onde funcionava o restaurante (empresa da devedora). Ademais, não havia nos autos
qualquer prova demonstrando a direta conexão do referido lote às atividades da sociedade;
tampouco foram produzidas as provas necessárias à desconstituição do ato.
No caso apresentado, ficou patente que a imperícia na utilização dos dispositivos
legais da falência foi decisiva para a improcedência final do pedido. Isso porque, a autora
deveria, desde a distribuição da ação, ter identificado o dispositivo legal aplicável, pois se trata
de ineficácia subjetiva (e não objetiva), e, consequentemente, ter dedicado atenção à coleta das
provas necessárias (demonstração do consilium fraudis e eventus damni) à desconstuição da
alienação. Ficou evidente, portanto, que o síndico da massa falida não atentou à regra de que
somente a alienação do estabelecimento, ou do conjunto de bens essenciais ao exercício da
empresa, pode ser declarada objetivamente ineficaz. Tratando-se de bens sociais que não
estejam afetados à empresa, a hipótese reclama ajuizamento de ação revocatória escorada pelo
art. 130 da LRF e depende da produção da prova de fraude e dano à massa, elementos
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A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
Conforme se colhe do relatório do acórdão, a massa falida autora ingressou com ação
revocatória com intuito de obter a decretação de ineficácia da venda de quatro imóveis que
pertenciam ao ex-sócio da falida, cuja personalidade jurídica foi desconsiderada, justamente
para que lhe fossem restituídos os bens alienados em prejuízo da massa e dos credores. Nos
autos do processo, ficou demonstrado que o ex-sócio alienou seus bens por cerca de 60% do
valor efetivamente devido, ou seja, por quantia abaixo do valor de mercado. Embora os
imóveis tenham sido subavaliados, o TJRS não considerou vil o valor praticado na venda,
entendendo que inexistiram no caso concreto elementos capazes de demonstrar que os terceiros
adquirentes tinham ciência (scientia fraudis) da condição pré-falimentar da devedora. Neste
caso, é relevante lembrar que a ciência quanto à condição de endividamento do vendedor é
elemento útil à comprovação do consilium fraudis.
Na fundamentação do acórdão, os julgadores ponderaram que a realização do negócio
ocorreu cerca de cinco meses antes da fixação do termo legal, e que não foram carreadas aos
autos provas de que os terceiros adquirentes tinham ciência de atos de dilapidação patrimonial.
O único elemento prepoderante para a pretensão da massa falida foi o fato de os imóveis terem
sido vendidos por valor abaixo do preço de mercado, porém, tal constatação, por si só, não foi
considerada suficiente para procedência do pedido.
Urge destacar, como elemento fundamental de improcedência da ação revocatória em
comento, a ausência de prova quanto a ciência dos terceiros adquirentes acerca do estado pré-
falimentar da sociedade do qual o alienante era sócio. Nesse cenário, é possível cogitar da
assimetria de informações23 entre a massa falida e o réu da ação revocatória, isto é, o ex-sócio
que alienou os bens que poderiam ser utilizados para o pagamento aos credores.
Caso 4: a decisão foi proferida pela Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais (TJMG), no Recurso de Apelação n. 10024142601889001, julgado em
12/04/2018, sob a relatoria da Des. Áurea Brasil. O julgado se presta a demonstrar, uma vez
mais, a imperícia do administrador judicial ao propor ação, elegendo o dispositivo equivocado
para amparar sua pretensão e, consequentemente, deixando de produzir a prova necessária à
23
É possível cogitar que, na ação revocatória, o réu detenha mais informações, documentos e provas do que o
próprio autor da medida, materializando-se a assimetria de informações entre as partes demandante e demandada.
Como consequência disso, dificulta-se a adequada instrução do processo.
95
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
A massa falida ajuizou ação revocatória com vistas à declaração de ineficácia dos
contratos de compra e venda de veículo automotor (caminhão), celebrada pela sociedade falida
com a Adquirente A, em seguida, por esta com o Adquirente B e, por fim, desse último com o
Adquirente C. A pretensão foi equivocadamente amparada no artigo 129, VI, da LRF,
defendendo a autora que os atos impugnados se enquadrariam na referida hipótese legal, não
sendo necessária a demonstração da intenção dos contratantes de fraudar credores. No entanto,
confome registrado pela relatora, alguns Tribunais não têm observado a diferença crucial
existente entre alienação do estabelecimento e dos bens que o compõem.
A LRF ataca com ineficácia objetiva o trespasse quando realizado sem a observância
de certos pressupostos (anuência ou ciência expressa dos credores que podem apresentar
oposição), mas não a alienação de elementos integrantes do estabelecimento empresarial,
quando realizada de modo isolado e sem caracterizar seu desmantelamento. Assim, o Tribunal
entendeu que a venda do veículo automotor, isoladamente, não configurou trespasse, a invocar
a expressa aplicação do inciso VI do art. 129 da LRF. Com a inaplicabilidade do referido
dispositivo, os sucessivos contratos de compra e venda poderiam ser revogados na forma do
art. 130 da LRF, porém, para que tal desconstituição fosse possível, seria necessário comprovar
o consilium fraudis entre a falida, a devedora e os terceiros adquirentes do veículo.
Nota-se, da análise do julgado, que se parte de uma premissa equivocada e, levada
pela imperícia do administrador judicial que a representava, a massa falida sequer sustentou a
96
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
má-fé dos compradores, tendo a todo tempo defendido a prescindibilidade dessa prova por
acreditar se tratar de hipótese de ineficácia objetiva do negócio que pretendia revogar. Sem a
produção de prova do conluio fraudulento restou impossível a aplicação e incidência do art.
130 da LRF, tendo sido reformada a sentença de 1º grau para julgar improcedente o pedido.
Caso 5: a quinta decisão, proferida pela Quarta Turma do STJ no Recurso Especial n.
806.044/RS, julgado em 06/04/2010, sob a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, reforça a
correta identificação do dispositivo adequado à revogação pretendida pela massa falida e
demonstra que sua inobservância acarreta o insucesso da ação revocatória.
FALÊNCIA. AÇÃO REVOCATÓRIA. ALIENAÇÃO DE BEM REALIZADA NO
TERMO LEGAL DA FALÊNCIA. INEFICÁCIA QUE DEPENDE DE PROVA DA
OCORRÊNCIA DE FRAUDE A CREDORES. 1. A alienação de bem pertencente à
falida, realizada dentro do termo legal, mas antes da decretação da quebra, não se
subsume ao art. 52, inciso VII, da antiga Lei de Falências, mas, eventualmente, ao
art. 53, dependendo a ineficácia do negócio, em relação à massa, de prova da
ocorrência de fraude a credores. 2. A interpretação sistemática do caput do art. 52 e
do seu inciso VII, da antiga Lei de Falências, conduz à conclusão de que somente as
transcrições de transferência de propriedade realizadas após a quebra serão tidas por
objetivamente ineficazes em relação à massa, "tenha ou não o contratante
conhecimento do estado econômico do devedor, seja ou não intenção deste fraudar
credores" [...].
O caso sob análise versa sobre ação revocatória ajuizada pela massa, por meio da qual
se pretendeu ver declarada ineficácia objetiva da alienação de veículo automotor de
propriedade da falida. A primeira e a segunda alienação ocorreram dentro do termo legal.
O pedido foi julgado procedente pelo Juízo da Segunda Vara Cível da Comarca de
Venâncio Aires, sendo declarada a ineficácia objetiva da alienação do veículo. Em sede de
apelação, o réu da ação revocatória, até então vencido, alegou cerceamento de defesa, pois foi
indeferida a produção de prova pericial por ele requerida. Em síntese, o réu pretendia
demonstrar com a perícia a destinação dos valores pagos pela aquisição do veículo, bem como
se a operação foi devidamente contabilizada (ou não) pela sociedade. A sentença foi mantida
pela Quinta Câmara Cível do TJRS, confirmando a desnecessidade de produção prova da
fraude, porque os julgadores entenderem inútil a verificação do caráter subjetivo do negócio.
No julgamento do Recurso Especial interposto pelo terceiro adquirente, a Quarta
Turma do STJ reformou a sentença e o acórdão das instâncias ordinárias, para julgar
improcedente o pedido inicial da ação revocatória. Este julgado se tornou paradigmático em
diversos outros casos e revela o desconhecimento e a equivocada utilização dos dispositivos
legais que tratam da ineficácia relativa por parte da massa falida. A improcedência pode ser
97
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
creditada à própria massa falida, no momento em que esta pugnou pelo julgamento antecipado
da lide, deixando de comprovar o necessário consilium fraudis e de observar que a hipótese
tratada nos autos não se amoldava à ineficácia objetiva, prevista à época pelo art. 52 do
Decreto-lei n. 7.661/45, e sim de ato revogável, nos moldes do atual art. 130 da LRF.
Caso 6: a última decisão, proferida pela Quinta Câmara Cível do TJRS, no Recurso de
Apelação n. 70028062156, julgado em 12/08/2009, sob a relatoria do Des. Romeu Marques
Ribeiro Filho, se presta a demonstrar a dificuldade na coleta da prova cabal da má-fé do
terceiro adquirirente, a fim de suprir a necessária demonstração de conhecimento quanto ao
prejuízo causado aos credores.
APELAÇÃO CÍVEL. FALÊNCIA E CONCORDATA. [...] ALEGAÇÃO DA
MASSA DE INEFICÁCIA DA CONTRATAÇÃO. AÇÃO REVOCATÓRIA. ART. 53
DA LEI DE FALÊNCIAS. CONSILIUM FRAUDIS NÃO DEMONSTRADO. A ação
revocatória exige a demonstração do consilium fraudis entre o falido e o terceiro com
quem contratou. Não há indícios nos autos de que tenham os embargantes, ao
adquirir o imóvel da embargada, agido com má-fé, ou seja, com a intenção de
fraudar. Sentença mantida. Apelo desprovido. [grifo nosso]
98
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
4. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
99
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles
100
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA
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RESUMO
A alienação fiduciária é uma modalidade contratual de garantia inicialmente voltada à
compra de bens móveis, mas que foi estendida à aquisição de bens imóveis, como
estratégia alternativa a programas habitacionais voltados à promoção ao acesso a
bens imóveis para habitação. A disciplina da alienação fiduciária aplicada aos bens
imóveis estabeleceu a exoneração do devedor pelo valor residual à venda do imóvel,
na hipótese de execução da garantia, benefício introduzido para o contexto de
aquisição de bens imóveis voltados às famílias de baixa renda. A Lei nº 10.931/2004
estendeu a possibilidade desta forma de garantia a qualquer obrigação. Utilizando-se
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do método indutivo de análise bibliográfica e valendo-se de algumas ferramentas da
Nova Economia Institucional, o artigo aponta para a defasagem entre o contexto que
conduziu a elaboração normativa comentada e sua ampliação para a aquisição geral
de bens, inclusive para bens imóveis, independente do valor, quando garantida por
alienação fiduciária. Analisa a doutrina, assim como as normas incidentes, projeto de
reforma legislativa e o teor da súmula que disciplina parcialmente a matéria, para
concluir que a pretensão normativa, quando da edição da norma, tem seus objetivos
ameaçados pela exagerada extensão do efeito de desoneração do devedor frente ao
credor garantido pela alienação fiduciária.
ABSTRACT
The secured transaction is a contractual modality of guarantee initially focused on the
purchase of movable property, but extended to the acquisition of real estate, as an
alternative strategy to housing programs aimed at promoting access to real estate for
housing. The Brazilian law of secured transaction applied to real estate established the
exemption of the borrower by the residual value of collateral sale, in case of borrower
defaults on the loan, a benefit introduced for the context of acquisition of real estate
for low income families. The Brazilian act n. 10.931/2004 extended this form of secured
transaction to all kind of obligation. Using the inductive method of bibliographical
analysis and using some tools of the New Institutional Economy, the article points to
the discrepancy between the context that led to the law edition and its extension to the
general acquisition of real estate with a security agreement. It analyzes the doctrine,
as well as the incident acts, draft legislative reform and the content of the law that
partially disciplines the matter, to conclude that the normative pretension, when the
rules were published, has its objectives threatened by the exaggerated extension of
the tax relief effect of the debtor against the secured creditor.
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KEYWORDS: Secured transactions; Efficiency; General disclaimer; Debtor;
Perspectives.
INTRODUÇÃO
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introdução da alienação fiduciária de imóveis e a legislação posterior. Neste diapasão,
a Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.242/97, convertido na Lei nº 9.514/97,
deixa claro que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, tinha “o
compromisso com o atendimento da demanda por moradias, bem como a geração de
emprego e o crescimento econômico em bases autossustentáveis”. A justificativa para
a introdução da alienação fiduciária de imóveis foi a diminuição de unidades
residenciais financiadas pelo Sistema Nacional de Habitação nos últimos anos, diante
do enfraquecimento das garantias apresentadas pelos pretendentes à aquisição da
casa própria.
Já na primeira década do século atual, para atender ao dinamismo do
mercado, a Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, ampliou o campo de aplicação da
alienação fiduciária, possibilitando que as instituições financeiras a utilizassem como
forma de garantir obrigações em geral. Desta forma, o legislador afastou-se do
inicialmente pretendido no momento de criação do referido instituto.
Em segundo momento, o trabalho discorrerá sobre as discrepâncias entre o
objetivo inicial da Lei nº 9.514/97 e os termos da Lei nº 10.931/2004, sobretudo no
tangente ao método utilizado para execução da dívida em caso de inadimplência do
fiduciante. Exemplo prático é a aplicabilidade do artigo 27, § 5º, a qualquer contrato
de alienação fiduciária de imóveis. Este dispositivo institui a completa quitação da
dívida ainda que o valor obtido pelo imóvel seja inferior ao débito existente no segundo
leilão.
Sob o pensamento motivador da Lei nº 9.514/97, que adota como parte
vulnerável do financiamento imobiliário o devedor, a disposição presente no § 5º do
artigo 27 só se justifica ao mostrar seu caráter protetivo no âmbito do Sistema
Financeiro de Habitação. Porém, com o advento da Lei nº 10.931/04, especialmente
o art. 51, a disposição do parágrafo 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97 deixou de ser
protetiva ao devedor e passou a privilegiá-lo de maneira indevida, em detrimento dos
direitos do credor, sem considerar a vulnerabilidade em concreto.
Também será examinado que a alteração no panorama legislativo do instituto
e a problemática causada foram progressivamente percebidos pela doutrina e pelo
legislativo brasileiro. Desta forma, o debate recairá sobre a possibilidade de execução
do saldo remanescente, visando a demonstrar a incongruência normativa atualmente
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vigente. Além disso, serão comentados os Projetos de Lei nº 1.070/2007 e nº
6.525/2013, apresentados na Câmara dos Deputados para alterar o parágrafo 5º do
artigo 27.
Será demonstrado que a previsão da possibilidade de o devedor responder
pelo saldo remanescente, como na Lei nº 11.795/2008, que dispõe sobre o Sistema
de Consórcios, ou ainda, o cabimento de cobrança por meio de ação monitória do
saldo remanescente oriundo de venda extrajudicial de bem alienado fiduciariamente,
consubstanciada na Súmula 384 do STJ, não solucionam o problema.
Por fim, encerra-se o trabalho com uma análise dos potenciais impactos da
extensão imotivada a qualquer fiduciante do beneplácito da quitação do débito pelo
credor, sob a ótica da Nova Economia Institucional. Busca-se demonstrar que a
elaboração normativa algumas vezes poderá afastar-se da pretensão que originou a
sua própria criação, por meio da produção de efeitos indesejáveis ou insuficientes,
quando então, a opção pela alteração da norma é medida que se impõe, em proveito
da eficiência econômica e social.
1Sobre o instituto da alienação fiduciária no direito anglo-saxão (Secured Transactions), cf. nos E.U.A:
SHUPACK, 2018; GILMORE, 2011. Na Europa e em normativas internacionais: BEALE, 2008
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compartilham do pressuposto de que o adquirente assume uma função de gestão de
bem cuja titularidade última pertence ao alienante/financiador2
A alienação fiduciária em garantia de bem imóvel foi implementada no
ordenamento jurídico brasileiro afim de conferir maior solidez e segurança ao Sistema
Financeiro de Habitação (SFH) e para proporcionar seu reerguimento em face da
intensa crise ao longo de suas duas primeiras décadas de existência.
Ainda que brevemente, cabe um escorço histórico do SFH para melhor
compreensão de sua reformulação em 1997 com a Lei nº 9.514.
2Sobre a origem da relação fiduciária e também com relação ao caráter diferente que lhe é atribuído
pelo Direito Civil do Quebec: CUMYN, 2013.
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Embora o SFH, no momento de seu advento, tenha se mostrado promissor
e, até 1997, tenha financiado cerca de 6 milhões de unidades residenciais dentro dos
moldes estabelecidos pela legislação que o rege, com o passar dos anos e com a
grave crise inflacionária que atingiu o país, o Sistema foi sofrendo crescente
esgotamento. Com isso, à época, o SFH já não financiava nem um décimo dos imóveis
necessários para suprir a demanda por moradias anualmente3.
Parte dessa crise deveu-se ao fato de que o Sistema possuía duas fontes
principais de recursos, quais sejam a caderneta de poupança e o Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço. Ambas as fontes se mostraram insuficientes para assegurar
os financiamentos a serem obtidos perante o Banco Nacional de Habitação (BNH).
Conforme consta da Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.242/97,
convertido na Lei nº 9.514/97:
3Dados extraídos da Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.242, de 1997, apresentado à Câmara
dos Deputados em 12 de junho de 1997.
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majoradas. Com isso, o FCVS que, inicialmente, havia sido criado com o fim de
liquidar eventuais saldos devedores residuais, passou a assumir dívidas muito
superiores ao seu fluxo de caixa, como se percebe com e edição dos diplomas a
seguir.
O Decreto-Lei nº 2.164/1984 institui incentivo financeiro para os adquirentes
de moradia própria pelo SFH através de emissão de bônus de emissão do BNH,
variável de 10% a 25%. O diploma estabeleceu que, para os contratos firmados a
partir daquela data, o FCVS ressarciria os saldos devedores em parcela única.
O Decreto-Lei nº 2.291/86 e o Decreto-Lei nº 2.406/88 foram responsáveis
pela concessão de novos subsídios, sobrecarregando ainda mais o já desgastado
FCVS. Em 18 de setembro de 1988, além de todos os subsídios supramencionados,
o Decreto-Lei nº 2.476 dispôs que o FCVS passasse a garantir o equilíbrio do seguro
habitacional do SFH em todo o território nacional.
Por fim, a Lei nº 8.004/90, ao conceder novos subsídios, determinou que o
Fundo quitaria os saldos de sua responsabilidade no prazo de 10 anos, após o
cumprimento de 3 anos de carência a contar daquela data.
É importante frisar que, embora o pagamento dos saldos oriundos do FCVS
tenha sido aditado por diversas vezes, todos os normativos que estabeleceram prazos
para ressarcimento desses saldos asseguraram aos credores o reajuste mensal das
dívidas. Foi adotado o mesmo índice utilizado para corrigir depósitos de poupança e
juros adicionais calculados à taxa do contrato original.
A Lei nº 10.150/2000, em seu art. 1º, trouxe desfecho ao FCVS, dispondo
sobre a novação de suas dívidas junto às instituições financiadoras, a ser celebrada
entre cada credor e a União. Ficou estabelecido um prazo de até 30 anos, contado a
partir de 1º de janeiro de 1997, com os 8 primeiros anos de carência para pagamento
dos juros e os 12 primeiros de carência para pagamento do principal.
O BNH, por sua vez, foi extinto pelo Decreto-lei nº 2.291/86, tendo sido
incorporado à Caixa Econômica Federal. O BNH tinha uma dívida de
aproximadamente R$ 2,5 bilhões, passivo este incorporado pela Caixa Econômica
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Federal, juntamente com as obrigações de gestão do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço (art. 1º, § 1º).4
Diante deste cenário, com a sobrecarga das fontes de recursos anteriormente
utilizadas para fomentar os financiamentos, era preciso encontrar novas formas de
garantir o pagamento dos créditos que fossem fornecidos no âmbito do SFH, além de
reforçar e retomar a credibilidade do setor imobiliário que se encontrava abalada.
Tendo a experiência de crise anterior como justificativa, o Projeto de Lei nº
3.432/1997, convertido na Lei nº 9.514/97, foi apresentado na Câmara dos Deputados
pelo Poder Executivo para que a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel fosse
instituída e suprisse grave lacuna no sistema de garantias do SFH.
4Para Christopher Peterson, nos E.U.A. foram diversas as iniciativas nas décadas de 30 e 40 de criação
de instituições governamentais que pudessem incrementar a oferta de crédito voltado à construção
civil. Por outro lado, a crise do subprime foi uma das consequências do excesso de operações
secundárias relativas ao mercado de imóveis, acompanhada da cultura não intervencionista daquele
país. PETERSON, 2007.
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Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral
também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária
de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por
caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de
venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa
imóvel.
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Com o advento da Lei nº 10.931/04, o legislador se utiliza do instituto da
alienação fiduciária em garantia de bem imóvel como fonte de garantia para
operações de todo o gênero, podendo essas serem celebradas entre partes paritárias
ou não (considerando-se as figuras do credor e devedor), sob uma ótica social ou
meramente financeira. Isto tem impacto direto na assimetria ou simetria de
informações entre as partes e, por conseguinte, na existência ou não de
vulnerabilidade do devedor.
Ocorreu, portanto, uma mudança não apenas na aplicação da alienação
fiduciária de bem imóvel, mas também na sua função da garantia ao financiamento
habitacional e na nova percepção de vulnerabilidade presumida entre as partes do
contrato, independentemente do perfil do contratante.
Assim sendo, até mesmo nos contratos empresariais (“as obrigações em
geral”), em que não se presume a vulnerabilidade nem assimetria de informações
entre as partes, passam a incidir as disposições da Lei nº 9.514/97. Com isso, nesse
novo cenário econômico, ficou alterada a concepção legislativa originária para a
alienação fiduciária de imóveis, mas sem uma análise do alcance e aplicação de
certas disposições normativas, em especial o parágrafo 5º do art. 27 da Lei nº
9.514/97.
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estabelecer mecanismos que pudessem compensar a desigualdade dos potenciais
compradores.
Não obstante, a possibilidade de aplicação da alienação fiduciária de bem
imóvel foi ampliada pelo artigo 51 da Lei nº 10.931/04, podendo, hodiernamente,
garantir quaisquer obrigações. Com essa ampliação, passou a não ser mais possível
afirmar que as partes do contrato, credor e devedor, encontram-se em patamares
desiguais.
Não há, assim, como se estabelecer a vulnerabilidade do devedor como uma
constante em todas as operações garantidas por alienação fiduciária em garantia de
bem imóvel isentas de pagamento do valor residual. A operação de crédito pode, a
partir de então, ser realizada entre quaisquer partes capazes (empresários ou não) e
não apenas dentro dos limites traçados pelo SFH.
Ao estabelecer, no artigo 51 da Lei nº 10.931/04, que quaisquer obrigações
poderiam ser garantidas pelo instituto da alienação fiduciária em garantia de bem
imóvel, o legislador acabou por criar uma incongruência enorme com o restante da
legislação em vigor sobre o tema e muitos dos dispositivos que serviam para essa
manutenção acabaram por assumir viés diverso e passaram a ser os geradores da
desigualdade contratual.
É compreensível que o legislador tenha pretendido compensar a
vulnerabilidade do polo mais fraco da relação contratual, o que se depreende da
exposição de motivos do projeto que deu origem à Lei nº 9.514/97. Porém, essa
compensação só faz sentido se, de fato, no caso concreto houver um sujeito que
necessite de proteção especial.
Se a opção legislativa é de compensar desigualdades, os benefícios dispostos
devem ser disponibilizados apenas àqueles realmente vulneráveis em sua posição
contratual e ainda restritos aos fins habitacionais. Não há que se compreender como
vulnerável quem financia imóvel cujo preço excede o valor correspondente ao padrão
de moradia da população economicamente desprivilegiada, o que sugeriria, por
exemplo, que a isenção de pagamento do valor residual estivesse condicionada em
Lei a determinados negócios, atrelados, por exemplo, a faixa de preço ou renda do
adquirente.
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Por não ter havido qualquer alteração das disposições da legislação especial
sobre alienação fiduciária de imóveis com o advento da Lei nº 10.931/2004, criou-se
um privilégio totalmente incompatível ao pretendido inicialmente ao fiduciante, ao se
pretender sua exoneração do restante do débito na situação prevista no art. 27, §5º,
da Lei nº 9.514/97, como será exposto a seguir.
5 Registra-se o art. 27 teve sua redação parcialmente alterada pela Lei nº 13.465/2017 (conversão da
Medida Provisória nº 759/2016). Foi dada nova redação ao parágrafo 1º e incluídos os parágrafos 2º-
A, 2º-B e 9º. Não obstante, persiste a redação originária do parágrafo 5º, cerne da exposição.
6 A mora do fiduciante deve ser comprovada na forma do art. 26, § 1º. Caso não haja sem a purgação
da mora, o oficial do Registro de Imóveis, certificará esse fato e fará a averbação na matrícula do imóvel
da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do
imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio (art. 26, § 7º). Em seguida, o fiduciário,
no prazo de trinta dias, contados da data do registro da consolidação da propriedade, promoverá
público leilão para a alienação do imóvel (art. 27, caput).
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Percebe-se que a previsão legislativa de extinção da dívida do fiduciante
constitui norma especial, totalmente oposta à orientação do Código Civil quanto à
propriedade fiduciária nele regulada. De acordo com o art. 1.366, caso a coisa objeto
de propriedade fiduciária venha a ser vendida e seu produto não bastar para o
pagamento da dívida e das despesas de cobrança, o fiduciante continuará obrigado
pelo saldo.
Exatamente por reconhecer a especialidade da Lei nº 9.514/97 e seus
objetivos, o art. 1.367 do Código Civil ressalva a aplicação “da legislação especial
pertinente” para a propriedade fiduciária de bens imóveis.
Pode-se compreender que se o imóvel dado em garantia, em nenhum dos
dois leilões legais, receber lance capaz de quitar o débito na sua integralidade (art.
26, § 1º), deverá o credor ficar com a propriedade do bem e dar plena e irretratável
quitação ao devedor, nada mais deste podendo cobrar.
A respeito desta imposição legal, comenta Melhim Namem Chalhub (2012,
p.264-265):
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Como conclui Melhim Namem Chalub (2012, p.265) em breve explanação
sobre o tema:
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Não é plausível que se mantenha a disposição constante no artigo 27, §5º, da
Lei nº 9.514/97 aplicável a todos os casos e, consequentemente, na geração de uma
condição desfavorável ao financiador. Com esta situação, no longo prazo, o instituto
torna-se inseguro devido ao seu alto grau de risco no momento da execução para o
credor.
Da maneira como se encontra normativamente estabelecido, abre-se a
oportunidade para decisões judiciais que impõem ao financiado, além de arcar com
os riscos já inerentes ao empreendimento, suportar os riscos de desvalorização do
imóvel no mercado na vigência do contrato. Isso porque, ainda que ocorra qualquer
variação que justifique a queda do preço do imóvel, o que motivaria a não obtenção
de valor bastante para cobrir o saldo devedor nos leilões, o credor deverá aceitá-lo
como quitação total do débito, suportando o saldo remanescente não pago.
Percebe-se que a previsão legislativa, com o fito de criar externalidades
positivas ao mercado imobiliário, ao ampliar ilimitadamente as possibilidades de
extinção do saldo devedor, trouxe externalidades negativas com potencial impacto
direto nos custos de transação do financiador imobiliário. A posição adotada pelo
Poder Judiciário, quando reafirma a extensão do benefício e inviabiliza a possibilidade
de continuidade da execução em relação ao valor residual, encontra seus
fundamentos diretos no modelo normativo vigente, daí a existência de movimentos no
sentido de alterá-lo.
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(MT) 7. Sem embargo, o mesmo deputado já havia apresentado em 2007, o PL nº
1.070. O projeto consistiu na primeira tentativa de alteração das incongruências
normativas constantes na Lei nº 9.514/97 e consequente atualização deste diploma
legal a sua atual aplicabilidade.
O PL nº 1.070 pretendia alterar o §5º, do artigo 27, da Lei nº 9.514/97 para
que sua redação passa a vigorar da seguinte forma:
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31/01/2011 e não proporcionou a retomada do progresso na sistematização do
instituto da alienação fiduciária de imóvel que propunha.
Em 2013 o mesmo deputado retomou a proposição por meio do PL nº 6.525,
porém mediante a inclusão de um novo parágrafo no art. contendo a seguinte redação:
8 No substitutivo propõe-se o acréscimo à Lei nº 9.514/97 do art. 26-A: “Os procedimentos de cobrança,
purgação de mora, consolidação da propriedade e leilão relativos aos contratos de financiamento
habitacional sujeitam-se às seguintes normas especiais [...] III – Se, no segundo leilão o maior lance
oferecido não for igual ou superior ao valor da dívida e seus acréscimos, considerar-se-á extinta a
dívida; no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão o credor dará quitação ao devedor
mediante termo próprio”. Para os contratos de financiamento não habitacional, na forma da redação de
lege ferenda do art. 27, § 5º. "O devedor continuará obrigado pelo pagamento do saldo remanescente,
mediante ação de execução, caso no procedimento de venda do bem não haja oferta de quantia
suficiente para pagamento integral da dívida garantida, seus encargos e despesas de cobrança”.
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instrumental legislativo vigente e sua interpretação pelos Tribunais Superiores, em
soluções viáveis.
A exemplo do aperfeiçoamento necessário à legislação atualmente em vigor
sobre alienação fiduciária de imóveis, no que tange aos sistemas de consórcios, foi
promulgada a Lei nº 11.795/2008.
Consoante definição do art. 2º da Lei nº 11.795/2008, Consórcio “é a reunião
de pessoas naturais ou jurídicas em grupo, com prazo de duração prazo e número de
cotas previamente determinados, promovida por administradora de consórcio, com a
finalidade de propiciar a seus integrantes, de forma isonômica, a aquisição de bens
ou serviços, por meio do autofinanciamento”.
Os integrantes do consórcio são tratados de maneira isonômica, todos no
mesmo patamar e mediante a formação de um grupo sem privilégios ou diferenciação
(art. 3º, § 2º). Ao contrário dos financiamentos habitacionais, não cabe, portanto, falar
em benefícios embasados na vulnerabilidade de um perante os demais.
Caso fosse aplicado o modelo previsto na Lei nº 9.514/97, em caso de
execução do imóvel e verificação de saldo remanescente, seria concedido o perdão
da dívida ao consorciado e o consórcio suportaria a diferença, com prejuízo para todo
um grupo, em prol de apenas um membro responsável pela prestação da garantia.
Enxergando a necessidade de suprir esta lacuna, o legislador, incluiu o art. 14, que
versa a respeito das garantias exigidas dos consorciados para utilizar o crédito.
O § 6º do art. 14, por sua vez, foi o responsável por trazer a inovação há muito
pretendida e ainda não implementada na Lei nº 9.514/97.
O oferecedor de garantia por meio de alienação fiduciária de imóvel ficará
responsável pelo pagamento integral das obrigações pecuniárias estabelecidas no
contrato de participação em grupo de consórcio, por adesão, inclusive da parte que
remanescer após a execução dessa garantia. Portanto, caso o imóvel alienado
fiduciariamente seja levado à execução e, após cumprido o procedimento previsto na
Lei nº 9.514/97, se remanescer diferença, o fiduciante deverá cobri-la, realizando o
pagamento integral da dívida. Com este expediente, cada membro do consórcio
arcará com sua obrigação sem prejudicar os demais, ainda que o imóvel dado em
garantia seja insuficiente para cobrir todo o valor do débito.
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Em que pese a previsão da obrigação do consorciado cobrir a diferença e
realizar o pagamento integral da dívida, a disposição da Lei nº 11.795/2008 não pode
ser aplicada aos financiamentos garantidos por alienação fiduciária de imóveis.
Justifica-se tal assertiva pelo critério da especialidade, pois a premissa adotada pela
Lei dos Consórcios é a paridade entre as partes. Tal pressuposto, como visto, é uma
das características do instituto e impõe a impossibilidade de perdão da dívida a um
dos consorciados em prejuízo ao consórcio como um todo.
Na Lei nº 9.514/97, ao contrário, a premissa adotada para a extinção da dívida
em favor do devedor é a vulnerabilidade. A questão não é afastar tal premissa, mas
sim limitá-la aos financiamentos habitacionais para aquisição da casa própria dentro
de limites máximo de valor do imóvel, para garantir o escopo que motivou a criação
da Lei. A aplicação da norma da Lei nº 11.795/2008 poderia aniquilar totalmente o art.
27, § 5º da Lei nº 9.514/97, impedindo que a dívida pudesse ser considerada quitada,
inclusive nos casos de vulnerabilidade do devedor.
Outra razão importante para a inaplicabilidade da regra dos consórcios aos
financiamentos imobiliários em geral decorre da previsão contida no art. 1.367 do
Código Civil de que a propriedade fiduciária de bens imóveis é regulada pela
legislação especial pertinente. Desta forma, estaria afastada a disposição do art. 1.366
de que o fiduciante continuará obrigado pelo saldo, mesma orientação da Lei nº
11.795/2008.
A constatação supra aumenta ainda mais a importância da necessidade de
alteração legislativa, que só virá com a aprovação do PL nº 6.525/2013 pelo
Congresso.
Também não seria possível sustentar a admissão da execução judicial do
saldo devedor remanescente pelo fiduciário com fulcro na orientação jurisprudencial
pacificada exarada na Súmula 384 do Superior Tribunal de Justiça9.
A referida súmula está fundamentada legalmente no art. 1.102A do Código de
Processo Civil de 1973, correspondente ao art. 700, I, do CPC 2015, que trata das
hipóteses de cabimento da ação monitória.
9BRASIL. 2009: “Cabe ação monitória para haver saldo remanescente oriundo da venda extrajudicial
de bem alienado fiduciariamente em garantia”.
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Em simples leitura perfunctória da supracitada súmula, poder-se-ia concluir
que incongruência normativa existente no disposto no art. 51 da Lei nº 10.931/2004
c/c art. 27, § 5º da Lei nº 9.514/97 fora sanada por entendimento consolidado do STJ.
Ao permitir a ação monitória para reaver saldo remanescente da venda
extrajudicial de bem alienado fiduciariamente, o STJ teria afastado a automaticidade
do perdão imposto pela lei e condicionado sua aplicação à análise do caso concreto,
solucionando o problema trazido pela ampliação da utilização do instituto
proporcionada pela Lei nº 10.931/04. Contudo, em simples leitura dos precedentes10
apresentados como justificativa para edição da Súmula 384, percebe-se que não é o
que se infere do texto da súmula o pretendido no momento de sua aprovação.
Pela análise das quatro decisões precedentes para edição da Súmula 384
evidencia-se que, não obstante essa conter em seu texto a expressão “bem alienado
fiduciariamente em garantia”, sem dispor de maneira clara se se trata de bem móvel
ou imóvel, todos os precedentes se referem a vendas extrajudiciais de bens móveis.
A discussão travada no STJ que levou à edição da Súmula 384 se deu em
virtude da iliquidez do título após a venda extrajudicial da garantia (veículos). Em
havendo alienação extrajudicial do bem móvel, ainda que haja saldo remanescente, o
STJ entendeu que esse saldo não pode ser executado de pronto. Isto porque, não é
válido que o valor do débito seja unilateralmente declarado pelo fiduciário, sem que
haja por parte do fiduciante reconhecimento do valor exato da dívida, depois de
descontado o valor obtido na venda do bem alienado e, se for o caso, com a
oportunidade para o segundo de apontar erros no cálculo apresentado pelo primeiro.
Ao contrário, na alienação fiduciária de imóveis, a lei especial determina
expressamente o perdão do saldo remanescente existente depois da venda do imóvel
e o procedimento de cobrança é diverso da alienação fiduciária de bens móveis 11.
10 Nesse sentido, cf. Recurso Especial nº 2432/CE, Recurso Especial nº 63392/MG, Recurso Especial
nº 331789/MG, todos julgados pela Quarta Turma e Recurso Especial nº 647002/PR, julgado pela
Terceira Turma.
11 Na alienação fiduciária de bem móvel, o Decreto Lei nº 911/1969, com alteração promovida pela Lei
nº 10.931/2004, criou a obrigação de que o devedor pague a integralidade da dívida, não havendo
perdão ao que remanescer dos valores apresentados pelo fiduciário na inicial, conforme se verifica pela
redação do art. 3º, § 2º: “No prazo do § 1º [cinco dias], o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade
da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual
o bem lhe será restituído livre do ônus”.
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Desta forma, a edição da Súmula 384 do STJ apenas corrobora a disparidade
do tratamento dado aos credores de alienação fiduciária de bens imóveis, em relação
aos bens móveis, e para a necessidade latente de adequação das disposições
constantes na Lei nº 9.514/97, sobretudo do parágrafo 5º do artigo 27, por meio de
reforma legislativa.
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em determinado contextos, ou, ainda, estar absolutamente dissociada de suas
pretensões. Essa é a base do pensamento de Douglass North.
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p.164). São as oportunidades criadas pelas instituições, por sua vez, que dão
surgimento às organizações. Organizações são grupos de indivíduos vinculados por
certos propósitos ou objetivos, enquadrando-se aí tanto o Estado como uma
sociedade empresária (WILLIAMSON, 1996, p.361).
As mudanças nas instituições somente ocorrem quando os indivíduos
acreditam que podem melhorar sua situação, por meio de mudanças estruturais
(WILLIAMSON, 1996, p.361-362). Por outro lado, as mudanças serão para melhor ou
não, a depender do conhecimento agremiado pelos indivíduos. É imprescindível
identificar a questão a ser modificada e o convencimento do agente político para que
seja promovida a alteração que se faz necessária.
A norma jurídica, em seu aspecto meramente formal, à condição de ter sido
elaborada a partir de critérios estabelecidos pelo ordenamento jurídico, será
vocacionada a dirigir os comportamentos, seja de forma direta, seja pela imposição
de sanções. Todavia, no campo de sua aplicabilidade, a norma é vazia de significado
se não for acompanhada dos comportamentos que condicionam a sua eficácia. É
possível mencionar aqui, por exemplo, a necessidade de monitoramento das condutas
tipificadas pela norma, de que efetivamente sirvam de condução ao comportamento
humano a partir da premissa legal, seja espontaneamente, seja por coerção.
Logo, norma e comportamento são indissociáveis no campo prático. E,
comportamentos, por sua vez, remetem à figura do agente que, utilizando-se de sua
racionalidade, de sua necessidade ou de sua paixão, irá escolher a conduta a ser
executada. Porém, agentes têm diferentes níveis de racionalidade, sendo equivocado
imaginar que agirão sempre de forma maximizadora ou de boa-fé.
Os limites de racionalidade e os desvios à boa-fé permitem que determinados
agentes retirem uma vantagem pessoal que desequilibre a relação jurídica, no campo
privado, ou caracterize um mau uso da instituição, no campo da incidência normativa.
Na seara privada contratual, a conduta oportunista pode conduzir a que um contrato
seja descumprido ou uma relação estável descontinuada. No campo da incidência
normativa, as vantagens pessoais acobertadas por um suposto interesse social, para
serem coibidas, dependerão de reforma normativa ou da consolidação hermenêutica
no sentido da correção na aplicação da norma.
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Uma situação de vantagem pessoal travestida de interesse social pode ser
identificada, por exemplo, quando uma norma, no propósito declarado de minimizar
danos ambientais, estabelece multas aplicáveis nas situações indesejadas, mas que,
em razão do proveito econômico real do empresário na dada situação concreta, acaba
por consolidar a prática infratora que se repete, já que o proveito é maior do que a
sanção.
Assim é que, infelizmente, normas podem produzir efeitos indesejáveis desde
a sua origem, ou em razão do contexto na qual estão sendo aplicadas ter sofrido
modificações. Os efeitos negativos podem, por sua vez, decorrer de um
comportamento oportunista do agente, ou serem o reflexo de um comportamento não
desejado ou pensado pelo legislador quando disciplinou a matéria, ou pelo agente
público, quando tomou a decisão administrativa.
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maximização da receita governamental; ou, no tema deste artigo, a limitação da
responsabilidade do fiduciante, independentemente de faixa de preço do imóvel e de
sua condição social, pode restringir, encarecer ou eliminar o crédito indispensável
para a incorporação de novas construções de moradia. A eliminação pode se dar
precisamente em relação aos agentes que se queria proteger, os mais carentes. A
restrição, por sua vez, pode refletir em face dos potenciais adquirentes de unidades
habitacionais voltadas à classe média e alta, sem qualquer benefício para os
destinatários originais no âmbito do SFH.
Um dos grandes problemas na intervenção por meio da norma jurídica reside
justamente nos efeitos indesejáveis que podem dela recorrer, seja desde a sua
origem, ou a partir de um dado momento histórico. Dissonância entre os objetivos que
nortearam a norma editada e outros efeitos que dela decorrem involuntariamente .
Como já visto neste artigo, no caso do regime da alienação fiduciária, a
exposição de motivos da norma originária estabeleceu claramente a função a que se
destinava a sua sistemática de excepcionalização. A norma jurídica foi concebida para
limitar a obrigação do fiduciante, mediante a retirada da possibilidade de o fiduciário
continuar a execução para além do valor do bem alienado: a proteção do menos
favorecido, como parte da política de acesso à casa própria.
A mesma limitação, agora projetada para qualquer contrato de alienação
fiduciária, perde a conexão com o objetivo e com o contexto de sua criação, o que
deve justificar a sua revisão, sob pena de o objetivo inicial do legislador quando de
seu estabelecimento afastar-se indelevelmente da prática.
Aliás, sob o aspecto econômico, a depender da capacidade de endividamento
do devedor e da possibilidade de acesso à informação do credor, a doutrina debate
até que ponto a simples existência de créditos mais privilegiados do que outros, por
força de lei, pode impactar negativamente no mercado de crédito. Existirá o risco de
os credores não garantidos/privilegiados aumentarem seus juros (associados ao
spread) de forma desproporcional à redução associada ao estabelecimento de
garantias (SHUPACK, 1989).
Partindo-se do pressuposto de que as normas devem ser ponderadas, para
além da teoria expressa em sua redação, ganha destaque a necessidade de
identificação da conveniência da intervenção normativa, assim como a possibilidade
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de que processos de revisão sejam desencadeados a fim de promover-se
adequações, quando necessário.
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Os impactos do aspecto econômico no Direito vão muito além das
considerações sobre custos de transação ou eficiência. Os efeitos econômicos, pelo
fato de transbordarem para o mercado, podem fazer com que determinada norma se
torne ineficiente, desabilitando-a aos seus propósitos com impactos de ordem social.
Assim é que o direito constitucionalmente assegurado à propriedade e a
política habitacional podem trazer determinações legais que, em sua aplicabilidade,
acabam por produzir efeitos indesejáveis ou pouco eficientes, não apenas em termos
econômicos, mas igualmente sociais.
Para Ivo Gico Jr. (2010):
CONCLUSÃO
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voltadas à antecipação de parcelas para quitação ou ainda, pela desconformidade
entre o valor total das parcelas pagas e a recuperação do valor investido e de sua
remuneração comparativamente ao mercado. Como proposta de solução foram
consolidadas estratégias que operaram por meio da criação e utilização de fundos
garantidores para os referidos contratos de financiamento.
Todavia, as formas de intervenção do Estado na economia, especialmente
quando voltadas a condutas que impactam no mercado, o deficit no sistema financeiro
da habitação e sua relativa insustentabilidade no longo prazo, produziram limitações
na oferta de crédito habitacional e estimularam a busca por outros mecanismos de
financiamento, e como visto, a alienação fiduciária em garantia ganhou espaço.
Ainda com o propósito de salvaguarda dos adquirentes de imóveis de baixa
renda, a Lei disciplinadora da alienação fiduciária imobiliária prevê limitações à
responsabilidade do fiduciante, pois, atendidas as condições e os processos
estabelecidos na Lei, este não responde mais perante o fiduciário pela diferença entre
o valor obtido na venda do bem (executado) e o valor da obrigação.
O que foi pensado, conforme demonstrado pela exposição de motivos da
normativa aqui analisada, para estimular o acesso ao bem imóvel de moradia para o
adquirente de baixa renda, acabou sendo repassado para qualquer aquisição de bem
que se processe pela via da alienação fiduciária em garantia.
A AED permite que se identifique a necessidade de modificação de
normativas, como a ora analisada, seja porque a jurisprudência firmada não resolve o
impasse produzido pela generalização do sistema protetivo, seja porque há
consequências indesejáveis que decorrem inevitavelmente da generalização do
benefício. Os efeitos estão consubstanciados na potencialidade de redução de oferta
de financiamento pela via da alienação fiduciária justamente para os adquirentes de
baixa renda, seja pela projeção das potenciais perdas do fiduciante na oferta de
financiamento para outras faixas de adquirentes, mediante aumento dos juros.
As normas, instituições formais, são modelos de comportamento
estabelecidos e dotados de força coercitiva que encontram a sua razão de ser na sua
vocação à produção de resultados economicamente e socialmente eficientes.
Quando o conteúdo normativo produz efeitos indesejáveis, o que pode ocorrer
em decorrência das normas estarem relacionadas a comportamentos, e esses não
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serem necessariamente aqueles esperados pelo legislador – pela carência de
informação do agente ou por deliberada atuação oportunista- ocorre um afastamento
entre a pretensão e o resultado. O afastamento pode ser resultado também da
modificação do contexto social que emoldurou a construção normativa e aquele do
momento de sua aplicação.
Desta forma, o legislador brasileiro já identificou a necessidade de alteração
da normativa aplicável à alienação fiduciária em garantia na aquisição de bens
imóveis. Sem embargo, é preciso implementá-la, de forma a delimitar o tratamento
excepcional que hoje permite, de forma generalizada, a impossibilidade de o fiduciário
buscar o pleno ressarcimento pelo valor inadimplido pelo fiduciante.
A efetiva alteração da norma analisada é medida necessária para a correção
do atual sistema de forma a superar-se a inadequação do regime vigente.
REFERÊNCIAS
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327
ISSN 1981-3694
(DOI): 10.5902/1981369424912
ILAN GOLDBERG
Doutorando em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor dos Cursos de Pós-
Graduação lato sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro). Professor Substituto da Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
http://lattes.cnpq.br/4199535337003697 / http://orcid.org/0000-0003-1720-9954 / Ilan@cgvf.com.br
RESUMO
O presente artigo tem por finalidade analisar a constituição do contrato de sociedade com ênfase na importância do
dever societário de lealdade. Nesse viés, foram realizadas considerações acerca da função social e do interesse da
sociedade. Mais especificamente, discorre a respeito dos abusos praticados pelos sócios tanto da perspectiva da
minoria, quanto da perspectiva da maioria. Examinam-se determinadas consequências que atingem o próprio mercado
como vítima de condutas abusivas. A partir do emprego do método dedutivo e pesquisa bibliográfica, concluiu-se que
a disciplina dos abusos por parte de sócios em sociedades deve, necessariamente, remeter à função social do
contrato. Por ter o contrato de sociedade função social, quaisquer condutas tomadas pelos administradores devem se
pautar no dever de lealdade, estejam eles na condição de representantes dos sócios majoritários ou minoritários. Caso
inobservado o dever de lealdade, estará caracterizada a conduta abusiva dos administradores.
ABSTRACT
The present article aims to analyze the conception of the company’s contract, emphasizing the importance of the
duty of loyalty. In this sense, there are considerations about social function and about corporate interest. Moreover,
specifically about the abuses practiced by partners in the perspective of the minority, as well as in the perspective of
the majority. The article also looks to consequences that affect the own market as a victim of such abusive conducts.
Through the use of the deductive method and literature research, it concluded that the discipline of abuses by
partners in companies must necessarily refer to the social function of contracts. For having the contract a social
function, any steps taken by the administrators must be based on the duty of loyalty, whether they act as
representatives of the majority or minority partners. If the duty of loyalty is unobserved, the abusive conduct of the
administrators will be characterized.
RESUMEN
El presente artículo tiene por objeto analizar la constitución del contrato de sociedad con énfasis en la importancia
del deber societario de lealtad. En ese sesgo, se realizaron consideraciones sobre la función social y el interés de la
sociedad. Más específicamente, discurre acerca de los abusos practicados por los socios tanto desde la perspectiva de
la minoría, como desde la perspectiva de la mayoría. Se examinan determinadas consecuencias que afectan al propio
mercado como víctima de conductas abusivas. A partir del empleo del método deductivo e investigación bibliográfica,
se concluyó que la disciplina de los abusos por parte de socios en sociedades debe, necesariamente, remitir a la
función social del contrato. Por tener el contrato de sociedad función social, cualquier conducta tomada por los
administradores debe guiarse en el deber de lealtad, estén ellos en la condición de representantes de los socios
mayoritarios o minoritarios. En caso de inobservado el deber de lealtad, se caracterizará la conducta abusiva de los
administradores.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1 O CONTRATO DE SOCIEDADE, A PESSOA DO SÓCIO E OS INTERESSES ENVOLVIDOS; 1.1 O
dever societário de lealdade; 1.2 Função e interesse da sociedade; 1.2.1 A função social da
sociedade; 1.2.2 O interesse da sociedade; 2 OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM SOCIEDADES; 2.1
Condutas abusivas da maioria; 2.2 Condutas abusivas da minoria; 2.3 Direito concorrencial – o
mercado como vítima; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
1
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 18 jul. 2017.
2
Fica ressalvada a possibilidade de constituição de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada
(EIRELI) nos termos do art. 980-A do Código Civil, que se caracteriza pela unipessoalidade permanente.
3
Não é demasiado lembrar que determinadas atividades econômicas, por sua relevância e interesse
público envolvidos no exercício da empresa, exigem sejam observadas certas formas típicas de sociedades
como, por exemplo, as sociedades anônimas para bancos múltiplos (Resolução CMN nº 2.099, de 1994) e
também para operações de seguros privados (Decreto-Lei nº 73/66, art. 24).
4
O Superior Tribunal de Justiça apreciou hipótese na qual numa sociedade de pessoas, determinado sócio
pretendia valer-se de provimento jurisdicional para, forçosamente, ingressar no quadro de sócios. A Corte,
mencionando a necessidade da affectio societatis, reputou incabível a pretensão do sócio demandante:
“Recurso especial. Ação de rescisão de contrato cumulada com perdas e danos. Extensão da obrigação.
Interpretação de cláusulas contratuais. Reexame de provas. Súmulas 5 e 7/STJ. Affectio societatis.
Ruptura. Inexequibilidade do contrato social. Obrigação de fazer. Ingresso em sociedade limitada.
Determinação judicial. Não cabimento. [...] 3. Em contrato preliminar destinado a ingresso em quadro de
sociedade limitada, a discussão passa pela affectio societatis, que constitui elemento subjetivo
característico e impulsionador da sociedade, relacionado à convergência de interesses de seus sócios para
alcançar o objeto definido no contrato social. A ausência desse requisito pode tornar inexequível o fim
social. Inteligência dos arts. 1.399, inciso III, do Código Civil de 1916 ou 1.034, inciso II, do Código Civil de
2002, conforme o caso. 4. Apresenta-se incabível provimento jurisdicional específico que determine o
ingresso compulsório de sócio quando ausente a affectio societatis, motivo pelo qual se impõe a reforma
do acórdão recorrido para decretar a resolução do contrato, a fim de que se resolva a questão em perdas
e danos. [...].” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1192726/SC. Francisco
Francovig e outros; Santa Terezinha Transportes e Turismo Ltda. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.
20 de março de 2015. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1390551&nu
m_registro=201000836598&data=20150320&formato=PDF. Acesso em: 19 jul. 2017.)
5
O Superior Tribunal de Justiça fez exatamente esta distinção entre sociedades de pessoas versus
sociedades de capital. Cita-se o trecho da ementa do acórdão mais relevante para a exposição “[...] 6. A
pretensão deduzida no recurso negligencia uma diferença marcante entre as sociedades anônimas
(geralmente de capital) e as sociedades limitadas (geralmente de pessoas, nas quais predomina a affectio
societatis): nas sociedades anônimas, a lei dificulta o reembolso das ações ao acionista dissidente,
incentivando a alienação das ações para que terceiros ingressem em seus quadros; em contraste, nas
interesses derivada da reciprocidade, a sociedade de pessoas permite um olhar mais claro, haja
vista que seus sócios, no cotidiano, muito provavelmente estarão até mesmo trabalhando juntos,
de maneira que eventuais condutas contrárias aos interesses comuns serão facilmente
perceptíveis e, conforme forem, ajustáveis.
A questão torna-se mais instigante ao examinar a multiplicidade de interesses que
habitam todos e cada um dos acionistas de uma grande sociedade de capital. Nesse sentido,
basta pensar que, em não raras ocasiões, estarão convivendo as mais diversas espécies de sócios,
quais sejam, aqueles que têm poder de voto (titulares das ações ordinárias), os que não o têm
(ações preferenciais), acionistas que, concomitantemente, ostentem a figura de controladores
da companhia, na qualidade de administradores/diretores, meros investidores que,
simplesmente, aplicam seus recursos no mercado de bolsa de valores com o único propósito de
auferir dividendos pagos pela companhia, entre outros.
Embora num plano diferente dos acionistas propriamente ditos, convém ressaltar que
também estarão convivendo com a companhia e seus acionistas os empregados, credores,
associações de classe e, a depender do tipo de atividade empresarial desempenhada, as mais
diversas instituições públicas e privadas, como agências reguladoras, Ministério Público, órgãos
de proteção ao meio ambiente e aos consumidores. Exsurge, portanto, a necessidade de que
seja buscado um equilíbrio bastante sensível entre todos esses personagens.
A reciprocidade interpessoal, característica do contrato plurilateral, traz em si valores
como afinidade, senso de comunhão e harmonia, o que remete à affectio societatis6. Esse liame
entre sócios relaciona-se ao dever de lealdade deles em relação à sociedade. Tal dever, previsto
sociedades limitadas, a lógica é inversa, pois a lei tem predileção pela dissolução parcial - com apuração
dos haveres - e dificulta o ingresso de terceiros nos quadros societários, haja vista que sua essência reside
exatamente no vínculo pessoal entre os consorciados.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso
Especial 1179342/GO. Cilene Maria Elias Metran e Goiás Refrigerantes S/A. Relator: Min. Luis Felipe
Salomão. 01 de agosto de 2014. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1325480&nu
m_registro=201000260074&data=20140801&formato=PDF. Acesso em: 19 jul. 2017.)
6
Destacando a importância dessas características nas sociedades de pessoas, Marcelo Marco Bertoldi e
Marcia Carla Pereira Ribeiro afirmam: “[...] No entanto, foi na pujança mercantilista da Idade Média,
especialmente nas cidades italianas, que surgiu o modelo mais próximo do que hoje se entende por
sociedade empresária, desenvolvendo-se a ideia de separação dos patrimônios dos sócios em relação ao
patrimônio da sociedade. Nessa época, as sociedades eram eminentemente intuitu personae, ou seja, o
que aproximava os sócios eram suas características pessoais e seus objetivos em comum. É o que se
denomina de affectio societatis, característica existente até os dias de hoje nas chamadas sociedades de
pessoas.” (BERTOLDI, Marcelo M; RIBEIRO, Marcia Carla P. Curso avançado de direito comercial. 5. ed.
São Paulo: RT, 2009. p. 145)
no art. 155 da Lei nº 6.404/76, também emana da cláusula geral da boa-fé objetiva de que trata
o art. 422 do Código Civil.
Marcelo Vieira von Adamek refere-se à tríplice função do dever de lealdade nas
sociedades: atuar como cânone hermenêutico e integrativo, como limite ao exercício de
posições jurídicas subjetivas e como fonte de deveres anexos de conduta:
7
ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 63-
64.
abster de votar quando colocado em xeque o interesse social, o que a doutrina chama de
absenteísmo8. Que se tenha o dever societário de lealdade em mente de maneira permanente,
funcionando como um verdadeiro norte a ser observado por todos os sócios no seio da vida
social, independentemente da classe ou espécie de suas ações ou quotas.
Na medida em que os estudos de direito societário se aprofundam, mais e mais o dever
de lealdade se faz presente, trespassando desde as questões mais triviais até as mais complexas.
Seja no ato de constituir uma sociedade, propor aumento do capital social, abrir o capital em
bolsa, prestar informações ao mercado, nas tomadas de controle, exercício do direito de voto
(viés positivo) ou abster-se de votar (viés negativo), entre tantas outras possibilidades, o dever
estará presente, espraiando-se valorosamente em diversos institutos do direito societário.
Arnoldo Wald, discorrendo a respeito da governança corporativa, tece considerações
interessantes quanto ao chamado fim do “absolutismo na sociedade anônima”, exatamente
porque a companhia deixa de ser propriedade de seus controladores ou da maioria. Segundo o
autor, o dever de lealdade deve ser a tônica, a verdadeira guia para o comportamento salutar de
todos os acionistas, não importando a quantidade, espécie e classe de ações que titularizem:
8
“[...] A dispersão acionária pelo grande público, que é característica das sociedades anônimas abertas,
originou, contudo, o absenteísmo acionário, que é o marcante desinteresse da maior parte dos
proprietários de ações em participar das assembleias gerais e tentar influir na gestão da companhia. O
absenteísmo torna inoperantes os direitos assegurados às minorias qualificadas, na medida em que estas
não conseguem alcançar o quórum mínimo exigido pela lei. O absenteísmo tem como uma das causas o
fato de a aquisição de ações se dar por diferentes motivos. Essa constatação levou a que se classificassem
os acionistas quanto aos interesses que os impulsionavam à aquisição de ações, dividindo-os em:
empresários, especuladores e rendeiros. É forçoso afirmar, ainda, que, quanto maior a dispersão, maior o
número de pessoas que buscam, no mercado de ações, apenas uma fonte de rendimentos, seja na forma
de dividendos, seja mediante as valorizações dos títulos (rendeiros e especuladores, respectivamente). O
absenteísmo influenciou, sob dois aspectos distintos, o estudo das minorias societárias. Em primeiro lugar,
constatou-se que o controle, em razão desse elevado desinteresse, poderia ser mantido com uma ínfima
participação no capital da sociedade. Assim, passou-se a tratar a questão das minorias, e de sua tutela,
em função da oposição entre a maioria de acionistas não organizados e a minoria que os controla. O
absenteísmo pôs à lume, ainda, não só a oposição de interesses entre a massa de acionistas e o controle,
mas também entre os próprios grupos de acionistas minoritários. O estudo das minorias, assim, pode se
referir aos grupos de acionistas (acionistas-empresários) atuantes e interessados na administração da
companhia, mas que se encontram alijados do poder em razão de não pertencer ao controle; ou aos
grupos de acionistas formados por pequenos investidores (acionistas especuladores e rendeiros),
detentores, muitas vezes, da maior parte do capital social, mas que, por desinteresse e inaptidão,
encontram-se distantes da gestão social. [...]”. (AGUIAR, Danilo Augusto Barboza de. Proteção dos
acionistas minoritários nas sociedades anônimas abertas como forma de promover o desenvolvimento do
mercado de capitais nacional. Alterações no regime legal das ações preferenciais. In: Revista de Direito
Bancário e do Mercado de Capitais, v. 22, out./dez. 2003. p. 95).
exigindo, pois, um novo padrão de conduta por parte dos administradores e dos
maiores acionistas. É preciso que todos atuem sempre com boa-fé e lealdade. A
boa-fé deve ser objetiva e não subjetiva, não bastando que a pessoa acredite que
a sua conduta é a mais adequada.
É necessário que a atuação esteja de acordo com os padrões dominantes na
sociedade em determinado momento histórico. A lealdade, por sua vez, não é
tão-somente a ausência de deslealdade, tal como o amor não é tão-somente a
ausência de ódio. Lealdade é uma atitude de diligência no cumprimento das
obrigações contratuais e uma verdadeira affectio contractus.
No fundo, a boa-fé, a lealdade e a probidade, que se exigem do administrador e
do controlador da empresa, correspondem à definição de Treu und Glauben, do
art. 242 do CC alemão, no qual se determina a sinceridade (veracidade) e a boa-
fé dos contratantes tanto no firmamento quanto na execução do contrato.
Constituem, na lição de Ripert, a introdução da regra moral no direito, com o
propósito de atenuar, reforçar ou afinar a norma jurídica para compatibilizá-la
com a ética. [...]9
9
WALD, Arnoldo. O governo das empresas. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 5, n.
15, jan./mar. 2002. p. 53.
10
“[…] a regra do business judgment rule busca evitar que pessoas capazes fiquem com receio de
administrar uma companhia, sabendo que poderão colocar em risco ou até perder todo seu patrimônio
pessoal quando assumirem qualquer risco, mesmo que inerente à atividade da companhia. A regra tem por
finalidade estabelecer parâmetros para evitar a responsabilização do administrador que agiu de boa-fé e
nos interesses da companhia.” (SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade Civil dos Administradores de
S/A: business judgment rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 142)
contratos e, por que não dizer, certa dose de ousadia em determinadas situações. Considerando
o preenchimento desses requisitos, a business judgment rule protege o bom gestor da empresa,
evitando que se possa cogitar de sua responsabilidade pessoal caso alguma decisão venha a
causar prejuízos11.
A boa-fé objetiva e o dever societário de lealdade afiguram-se importantíssimos e,
direta ou indiretamente, estarão presentes na ratio de todos os exemplos práticos de abusos,
seja por parte da maioria ou minoria que titulariza as frações do capital com direito a voto.
A positivação das cláusulas gerais de boa-fé objetiva (art. 422) e da função social do
contrato (art. 421) representou uma real mudança de perspectiva no ordenamento jurídico
brasileiro, comparativamente àquela que caracterizou o Código Civil de 1916. O atual Código
Civil, definitivamente, refletiu uma mudança na forma de experimentar e viver o direito. Foi
mitigada a autonomia privada da vontade exacerbada e de forte influência do Código Civil
francês, do pacta sunt servanda elevado à sua mais alta potência, valendo a máxima segundo a
qual “o contrato fazia lei entre as partes” e que ao juiz, na qualidade de “boca da lei”, caberia
apenas buscar no Código a solução para todos os problemas existentes.
Atentando especificamente à função social do contrato, o entendimento pretérito, que
o enxergava como um instituto pronto e acabado em si mesmo e de aplicação restrita às partes,
cedeu espaço para uma proposta mais abrangente, preenchida pela valoração principiológica da
Constituição Federal, tanto os princípios fundantes da República (art. 3º) quanto os relacionados
à Ordem Econômica (art. 170). Esta transformação também atingiu o contrato de sociedade,
como se examinará no item 1.2.1.
Na Exposição de Motivos do anteprojeto de Código Civil, Miguel Reale realça que um dos
aspectos fundamentais do Livro consagrado ao Direito das Obrigações é
“Tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a
liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato,
11
Cf. WARDE JÚNIOR, Walfrido Jorge; CASTRO, Rodrigo Rocha Monteiro de. Poderes de controle no âmbito
da companhia. In: CASTRO, Rodrigo Rocha Monteiro (Coord.). Direito Empresarial e outros estudos em
homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 510.
Em abono a essa doutrina percebe-se que com a chegada da industrialização, das novas
tecnologias e do desenvolvimento, houve uma notável mudança nessa relação ‘protagonista
versus coadjuvante’, na exata medida em que o contrato, de mero agente responsável pela
transferência da propriedade, passou a ser o real responsável por sua criação. Enzo Roppo
comenta a importância do contrato vis-à-vis a propriedade:
12
REALE, Miguel. Novo código civil: exposição de motivos e texto sancionado. 2. ed. Brasília: Senado
Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005. Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/70319. Acesso em: 12 ago. 2016.
13
BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Tomo I. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama.
Campinas: LZN, 2003. p. 150.
14
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009.
p. 63-64.
oportuno recorrer a um tal artifício lógico: parece mais razoável considerar que,
em todos esses casos, existe riqueza (“imaterial”, mas nem por isso menos
relevante) que não se concretiza na forma tradicional do direito de propriedade,
e que tal riqueza é produzia directamente pelo contrato. Neste sentido, dentro
de um sistema capitalista avançado parece ser o contrato, e já não e
propriedade, o instrumento fundamental de gestão dos recursos e de propulsão
da economia.15
Com base neste tecido teórico, na qualidade de instituto responsável pela criação de
riquezas e sob inspiração da densa carga de princípios constitucionais como a função social da
livre iniciativa e a função social da propriedade, o contrato, no Código de 2002, passou a exercer
uma função distinta e com reflexos diretos na função social da sociedade.
15
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009.
p. 66.
16
RENNER, Karl. The Institutions of Private Law and their Social Functions. New Brunswick (U.S.):
Transaction Publishers, 2010. p. 195.
17
DUGUIT, Léon. Las transformaciones del Derecho Publico y Privado. Buenos Aires: Heliasta S.R.L.,
1975. p. 290.
18
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno Paiva. Função social da empresa. In: Revista
dos Tribunais, v. 96, n. 857, mar. 2007, p. 11.
19
COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 85,
n. 732, out. 1996. p. 41.
20
Nesse sentido, cabe mencionar o Enunciado 2.14, proposto na II Jornada de Direito Comercial:
“Proposição 2.14. Resumo das proposições: a) a função social da empresa e os princípios previstos no
artigo 170 da Constituição Federal devem nortear a determinação do interesse da companhia. Portanto, o
interesse da companhia deve incluir, razoável e proporcionalmente, o interesse de todos os acionistas, dos
empregados, dos credores, dos consumidores e da sociedade, bem como a defesa do meio ambiente. b) Do
princípio da função social da empresa decorre um complexo de deveres e obrigações, positivas e
negativas, impostas aos controladores e administradores, perante os sócios minoritários, empregados,
fornecedores, consumidores, meio-ambiente, Estado, e toda a comunidade que com ela interage, cujos
interesses devem ser compatibilizados com a busca do lucro. c) Na interpretação das normas relativas às
empresas [sic] que desenvolvam atividades consideradas socialmente relevantes, deve-se levar em
consideração a sua função social e a sua natureza institucional, da qual decorrem deveres e
responsabilidades para com a comunidade em que vivem.”
21
WALD, Arnoldo. O governo das empresas. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 5,
n. 15, jan./mar. 2002. p. 2.
empresarial não podem ser identificados? Canteiros, avenidas, mobiliários urbanos, parques,
etc., são “adotados” pela iniciativa privada, gerando benefícios para toda a comunidade.
Investimentos com recursos privados são cada vez mais realizados em searas que, até
bem pouco tempo atrás, eram realizados exclusivamente pelo Estado. Segurança pública,
saneamento, educação, esporte e cultura, apenas para exemplificar alguns, foram objeto de
iniciativas empreendidas por particulares, o que se convencionou chamar de responsabilidade
social das sociedades ou, também, de “empresa-cidadã”.
Percebe-se que o principal traço distintivo entre a função social da sociedade e sua
responsabilidade social consiste na sua qualificação: a responsabilidade social é mera faculdade
da pessoa jurídica tomar medidas de cunho assistencial e promocional; por outro lado, a função
social da sociedade decorre de valorosa carga axiológica que emana da Constituição Federal,
notadamente o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV). Portanto, cumprirá aos sócios
controladores o “poder-dever” de observá-la, dirigindo o cotidiano dos seus negócios, valorando
a defesa do meio ambiente, dos consumidores, reduzindo as desigualdades sociais e buscando o
pleno emprego, etc. As sociedades do século XXI devem procurar, além de distribuir dividendos
aos seus acionistas, zelar e, com razoabilidade e proporcionalidade, promover o
desenvolvimento na comunidade em que estiverem inseridas.
Por interesse pode-se entender a relação existente entre um sujeito, que possui
uma necessidade, e o bem apto a satisfazê-la, determinada na previsão geral e
abstrata de uma norma. Para satisfação das suas necessidades, o homem vale-se
de bens. Entre o sujeito e o bem, portanto, forma-se uma relação que, na
situação jurídica enfocada, toma o nome de interesse.22
22
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. São Paulo:
Malheiros, 1993. p. 13-14.
À luz dos múltiplos interesses presentes, o autor comenta quais seriam as possíveis
relações existentes entre os interesses, isto é, relevância, indiferença, possivelmente conflito
ou, num viés positivo, solidariedade:
23
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. São Paulo:
Malheiros, 1993. p. 16-17.
24
O Código Civil não trata do abuso no exercício do direito de voto de modo tão específico como a Lei das
S.A., limitando-se a responsabilizar civilmente por perdas e danos o sócio que, tendo em alguma operação
interesse contrário ao da sociedade, participar da deliberação que a aprove graças a seu voto (art. 1.010,
§ 3º).
25
LAMY FILHO, Alfredo. A Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. Revista de Direito Mercantil (RDM),
n. 7, 1972, p. 130.
O art. 2.373 do Código Civil Italiano preceitua que o acionista não poderá exercer
o direito de voto nas deliberações em que ele tenha, por contra própria ou de
terceiro um interesse em conflito com o da sociedade. Da mesma forma, o § 1º
do art. 115, da nossa lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404, de 15.12.1976),
determina que o acionista não poderá votar nas deliberações em que ele tenha
interesse conflitante com o da companhia. Em que consiste esse interesse da
sociedade ou da companhia, denominado de interesse social (em contraposição
ao interesse individual do sócio ou acionista)?
Tendo em vista, sobretudo, a problemática trazida pela grande empresa e suas
repercussões sociais, trava-se, desde o início do século, intensa polêmica entre
os juristas sobre o conceito de interesse social. Indaga-se, assim, qual o
significado de tal expressão: cuida-se, meramente, do interesse coletivo dos
sócios? Do interesse da sociedade, como pessoa distinta da dos sócios? Ou
também abrange o interesse da empresa, dos trabalhadores, dos credores e da
própria comunidade e do país? Tal é a polêmica que monopolizou as atenções dos
estudiosos do direito, tendo sido considerada por alguns como o “problema
fundamental” das sociedades por ações. E não sem razão, pois não se trata de
questão estéril, tendo influenciado ao revés, como se verá, legisladores e juízes
na elaboração e aplicação da lei.
As teorias elaboradas em torno do interesse social dividem-se em dois grandes
grupos: as teorias institucionalistas e as contratualistas. Para as primeiras, o
interesse social abrange também interesses diversos dos interesses dos
acionistas26; para as segundas, resume-se ele ao interesse coletivo destes. É o
critério distintivo fundamental proposta por Jaeger.
26
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. São Paulo:
Malheiros, 1993. p. 21-22.
Pela doutrina citada, verifica-se que o interesse da sociedade, seja ela disciplinada pelo
Código Civil ou pela Lei das S.A., deverá ter como norte o dever de lealdade entre os sócios e,
no mesmo sentido, o interesse dos sócios uti socii e não uti singuli.
27
ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p.
159-160.
determinam que certas decisões sejam tomadas de maneira egoísta, privilegiando interesses
particulares em detrimento do interesse da sociedade.
Observando a questão sob o ângulo da minoria e da maioria do capital, o presente texto
necessariamente precisaria de maior espaço, o que fugiria ao objetivo inicialmente delineado.
Dessa maneira, em virtude dessas limitações, foram analisados alguns casos cujos detalhes
tocam nos diversos elementos comentados anteriormente.
Inicialmente, o sentido do verbo abusar, consoante o Dicionário Aurélio, auxilia na
compreensão da matéria: “1. Usar ou consumir de forma excessiva, errada ou inconveniente;
[...] 3. Insultar; 4. Agir de forma a servir apenas os próprios interesses, mesmo se prejudicando
outrem.”28
Os abusos praticados nos contratos de sociedade têm afinidade com a conceituação
acima, o que remete, com o propósito de explicar a motivação que está por detrás de tantos
conflitos, a uma citação feita por Marcelo Vieira von Adamek no início de sua obra, altamente
inspiradora para o presente propósito:
É exatamente como prega o ditado popular: “dê poder ao homem e verás quem ele é”.
No interior das mais diversas coletividades, é comum a ideia do convívio entre maiorias e
minorias e, logicamente, o ideal é que se dê de forma harmoniosa.
No âmbito do contrato de sociedade, embora sejam mais comuns os abusos praticados
pelos sócios titulares de ações ou quotas representativas da maioria do capital, via de regra mais
forte, numerosa e poderosa, há também situações nas quais essa lógica se inverte e a minoria,
de frequentemente oprimida, passa à condição de opressora, causando inúmeros problemas ao
bom funcionamento da sociedade.
É preciso entender, inicialmente, que nessa análise maioria versus minoria o critério
quantitativo (número de cabeças) nem sempre será decisivo. Entenda-se bem: uma minoria
28
Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/abusar. Acesso em: 13 jul. 2016.
29
Men love power […]. Give all power to the many, they will oppress the few. Give all power to the few,
they will oppress the many. Both therefore ought to have power, that each may defend itself against the
other.
HAMILTON, Alexander apud BOWEN, Catherine Drinker. Miracle at Philadelphia: the Story of the
Constitutional Convention May, September 1787. Boston: Back Bay Book, 1986.
detentora de parcela considerável do capital social de uma dada sociedade pode, efetivamente,
assumir o controle e, assim, dirigi-la. Portanto, aqui se consigna uma importante observação:
atentar tanto para o critério quantitativo, quanto para o qualitativo, examinando o
contrato/estatuto social, com o propósito de se certificar quanto à regra aplicável ao caso
concreto30.
Conforme mencionado, a casuística tratando de abusos praticados pela maioria e pela
minoria é riquíssima. Para facilitar a compreensão do leitor, a exposição versará, em primeiro
lugar, sobre os abusos praticados pela maioria societária para, a seguir, tratar dos abusos
praticados pela minoria e, por fim, de certos abusos dos sócios que atinjam o mercado, sob a
perspectiva do direito societário vis-à-vis o direito da concorrência (antitruste).
30
Marcelo Vieira von Adamek pontua com propriedade que “Minoria aqui é o não controlador, pouco
importando a proporção e a espécie de sua participação societária. O termo ‘minoria’ assume aqui, pois, a
ideia de não controlador e constitui, precisamente, uma específica situação jurídica subjetiva de sócio
diante da sociedade e dos demais membros. Admite-se, pois, que a minoria (não controladora) possa
episodicamente até ser bastante numerosa e detentora de expressiva participação no capital social (mas
sem direito de voto) e até se contrapor a um controlador minoritário.” (ADAMEK, Marcelo Vieira von.
Abuso de minoria em direito societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 61). No mesmo sentido e de
forma ainda mais enfática, Rubens Requião afirma: “Não nos agrada a expressão ‘minoria’ ou mais
particularmente ‘proteção da minoria’, pois leva a certas ambiguidades e confusões; nem sempre, como
se viu, é a maioria de acionistas que controla a sociedade, podendo perfeitamente esse controle ser
detido pela minoria, capaz, diante da dispersão e do desinteresse dos acionistas-especuladores e
rendeiros, de aglutinar maior número de ações inclusive através de procurações” (REQUIÃO, Rubens.
Curso de Direito Comercial. v. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 144-145)
31
BULGARELLI, Waldírio. Sociedades por ações – aumento abuso de capital. Prejuízo dos minoritários e
vantagens indevidas dos majoritários. Diluição injustificada da posição dos antigos acionistas. Abuso do
poder e conflito de interesses. Anulação da deliberação assembelar que aprovou o aumento e reparação
dos danos. Revista dos Tribunais, v. 555, jan. 1982. p. 1039.
32
Expressão utilizada por Marcelo Vieira von Adamek, citando COZIAN, Maurice et al. Droit des sociétés,
n. 382. 20. ed. Paris: Litec, 2007. p. 185. (com a nota: “face à la superbe des forts, il faut compter avec
la tyrannie des faibles”).
33
BULGARELLI, Waldírio. Anulação de assembleia geral de sociedade anônima – assembleias gerais
posteriores – abuso de minoria. Revista dos Tribunais, v. 514, ago. 1978. p. 1073.
34
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível 543.194-4/9-00. Apelantes:
Procid Participações e Negócios S.A. e Banco Santos S.A. Apelados: Unibanco Aig Seguros e Previdência e
IRB Brasil Resseguros S.A. Relator: Desembargador Vito Guglielmi. 11 de dezembro de 2008. Disponível
em:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?conversationId=&cdAcordao=3396747&cdForo=0&uuidCaptcha
=sajcaptcha_aedfb9aaaebe47d6bf58389314f499d1&vlCaptcha=ffi&novoVlCaptcha=. Acesso em: 19 jul.
2017.
do controlador, afirma: “Ora, embora seja controlador, ele não deixa de ser acionista, não
podendo portanto pretender, nessa qualidade, vantagens diversas das que competem, por lei,
aos demais acionistas.”35 Uma vez mais, o dever societário de lealdade está presente como
fundamento, seja para o administrador ou para o controlador como se infere da leitura do art.
116, parágrafo único, da Lei nº 6.404/76: “O acionista controlador [...] tem deveres e
responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com
a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”36.
35
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Op. Cit., p. 85-86.
36
BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial
da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 dez. 1976. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm. Acesso em: 19 jul. 2017.
37
COELHO, Fábio Ulhôa. O conceito de poder de controle na disciplina jurídica da concorrência. Revista
do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 3, jan./jun. 1999. p. 22.
No mesmo sentido, Calixto Salomão Filho pondera que os objetivos do direito societário
e do direito concorrencial são diferentes, de maneira que o atingimento dos objetivos de ambos
requer condutas distintas:
Com efeito, as questões relativas aos eventuais abusos praticados em sociedades, numa
primeira abordagem, realmente tocam no relacionamento entre os acionistas, deflagrando
diversos conflitos entre minoritários e majoritários. A partir dos elementos acima colhidos
verifica-se que as repercussões dos atos abusivos não ficam limitadas à própria sociedade, pois
poderão ser sensivelmente prejudiciais ao mercado, aos consumidores e à própria comunidade.
Nessa linha de raciocínio, afigura-se de todo pertinente que o controle quanto aos abusos seja
realizado tanto do ponto de vista societário, quanto do ponto de vista concorrencial, zelando,
assim, pelos interesses dos acionistas, dos credores, dos consumidores, ou seja, do mercado
como um todo.
CONCLUSÃO
A investigação dos abusos por parte de sócios em sociedades está relacionada à função
social do contrato e, ato contínuo, à função social da sociedade.
O valor social da livre iniciativa, um dos fundamentos republicanos insculpidos na
Constituição e que se irradia na interpretação e aplicação das normas de todo ordenamento
jurídico, impõe às sociedades – através da atuação dos sócios controladores e administradores -
atentar para os interesses de terceiros, além da distribuição de lucros entre os seus sócios.
Somente assim haverá convivência harmônica no seio da sociedade e tutela de todos os
38
COELHO, Fábio Ulhôa. O conceito de poder de controle na disciplina jurídica da concorrência. Revista
do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 3, jan./jun. 1999. p. 3.
39
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 241.
REFERÊNCIAS
ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário. São Paulo: Malheiros,
2014.
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Recebido em: 27/11/2016 / Revisões requeridas em: 24/05/2017 / Aprovado em: 31/05/2017
INTRODUÇÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS