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Concurso MAGISTRATURA TJ PR

Examinador: ALEXANDRE FERREIRA DE


ASSUMPÇÃO ALVES

Disciplina: Empresarial

“Pinçamos” alguns artigos recentes, para tentar


“entrar” na cabeça do Examinador.

1. A construção jurisprudencial acerca do controle


judicial sobre o plano de recuperação judicial.

2. A importância da correta aferição dos elementos


constitutivos da ação revocatória para os credores
e para a massa falida

3. Efeitos da exoneração do devedor do saldo


remanescente na alienação fiduciária com a
advento da lei nº 10.931/2004

4. O dever de lealdade e os abusos do direito de


sócio em sociedades

5. Considerações sobre a Cláusula de Raio no


Direito Brasileiro
A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

A construção jurisprudencial acerca


do controle judicial sobre o plano de
recuperação judicial
The jurisprudence construction about the judicial
control of the judicial reorganization plan

Alexandre Ferreira de Assumpção Alves*


Matheus Bastos Azevedo de Oliveira**

RESUMO

Estuda-se o plano de recuperação judicial, instituto agregado de grande


margem ao exercício da autonomia de vontade, à luz da decisão de concessão
da recuperação judicial e homologação do plano de recuperação judicial. A Lei
no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, conferiu ao credor, devedor e juiz papéis
determinantes na reestruturação da atividade econômica em crise. Não obstante,
após 10 anos de aplicação da lei, muitas lacunas são apontadas pela doutrina
e tribunais diante da sofisticação dos casos apreciados à luz da lei falimentar,
demandando, por vezes, extensa atividade interpretativa ao operador da lei.
O controle judicial realizado sobre o conteúdo plano de recuperação judicial,
elaborado por devedor e credor, requer acurada destreza do julgador para
não substituir o papel dos agentes privados no procedimento de recuperação
judicial. Nesse sentido, o estudo do entendimento dos tribunais em torno de
destacadas questões revela-se essencial à compreensão e desenvolvimento
dos institutos legais, buscando-se enxergar a construção jurisprudencial em
torno da matéria.

Palavras-chave: Recuperação judicial. Plano de recuperação judicial.


Assembleia Geral de Credores. Lei nº 11.101/2005.

*
Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Associado de Direito
Empresarial nas Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Docente permanente do PPDG
da UERJ, linha de pesquisa Empresa e Atividades Econômicas. Líder do Grupo de Pesquisa
Empresa e Atividades Econômicas do CNPq. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Email: asaa@uol.com.
br
**
Graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Email:
mboliveira@demarest.com.br

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 273


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

ABSTRACT

The study goes through the judicial reorganization plan exploring its private
interest by the decision that grants the judicial reorganization and homologates
the judicial reorganization plan. The Law n. 11,101, of February 9, 2005, has
given the creditor, debtor and judge decisive roles in the restructuring of economic
activity in crisis. Nevertheless, after 10 years of law effectiveness, many gaps
are identified by the doctrine and Courts whereas the sophistication of the cases
examined under the brazilian’s bankruptcy law, demanding sometimes extensive
interpretation by the operator of the law. The judicial review carried out on the
judicial reorganization plan content, prepared by debtor and creditor, requires
accurate dexterity of the judge for not replacing the role of private actors in the
judicial recovery procedure. In this sense, the study of understanding issues of
the Courts is essential to the understanding and development of legal institutions,
seeking to analysis the jurisprudence construction around the matter.

Keywords: Judicial recovery. Judicial reorganization plan. Creditors’ meeting.


Law nº 11.101/ 2005.

Introdução
A Lei nº 11.101/2005 (“LFRE”) inovou ao trazer para o cenário
jurídico nacional o regime da recuperação judicial e introduzir significativas
mudanças ao procedimento judicial destinado à manutenção da
atividade empresarial em crise, anteriormente regulado pelo rígido e
estreito regime de concordata preventiva, previsto no Decreto-Lei nº
7.661/1945. Em franco contraste ao Decreto-Lei ab-rogado, a lei vigente
compreende a flexibilização, em parte, das condições para a concessão
da recuperação como caminho ao atendimento de seus princípios
basilares, franqueando certa autonomia negocial ao devedor e seus
credores para o desenvolvimento de um plano de recuperação judicial
destinado a reerguer a atividade econômica em apuros.
Não obstante, se por um lado a autonomia conferida às partes
lhes assegura papel fundamental na negociação do conteúdo do
plano de recuperação, por outro a submissão do ato à homologação
judicial para a efetiva concessão da recuperação judicial conduz a um

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A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

questionamento: estaria o juiz vinculado ao acordo de vontades entre o


devedor e seus credores?
A indagação compreende duas possíveis formas de controle
judicial: (i) sobre as deliberações da Assembleia Geral de Credores; e
(ii) sobre o conteúdo do plano de recuperação judicial. Para os fins
deste estudo, será observado o do grau de controle judicial exercido
sobre o conteúdo do plano de recuperação judicial.
Após dez anos de vigência da LFRE, verificam-se lacunas no
ordenamento que demandam a atuação judicial para a interpretação e
compreensão de seus institutos. Nesse cenário, a jurisprudência assume
função de destaque para o preenchimento dessas lacunas e fixação de
entendimentos que visem atribuir segurança jurídica a uma legislação
estratégica à economia nacional. A sua análise, por conseguinte, revela-
se imperiosa às reflexões em torno da matéria.
Com a utilização do método dedutivo-analítico e de pesquisa
bibliográfica e documental, serão evidenciados casos empíricos nos
quais restou configurada a existência de controle judicial ao plano de
recuperação judicial nos tribunais brasileiros. Sem embargo, antes de
adentrar propriamente no estudo do conteúdo plano e seus requisitos,
cumpre analisar o instituto da Assembleia Geral de Credores, figura sui
generis voltada à deliberação do plano de recuperação judicial através
da vontade coletiva dos credores, definitiva ao sucesso do procedimento.

1 A Assembleia Geral de Credores

Define-se a Assembleia Geral de Credores, primordialmente,


em torno de suas principais características: (i) reunião colegiada de
credores, convocada e instalada de acordo com as prescrições legais;
(ii) com intuito deliberativo, isto é, decisório; (iii) sobre matérias previstas
ou não defesas em lei1. Naturalmente, a partir dessas características,

1
A definição proposta sintetiza as definições elaboradas pelos autores Jairo Saddi (2006, p. 27),
Sérgio Campinho (2012, p. 77) e Fábio Ulhôa Coelho (2013).

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Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

sublevam-se importantes desdobramentos e estudos doutrinários, ora


compartilhados, ora conflitantes. Dentre as diversas matérias de sua
competência, a assembleia será analisada quando convocada para
deliberar acerca do plano de recuperação judicial, atribuição que lhe é
conferida no art. 35, I, a, da LFRE.

1.1 A Assembleia Geral de Credores e a deliberação sobre o plano


de recuperação judicial
A Assembleia Geral de Credores, destinada a aprovar, rejeitar ou
modificar o plano de recuperação judicial proposto pelo devedor, pode
ser considerada como clímax do procedimento de recuperação judicial,
já que o seu resultado é capaz de direcionar o devedor a caminhos
diametralmente opostos: a reestruturação ou a falência.
Entretanto, embora se revele medular ao procedimento, a
assembleia não é órgão obrigatório à deliberação do plano. Desde
a apresentação deste em juízo, a qualquer credor é conferida a
oportunidade de se opor ao seu conteúdo, por meio de objeções,
no prazo de 30 dias, na forma do art. 55 da LFRE2. Caso não seja
apresentada nenhuma objeção ao plano nesse prazo, dever-se-á
considerá-lo tacitamente aprovado, na forma do art. 57 da LFRE. No
entanto, uma vez formulada objeção por qualquer dos credores, será
sempre obrigatória3 a convocação do conclave pelo juiz, nos termos do
artigo art. 56 da LFRE4.

2

“Art. 55. Qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial
no prazo de 30 (trinta) dias contado da publicação da relação de credores de que trata o § 2o do
art. 7º desta Lei. Parágrafo único. Caso, na data da publicação da relação de que trata o caput
deste artigo, não tenha sido publicado o aviso previsto no art. 53, parágrafo único, desta Lei,
contar-se-á da publicação deste o prazo para as objeções.”
3
Nesse sentido, SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 005.45.5824400. Rel.
Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 26/03/2008.
4
No procedimento de concordata preventiva, o credor estava municiado dos “embargos à
concordata”, pelo qual poderia se opor à concessão do regime ao devedor perante o juiz, conforme
os artigos 142 e 143 do Decreto-lei n. 7.661/1945. Diferentemente dos embargos, a objeção
ao plano não será apreciada pelo Juízo, destinando-se à suscitar a convocação de assembleia
geral de credores para deliberação da matéria no conclave. Nesse sentido, o seguinte trecho
do acórdão proferido no julgamento do Agravo de Instrumento n. 0047459-81.2009.9.19.0000,
pela Décima Quinta Câmara Cível do Estado do Rio de Janeiro, sob relatoria do Des. Sergio
Lucio Cruz, em 26/01/2010: “Não competia ao juiz, portanto, na decisão que homologou o
“Plano”, examinar as objeções apresentadas, por ser isso matéria de exclusiva competência da
assembleia geral.”

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A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

O quorum de instalação da assembleia, em 1ª convocação, está


estampado no art. 37, §2º, da LFRE5 e requer a presença de mais
da metade dos créditos de cada uma das quatro classes de credores
previstas no art. 416, quando existentes, computados pelo valor.
Ausente o quorum mínimo, será observada a data designada no edital
de convocação para a sua realização em 2ª convocação, a qual será
instalada independentemente da apuração do quorum, observado o
prazo mínimo de cinco dias.
Instalada a assembleia de credores, terá início a deliberação e
subsequente votação do plano de recuperação judicial, que se dará de
forma segregada para cada classe do art. 41.
A rigor, para ser aprovado em assembleia, o plano de recuperação
judicial depende do consentimento de todas as classes de credores,
na forma delineada nos artigos 41 e 45 da LFRE. Não obstante, em
apreço ao princípio da preservação da empresa e aos objetivos da
recuperação delineados no art. 477, o art. 58, §1º8, prevê a possibilidade

5

“Art. 37. A assembléia será presidida pelo administrador judicial, que designará 1 (um) secretário
dentre os credores presentes. §2º A assembléia instalar-se-á, em 1a (primeira) convocação, com
a presença de credores titulares de mais da metade dos créditos de cada classe, computados
pelo valor, e, em 2a (segunda) convocação, com qualquer número”.
6
“Art. 41. A assembléia-geral será composta pelas seguintes classes de credores: I – titulares
de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; II –
titulares de créditos com garantia real; III – titulares de créditos quirografários, com privilégio
especial, com privilégio geral ou subordinados. IV - titulares de créditos enquadrados como
microempresa ou empresa de pequeno porte.”
7
“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise
econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do
emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação
da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
8
“Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor
cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido
aprovado pela assembléia-geral de credores na forma do art. 45 desta Lei. §1º O juiz poderá
conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art.
45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos
presentes à assembléia, independentemente de classes; II – a aprovação de 2 (duas) das
classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com
credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores,
computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45 desta Lei. §2º A recuperação judicial somente
poderá ser concedida com base no § 1º deste artigo se o plano não implicar tratamento
diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado”.

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Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

de concessão da benesse e homologação do plano que tenha


alcançado, cumulativamente, os requisitos elencados nos incisos do
referido parágrafo 1º. Visou a lei, com isso, inibir o credor que, por gozar
de posição majoritária em uma determinada classe pelo valor de seu
crédito, pudesse decidir sozinho pela aprovação ou rejeição do plano de
recuperação judicial.
Após a votação do plano na assembleia, seu resultado será
submetido à apreciação judicial, devendo o juiz adotar a solução prevista
no art. 56, §4º da LFRE9 em caso de rejeição, ou no art. 58 em caso de
aprovação.

2 O instrumento jurídico da recuperação judicial: o plano


de recuperação

Previsto na seção III, capítulo III, da LFRE, o plano de recuperação


judicial é o instrumento jurídico obrigatório e indispensável para que o
devedor possa pleitear a concessão de sua recuperação judicial. Trata-
se de uma proposta, tempestivamente oferecida, exclusivamente pelo
devedor em recuperação judicial, direcionada a seus credores titulares
de obrigações existentes à data do pedido, ainda que vincendas. No
documento, o devedor arrola os meios pelos quais pretende superar
a crise econômico-financeira ou se prevenir de uma crise iminente,
franqueando a manutenção da sua atividade empresarial e o pagamento
dos seus débitos. Embora o art. 50 da LFRE disponha variadas formas
de o devedor estruturar sua recuperação, pode o plano tratar incontáveis
meios de reestruturação, devendo encontrar o ponto de convergência
entre o devedor e seus credores para alcançar a sua aprovação
(CAMPINHO, 2012, p. 165).
Entretanto, ainda que se revele um ato eminentemente privado e
de mais flexível conteúdo, nem toda a liberdade é concedida aos agentes

9
“Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará
a assembleia geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação. [...] § 4º Rejeitado o
plano de recuperação pela assembleia geral de credores, o juiz decretará a falência do devedor.”

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A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

na negociação das cláusulas do plano. Diversas são as limitações legais


e principiológicas voltadas a lhe conferir validade e eficácia, de modo
a salvaguardar interesses individuais e coletivos dos envolvidos no
processo, coibindo-se sua utilização como manto à prática de fraudes e
conluios entre devedor e certos credores.

2.1 Requisitos de admissibilidade do plano de recuperação judicial

O art. 53 da LFRE10, além de estabelecer que compete ao


devedor apresentar em juízo o plano de recuperação, arrola, ainda,
quatro elementos essenciais e que merecem rigorosa observância:
(i) a tempestividade; (ii) a discriminação pormenorizada dos meios de
recuperação a serem empregados; (iii) a demonstração da sua viabilidade
econômica; e, por fim, (iv) a apresentação de laudos econômico-
financeiros e de avaliação de ativos, elaborados por profissional ou
sociedade especializada.
Primeiramente, deve o plano ser apresentado no prazo
improrrogável de 60 dias, a contar da publicação do edital de deferimento
da recuperação judicial, conforme o art. 52, §1º, da LFRE11 (UBALDO,
2008, p. 96).
Apresentado tempestivamente, o plano deve indicar, de forma clara
e detalhada, os meios pelos quais o devedor pretende se reestruturar,

10
“Art. 53. O plano de recuperação será apresentado pelo devedor em juízo no prazo improrrogável
de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação
judicial, sob pena de convolação em falência, e deverá conter: I – discriminação pormenorizada
dos meios de recuperação a ser empregados, conforme o art. 50 desta Lei, e seu resumo; II –
demonstração de sua viabilidade econômica; e III – laudo econômico-financeiro e de avaliação
dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa
especializada.
Parágrafo único. O juiz ordenará a publicação de edital contendo aviso aos credores sobre
o recebimento do plano de recuperação e fixando o prazo para a manifestação de eventuais
objeções, observado o art. 55 desta Lei.”
11
Cabe, outrossim, ressaltar que o legislador não considerou a ocorrência de razões de força maior
que justificariam a entrega intempestiva do plano. Tampouco a lei deu ao juiz ou assembleia de
credores a faculdade de examinar tais justificativas, pois determinou a decretação de falência ex
officio na hipótese de apresentação extemporânea do plano.

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Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

além da possibilidade de consegui-lo uma vez empregados os meios


previstos. (PACHECO, 2007, p. 154).
A recuperação judicial destina-se aos empresários individuais e
sociedades empresárias em dificuldade (art. 1º da LFRE), mas capazes
evidenciar meios viáveis de soerguimento de sua atividade econômica e
justificar os sacrifícios impostos aos seus credores. Não se deve tolerar a
sua utilização como ferramenta para postergar a decretação de falência
de atividades manifestamente insolventes, ou, tão menos, propiciar o
esvaziamento patrimonial sob a chancela judicial. É elementar, portanto,
que o devedor aponte, no plano de recuperação judicial, a capacidade
de reestruturar-se, sob pena de atestar a sua real insolvência, hipótese
na qual deveria confessar sua falência, nos termos do art. 105 da LFRE.
Assim se posiciona Márcio Luiz Aguiar (2006, p. 118) sobre o tema:
[...] o plano, como já dito, deve apresentar claramente
a situação da empresa, detectar suas inconsistências
gerenciais, acusar os equívocos que acarretam a crise
econômico-financeira e até mesmo jurídicas das atividades
a serem desenvolvidas. Esses recursos de análise do
ambiente empresarial objetivam prever a superação da
crise e embasar a lógica e mercadologicamente as ações
planejadas, justificando também os caminhos escolhidos.
Enfim, o plano de recuperação ao qual se subordinará o
processo de recuperação deve apresentar coerência,
veracidade e qualidade, posto que o erro neste estágio,
até mesmo por definição legal (art. 56, §4º, da Lei n.
11.101/2005), acarreta a falência.

Finalmente, deve-se destacar que, ao se sustentar a apreciação


do requisito contido no art. 53, II, não se pretende que o juiz aufira a
viabilidade material do plano de recuperação judicial ou intervenha
no seu conteúdo. À exceção de raros posicionamentos contrários12,

12
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
70043342070. Rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 31/08/2011; e RIO GRANDE
DO SUL. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n 70035509736. Rel.
Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, j. 24/11/2010.

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A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

é incontroverso que a valoração da viabilidade econômico-financeira


do devedor é matéria de competência exclusiva da Assembleia Geral
de Credores – caso haja objeção –, não podendo o juiz se sobrepor à
decisão assemblear que a julgue possível ou não13. O papel jurisdicional
limitar-se-á à verificação se o devedor apresenta prova documental
da viabilidade do seu plano, ainda que de forma abstrata, no laudo
econômico-financeiro. Pertinente, pois, que o juiz verifique a inexistência
de sua indicação14, resguardando-se a exclusiva competência da
assembleia para avaliar e, posteriormente, aprovar ou rejeitar o plano.
O entendimento, inclusive, está concretizado no enunciado n. 46,
aprovado em 2012 na I Jornada de Direito Comercial: “Não compete
ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a
extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano
de recuperação aprovado pelos credores.”15.
Como últimos requisitos contidos no art. 53 da LFRE, os laudos
econômico-financeiros e de avaliação de ativos destinam-se a certificar
a momentânea situação patrimonial do devedor e abrangem critérios
determinantes à analise dos credores, tais como: valor atualizado dos ativos
integrantes do seu patrimônio (v.g. móveis, imóveis, marcas, patentes e

13
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Agravo de
Instrumento n. 994.09.319061-0, j. 06/04/2010, destacando-se que: “Por fim, em relação à
inviabilidade do plano, tem-se que é matéria de exclusivo exame por parte dos credores, que
o aceitaram, escapando ao Poder Judiciário deliberação em sentido contrário. Destinatário do
plano de recuperação são os credores. Não há previsão normativa de atuação jurisdicional com
a finalidade de julgar o plano de recuperação. A menos que alguma previsão do plano venha a
incidir em ofensa a norma de ordem pública, em alguma espécie de inconstitucionalidade ou,
enfim, em algum tipo de abuso, o Poder Judiciário não examina o plano de recuperação e sua
viabilidade.”
14
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, Sexta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
70037009958, rel. Des. Luís Augusto Coelho Braga, j. 9/9/2010. Sustentou a Turma Julgadora
que: “Compulsando-se os presentes autos (fl. 534/544), infere-se não terem sido apresentados os
laudos mencionados no inciso III, do dispositivo acima transcrito, cuja falta ensejou a realização
de laudo pericial já referido, pelo qual se observou a ausência do requisito contido no inciso II;
viabilidade econômica. Logo, o Magistrado a quo atuou com respaldo da legislação incidente
à espécie, segundo a qual, uma vez desatendido o prazo para a apresentação do plano de
recuperação com as respectivas especificações, será decretada a falência.”.
15
JORNADA DE DIREITO COMERCIAL I., 23-24 de outubro de 2012. Brasília: Conselho da Justiça
Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2013.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 281


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

outros intangíveis), fluxo de caixa, receitas, despesas etc. Diferentemente


do ensaio sobre a viabilidade econômica do plano, os laudos econômico-
financeiros e de avaliação de ativos são necessariamente formulados
e subscritos por contador ou sociedade especializada, assegurando-se
maior transparência e confiança aos credores acerca da real situação
patrimonial do devedor (TOMAZETTE, 2014, p. 192).

2.2 O recebimento do plano e a apreciação dos requisitos elencados


no art. 53

Conforme exposto, os requisitos de admissibilidade do plano,


afetos à sua própria existência (TOMAZETTE, 2014, p. 192), destinam-se
a propiciar informações substanciais para que seja objeto de deliberação
em assembleia, caso haja necessidade. Confira-se o entendimento de
Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli (2013, p. 218):
Esses três elementos contidos no plano de recuperação
judicial permitem que se reduza assimetria de informações
entre a empresa devedora e os seus credores, de modo
a que os credores possam deliberar pela aprovação,
modificação ou rejeição do plano. Com efeito, conhecidos
os meios de recuperação judicial apresentados, os credores
terão condições de comparar a viabilidade financeira do
plano, mediante análise de projeção de fluxo de caixa,
para saber se o plano proposto é exequível e o quanto
os credores receberão se aprovarem o plano. Como
contraponto, os credores compararão essa alternativa com
a informação constante no laudo de avaliação dos bens e
ativos do devedor, para saber o quanto receberiam em caso
de rejeição ao plano e convolação da recuperação judicial
em falência.

De fato, torna-se inócua a convocação de Assembleia Geral de


Credores para deliberar sobre o plano de recuperação que sequer
cumpra suas condições de admissibilidade. Ausente qualquer dos
elementos dispostos no art. 53, deve ser declarada a nulidade de todo
o plano, já que não ostenta as condições mínimas para ser submetido à
deliberação dos credores.

282 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

Por conseguinte, diferentemente dos preceitos intrínsecos de


validade e eficácia do plano de recuperação judicial, o exame judicial
dos quesitos arrolados no art. 53 deve ser realizado incontinenti ao
recebimento do plano de recuperação judicial pelo juiz, para que sejam
imediatamente constatadas e dirimidas irregularidades dessa natureza16.
A interpretação, ademais, é benéfica ao instituto. Ainda que o juízo
entenda pela prorrogação do prazo e apresentação de um novo plano
de recuperação judicial, busca-se evitar a convocação de assembleia
(e todo o custo a ela inerente) para deliberação de um documento
manifestamente inadmissível e inapropriado.
Nessa fase, o juízo será tão somente de admissibilidade, ou seja,
restringir-se-á a constatar a presença dos requisitos elencados no artigo
53. Não se pretende a averiguação de conteúdo das cláusulas do plano
ou, muito menos, de sua concreta viabilidade, função que é inicialmente
reservada aos credores, e sucessivamente ao juízo antes da concessão
da recuperação.
Cabe destacar que a apresentação do plano em juízo admite
três possíveis desfechos. Primeiramente, se o plano for apresentado
simultaneamente ao pedido de recuperação judicial, caberá ao juiz
quando do deferimento do processamento da recuperação apreciar
também o plano no âmbito das nulidades acima apontadas. Estando em
termos e sendo admitido o documento, será determinada a publicação do
Aviso aos Credores. Uma vez constatada qualquer irregularidade, será
conferido ao devedor o prazo ordinário de 60 dias para apresentação

16
Adotando o mesmo entendimento, cf. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, Quinta
Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0091278-87.2014.8.21.7000. Rel. Des. Isabel Dias
Almeida, j. 30/04/2014, no qual a ausência de apresentação do laudo econômico-financeiro
foi imediatamente constatada pelo Juízo que, diante da improrrogabilidade do prazo de sua
apresentação, decretou a falência da devedora: “A apresentação do laudo econômico-financeiro
no processo de recuperação judicial decorre de exigência legal, porquanto visa demonstrar a
viabilidade da empresa, apesar das dificuldades apresentadas. [...] Certo é que o prazo para a
apresentação do Plano de recuperação judicial, com o atendimento de todos os seus requisitos,
é de sessenta dias, contados da publicação que deferiu o seu processamento. Na hipótese
em comento, não houve a observância da determinação legal, sendo descabido o pedido de
prorrogação de prazo”.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 283


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

de um novo plano ou documentos que o complementam, sob pena de


decretação de falência.
Outro desfecho será se o devedor apresentar o plano antes da
consumação do prazo peremptório e o juiz determinar que a nulidade
seja sanada. Nesse caso, o devedor gozará do período restante para
apresentação de um novo plano de recuperação judicial, até que se
esgote o prazo. A apresentação do plano no período de 60 dias não tem
como efeito a preclusão consumativa do ato, tendo em vista que o plano
poderá ser posteriormente alterado, conforme indica o art. 56, §3º da
LFRE17. Finalmente, se apresentado no último dia do prazo de 60 dias,
a declaração de nulidade do plano de recuperação judicial implicará,
em regra, na decretação de falência do devedor, uma vez que a não lhe
restará prazo suplementar para repetição tempestiva do ato.

3 A decisão de concessão da recuperação e o controle


judicial sobre o plano

A LFRE criou um procedimento especial de votação para formação


do contrato sui generis a ser celebrado entre devedor e credores no
processo de recuperação judicial. Cercado de outras características e
requisitos extrínsecos àqueles dos negócios jurídicos ordinários, o plano
de recuperação judicial, por suas peculiaridades, reveste-se de outros
pressupostos de validade além daqueles previstos no art. 104 do Código
Civil, a merecer estrita observância.
Nesse aspecto, depreende-se que a soberania conferida à
Assembleia Geral de Credores não é absoluta, pois, visando garantir
o cumprimento da lei, o plano está submetido ao exame judicial de

17
Nesse sentido: MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento
n. 1.0079.10.017400-6/004. Rel. Des. Teresa Cristina da Cunha Peixoto, j. 10/11/2011, no qual foi
destacado que: “Além disso, o próprio art. 56, §3º da Lei 11.101/2005 mencionado pelos credores
irresignados estabelece a possibilidade de que o plano possa sofrer alterações na assembleia-
geral, desde que haja expressa concordância do devedor e em termos que não impliquem a
diminuição dos direitos exclusivamente dos credores ausentes, o que se amolda no caso em
tela”.

284 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

legalidade18. Parece claro que, como qualquer negócio jurídico, não basta
o consenso (ou a aprovação da maioria) para que o plano de recuperação
judicial seja válido e eficaz entre as partes, devendo incorporar os
requisitos legais destinados a lhe qualificar como negócio jurídico perfeito.
Nessa lógica, e revelando-se o viés processual da recuperação
judicial, ao juiz foi atribuído papel chancelador da decisão assemblear,
de modo a submeter o plano de recuperação - e também a própria
assembleia geral - ao controle jurisdicional. A esse respeito, Paulo
Fernando Campos Salles de Toledo (2013, p. 307) pontua:
É certo que a Lei dispõe que o juiz ‘decretará a falência
do devedor’ se o plano tiver sido rejeitado, ou ‘concederá
a recuperação judicial’ quando não tiver sofrido objeção ou
tiver sido aprovado pela assembleia geral. Não quer isto
dizer, no entanto, que o juiz deverá sempre, em qualquer
caso, chancelar automaticamente a manifestação de
vontade coletiva dos credores. O pronunciamento judicial
terá forçosamente que aplicar a lei ao caso concreto, e para
isso deverá levar em conta o preenchimento ou não dos
requisitos legais.

Assim também já se posicionou, por mais de uma vez, o Superior


Tribunal de Justiça, ao destacar que “a assembleia de credores é
soberana em suas decisões quanto aos planos de recuperação judicial.
Contudo, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de

18
É possível extrair de inúmeros dispositivos da LFRE, que impõem proibições ou exigências ao
devedor na elaboração do plano (ou na fase de sua execução) a necessidade de exame de
legalidade, tais como: afastar a variação cambial sem o consentimento expresso do credor (art.
50, §2º); suprimir ou substituir a garantia real sem o consentimento do credor (art. 50, §1º);
estender os efeitos da recuperação aos coobrigados solventes nas obrigações que assumir
(violação ao art. 49, §1º) ou aos credores incluídos no art. 49, §§ 3ª e 4ª; estabelecer prazos
para o pagamento dos créditos trabalhistas em desacordo com o art. 54; prever, como meio
de recuperação, a cisão, incorporação, fusão ou transformação da sociedade empresária,
constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, sem respeitar os direitos dos
sócios previstos na legislação (art. 50, II); prever a redução salarial, compensação de horários e
redução da jornada, sem acordo ou convenção coletiva prévios. (art. 50, VIII); incluir cláusulas
que impliquem tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado,
na situação prevista no art. 58, §1º (aprovação do plano por metade ou maioria das classes
votantes). Ademais, se o devedor optar pelo plano especial para ME e EPP, seu conteúdo é
limitado aos incisos do art. 71.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 285


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos
a controle judicial”19; e “é certo que se submete ao controle jurisdicional
a análise do preenchimento das condições prévias à concessão da
recuperação e exigências legais relativas à elaboração e à aprovação do
plano” (cf. Lei nº 11.101/2005, art. 58). Por fim, destaca-se o enunciado
no 44 aprovado na I Jornada de Direito Comercial: “A homologação de
plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao
controle judicial de legalidade.”.
Embora o controle judicial de legalidade seja consectário lógico da
exegese dos princípios de direito e esteja manifestamente presente na
LFRE, maiores embates afloram para definir o grau de incursão do juiz,
constitucionalmente munido do poder jurisdicional, para circunscrever
o exercício da autonomia da vontade pelas partes à luz dos híbridos
direitos e interesses tutelados na LFRE.
A rigor, segundo a dicção do art. 58 da LFRE, cumpridas as
exigências da lei, o juiz concederá a recuperação judicial ao plano de
recuperação que não foi alvo de objeções ou aprovado na forma do
art. 55. Ao que transparece, não lhe é conferida discricionariedade
para análise do conteúdo do plano ou da manifestação de vontade dos
credores, limitando-se a verificar o cumprimento das exigências formais
de desenvolvimento da Assembleia Geral de Credores, restando
vinculado ao seu resultado20 (MOREIRA, 2005, p. 253-254).
Por outro lado, há autores que defendem maior autonomia ao juiz,
cabendo-lhe ponderar a deliberação assemblear frente aos princípios
da LFRE – especialmente o da preservação da empresa – para analisar,

19
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n 1314209. Rel. Min. Nancy Andrighi, j.
22.05.2012.
20
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
1.0707.12.028102-7/004. Rel. Des. Fernando Caldeira Brant, j. 11/07/2014, destacando-se
o seguinte trecho do acórdão: “Ora, cabe ao judiciário fazer uma análise objetiva quanto ao
preenchimento das condições prévias à concessão da recuperação judicial, bem como aos
requisitos formais impostos para que ocorra a aprovação de um plano, os quais, no caso concreto,
foram devidamente preenchidos”.

286 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

formal e materialmente, o plano de recuperação do devedor (LOBO,


2005, p. 152-153; BEZERRA FILHO, 2009, p. 155).
Por fim, destaca-se o entendimento defendido por Leandro
Santos de Aragão (2006, p. 304) e Ricardo Negrão (2010, p. 136), pelo
qual é conferida a mais ampla autonomia do juiz para, inclusive, decidir
contrariamente à Assembleia Geral de Credores quando verificado que
um plano, embora rejeitado, é viável21.
Contrariando o dualismo presente nas ideologias acima expostas,
apropriadamente se posiciona Eduardo Secchi Munhoz (2001), para
quem a LFRE não deve ser observada à luz da falsa oposição entre
a autonomia privada versus discricionariedade judicial, mas sob uma
perspectiva de sinergia entre os agentes envolvidos no procedimento
para atingir seus princípios e propósitos da Lei. Em suas palavras:
A verificação no caso concreto, portanto, da viabilidade da
recuperação do devedor e do atendimento aos objetivos
alinhados pelo art. 47 da Lei 11.101/2005 não cabe
exclusivamente ao juiz, mas deverá resultar do processo de
negociação entre devedor e credores estritamente regulado
pela Lei (structured bargaining). A lei estrutura um processo
de negociação entre devedor e credores que busca
implementar um modelo de comportamento cooperativo, de
convergência de interesses, em lugar de um comportamento
individualista. Confia-se que desse processo de negociação
estruturada (regulada pela lei) possa resultar a solução
consentânea com o interesse público na preservação da
empresa viável e na liquidação da empresa inviável.
[...]
Se ao juiz não deve caber o papel de simples homologação
formal dos acordos entabulados entre devedor e coletividade

21
Nesse sentido, cf.: MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. 3ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento
n. 1.0702.07.347636-9/018. Rel. Des. Kildare Carvalho, j. 06/02/2014. Extrai-se do acórdão o
seguinte fragmento: “No tocante a possibilidade de controle judicial das deliberações tomadas
pela assembleia geral de credores, devo dizer que, de fato, o Estado-juiz, ao exercer o caráter
jurisdicional do processo de recuperação judicial, detém o poder decisório. É dizer, o juiz não fica
vinculado às deliberações tomadas na assembleia de credores.”.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 287


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

de credores, também não lhe deve ser reconhecido o


poder de substituir-se, de forma ampla e desvinculada das
regras procedimentais da lei, à vontade manifestada pela
assembleia geral de credores. A primeira solução poderia
conduzir a resultados indesejados, porque pautados apenas
pelos interesses egoísticos e individualistas dos credores,
ao passo que a segunda desvirtuaria completamente o
sistema, tornando irrelevante o papel da assembléia de
credores. (MUNHOZ, 2001, p.184).

Seja pela concepção legalista, seja por aquela inclinada à maior


autonomia jurisdicional, comuta-se do entendimento que apenas quando
constatada pelo juiz a presença de requisitos legais de validade do plano,
estabelecidos em Lei, é que a recuperação poderá ser concedida.
Mas quais seriam esses requisitos? A LFRE é lacunosa e
discorre timidamente sobre a matéria, proporcionando ampla margem
interpretativa aos doutrinadores e tribunais. Expressos ou implícitos,
formais ou materiais, cogentes ou dispositivos e, nessa medida,
suscetíveis ou não ao controle judicial, as exigências legais ao plano de
recuperação judicial permanecem vagas. No momento de prolação da
decisão de concessão da recuperação judicial ao devedor cujo plano de
recuperação fora aprovado em Assembleia Geral de Credores, o juiz põe-
se diante de arenoso terreno, consistente em auferir o cumprimento dos
preceitos legais. Diante disso, merece cuidadosa análise os parâmetros
desenvolvidos pela doutrina e empregados pelos tribunais brasileiros
para conferir validade aos planos de recuperação judicial aprovados
pelos credores.

3.1 A elaboração das cláusulas do plano de recuperação judicial e


suas limitações: análise da jurisprudência

O plano de recuperação judicial contém, inevitavelmente, matérias


de interesse público que, por sua natureza, são imperativas, ao lado de
normas dispositivas que traduzem interesses eminentemente privados e
flexíveis (REALE, 2002, p. 131-134). Para o exercício do controle judicial
de legalidade, a diferenciação da natureza das normas tratadas no plano

288 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

de recuperação demonstra-se como ponto de partida à constatação de


eventual controle material de legalidade, bem como sua intensidade
diante de normas cogentes ou dispositivas22. Um exame desmedido do
julgador acerca de normas que admitem, ou não, flexibilização pode ferir
a autonomia negocial conferida aos agentes envolvidos na recuperação
judicial, atingindo em cheio o espírito da LFRE. A propósito, já se
manifestou a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão
relatado pelo Min. Luís Felipe Salomão. Em suas palavras:
Se é verdade que a intervenção judicial no quadrante
mercadológico de uma empresa em crise visa tutelar
interesses públicos relacionados à sua função social e à
manutenção da fonte produtiva e dos postos de trabalho,
não é menos certo que a recuperação judicial, com
aprovação do plano, desenvolve-se essencialmente por
uma nova relação negocial estabelecida entre o devedor e
os credores reunidos em assembleia.
[...]
De fato, internamente às tratativas referentes à aprovação
do plano de recuperação, muito embora de forma mitigada,
aplica-se o princípio da liberdade contratual, decorrente da
autonomia da vontade. São apenas episódicos - e pontuais,
com motivos bem delineados - os aspectos previstos em lei
em que é dado ao Estado intervir na avença levada a efeito
entre devedor e credores23.

Portanto, embora a LFRE albergue preceitos nitidamente


imperativos, outros decorrem de sua exegese e são defendidos pela
doutrina e tribunais, razão pela qual se revela oportuna a construção
jurisprudencial em torno da matéria, conforme passa-se a analisar.

22
A propósito, Miguel Reale (2002, p. 133) destaca que a imperatividade de uma norma jurídica
também pode advir da doutrina e jurisprudência, pois é através das pesquisas e decisões judiciais
que se extraem os limites de sua expressão verbal, segundo exigências fatuais e valorativas,
para que correspondam às contingências sociais e econômicas.
23
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial n. 1359311. Rel. Min Luís
Felipe Salomão, j. 30/09/2014.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 289


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

3.1.1 A extensão da novação operada pela homologação do plano de


recuperação judicial aos garantidores e coobrigados

Inicialmente, deve-se pontuar que a novação das obrigações


operada pela concessão da recuperação judicial difere-se do tradicional
instituto regido pelos arts. 360 a 367 do Código Civil, notadamente
por seus particulares efeitos. Primeiro, porque a novação tratada no
âmbito da LFRE possui uma condição resolutiva, qual seja, o regular
cumprimento da nova obrigação, conforme disposto no art. 61, §2º da
LFRE24. Uma vez descumpridas as obrigações contidas no plano e
decretada a falência do devedor, retorna-se às condições originalmente
contratadas25 (COELHO, 2013, p. 169). Segundo, pois a “novação
recuperacional” não atrai a regra geral prevista no art. 366 do Código Civil
de exoneração do fiador, porquanto a LFRE dispõe que os credores do
devedor conservam seus direitos e privilégios em face dos coobrigados26.
Via de regra, serão mantidas as garantias, sejam de natureza acessória
ou autônoma, pessoal ou real. (LOBO, 2007, p. 136)27.
Não obstante, por se tratarem de direito disponível e caráter
privado, as decisões em torno da matéria têm demonstrado a admissão
da derrogação convencional dos efeitos da novação, excluídos os
credores ausentes e que se abstiveram.
Assim se posicionou a Câmara Reservada à Falência e
Recuperação, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao

24
“Art. 61, §2º. Decretada a falência, os credores terão reconstituídos seus direitos e garantias nas
condições originalmente contratadas, deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados
os atos validamente praticados no âmbito da recuperação judicial.”
25
Assim também já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça: BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n. 1260301/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14/08/2012.
26
“Art. 49, §1o Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e
privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”.
27
O mesmo entendimento é compartilhado pelo Superior Tribunal de Justiça e diversos Tribunais
Estaduais brasileiros: BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Segunda Seção. Conflito de
Competência n. 112.620, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. 24/11/2010; SANTA CATARINA.
Agravo de Instrumento n. 2013.001316-2. Rel. Guilherme Nunes Born, j. 19/09/2013; SÃO PAULO.
Tribunal de Justiça. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Agravo de Instrumento nº
0137526-29.2011.8.26.0000. Rel. Des. Elliot Akel, j. 13/12/11; RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de
Justiça, Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 70041336363. Rel. Des. Pedro
Celso Dal Pra, j. 31/03/2011;

290 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

apreciar a seguinte cláusula disposta no plano de recuperação da


sociedade empresária Accentum Manutenção e Serviços Ltda.:
M. Como parte integrante do Plano de Recuperação, os
credores e a ACCENTUM reciprocamente se comprometem
a não iniciar e/ou desistir de todas as ações e recursos
judiciais referentes aos créditos objeto do Plano, inclusive
no que se refere a avais, fianças e garantias oferecidas pela
ACCENTUM, seu sócio, administradores e por terceiros;
N. A aprovação do Plano de recuperação judicial implicará
na novação das obrigações contraídas perante todos os
credores da recuperanda, alcançando, ainda, as obrigações
solidárias dos sócios e demais garantidores, o que implicará
também na extinção destas obrigações28.

Por entender tratar-se de direito disponível, as duas cláusulas


foram declaradas ineficazes pela Câmara em face do credor que interpôs
agravo de instrumento da decisão que concedeu a recuperação judicial
sem ressalvar os efeitos dessas cláusulas.
Em solução divergente, a Primeira Câmara Reservada de Direito
Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao apreciar semelhante
cláusula contida no plano de recuperação de Comercial Ribeiro Pintão
Importação e Exportação Ltda., determinou a absoluta ineficácia da
extensão dos efeitos da novação, com fundamento na incompetência
do Juízo falimentar para fazê-lo29.
Sobre a questão, entende-se que a melhor solução foi adotada no
acórdão proferido pela Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça da
Bahia, também ao enfrentar cláusula extensiva dos efeitos da novação
aos coobrigados, contida no plano de recuperação de Agropecuária

28
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Agravo de
Instrumento n. 0282057-82.2009.8.26.0000. Rel. Des. Romeu Ricupero, j. 06/04/2010.
29
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo
de Instrumento n. 2041474-29.2014.8.26.0000, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 14/08/2014. No
mesmo sentido: RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sexta Câmara Cível. Agravo de
Instrumento n. 0234977-73.2013.8.21.7000. Rel. Des. Ney Wiedemann Neto, j. 24/10/2013.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 291


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

Arakatu Ltda. e Cotton Placas Ltda.30. Por compreender a natureza


dispositiva da garantia, a cláusula foi declarada ineficaz perante todos
os que não a ratificaram expressamente, compreendendo os credores
ausentes à assembleia, os que votaram pela rejeição do plano ou, ainda,
os que votaram pela sua aprovação, mas ressalvaram sua oposição
quanto à referida cláusula. Tal entendimento demonstra-se mais
adequado por preservar a autonomia da vontade das partes, diante de
um privilégio de natureza estritamente patrimonial, sendo seguido por
diversos outros órgãos julgadores31.
Questão reflexa à extensão dos efeitos da novação aos coobrigados
é a suspensão da exigibilidade do crédito submetido aos efeitos do plano
de recuperação judicial. Trata-se de matéria controversa nos tribunais.
A Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro analisou a questão ao se deparar com a seguinte cláusula,
disposta no plano de Recuperação de Tecnosolo Engenharia S.A.:
Cláusula 3.5.: A aprovação do Plano de Recuperação
acarretará, por força do disposto no art. 59 da Lei n.
11.101/2005, a novação das dívidas sujeitas à recuperação,
e também daquelas que, mesmo não sujeitas à recuperação,
foram relacionadas e não contestadas pelos respectivos
credores.
Desta forma, fica desde já estabelecida a suspensão da
exigibilidade dos créditos junto aos avalistas, enquanto o
Plano de recuperação judicial estiver sendo cumprido, e
que somente serão liberadas as garantias quando houver a
quitação nos termos previstos neste Plano de recuperação
judicial (grifou-se).

30
BAHIA. Tribunal de Justiça. Terceira Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0015363-
32.2011.8.05.0000. Rel. Des. Lisbete Mª Almeida Cézar Santos, j. 13/11/2012.
31
Cf. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial.
Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 31/07/2012. Afirmando-se “No que concerne à
liberação de garantias reais e fidejussórias, tal cláusula só tem eficácia para os credores que
votaram favoravelmente ao plano, consoante expressa ressalva constante da ata e na estrita
observância do art. 50, § 1º, da LFR.”; e BAHIA. Tribunal de Justiça. Terceira Câmara Cível.
Agravo de Instrumento n. 0015363-32.2011.8.05.0000. Des rel. Lisbete Mª Almeida Cézar
Santos, j. 14/11/2012.

292 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

Sob a relatoria do Des. José Roberto Portugal Compasso, o


acórdão proferido pela Turma Julgadora declarou a ineficácia total da
cláusula, por violar o § 1º, do art. 4932.
Diferentemente posicionou-se a Câmara Especial Regional de
Chapecó, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A cláusula, disposta
no plano de recuperação judicial de Embracol Empresa Brasileira de
Construção Civil Ltda., determinava a suspensão da exigibilidade dos
créditos submetidos ao plano, inclusive aqueles garantidos por terceiros
e, no caso de cumprimento de todas as obrigações nele dispostas, a
quitação integral em face dos garantidores. O trecho do acórdão, sob
relatoria do Des. Eduardo Mattos Gallo Junior, merece transcrição pela
sutileza com que trata o tema:
Em que pese o entendimento majoritário, tanto da
doutrina, quanto da jurisprudência, ser no sentido de que a
homologação do plano de recuperação judicial não impede
a continuidade dos feitos executivos em face dos terceiros
garantidores, em decorrência de expressa previsão legal -
artigo 49, § 1.º, da Lei de Regência -, tem-se que referido
dispositivo legal merece melhor exegese. Isso porque,
não há qualquer motivo plausível para se determinar o
prosseguimento das execuções em face dos terceiros, posto
que, estando sendo cumprido o plano homologado, inexiste
inadimplemento substancial apto a ensejar as demandas
executivas. Em resumo, não há a caracterização da mora,
fato este que afasta, por decorrência lógica, a possibilidade
de se executar até mesmo os terceiros garantidores. Além
do mais, a não suspensão em face dos terceiros fere a
lógica da segurança jurídica, considerando-se que o norte
do beneplácito à devedora vem a ser a renegociação do
pagamento de suas obrigações o que, inevitavelmente, se
deferido, afasta sua mora, esta que é a condição sine qua
nom à protocolização das expropriatórias. Se não bastasse,
em que pese não se discutir a autonomia do credor frente

32
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Nona Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0047257-
65.2013.8.19.0000. Rel. Des. José Roberto Portugal Compasso, j. 03/12/2013.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 293


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

aos terceiros garantes, se mostra desarrazoado, muito


menos justo, que o terceiro seja obrigado a satisfazer a
obrigação, na situação em que não há a certeza de que
não possa o devedor assim proceder, mesmo que em
uma situação diversa da originariamente pactuada, a
qual, salienta-se, possui indiscutível carga de legalidade.
Outrossim, eventual manutenção da cobrança perante os
garantes, poderia ensejar em novas habilitações no plano
de recuperação judicial - caso dos mesmos adimplirem o
débito -, ocasionando maiores transtornos no principal
objetivo pelo qual o acordo restou homologado, qual seja,
recuperar a integridade econômica da empresa, a fim de
manter, não apenas a estabilidade de seus proprietários -
com o adimplemento dos débitos existentes, resguardando,
sem sombra de dúvidas, o direito dos credores -, mas,
principalmente, dos inúmeros colaboradores que laboram e
dependem de seu salário mensal para sobreviver33.

No caso em tela, concluiu-se que os direitos e privilégios dos


coobrigados e fiadores, apesar não serem suprimidos, deveriam
permanecer suspensos enquanto não for caracterizado o inadimplemento
substancial da dívida garantida pelo devedor em recuperação, sob pena
de tornar-se inócua a disposição do art. 49, § 1º, da LFRE. Uma vez que o
cumprimento do plano de recuperação judicial significa o adimplemento
da obrigação, não seria possível exigir o crédito antecipadamente em
face de coobrigados e fiadores ou o prosseguimento das ações em face
deles.
Como bem ressaltado no acórdão, a matéria, de fato, não é
pacífica. A Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial do
Tribunal de Justiça de São Paulo já opinou em sentido diverso, ao
apreciar cláusula análoga, contida no plano de recuperação judicial de
Wirex Cable S/A, assim redigida:

33
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Câmara Especial Regional de Chapecó. Agravo de
Instrumento n. 2013.067640-7. Rel. Des. Eduardo Mattos Gallo Junior, j. 10/03/2014.

294 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

Enquanto estiverem sendo cumpridas as obrigações


previstas no presente plano de recuperação judicial, deverão
ser suspensas todas as ações e execuções movidas contra
as recuperandas, acionistas, quotistas, fiadores, avalistas e
coobrigados decorrentes das dívidas sujeitas aos efeitos da
Recuperação Judicial.

Por entender pela violação ao art. 49, §1º, da LFRE, o órgão


julgador declarou a cláusula ineficaz em face do credor agravante34.
Com efeito, as cláusulas em comento merecem análise
segregada. Ao reunir fiadores e avalistas, elas acabam por misturar
institutos distintos. A suspensão das ações opostas em face de fiadores,
quando não caracterizado o inadimplemento do devedor, demonstra-se
adequada tendo em vista que o instituto, por sua natureza, reveste-se
do benefício de ordem, disposto no art. 827 do Código Civil, o que não é
afastado pela LFRE, salvo se o fiador a ele renunciar expressamente ou
se obrigar como garante solidário (art. 828 do Código Civil). Entretanto,
o mesmo não se aplica ao aval. A garantia, própria do direito cambiário,
constitui obrigação autônoma do avalista perante o credor (art. 899,
§2º, do Código Civil). Portanto, a sujeição da dívida aos efeitos da
recuperação judicial do avalizado não atingirá a obrigação existente
entre o avalista e o credor.

3.1.2 Abuso na previsão de prazos e condições especiais de pagamento,


notadamente deságio, das obrigações vencidas e vincendas

A concessão de prazos e condições especiais de pagamento é um


dos meios de recuperação expressamente previstos na LFRE, conforme
se extrai do seu art. 50, I35.

34

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 0036314-91.2013.8.26.0000. Rel. Des. Tasso Duarte de Melo, j. 19/08/2013.
35
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça, Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento
0051870-65.2012.8.19.0000. Rel. Des. Jorge Luiz Habib, j. 04/12/2012, assim fundamentado: “A
decisão da Assembleia Geral de Credores é soberana, não sendo concebível que se venha fazer
prevalecer interesse de outrem sobre o dos próprios credores, que decidiram conforme a citada
cláusula “5.4.1” ao aprovar o plano de recuperação.”

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 295


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

Como se nota, diferentemente do Decreto-Lei nº 7.661/1945,


que estabelecia, na concordata preventiva, o pagamento integral dos
credores quirografários em até 24 meses, o legislador da LFRE não
fixou limites, prazos ou formas de pagamento, revelando-se o caráter
negocial do regime de recuperação judicial, pelo qual a Assembleia
Geral de Credores é concebida como órgão destinado a propiciar a
defesa dos interesses dos credores e a deliberação do conteúdo do
plano pelos credores, fomentando-se a negociação com o devedor.
Nessa perspectiva, diversos são os casos enfrentados pelos
tribunais pátrios nos quais restou reconhecida a soberania do órgão para
tutelar o interesse dos credores e, inclusive, submeter seus resultados
a todos os credores sujeitos aos efeitos do plano, salvo quanto às
cláusulas que admitem derrogação particular36. A questão, contudo, não
é unânime e existem julgados mais restritivos e outros extremamente
liberais.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, destaca-se a
aparente mudança de entendimento na Primeira Câmara Reservada
de Direito Empresarial. Em 2013, ao apreciar o plano de recuperação
judicial proposto por Oswaldo Baldin Administração e Participações S/A,
em recuperação judicial, e outros, a Câmara declarou nula a cláusula
que previa o deságio de 50% do valor nominal dos créditos, com
fundamento em suposta abusividade. Foi determinada a apresentação
de uma nova proposta, embora o plano tivesse sido aprovado em
assembleia de credores37. Não obstante, em 2014, em acórdão relatado
pelo Des. Fernando Antonio Maia da Cunha, pelo qual era proposto
idêntico deságio de 50% sobre todos os créditos sujeitos ao plano, a
mesma Câmara manifestou entendimento de que

36
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça, Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento
0051870-65.2012.8.19.0000. Rel. Des. Jorge Luiz Habib, j. 04/12/2012, assim fundamentado: “A
decisão da Assembleia Geral de Credores é soberana, não sendo concebível que se venha fazer
prevalecer interesse de outrem sobre o dos próprios credores, que decidiram conforme a citada
cláusula “5.4.1” ao aprovar o plano de recuperação.”
37
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 0076455-55.2013.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 29/08/2013.

296 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

em princípio, não deve o Poder Judiciário entrar nesse


mérito para afirmar que o percentual do deságio aplicado
é abusivo ou indiciário da inviabilidade da empresa.
Conquanto elevado o percentual, fato é que a Assembleia
Geral de Credores o reputou melhor aos interesses dos
titulares dos créditos e o aprovou.38

A Segunda Câmara de Direito Empresarial do mesmo tribunal


parece não ter a mesma concepção. Em acórdão de relatoria do Des.
Ricardo Negrão, a Câmara entendeu que o deságio de 50% sobre a
dívida submetida ao plano de recuperação judicial, embora aprovado
em assembleia de credores, configura pagamento vil, sobretudo se
comparado às porcentagens mínimas historicamente previstas no
regime de concordata preventiva39.
Em outros tribunais pátrios, a matéria parece estar mais
sedimentada para defender a autonomia dos credores em deliberar
os critérios de pagamento de seus créditos. Assim, por exemplo,
manifestou-se a Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, reconhecendo que, apesar da proposta de 80% de deságio
sobre os créditos submetidos ao plano de recuperação judicial, não cabe
ao Poder Judiciário interferir no mérito da deliberação, especialmente
diante de sua aprovação em Assembleia Geral de Credores40.
Questão indiretamente referente ao deságio e, consequentemente,
de aspecto patrimonial, a incidência de juros e correção monetária sobre
o crédito submetido aos efeitos do plano de recuperação judicial também
não está alheia a entendimentos contrários. De acordo com a Primeira

38
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo
de Instrumento n. 2110784-25.2014.8.26.0000. Rel. Des. Fernando Antonio Maia da Cunha, j.
11/09/2014.
39
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo
de Instrumento n. 0055083-50.2013.8.26.0000. Rel. Ricardo Negrão, j. 25/07/2014. Com o
mesmo entendimento: SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito
Empresarial. Agravo de Instrumento n. 0109227-71.2013.8.26.0000. Rel. Des. Lígia A. Bisogni, j.
16/07/2014.
40
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Quinta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n.
1.0024.12.283623-2/027. Rel. Des. Fernando Caldeira Brant, j. 25/09/2014.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 297


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do


Estado de São Paulo, a ausência de previsão de incidência de correção
monetária enseja a decretação de nulidade do plano de recuperação
judicial, tendo em vista que o crédito suportaria um duplo deságio,
em razão da natural – e imprevisível – taxa de inflação, notadamente
quando o prazo de pagamento for extenso41. Contudo, o entendimento
não se repete, inclusive, dentro do mesmo tribunal.
A Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial manifestou
entendimento contrário e assaz liberal, ao decidir que a incidência de
correção monetária e juros é de caráter patrimonial individual e, portanto,
disponível aos credores, inclusive para deliberar a taxa de atualização
que julgarem apropriada. O acórdão, de relatoria do Des. Ramon Mateo
Júnior, assevera o seguinte:
É cediço que a correção monetária não representa lucro ou
acréscimo patrimonial, destinando-se unicamente à atualização do valor
monetário do crédito. Tal circunstância, contudo, não lhe subtrai o caráter
patrimonial, de modo que, anuindo os interessados com a adoção de
determinado índice, no caso a Taxa Selic, deve prevalecer a decisão da
Assembleia Geral de Credores, que detém soberania.42
Tal posicionamento foi compartilhado pela Nona Câmara Cível
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em acórdão de
relatoria do Des. José Roberto Portugal Compasso, para quem “são
direitos disponíveis sem implicações de ordem pública”43. Portanto, não
há ilegalidade se o plano de recuperação estabelecer a não incidência
de correção monetária para os credores quirografários que optarem por
receber a dívida em 15 anos, após o período de carência.

41
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 0020538-51.2013.8.26.0000. Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 04/07/2013.
42
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de
Instrumento n. 2071805-91.2014.8.26.0000. Rel. Des. Ramon Mateo Júnior, j. 17/11/2014.
43
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Nona Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0047152
88.2013.8.19.0000. Rel. Des. José Roberto Portugal Compasso, j. 26/11/2013.

298 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

CONCLUSÃO

A ampla autonomia conferida ao devedor para projetar os meios


de recuperação os quais julgar apropriados à sua reestruturação revela
indispensável flexibilidade ao processo, criando, através da assembleia
geral, o cenário ideal de negociação entre devedor e credores sobre o
melhor caminho a ser trilhado para o futuro de sua empresa.
A busca pela convergência desses interesses, descritos pelo
legislador no artigo 47 da LFRE, configura o verdadeiro desafio a ser
enfrentado por todos os órgãos envolvidos diretamente na recuperação
judicial, e sustenta a reflexão em torno do papel do juiz como garantidor
dessa harmonização, onde o resguardo da autonomia negocial das
partes é essencial.
A primeira conclusão é que se revela apropriada a submissão do
plano de recuperação judicial ao controle judicial, de modo a assegurar
o imperioso cumprimento dos pressupostos de legalidade destinados
a proporcionar substrato ao devedor e credores para deliberação
sobre o direito tutelado no plano de recuperação. Não obstante, a
intervenção desmoderada aos interesses de natureza eminentemente
individual e patrimonial pode configurar excessiva intervenção estatal no
procedimento que, sem dúvidas, tem repercussões econômicas.
Desta forma, deve-se observar que o plano de recuperação
judicial é de natureza eminentemente contratual, e, como tal, reveste-se
da autonomia da vontade das partes a ele vinculadas, razão pela qual
não deve ser descaracterizada a soberania – ainda que mitigada – do
devedor e credores para dispor sobre o seu conteúdo.
Portanto, no exercício do controle de legalidade, deve o juiz
analisar o conteúdo do plano de recuperação judicial para verificar
eventuais transgressões a normas de direitos indisponíveis, sem deixar-
se levar sobre a razoabilidade da negociação que se aprecia, sob pena
de descaracterizar o instituto.

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 299


Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, Matheus Bastos Azevedo de Oliveira

REFERÊNCIAS

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de falência. Florianópolis: Habitus, 2006.
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(Coord.). Direito societário e a nova lei de falências e recuperação
de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial
da recuperação judicial de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas
e falências: Lei nº 11.101/2005 comentada artigo por artigo. 6. ed. rev.
e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo
regime da insolvência empresarial. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial. 14. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. v. 3.
MUNHOZ, Eduardo Secchi. Anotações sobre os limites do poder
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de Direito Bancário e Mercado de Capitais, Porto Alegre v. 36, p. 184,
abr. 2007.
NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial & de empresa. 8. ed.
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PACHECO, José da Silva. Processo de recuperação judicial,
extrajudicial e falência: em conformidade com a lei n. 11.101/05 e a
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PAIVA, Luiz Fernando Valente. Direito falimentar e a nova lei de
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REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo:
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300 Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015


A construção jurisprudencial acerca do controle judicial sobre o plano de recuperação judicial

TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique


(Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. O plano de recuperação
judicial e o controle judicial da legalidade. Revista de Direito Bancário
e do Mercado de Capitais, São Paulo, v. 60, p. 307, abr. 2013.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e
recuperação judicial de empresa. v. 3. São Paulo: Atlas, 2014.
UBALDO, Edson. Recuperação judicial e extrajudicial de empresas:
comentários aos artigos específicos da Lei n. 11.101, de 9-2-2005.
Florianópolis: Conceito, 2008.

Recebido em: 20/03/2015


Aprovado em: 19/06/2015

Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 273-301, maio/ago. 2015 301


Organização Comitê Científico
Double Blind Review pelo SEER/OJS
Recebido em: 25.11.2018
Aprovado em: 12.12.2018
Revista Brasileira de Direito Empresarial

A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS


CONSTITUTIVOS DA AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A
MASSA FALIDA

Alexandre Ferreira de Assumpção Alves1


Thalita Almeida Salles2

Resumo: O artigo trata da ação revocatória como instrumento necessário para declaração de
ineficácia subjetiva de atos fraudulentos praticados em prejuízo da massa falida e credores, nos
termos do artigo 130 da Lei n. 11.101/2005. O objetivo é demonstrar que as decisões de
improcedência nas ações revocatórias baseiam-se nas hipóteses de imperícia do administrador
judicial, na dificuldade na coleta de provas e na assimetria de informações detidas pela massa
falida e pelo réu. O método utilizado foi o dedutivo e a pesquisa bibliográfica também se
apoiou no estudo de casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça
estaduais.

Palavras-chave: Falência; Massa Falida; Ineficácia Subjetiva; Ação Revocatória; Artigo 130
da Lei nº 11.101/2005.

THE IMPORTANCE OF THE CORRECT VERIFICATION OF REVOCATION SUIT


CONSTITUENT ELEMENTS FOR CREDITORS AND FOR THE BANKRUPTCY
ESTATE

Abstract: This article discusses the revocation suit as a necessary instrument for stating
subjective inefficacy of fraudulent acts performed to the loss of bankrupt estate and of
creditors, as per article 130, Law#11101/2005. The purpose is to demonstrate that revocation
suits dismissal decisions are grounded on assumptions regarding lack of expertise by the court
appointed administrator, difficulties in collecting evidence, and asymmetry of information held
by the bankruptcy estate and by revocation suit defendant. Deductive method was adopted, and
bibliographic research also leaned in the study of cases judged by the Higher Court of Justice
and by Brazilian Courts of Justice.

Keywords: Bankruptcy; Bankruptcy Estate; Subjective Ineffectiveness; Revocation Suit;


Article 130, Law#11101/2005.

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata da ação revocatória enquanto instrumento necessário para


declaração da ineficácia subjetiva de atos fraudulentos praticados em prejuízo da massa falida e
dos credores, antes da decretação da falência, nos termos do artigo 130 da Lei nº 11.101/2005

1
Mestre e Doutor em Direito. Professor Associado nas Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Docente
permanente do PPGD da UERJ; alexandreas@direito.uerj.br
2
Advogada e Consultora nas áreas de Direito Empresarial, Contencioso Cível, e Contratos; sócia do escritório
Bastos-Tigre, Coelho da Rocha. Lopes e Freitas Advogados. Atualmente cursa o mestrado na linha de pesquisa
Empresa e Atividades Econômicas no PPGD da UERJ; thalita.almeida@bastostigre.adv.br

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Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles

(LRF). A relevância do tema se sustenta na utilidade de conhecer e manejar a ação revocatória


que busca restituir à massa falida os bens transferidos ou cedidos a qualquer título a terceiros
de forma fraudulenta. Essa importância é reforçada pela verificação do elevado número de
pedidos de recuperação judicial distribuídos nos últimos anos3, evidenciando a necessidade do
estudo da revocatória como medida de restituição de ativos à massa, na hipótese de restar
malsucedida a recuperação judicial.
A proposta central do artigo é investigar algumas das causas de improcedência de
ações revocatórias, considerando as dificuldades inerentes a esse procedimento ordinário, que
demanda produção de provas de conluio e efetivo dano à massa. Para esse exame foi adotado o
método dedutivo, a partir de pesquisas bibliográfica e documental, bem como da análise de
precedentes coletados dos Tribunais de Justiça dos Estados de Santa Catarina, Rio Grande do
Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e, ainda, do Superior Tribunal de Justiça.
No primeiro capítulo discorre-se sobre a finalidade da ação revocatória, com a
apresentação de breve distinção entre as hipóteses de declaração de ineficácia de atos previstas
na lei falimentar brasileira. Na sequência, foram expostas a legitimidade e os efeitos da
sentença que julga procedente a ação revocatória. No capítulo seguinte perscrutou-se a fraude
contra credores como elemento nucelar da ação revocatória, bem como alguns dos aspectos
comparativos entre a revocatória falimentar e a ação pauliana, prevista no Código Civil de
2002. Na última parte foram analisadas ações revocatórias julgadas improcedentes, com
objetivo de identificar os elementos contundentes na formação do convencimento do juízo,
verificando as possíveis causas que conduzem à improcedência das ações revocatórias.
Por fim, em uma verificação preliminar dos precedentes coletados, foi possível
observar que a improcedência de revocatórias falimentares funda-se, marcadamente, na
imperícia do administrador judicial, dificuldade na coleta de provas e na assimetria de
informações detidas pela massa falida e pelo réu da ação revocatória.

1. FINALIDADE DA AÇÃO REVOCATÓRIA

O vocábulo revocatória tem origem no verbo latino revocar, que significa fazer voltar,

3
Segundo a Revista Valor Econômico, somente no ano de 2016, foram registrados 1.863 pedidos de recuperação
judicial no país. Disponível em <https://www.valor.com.br/brasil/4824392/pedidos-de-recuperacao-judicial-
batem-recorde-em-2016-nota-serasa>. Acesso em 28/08/2018.

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A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA

restituir a, chamar de volta. (Requião, 1998, p. 224). Para Carlos Roberto Claro (2015, p. 83),
a compreensão da etimologia da palavra é relevante para a correta interpretação sistemática
desse instrumento do procedimento falimentar. Em sentido material, a finalidade da ação
revocatória é revogar negócios jurídicos praticados no período que precede a falência, com
objetivo de restituir à massa falida os bens que foram extraídos do seu ativo em conluio
fraudulento com consequente prejuízo dela e dos credores do falido.
Em termos processuais, a revocatória prevista no art. 130 da LRF pode ser descrita
como procedimento ordinário (“comum” na terminologia do atual CPC), de natureza
constitutiva negativa, eficácia relativa e que se materializa como medida de proteção coletiva,
cujo exercício só tem lugar depois da decretação da falência da devedora.
Yussef Said Cahali indica a origem da revocatória falencial nos estatutos comerciais
das comunas italianas, elucidando interessante questão sobre a evolução da medida: “[...]
igualmente na legislação italiana, o Código Comercial francês de 1808 [sic] adotou uma
solução radical: equiparando o falido ao interdito, inquinava de nulidade abosluta atos por
ele praticados desde a data da cessação de pagamentos[...].” (2013, p. 517). [grifo nosso]
O raciocínio supra é reforçado pela literalidade dos arts. 4444 e 4455 do Code de
Commerce francês, nos quais se verifica tratamento de nulidade e anulabilidade aos atos
fraudulentos. A mesma lógica era acompanhada pelo Código português de 1833, em seus
parágrafos. 1.1366 e 1.1377, pelo Código Comercial de 1850, no artigo 8288, pelo Decreto n.
917 de 1890, no seu artigo 30, b9, bem como pela Lei n. 859 de 1902, em seu artigo 36, b10.

4
Art. 444. Tous actes translatifs de propriétés immobilières, faits par le failli, à titre gratuit, dans les dix jours qui
précèdent l’overture de la faillite, sont nuls et sans effect relativement à la masse des créanciers; tous actes du
même genre, à titre onéreux, sont susceptibles d’être annullés, sur la demande des créanciers, s’ils paraissent aux
juges porter des caractères de fraude.
5
Art. 445. Tous actes ou engagemens pour fait de commerce, contractés par le débiteur dans les dix jours qui
précèdent l’overture de la faillite, sont présumés frauduleux, quant au failli: ils sont nuls, lorsqu’il est prouvé qu’il
y a fraude de la part des autres contractans.
6
Art. 1.136. Todos os atos translativos de propriedade móve1 ou de raiz, a titulo oneroso, todas as obrigações,
todos os pagamentos feitos em qualquer época podem ser anulados a requerimento dos credores, provando-se
fraude de qualqner das partes.
7
Art. 1.137. Todos os atos ou obrigações, contraídas pelo devedor com fim comercial nos vinte dias precedentes à
abertura da falência, presumem-se fraudulentos quanto ao falido; e são nulos, provando-se que houve fraude da
parte dos outros contratantes.
8
Art. 828 - Todos os atos do falido alienativos de bens de raiz, móveis ou semoventes, e todos os mais atos e
obrigações, ainda mesmo que sejam de operações comerciais, podem ser anulados, qualquer que seja a época em
que fossem contraídos, enquanto não prescreverem, provando-se que neles interveio fraude em dano de credores.
9
Art. 30. São anuláveis somente em beneficio da massa: b) todos e quaisquer atos, seja qual for a época em que
tenham sido feitos, sem que se possa alegar prescrição ordinária, provando-se fraude de uma e outra parte
contratante.

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Alexandre Ferreira de Assumpção Alves & Thalita Almeida Salles

Interessante notar que o Código Comercial espanhol de 1829, parece ter inaugurado a distinção
entre os atos anuláveis, previstos no art. 1.04111, e a revocação (revocar) para os atos
praticados en fraude de sus acreedores (revocação), nos termos do art. 1.04212.
No Brasil, com a promulgação da Lei n. 2.024, de 1908, finalmente ocorreu a
distinção dos efeitos que se pretendia emprestar aos atos que, objetivamente, não seriam
oponíveis à massa falida (art. 55)13, e a revogação de atos praticados de forma fraudulenta na
forma do art. 5614. A redação do dispositivo legal que previu a ação revocatória não sofreu
alteração substancial no Decreto n. 5.746, de 1929, nos seus arts. 5515 e 5616, seguido do
Decreto-lei n. 7.661, de 1945, que previu as medidas de ineficácia em seus arts. 5217 e 5318.
Na legislação falimentar vigente, a revocatória se acha prevista no Capítulo V da Lei
n. 11.101/2005, que trata da ineficácia objetiva e da revogação19 de atos praticados antes da
falência em seus arts. 129 e 130. No artigo 129 e seus incisos estão previstas as hipóteses de
ineficácia objetiva e, no artigo 130, as de ineficácia subjetiva. É fundamental fazer a distinção
entre as situações previstas nesses dois dispositivos, porque ela se reflete na correta aferição
dos elementos necessários para aplicação de um ou de outro procedimento, bem como da
necessidade ou dispensa de produção de determinadas provas.

1.1 Distinção entre as hipóteses de ineficácia previstas nos artigos 129 e 130 da LRF

10
Art. 36. São anuláveis somente em beneficio da massa: b) todos e quaisquer actos, seja qual for a época em que
tenham sido feitos, sem que se possa alegar prescrição, provando-se fraude de uma e outra parte contratante.
11
Art. 1041. Podrán anularse á instancia de los acreedores, mediante la prueba de haberse obrado en fraude de sus
derechos: [...].
12
Art. 1042. Todo contrato hecho por el quebrado en los cuatro años anteriores á la quiebra , en que se pruebe
cualquiera especie de suposicion ó simulacion hecha en fraude de sus acreedores, se podrá revocar á instancia de
estos.
13
Art. 55. Não produzirão efeito relativamente à massa, tenha ou não o contratante conhecimento do estado
econômico do devedor, seja ou não intenção deste fraudar os credores: [...].
14
Art. 56. Poderão ser revogados, também, relativamente à massa, todos e quaisquer atos, enquanto não prescritos,
praticados pelo devedor, na intenção de prejudicar credores, provando-se fraude de ambos os contraentes.
15
Art. 55. Não produzirão efeitos relativamente à massa, tenha ou não o contratante conhecimento do estado
econômico de devedor, seja ou não intenção deste fraudar os credores: [...]
16
Art. 56. Poderão ser revogados, também relativamente à massa, todos o quaisquer atos, enquanto não prescritos,
praticados pelo devedor, na intenção do prejudicar credores, provando-se fraude, de ambos os contraentes.
17
Art. 52. Não produzem efeitos relativamente à massa, tenha ou não o contratante conhecimento do estado
econômico do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: [...]
18
Art. 53. São também revogáveis, relativamente à massa, os atos praticados com a intenção de prejudicar
credores, provando-se a fraude do devedor e do terceiro que com ele contratar.
19
O termo revogação não é etimologicamente adequado para tratar da revocatória, mas foi utlizado no texto, em
razão de sua propagação na doutrina e nos textos legais. No entanto, é pertinente registrar que o sentido que se
deve emprestar ao termo é de revocar (chamar para trás, mandar voltar) e não de revogar (tornar sem efeito,
anular, desfazer, fazer com que não mais vigore). (CLARO, 2015, p. 146)

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82
A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA

Apesar de ser comum o objetivo dos arts. 129 e 130 da LRF, isto é, declarar a
ineficácia de determinado negócio jurídico em relação à massa falida, há diferenças de natureza
procedimental e material que separam as duas hipóteses. Enquanto a declaração de ineficácia
objetiva pode ser reconhecida e declarada de ofício pelo juiz, os efeitos pretendidos com a
ineficácia subjetiva dependem do ajuizamento da ação revocatória, com a necessária
demonstração do fato constitutivo do direito do autor, com a necessária observância dos
requisitos da petição inicial, nos termos do art. 319 do Código de Processo Civil e da
comprovação do consilium fraudis e do eventus damni.
Além disso, a declaração de ineficácia objetiva somente pode se dar nas situações
previstas pelo art. 129, enquanto que a ação revocatória prevista no art. 130 tem cabimento
apenas quando houver fraude no ato que se pretende revogar, sem necessidade de que o ato
esteja especificamente previsto pela lei, como ocorre no primeiro caso. A esse respeito, traz-se
à colação escólio de Carlos Roberto Claro (2015, p. 272): “[...] na revocatória falimentar, cabe
prova robusta a respeito dos fatos; na ação declaratória de ineficácia relativa de ato, basta a
subsunção do fato concreto à letra da lei (art. 129)”.
Nos termos do artigo 129, os atos são tidos por objetivamente ineficazes em relação à
massa, mesmo que provada a boa-fé do terceiro contratante, tendo este conhecimento ou não
do estado econômico do devedor, haja ou não a intenção de fraudar credores. Assim, se o ato
atacado se subsumir a uma das hipóteses do artigo 129, será desnecessária a produção da prova
do consilium fraudis. Trata-se, portanto de presunção absoluta, juris et de jure. 20
A simples leitura dos incisos I, II e III do artigo 129 permite concluir que o dispositivo
cuida de atos praticados dentro do termo legal da falência e prevê como objetivamente
ineficazes em relação à massa: (i) o pagamento de dívidas não vencidas; (ii) o pagamento de
dívidas vencidas e exígiveis, por qualquer forma que não seja a prevista pelo contrato; e
(iii) o favorecimento de dívida contraída em data anterior com a constituição (posterior) de
direito real de garantia, incluindo a retenção. Em todos é requisito fundamental a prática do ato
dentro do termo legal. Sobre esse termo, Antonio Martin esclarece:
Salienta-se na doutrina moderna a importância da fixação do termo legal de forma
mais ampla. De fato, em legislações passadas, chegou-se a falar em 40 (quarenta) dias

20
Análise mais completa dessa questão pode ser verificada no acórdão exarado pela Quarta Turma do STJ no
Agravo Interno em Recurso Especial n. 901.010/SC, julgado em 23/08/2016, sob a relatoria do Min. Luis Felipe
Salomão.

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e no Dec.-lei 7.661/1945 deixou-se esta fixação a critério do Juízo, que poderia fixá-
lo em até 60 (sessenta) dias. Agora, na Lei 11.101/2005, o termo legal é de 90
(noventa) dias contados do pedido de falência, ou do pedido de recuperação judicial,
ou do primeiro protesto por falta de pagamento, excluindo-se, para esta finalidade, os
protestos que tenham sido cancelados. Como se vê do texto da Lei, a fixação do termo
legal tem importância decisiva para a declaração de ineficácia dos atos nela
mencionados. (2007, p. 473)

Já os incisos IV e V do mesmo artigo têm por objetivamente ineficazes em relação à


massa, nos dois anos que precedem a decretação da falência, a prática de atos a título gratuito,
e a renúncia à herança ou a legado. No que se refere ao inciso IV, Ricardo Tepedino comenta:
A constituição de gratuita de usufruto, o comodato e o mútuo não feneratício são
alcançados pelo espectro de ação do dispositivo. Não há aqui uma diminuição
patrimonial propriamente dita, mas sim a abdicação de auferir proveito, como o
aluguel ou os juros compensatórios. Em outras palavras, em havendo liberalidade (e
outros exemplos podem ser imaginados: renúncia a direitos, inclusive de garantia,
remissão de dívidas, prestação gratuita de serviços etc.), abre-se campo para a atuação
da norma em foco. Nessas hipóteses, a ineficácia não atingirá o negócio juridico, mas
sim a dispensa tácita de contraprestação por parte de seu beneficiário, que deverá ser
condenado a ressarcir à massa o que ela deixou de embolsar, em montante a ser
apurado em processo cognitivo. (2016, p. 493)

Com base nos precedentes judiciais a serem analisados, o inciso VI do art.129 parece
ser o de interpretação mais tormentosa para os autores da ação revocatória e para os julgadores.
O dispositivo trata da ineficácia do trespasse de estabelecimento, realizada sem o
consentimento dos credores a esse tempo existentes. Tal misuso poderia ser evitado se o autor
da ação revocatória verificasse a correta aplicação do dispositivo legal. Eventuais dúvidas
sobre o conceito de estabelecimento e as condições para o consentimento prévio dos credores
poderiam ser dirimidas por consulta aos arts. 1.142 e 1.14521 do Código Civil.
Do conceito da norma cível, compreende-se que é possível requerer a declaração de
ineficácia objetiva em relação à massa, quando a hipótese versar sobre a alienção dos bens
essenciais ao exercício da atividade da falida. Por essa razão, quando o negócio jurídico versa
sobre um bem móvel ou imóvel, que não esteja relacionado ou não seja necessário ao
exercício da empresa antes da falência, a aplicação do dispositivo se torna equivocada.
No que diz respeito à interpretação do inciso VII do art. 129, não há celeuma, uma vez
que o texto legal determina clara e expressamente que serão objetivamente ineficazes em

21
Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por
empresário, ou por sociedade empresária.
Art. 1.145. Se ao alienante não restarem bens suficientes para solver o seu passivo, a eficácia da alienação do
estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou
tácito, em trinta dias a partir de sua notificação.

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relação à massa os atos pertinentes à transferência de ativos praticados após decretação da


falência, à exceção daqueles que possuírem prenotação anterior.
Ao contrário, o art. 130 condiciona a decretação de ineficácia à ampla demonstração
do conluio fraudulento e do dano causado à massa e aos credores. Assim, as hipóteses de
negócios jurídicos que não tenham sido expressamente mencionadas no art. 129 demandam a
produção de prova do consilium fraudis em ação própria ajuizada tempestivamente (art. 132).
Conforme se demonstrará por meio das decisões judiciais coligidas e analisadas, não
raro a imperícia na utilização desses dispositivos legais (arts. 129 e 130) é elemento central do
insucesso de medidas judiciais que buscam a declaração de ineficácia de determinado negócio
jurídico em relação à massa falida. A imperícia incide na pressuposição de que determinado ato
poderá ser declarado ineficaz nos termos do artigo 129, quando, na verdade, a hipótese se
enquadra no artigo 130 e demanda a produção da prova de fraude e de dano concreto. Nas
palavras de Trajano de Miranda Valverde (1999, p. 376):
A ineficácia dos atos especificados no art. 52 [atual art. 129 da LRF] está para a
ineficácia de que se cogita o artigo 53 [atual art. 130 da LRF], como a nulidade em
relação à anulabilidade. O fato da falência, por si só, determina a ineficácia dos atos
discriminados no art. 52. A fraude, entretanto, é necessária para conseguir-se a
decretação da ineficácia dos atos a que alude o art. 53. Distribuem, por isso, os nossos
escritores, os atos jurídicos que, em relação a massa falida, não produzem ou não
podem produzir efeitos, em dois grupos: atos ineficazes e atos revogáveis.

Muito embora as diferenças pareçam bem delimitadas na legislação, a distinção não é


de aplicação óbvia na prática. Isso se afirma especialmente nos casos em que a parte dispensa a
produção da prova do consilium fraudis e do dano, assumindo tratar-se de uma das hipóteses
do art. 129, quando o caso comportava clássica aplicação do art. 130, reclamando, portanto,
ajuizamento da ação revocatória e produção de prova quanto ao conluio fraudulento.
Também caberá pretensão revocatória se verificada a proximidade da falência do
devedor, em face do pagamento realizado em favor do ex-acionista retirante, se ao tempo do
reembolso este não tiver sido substituído, com ingresso de novos recursos no capital da
companhia, em quantia equivalente ao do reembolso pago. Nessa hipótese, caberá pretensão
revocatória para devolução do reembolso, nos termos do § 8º do art. 45 da Lei n. 6.404/ 76.
É pertinente distinguir os recursos cabíveis nas hipóteses de acolhimento ou rejeição
dos pedidos de declaração de ineficácia e do pedido de revogação. Sendo proclamada a
ineficácia objetiva incidentalmente no processo falimentar, caberá o recurso de agravo de
instrumento (art. 1.015, II, do CPC). Contra a sentença de procedência ou improcedência da

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ação revocatória cabe apelação, nos termos do parágrafo único do art. 135 da LRF.
Verificadas algumas das distinções entre as situações previstas nos arts. 129 e 130 da
LRF, torna-se importante analisar a legitimição para propositura da ação revocatória.

1.2 Legitimidade para a Ação Revocatória

Nos termos do art. 132 da LRF, a ação revocatória poderá ser proposta,
alternativamente, pelo administrador judicial, por qualquer credor ou pelo Ministério Público,
no prazo de 3 (três) anos da decretação da falência. Os mesmos legitimados podem reclamar a
declaração da ineficácia objetiva, prevista no art. 129 e incisos da LRF22.
A LRF inovou em relação à legislação precedente ao acrescer no rol dos legitimados
para propositura da ação revocatória o Ministério Público, sendo pertinente lembrar que a
atuação do parquet, do administrador judicial ou do credor interessado para propositura da
ação revocatória se dará sempre em favor da massa. A respeito Yussef Said Cahali pontua:
Na realidade, há muita discussão acadêmica quanto à legitimatio ativa da ação – se o
administrador judicial ou se da massa -, na medida em que não ocorre uma antinomia
entre os conceitos apresentados, pois, em síntese, o administrador judicial atua em
nome da massa, da qual é representante, na defesa dos interesses da coletividadede de
credores, e no exercício de uma atribuição que interessa à correta prestação
jurisdicional do Estado.” (2013, p. 619)

Embora o art. 132 da LRF mencione como um dos autores o “administrador judicial”,
é a massa falida que deve figurar no polo ativo da revocatória, sendo que aquele não se
beneficia da ação, por se tratar de medida de proteção coletiva. (LEONEL, 1951, p.26).
Em relação ao polo passivo, o art. 133 da LRF prevê que podem ser demandados: (a)
os que figuraram no ato ou que por efeito dele foram pagos, garantidos ou beneficiados; (b)
terceiros adquirentes, se tiveram conhecimento, ao se criar o direito, da intenção do devedor de
prejudicar os credores; e (c) os herdeiros ou legatários dos sujeitos referidos anteriormente.
Jayme Leonel esclarece a desnecessidade de citação do falido:
A razão é simples. Decretada a falência, perde o falido, em consequência do princípio
do desapossamento, o direito de comparecer pessoalmente em juízo, quer ativa, quer
passivamente. [...] Logo, se o falido tivesse de ser citado, como réu, na revocatória,
iríamos segundo arguta observação de MARCONDES FILHO, encontrar, no
processo, esta situação paradoxal: - o liquidatário (hoje, o síndico), em tais processos,
teria de figurar, ao mesmo tempo, como autor, impugnando o ato do falido, e, como
réu, para defender a validade do mesmo. (1951, p. 29-30)

22
O parágrafo único do artigo 129 prevê que a ineficácia pode ser declarada de ofício pelo juiz, alegada
incidentalmente no curso do processo falencial ou mediante a propositura de ação própria.

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Esclarecida a questão quanto à legitimidade na ação revocatória, é necessário tratar


dos efeitos provocados pela sentença que julga procedente o pedido, e cuja consequência está
distante da obviedade que se pode pressupor.

1.3 Efeitos da sentença que julga procedente ou improcedente o pedido revocatório

Nos termos do art. 135 da LRF, a procedência da ação revocatória tem como efeito
imediato a determinação de retorno dos bens à massa falida em espécie, com todos os
acessórios, acrescidos de perdas e danos. O dispositivo ratifica o objetivo da ação, que é de
devolver à massa os bens extraídos do seu ativo de forma fraudulenta antes da falência. Assim,
não importa que um credor, de qualquer classe, tenha se sub-rogado nos direitos da massa para
ingressar com a ação revocatória. Com o retorno dos bens à massa, eventual pagamento
estendido aos credores da falência respeitará a ordem de preferência prevista no art. 83 da LRF,
não sendo determinante, para fins de recebimento, a atuação de determinado credor na
revocatória, por se tratar de medida de defesa coletiva.
Cabe esclarecer que o efeito da revocatória não é anular o ato, como se jamais
praticado, e sim garantir o restabelecimento do status quo ante em relação à massa e não ao
falido. Portanto, a sentença de procedência da ação revocatória não opera efeitos de anulação
do ato, mas de ineficácia relativa, deixando de produzir efeitos apenas em relação à massa e
conservando sua validade interpartes. A respeito, Yussef Said Cahali comenta:
A sentença que julga a ação revocatória decide quanto à eficácia do ato do falido, em
relação à massa, não quanto a sua validade jurídica erga omnes, ou nulidade; o ato
jurídico não é desconstituído na sua formação, nem fica insubsistente in totum, mas
apenas deixa de ser oponível em relação aos créditos concursais; portanto, continua
válido entre as partes, com possibilidade de oportuna pós-eficacização. (Rubens
Requião, Pontes de Miranda, Jayme Leonel, Walter T. Álvares, Rubens Aguiar) [...]
Efetivamente, encerrada a falência e extintas as obrigações do falido, o ato atingido
pela revocatória readquire sua vigência entre aquele que veio a falir e o que com ele
contratara. (2013, p. 602)

Outro efeito da sentença de procedência do pedido é a possibilidade de decretação


mesmo se o ato estiver amparado por decisão judicial, nos termos do art. 138 da LRF. Assim,
os atos praticados com base em decisão judicial poderão ter sua eficácia atingida, tornando sem
efeito, em relação à massa, inclusive decisões transitadas em julgado. O dispositivo é alvo de
críticas na doutrina, conforme sintetiza Carlos Roberto Claro (2015, p. 286):
Como visto, por força do regramento incutido no art. 138 da Lei de Regência (e art.
58 do Decreto-lei ab-rogado), casos há em que a sentença julga procedente o pedido

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formulado na demanda ajuizada pelo administrador judicial, ou terceiros legitimados


pelo atual texto de lei, terá força até mesmo em relação à anterior decisão judicial,
proferida em outro processo que envolva interesses jurídicos da massa falida.
Evidentemente, pois, que talvez tal dispositivo legal seja uma (total) incongruência, e
venha a aguilhoar o princípio da segurança jurídica, mas o legislador ordinário, mais
uma vez, colocou na balança os interesses da massa falida, de um lado, e os do
devedor e terceiro contratante, de outro.

Decretada a ineficácia, as partes retornarão ao estado anterior e o contratante de boa-fé


terá direito à restituição dos bens ou valores entregues ao devedor. Contudo, não caberá ação
revocatória na situação prevista no art. 136, § 1º, da LRF, hipótese de cessão de créditos
securitizados em prejuízo dos titulares de valores mobiliários emitidos pelo securitizador.
Verificados, sucintamente, os efeitos da revocatória falimentar, é pertinente tratar da fraude,
elemento central de sustentação do pleito da ação.

2. FRAUDE CONTRA CREDORES COMO ELEMENTO SUBJETIVO E NUCLEAR


DA AÇÃO REVOCATÓRIA

Tratar de ação revocatória pressupõe a fraude como elemento nuclear dessa ação. Nas
palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 410):
Fraude contra credores é, portanto, todo ato suscetível de diminuir ou onerar seu
patrimônio, reduzindo ou eliminando a garantia que este representa para pagamento
de suas dívidas, praticado por devedor insolvente, ou por ele reduzido à insolvência.
[grifo do autor]

A fraude contra credores é constituída por dois elementos essenciais, o primeiro, de


caráter objetivo, eventus damni, constatado pela expressiva redução da capacidade de o
devedor saldar suas dívidas e o segundo, de caráter subjetivo, consilium fraudis, que se
materializa quando o devedor e o terceiro que com ele contrata, mesmo cientes do prejuízo
causado aos credores, praticam determinado ato. (GONÇALVES, 2007, p. 411)
Na clássica doutrina de Jayme Leonel (1951, p. 86), o autor desconstroi a ideia
(equivocada) de que o conluio fraudulento deve ser comprovado com a demonstração da
intenção do devedor e do terceiro, que com ele contratou, de prejudicar credores:
[...] consilium fraudis, que não é propriamente a intenção de prejudicar. Consiste a
fraude do devedor na consciência de que o ato, que vai executar, pode prejudicar, ou
prejudicará, certamente, os seus credores; e a fraude do terceiro, na sua participação
no ato com a conciência do dano que será causado aos credores do fraudator.

Destarte, a presunção de má-fé do adquirente pode ser concluída quando estiverem

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para ele (adquirente) ampla e facilmente acessíveis informações públicas que noticiam o estado
de dificuldade financeira enfrentada pelo devedor, pois a boa-fé que se espera na prática de
negócios jurídicos é de caráter objetivo e demanda a coleta de informações (e até de certidões)
que atestem a idoneidade da operação e demonstrem a adoção de cuidados mínimos no
momento de contratar. Sobre o tema, Carlos Roberto Gonçalves sumariza:
O art. 159 do Código Civil presume a má-fé do adquirente “quando a insolvência (do
alienante) for notória, ou houver motivo para ser reconhecida do outro contratante”.
A notoriedade da insolvência pode se revelar por diversos atos, como, por exemplo,
pela existência de títulos de crédito protestados, de protestos judiciais contra
alienação de bens e de várias execuções ou demandas de grande porte movidas contra
o devedor. (2007, p. 411)

A tormentosa produção da prova do consilium fraudis foi tratada em decisão proferida


pela Quarta Turma do STJ, no Agravo Interno do Recurso Especial n. 1.294.462/GO, julgado
em 19/10/2017, seguindo voto-vista do Ministro Luis Felipe Salomão. Por meio da referida
decisão, fica demonstrado que a intenção de causar dano ao credor não é indispensável na
configuração da fraude, bastante que o ato seja capaz de levar o devedor à insolvência e que o
terceiro adquirente tenha conhecimento desse estado:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. [...]
1. A ocorrência de fraude contra credores demanda a anterioridade do crédito, a
comprovação de prejuízo ao credor (eventus damni), que o ato jurídico praticado
tenha levado o devedor à insolvência e o conhecimento, pelo terceiro adquirente,
do estado de insolvência do devedor (scientia fraudis). [...] [grifo nosso]

O precedente acima colacionado consolida posicionamento da doutrina e da


majoritária jurisprudência que entende comprovado o consilium fraudis quando se consegue
demonstrar a scientia fraudis, isto é, que o terceiro adquirente tinha conhecimento do estado de
insolvência do devedor com quem contratou. De outro modo, exigir a comprovação da
intenção de fraudar credores ou de conluio, seria exigir do autor da ação a produção da
conhecida prova diabólica, ou impossível de ser produzida.
A perfeita compreensão dos elementos que constituem a fraude é fundamental quando
se trata da ação revocatória, bem como da ação pauliana prevista nos arts. 158 e 159 do Código
Civil. A demonstração da fraude é requisito nuclear para o credor interessado propor a
revocatória prevista na lei falimentar, bem como na ação pauliana do Código Civil. Embora
estejam previstas em diferentes legislações, a ação revocatória e a ação pauliana têm
similaridade instrínseca, que é a necessidade de comprovação do conluio fraudulento.

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2.1 Aspectos Comparativos das Ações Revocatória e Pauliana: similaridades e diferenças

A ação pauliana tem origem no direito romano e é assim denominada como referência
ao pretor Paulo. A medida foi criada para coibir a prática de atos fraudulentos por parte do
devedor (CAHALI, 2013, p. 83). A ação revocatória, objeto de análise desse trabalho, possui
muitas similaridades com a ação pauliana. Segundo Jayme Leonel “Muitos autores chegam a
afirmar que elas são absolutamente idênticas” (1951, p. 83). Não é possível afirmar, contudo,
que a ação revocatória e a ação pauliana sejam idênticas, porque existem diferenças
substanciais entre elas. A primeira diferença pode ser apontada quanto ao momento de
ajuizamento das ações. Na ação pauliana, basta que o crédito preexista ao ato que pretende
anular para intentar sua propositura. Já na ação revocatória falencial, a decretação da falência
do devedor é pressuposto de cabimento da medida.
Se na ação pauliana o devedor deve integrar o polo passivo em litisconsórcio com o
terceiro adquirente de má-fé, nos termos do art. 161 do Código Civil, a ação revocatória não
comporta esta hipótese, uma vez que a massa falida é autora. Tal providência se justifica
porque a massa falida se aproveita da revogação do ato jurídico cuja ineficácia se pretende
decretar, pois os bens serão a ela restituídos com a procedência do pedido e não aos credores.
Não obstante as distinções quanto ao procedimento, tanto a ação revocatória como a
ação paulina têm como finalidade a devolução dos bens necessários para cumprimento das
obrigações do falido perante seus credores. Sobre o tema, cite-se escólio do Recurso Especial
n. 1.180.714/RJ, julgado em 05/04/2011, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão:
[...] A primeira (revocatória) visa ao reconhecimento de ineficácia de determinad o
negócio jurídico tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação de ato
praticado em fraude a credores, servindo ambos os instrumentos como espécies de
interditos restitutórios, no desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente, os
bens necessários ao adimplemento dos credores, agora em igualdade de condições
(arts. 129 e 130 da Lei n. 11.101/05 e art. 165 do Código Civil de 2002). [...]

Para procedencia da ação revocatória e da ação pauliana são meios de prova


admissíveis no procedimento comum os indícios da prática de fraude. José Xavier Carvalho de
Mendonça (1964, p. 567-8) cita como exemplos que levam à presunção de fraude:
a) a clandestinidade do ato; b) a continuação de bens alienados na posse do devedor,
quando, segundo a natureza do ato, deviam passar para o terceiro; c) a falta de causa
do ato ou do contrato; d) o parentesco ou afinidade entre o devedor e o terceiro; e) o
preço vil; f) a proximidade da falência; g) a alienção de todos os bens; h) a
multiplicidade de atos para encobrir a verdade; multiplicatione instrumentorum
augetur fraudis et similations proesumptio; i) a compra de bens por quem não está na

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A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA

livre administração de seus bens e viva de simples mensalidade.

A referida doutrina é corroborada pela decisão de procedência da ação revocatória da


Segunda Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no Recurso de
Apelação n. 20120861326, julgado em 22/07/2013, sob a relatoria do Desembargador Cid
Goulart, verificando-se a presença de alguns dos elementos acima indicados:
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO - AÇÃO REVOCATÓRIA -
ARREMATAÇÃO JUDICIAL DE BENS QUE INTEGRAVAM O
PATRIMÔNIO DA MASSA FALIDA, ANTERIORMENTE À DECRETAÇÃO
DA QUEBRA, POR EMPRESA CONSTITUÍDA, VIA OFFSHORE
COMPANY SITUADA NO URUGUAI, VINCULADA AOS SÓCIOS
DAQUELA - CONSILIUM FRAUDIS EVIDENCIADO, COM FLAGRANTE
PREJUÍZO AOS CREDORES - SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA –
[...]. "São revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores,
provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que com ele contratar
e o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida", "ainda que praticado com base em
decisão judicial" (artigos 130 e 138 da Lei n. 11.101/2005). "[...] é irrelevante a
época em que foi praticado, próxima ou distante da decretação da falência" [...].
[grifos nossos]

O precedente trazido à colação revela exemplo comum da prática de atos fraudulentos,


realizados em prejuízo dos direitos dos credores e da massa falida.

3. A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS DA AÇÃO


REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E MASSA FALIDA: análise jurisprudencial
É momento de investigar o problema aqui debatido – a correta aferição dos elementos
constitutivos da ação revocatória – com objetivo de identificar as causas centrais de sua
improcedência. Os seis precedentes coligidos e analisados revelam certa recorrência na
inadequada instrução do pedido, bem como imperícia na utilização do dispositivo destinado à
ação revocatória, conforme se constata adiante.
Caso 1: a decisão da Quarta Turma do STJ no Recurso Especial n. 1.197.723/SP,
julgado em 19/10/2010, sob a relatoria do Min. João Otávio de Noronha, demonstra que não
houve atenção por parte da massa falida autora à crucial diferença entre alienação de
estabelecimento e dos bens a ela pertencentes:
AÇÃO REVOCATÓRIA. FALÊNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO FALIDO.
VENDA DE IMÓVEL ANTES DA DECRETAÇÃO DA QUEBRA, DENTRO DO
TERMO LEGAL. FRAUDE NÃO DEMONSTRADA. EFICÁCIA DO NEGÓCIO
JURÍDICO. ARTS. 52 E 53 DA ANTIGA LEI DE FALÊNCIAS. [...] 2. Com a
decretação da quebra, há a perda da legitimação ativa e passiva do falido para atuar
na ação revocatória falimentar, como consequência lógica da impossibilidade de
dispor de seus bens e de administrá-los, na medida em que os interesses patrimoniais
passam a ser geridos e representados pelo síndico da massa falida. 3. A ineficácia da
venda de imóvel pela empresa antes da decretação da sua falência, dentro do

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período suspeito, depende da prova concreta da fraude, consoante orientação


firmada no STJ. [...]. Ação revocatória improcedente. [grifos nossos]

A massa falida, representada por seu síndico dativo, ingressou com ação revocatória
com fulcro no artigo 52, VIII, do Decreto-lei n.7.661/45 (correspondente ao art. 129, VI, da
LRF), objetivando ver declarada a ineficácia da venda do imóvel integrante do
estabelecimento, alienado dentro do termo legal. Tratava-se de terreno vazio, posteriormente
fracionado em duas partes e alienado a terceiros, que também se tornaram réus na ação.
Apesar de se ter reconhecido na fundamentação do pedido que a alienção se deu
dentro do termo legal, os terceiros adquirentes sustentaram, no mérito, ofensa ao artigo 53 do
Decreto-lei n. 7.661/45 (correspondente ao art. 130 da LRF), alegando necessária comprovação
do consilium fraudis. O pedido foi julgado procedente em 1ª e 2ª instâncias, tendo se verificado
que a alienação ocorreu dentro do termo legal, motivo pelo qual o ato foi considerado
objetivamente ineficaz em relação à massa.
A improcedência do pedido de ineficácia somente foi reconhecida quando o recurso
foi apreciado pela Quarta Turma do STJ, sob o argumento de que o imóvel objeto da ação
revocatória não integrava o estabelecimento da falida e, assim, não constituía parte necessária à
realização do objeto da sociedade. Segundo entendimento dos julgadores, essa era a razão para
que o artigo 52, VIII, previsse a ineficácia do negócio, ao menos em relação à massa falida.
Nesse caso, a Turma entendeu que o bem alienado era um lote vazio, situado em local diferente
daquele onde funcionava o restaurante (empresa da devedora). Ademais, não havia nos autos
qualquer prova demonstrando a direta conexão do referido lote às atividades da sociedade;
tampouco foram produzidas as provas necessárias à desconstituição do ato.
No caso apresentado, ficou patente que a imperícia na utilização dos dispositivos
legais da falência foi decisiva para a improcedência final do pedido. Isso porque, a autora
deveria, desde a distribuição da ação, ter identificado o dispositivo legal aplicável, pois se trata
de ineficácia subjetiva (e não objetiva), e, consequentemente, ter dedicado atenção à coleta das
provas necessárias (demonstração do consilium fraudis e eventus damni) à desconstuição da
alienação. Ficou evidente, portanto, que o síndico da massa falida não atentou à regra de que
somente a alienação do estabelecimento, ou do conjunto de bens essenciais ao exercício da
empresa, pode ser declarada objetivamente ineficaz. Tratando-se de bens sociais que não
estejam afetados à empresa, a hipótese reclama ajuizamento de ação revocatória escorada pelo
art. 130 da LRF e depende da produção da prova de fraude e dano à massa, elementos

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AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA

essenciais ao julgamento favorável.


Caso 2: a decisão proferida pela Terceira Turma do STJ no Recurso Especial n.
1.567.492/RJ, julgado em 25/10/2016, sob a relatoria do Min. Moura Ribeiro atesta a
necessidade de demonstração do consilium fraudis por parte de todos os contratantes que
adquiriram o bem que se pretendia devolver à massa, não bastando que, na sucessão de
alienações, se demonstrasse a má-fé somente do primeiro adquirente:
FRAUDE NA ALIENAÇÃO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA MÁ-FÉ
PARA A NULIDADE DA ALIENAÇÃO. ARTS. 53 e 55, PARÁGRAFO ÚNICO, III,
A, DO DECRETO-LEI Nº 7.661/45. [...] 4. O art. 53 do Decreto-lei n° 7.661/45 prevê
a possibilidade de revogação do ato praticado pelo falido com a intenção de prejudicar
os credores, desde que seja provada a fraude. 5. O art. 55, parágrafo único, III, a, do
Decreto-lei nº 7.661/45, por sua vez, dispõe que a ação revocatória pode ser proposta
contra o terceiro adquirente se este tiver conhecimento, ao se criar o direito, da
intenção do falido de prejudicar os credores. 6. Assim, ainda que revogada a primeira
venda em razão da existência de fraude, este efeito apenas alcança as partes que
agiram em conluio contra os credores da massa falida. Dessa forma, para que a
segunda venda seja desconstituída é necessária a prova da má-fé, pois devem ser
resguardados os interesses dos terceiros de boa-fé. 7. Ocorre que o Tribunal de
origem apenas reconheceu a existência do consilium fraudis em relação à
primeira adquirente, mas não quanto à alienação subsequente, entendendo que
tal comprovação não era necessária. 8. Contudo, a segunda venda não poderia
ter sido anulada sob a justificativa de ser essa a consequência direta da
invalidade do negócio antecedente, uma vez que essa solução contraria o disposto
nos arts. 53 e 55, parágrafo único, III, a, do Decreto-lei nº 7.661/45. [grifos
nossos].

Conforme se extrai do relatório do acórdão do Recurso Especial, a Décima Câmara


Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) manteve a sentença de
procedência da ação revocatória ajuizada pela massa para decretar “a ineficácia da alienação do
estabelecimento empresarial” pertencente à falida em favor da Adquirente A, e desta em favor
da Adquirente B. De acordo com a decisão, o imóvel alienado deveria retornar ao ativo da
massa, para posterior arrecadação pelo síndico.
No que se refere à primeira alienação, entre a falida e a Adquirente A, o Tribunal
entendeu ter havido consilium fraudis, uma vez que no momento dessa alienação a falida já
tinha vários títulos protestados. Pelo que consta dos autos, a Adquirente A não poderia alegar
desconhecimento sobre o estado pré-falimentar da sociedade com a qual negociava, haja vista
que a venda do referido imóvel representou considerável diminuição no patrimônio da
sociedade e ocorreu sem a ciência dos credores, restando demonstrada a fraude. Já em relação à
Adquirente B, o Tribunal entendeu pela desnecessidade de demonstrar sua má-fé para
configuração da fraude, em razão de já ter havido declaração de ineficácia em relação à

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primeira alienação. Ficou ressalvado, no entanto, o direito de a Adquirente B demandar a


falida, nos termos do artigo 54, §3º, do Decreto-Lei n. 7.661/45, que reconhecia tal direito.
Não obstante, a decisão do TJRJ foi reformada pela Terceira Turma do STJ,
justamente por se tratar de discussão travada em sede de ação revocatória, na qual se exige a
prova do conhecimento do estado pré-falimentar da sociedade com a qual se negocia para
demonstração da intenção do falido de prejudicar os credores.
Ainda que fosse considerada ineficaz a primeira venda, diante da constatação de
fraude, tal efeito operaria apenas inter pars que, em tese, agiram em conluio (o falido e a
Adquirente “A”) em prejuízo dos credores da massa. Dessa forma, para que a alienação
seguinte, firmada com a Adquirente B, fosse desconstituída seria necessário provar sua má-fé
atuando em conjunto com a falida. Este entendimento do STJ caminha no sentido de resguardar
os interesses dos terceiros de boa-fé, pois não se tratou de simples declaração de ineficácia
objetiva de negócio jurídico (art. 129 da LRF). Como não havia nos autos elementos que
permitissem concluir pela existência ou não de má-fé por parte da Adquirente B, o que
importaria, inclusive, em revolver matéria de prova, com óbice na Súmula n. 7 do STJ, foi
determinado o retorno dos autos ao TJRJ para apreciação da suposta prática de conluio
fraudulento da falida em relação à Adquirente B.
No caso sob análise, a decisão do STJ está alinhada à interpretação a ser dada aos
casos de ineficácia subjetiva, passíveis “revocação” em favor da massa. Destarte, é curial a
produção da prova de fraude, que não restou demonstrada pela massa falida, não se podendo
descartar a hipótese de a segunda alienação ter ocorrido de boa-fé pela Adquirente B. O caso
também se presta a elucidar que a ineficácia do art. 130 não atinge o terceiro de boa-fé, que
poderá reclamar perdas e danos em face do devedor – art. 136, § 2º, LRF) – apenas quando se
tratar de hipótese de ineficácia objetiva, prevista em um dos incisos do art. 129 da LRF.
Caso 3: a terceira decisão foi proferida pela Quinta Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), no Recurso de Apelação n. 70059099101, julgado em
30/04/2014, sob a relatoria da Des. Isabel Dias Almeida. O julgado confirma a dificuldade na
produção de prova do conhecimento, por parte dos terceiros adquirentes, do prejuízo causado
aos credores do falido com a efetivação do negócio jurídico que se pretendia revogar:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REVOCATÓRIA. ALIENAÇÃO DE BENS
IMÓVEIS ANTES DO TERMO LEGAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO
CONSILIUM FRAUDIS. ART. 53 DO DECRETO-LEI N. 7.661/45. [...]. 2. A ação
revocatória fulcrada no art. 53, do Decreto-Lei n. 7.661/45 exige a

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demonstração do consilium fraudis, situação não verificada na espécie. Sentença


de improcedência mantida. RECURSO DESPROVIDO. [grifo nosso]

Conforme se colhe do relatório do acórdão, a massa falida autora ingressou com ação
revocatória com intuito de obter a decretação de ineficácia da venda de quatro imóveis que
pertenciam ao ex-sócio da falida, cuja personalidade jurídica foi desconsiderada, justamente
para que lhe fossem restituídos os bens alienados em prejuízo da massa e dos credores. Nos
autos do processo, ficou demonstrado que o ex-sócio alienou seus bens por cerca de 60% do
valor efetivamente devido, ou seja, por quantia abaixo do valor de mercado. Embora os
imóveis tenham sido subavaliados, o TJRS não considerou vil o valor praticado na venda,
entendendo que inexistiram no caso concreto elementos capazes de demonstrar que os terceiros
adquirentes tinham ciência (scientia fraudis) da condição pré-falimentar da devedora. Neste
caso, é relevante lembrar que a ciência quanto à condição de endividamento do vendedor é
elemento útil à comprovação do consilium fraudis.
Na fundamentação do acórdão, os julgadores ponderaram que a realização do negócio
ocorreu cerca de cinco meses antes da fixação do termo legal, e que não foram carreadas aos
autos provas de que os terceiros adquirentes tinham ciência de atos de dilapidação patrimonial.
O único elemento prepoderante para a pretensão da massa falida foi o fato de os imóveis terem
sido vendidos por valor abaixo do preço de mercado, porém, tal constatação, por si só, não foi
considerada suficiente para procedência do pedido.
Urge destacar, como elemento fundamental de improcedência da ação revocatória em
comento, a ausência de prova quanto a ciência dos terceiros adquirentes acerca do estado pré-
falimentar da sociedade do qual o alienante era sócio. Nesse cenário, é possível cogitar da
assimetria de informações23 entre a massa falida e o réu da ação revocatória, isto é, o ex-sócio
que alienou os bens que poderiam ser utilizados para o pagamento aos credores.
Caso 4: a decisão foi proferida pela Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais (TJMG), no Recurso de Apelação n. 10024142601889001, julgado em
12/04/2018, sob a relatoria da Des. Áurea Brasil. O julgado se presta a demonstrar, uma vez
mais, a imperícia do administrador judicial ao propor ação, elegendo o dispositivo equivocado
para amparar sua pretensão e, consequentemente, deixando de produzir a prova necessária à

23
É possível cogitar que, na ação revocatória, o réu detenha mais informações, documentos e provas do que o
próprio autor da medida, materializando-se a assimetria de informações entre as partes demandante e demandada.
Como consequência disso, dificulta-se a adequada instrução do processo.

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revogação do ato que se pretendia desconstituir em relação à massa.


APELAÇÕES CÍVEIS - AÇÃO REVOCATÓRIA. PRELIMINAR - [...] MÉRITO -
SUCESSIVOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULO DA FALIDA
- ALIENAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL - AUSÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO - INAPLICABILIDADE DO ART. 129, INCISO VI DA LEI N.
11.101/2005 - ATO DO FALIDO OBJETIVAMENTE INEFICAZ - AFASTADO -
CONLUIO FRAUDULENTO ENTRE O DEVEDOR E O TERCEIRO QUE COM
ELE CONTRATOU - NÃO DEMONSTRAÇÃO - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO
[...] 2. Para configuração da hipótese descrita no inciso VI do art. 129 da Lei n.
11.101/2005, imprescindível que haja a venda ou transferência de
estabelecimento comercial, o qual é definido, nos termos do art. 1.142 do Código
Civil, como sendo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por
empresário, ou por sociedade empresária. 3. A venda isolada de veículo não
configura contrato de trespasse, a atrair a incidência do regramento do inciso VI
do art. 129 da Lei n. 11.101/2005, a não ser que seja demonstrada a sua
essencialidade para a empresa e o desmantelamento do fundo de comércio da
falida com a alienação - o que não ocorreu no caso. 4. Inaplicabilidade do art.
130 da Lei n. 11.101/2005, tendo em vista que não restou comprovada a intenção
de prejudicar credores, provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e os
terceiros adquirentes. [grifos nossos]

A massa falida ajuizou ação revocatória com vistas à declaração de ineficácia dos
contratos de compra e venda de veículo automotor (caminhão), celebrada pela sociedade falida
com a Adquirente A, em seguida, por esta com o Adquirente B e, por fim, desse último com o
Adquirente C. A pretensão foi equivocadamente amparada no artigo 129, VI, da LRF,
defendendo a autora que os atos impugnados se enquadrariam na referida hipótese legal, não
sendo necessária a demonstração da intenção dos contratantes de fraudar credores. No entanto,
confome registrado pela relatora, alguns Tribunais não têm observado a diferença crucial
existente entre alienação do estabelecimento e dos bens que o compõem.
A LRF ataca com ineficácia objetiva o trespasse quando realizado sem a observância
de certos pressupostos (anuência ou ciência expressa dos credores que podem apresentar
oposição), mas não a alienação de elementos integrantes do estabelecimento empresarial,
quando realizada de modo isolado e sem caracterizar seu desmantelamento. Assim, o Tribunal
entendeu que a venda do veículo automotor, isoladamente, não configurou trespasse, a invocar
a expressa aplicação do inciso VI do art. 129 da LRF. Com a inaplicabilidade do referido
dispositivo, os sucessivos contratos de compra e venda poderiam ser revogados na forma do
art. 130 da LRF, porém, para que tal desconstituição fosse possível, seria necessário comprovar
o consilium fraudis entre a falida, a devedora e os terceiros adquirentes do veículo.
Nota-se, da análise do julgado, que se parte de uma premissa equivocada e, levada
pela imperícia do administrador judicial que a representava, a massa falida sequer sustentou a

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AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA

má-fé dos compradores, tendo a todo tempo defendido a prescindibilidade dessa prova por
acreditar se tratar de hipótese de ineficácia objetiva do negócio que pretendia revogar. Sem a
produção de prova do conluio fraudulento restou impossível a aplicação e incidência do art.
130 da LRF, tendo sido reformada a sentença de 1º grau para julgar improcedente o pedido.
Caso 5: a quinta decisão, proferida pela Quarta Turma do STJ no Recurso Especial n.
806.044/RS, julgado em 06/04/2010, sob a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, reforça a
correta identificação do dispositivo adequado à revogação pretendida pela massa falida e
demonstra que sua inobservância acarreta o insucesso da ação revocatória.
FALÊNCIA. AÇÃO REVOCATÓRIA. ALIENAÇÃO DE BEM REALIZADA NO
TERMO LEGAL DA FALÊNCIA. INEFICÁCIA QUE DEPENDE DE PROVA DA
OCORRÊNCIA DE FRAUDE A CREDORES. 1. A alienação de bem pertencente à
falida, realizada dentro do termo legal, mas antes da decretação da quebra, não se
subsume ao art. 52, inciso VII, da antiga Lei de Falências, mas, eventualmente, ao
art. 53, dependendo a ineficácia do negócio, em relação à massa, de prova da
ocorrência de fraude a credores. 2. A interpretação sistemática do caput do art. 52 e
do seu inciso VII, da antiga Lei de Falências, conduz à conclusão de que somente as
transcrições de transferência de propriedade realizadas após a quebra serão tidas por
objetivamente ineficazes em relação à massa, "tenha ou não o contratante
conhecimento do estado econômico do devedor, seja ou não intenção deste fraudar
credores" [...].

O caso sob análise versa sobre ação revocatória ajuizada pela massa, por meio da qual
se pretendeu ver declarada ineficácia objetiva da alienação de veículo automotor de
propriedade da falida. A primeira e a segunda alienação ocorreram dentro do termo legal.
O pedido foi julgado procedente pelo Juízo da Segunda Vara Cível da Comarca de
Venâncio Aires, sendo declarada a ineficácia objetiva da alienação do veículo. Em sede de
apelação, o réu da ação revocatória, até então vencido, alegou cerceamento de defesa, pois foi
indeferida a produção de prova pericial por ele requerida. Em síntese, o réu pretendia
demonstrar com a perícia a destinação dos valores pagos pela aquisição do veículo, bem como
se a operação foi devidamente contabilizada (ou não) pela sociedade. A sentença foi mantida
pela Quinta Câmara Cível do TJRS, confirmando a desnecessidade de produção prova da
fraude, porque os julgadores entenderem inútil a verificação do caráter subjetivo do negócio.
No julgamento do Recurso Especial interposto pelo terceiro adquirente, a Quarta
Turma do STJ reformou a sentença e o acórdão das instâncias ordinárias, para julgar
improcedente o pedido inicial da ação revocatória. Este julgado se tornou paradigmático em
diversos outros casos e revela o desconhecimento e a equivocada utilização dos dispositivos
legais que tratam da ineficácia relativa por parte da massa falida. A improcedência pode ser

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creditada à própria massa falida, no momento em que esta pugnou pelo julgamento antecipado
da lide, deixando de comprovar o necessário consilium fraudis e de observar que a hipótese
tratada nos autos não se amoldava à ineficácia objetiva, prevista à época pelo art. 52 do
Decreto-lei n. 7.661/45, e sim de ato revogável, nos moldes do atual art. 130 da LRF.
Caso 6: a última decisão, proferida pela Quinta Câmara Cível do TJRS, no Recurso de
Apelação n. 70028062156, julgado em 12/08/2009, sob a relatoria do Des. Romeu Marques
Ribeiro Filho, se presta a demonstrar a dificuldade na coleta da prova cabal da má-fé do
terceiro adquirirente, a fim de suprir a necessária demonstração de conhecimento quanto ao
prejuízo causado aos credores.
APELAÇÃO CÍVEL. FALÊNCIA E CONCORDATA. [...] ALEGAÇÃO DA
MASSA DE INEFICÁCIA DA CONTRATAÇÃO. AÇÃO REVOCATÓRIA. ART. 53
DA LEI DE FALÊNCIAS. CONSILIUM FRAUDIS NÃO DEMONSTRADO. A ação
revocatória exige a demonstração do consilium fraudis entre o falido e o terceiro com
quem contratou. Não há indícios nos autos de que tenham os embargantes, ao
adquirir o imóvel da embargada, agido com má-fé, ou seja, com a intenção de
fraudar. Sentença mantida. Apelo desprovido. [grifo nosso]

Trata-se de embargos de terceiro ajuizados nos autos da ação de falência, na qual se


promoveu arrecadação de imóvel adquirido pelos embargantes. O contrato de alienação do
imóvel foi firmado entre os embargantes e a devedora em 1992, enquanto que o pedido de
falência ocorreu em 1999, cerca de sete anos após o negócio jurídico que se pretendia revogar.
A sentença de 1º grau, mantida pelo TJRS, concluiu que não foram apresentados
indícios suficientes para comprovar que os embargantes tenham agido de má-fé ao adquirir o
imóvel da devedora. A autora alegou que os embargantes tinham ciência da irregularidade do
negócio, pois na ocasião da venda do imóvel a sociedade não fornecera a Certidão Negativa de
Débitos (CND), fato que teria inviabilizado o registro da venda do imóvel.
O juízo da Vara de Falências e Concordatas da Comarca de Novo Hamburgo e a
Quinta Câmara Cível do TJRS entenderam que a existência de débitos em nome da falida não
enseja fraude, não sendo crível que os embargantes pretendessem a aquisição de um imóvel
cientes da impossibilidade de seu registro. Embora a massa falida tenha corretamente alegado a
incidência do art. 53 do Decreto-lei n. 7.661/45 (ineficácia subjetiva do negócio jurídico em
relação a ela), o Tribunal entendeu que a má-fé dos adquirentes do imóvel não ficou
evidenciada, ou seja, os julgadores inferiram que estaria ausente o consilium fraudis.
Percebe-se que a mera impossibilidade de obtenção da CND do imóvel não foi
suficiente para configuração da fraude e do consequente reconhecimento da ineficácia

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pretendida. A anterioridade do negócio em relação à falência mostrou-se fator decisivo na


manutenção de sua eficácia. Nessa hipótese, também pode-se cogitar de assimetria das
informações detidas pela massa falida e pelo réu da revocatória. A impossibilidade de obtenção
de CND poderia representar indícios de dificuldades financeiras já enfrentadas pela devedora
ao tempo da alienação, contudo restaram ausentes elementos mais contundentes quanto à
configuração real da fraude, indispensável à desconstituição do negócio pretendido.

4. CONCLUSÃO

Verificou-se que, usualmente, há imperícia do administrador judicial no ajuizamento


da ação revocatória, evidenciada pela quantidade de processos abertos com fundamento em
dispositivos equivocados e nos quais, não raramente, se dispensou a oportunidade de produção
de provas essenciais para adequada demonstração do fato constitutivo do direito do autor da
revocatória, unicamente por se acreditar que se tratava de ineficácia objetiva.
Além da imperícia, outro elemento que se mostra como possível causa das
improcedências aqui narradas é a assimetria de informações detidas pela massa falida, como
autora da ação revocatória, e o réu da ação, que pode ser o sócio da falida ou terceiro
adquirente que se beneficiou com aquisição de bem a preço vil, ou, no mínimo, subavaliado
pela sociedade que se encontrava em estado pré-falimentar.
Também há que se cogitar da dificuldade na coleta de provas que, em certas ocasiões
inexistem e, em outras, são destruídas justamente por aqueles que – futuramente – ocuparão o
polo passivo da revocatória. Evidentemente que se houver intenção ou ciência do prejuízo
causado à massa falida, em razão do negócio entabulado, o réu será o último a apresentar nos
autos a prova capaz de desnudar o enredo travado em uma operação fraudulenta.
Por fim, especialmente no momento hodierno, em que se constata o processamento de
centenas de pedidos de recuperação judicial, é importante o estudo sobre os efeitos de eventual
insucesso desses processos de reestruração em caso de convolação em falência. Como
consequência do interesse público envolvido no processo falimentar e no desejo de que a
realização do ativo seja suficiente para satisfazer os débitos do falido, o estudo da ação
revocatória se mostra relevante e merece a devida atenção dos pesquisadores.

REFERÊNCIAS

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REVISTA VALOR ECONÔMICO. Editorial. Pedidos de recuperação judicial batem recorde

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A IMPORTÂNCIA DA CORRETA AFERIÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
AÇÃO REVOCATÓRIA PARA OS CREDORES E PARA A MASSA FALIDA

em 2016, nota Serasa Disponível em <https://www.valor.com.br/brasil/4824392/pedidos-de-


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EFEITOS DA EXONERAÇÃO DO DEVEDOR DO SALDO


REMANESCENTE NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA COM A ADVENTO
DA LEI Nº 10.931/2004

EFFECTS OF THE EXONERATION OF THE DEBTOR FROM THE


REMAINING BALANCE IN THE SECURED TRANSACTIONS WITH
THE ADVENT OF BRAZILIAN ACT 10.931/2004

ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES


Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor Associado de Direito Comercial nas
Faculdades de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Docente permanente do PPGD da
UERJ, linha de pesquisa Empresa e Atividades Econômicas.

MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO


Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora Titular de Direito
Societário da PUCPR e Professora Associada de Direito Comercial na UFPR. Docente
permanente do PPGD da PUCPR e UFPR.

RESUMO
A alienação fiduciária é uma modalidade contratual de garantia inicialmente voltada à
compra de bens móveis, mas que foi estendida à aquisição de bens imóveis, como
estratégia alternativa a programas habitacionais voltados à promoção ao acesso a
bens imóveis para habitação. A disciplina da alienação fiduciária aplicada aos bens
imóveis estabeleceu a exoneração do devedor pelo valor residual à venda do imóvel,
na hipótese de execução da garantia, benefício introduzido para o contexto de
aquisição de bens imóveis voltados às famílias de baixa renda. A Lei nº 10.931/2004
estendeu a possibilidade desta forma de garantia a qualquer obrigação. Utilizando-se

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do método indutivo de análise bibliográfica e valendo-se de algumas ferramentas da
Nova Economia Institucional, o artigo aponta para a defasagem entre o contexto que
conduziu a elaboração normativa comentada e sua ampliação para a aquisição geral
de bens, inclusive para bens imóveis, independente do valor, quando garantida por
alienação fiduciária. Analisa a doutrina, assim como as normas incidentes, projeto de
reforma legislativa e o teor da súmula que disciplina parcialmente a matéria, para
concluir que a pretensão normativa, quando da edição da norma, tem seus objetivos
ameaçados pela exagerada extensão do efeito de desoneração do devedor frente ao
credor garantido pela alienação fiduciária.

PALAVRAS-CHAVE: Alienação Fiduciária em Garantia; Eficiência; Desoneração


geral; Devedor; Perspectivas.

ABSTRACT
The secured transaction is a contractual modality of guarantee initially focused on the
purchase of movable property, but extended to the acquisition of real estate, as an
alternative strategy to housing programs aimed at promoting access to real estate for
housing. The Brazilian law of secured transaction applied to real estate established the
exemption of the borrower by the residual value of collateral sale, in case of borrower
defaults on the loan, a benefit introduced for the context of acquisition of real estate
for low income families. The Brazilian act n. 10.931/2004 extended this form of secured
transaction to all kind of obligation. Using the inductive method of bibliographical
analysis and using some tools of the New Institutional Economy, the article points to
the discrepancy between the context that led to the law edition and its extension to the
general acquisition of real estate with a security agreement. It analyzes the doctrine,
as well as the incident acts, draft legislative reform and the content of the law that
partially disciplines the matter, to conclude that the normative pretension, when the
rules were published, has its objectives threatened by the exaggerated extension of
the tax relief effect of the debtor against the secured creditor.

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KEYWORDS: Secured transactions; Efficiency; General disclaimer; Debtor;
Perspectives.

INTRODUÇÃO

Com o acelerado processo de urbanização e aumento da concentração da


população nas cidades, a partir da década de 50 do século anterior, o setor imobiliário
brasileiro revelou-se um ramo próspero e em constante desenvolvimento que exigiu
investimentos cada vez mais vultosos. Contudo, para que tais investimentos fossem
atrativos aos aplicadores de poupança, era preciso lhes oferecer segurança nos
negócios jurídicos empresariais capaz de efetivar o retorno eficaz do capital aplicado,
com a redução dos custos de transação e incertezas futuras.
As distorções e erros na política econômica em relação ao setor imobiliário
voltado à população de baixa renda, através de sucessivos diplomas legais na década
de 1980, aliada a uma inflação fora de controle, acarretou a quase “falência” do setor.
Para tentar revigorá-lo e dar novo fomento a este segmento, em 20 de novembro de
1997, foi promulgada a Lei nº 9.514, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento
Imobiliário (SFI). Essa lei teve como principal objetivo inserir no ordenamento jurídico
a alienação fiduciária em garantia de financiamentos para construção ou aquisição de
imóveis.
A alienação fiduciária de imóveis surgiu como nova forma de garantia real,
capaz de dar ao credor maior segurança e celeridade na recuperação de seu crédito
em caso de inadimplemento do devedor. A alienação fiduciária é vantajosa para o
credor, quando comparada em seu método de execução a outras garantias reais como
a hipoteca, porque essa não autoriza a venda extrajudicial do imóvel. Assim, o instituto
acabou por trazer maior solidez ao mercado imobiliário ao permitir o fechamento do
ciclo essencial que garante, ao mesmo tempo, mais opções de crédito aos
consumidores para aquisição de bens financiados e maior segurança para os
construtores.
Inicialmente, utilizando-se de método indutivo e pesquisa dos tipos
bibliográfica e documental, serão apresentadas as principais razões motivadoras da

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introdução da alienação fiduciária de imóveis e a legislação posterior. Neste diapasão,
a Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.242/97, convertido na Lei nº 9.514/97,
deixa claro que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, tinha “o
compromisso com o atendimento da demanda por moradias, bem como a geração de
emprego e o crescimento econômico em bases autossustentáveis”. A justificativa para
a introdução da alienação fiduciária de imóveis foi a diminuição de unidades
residenciais financiadas pelo Sistema Nacional de Habitação nos últimos anos, diante
do enfraquecimento das garantias apresentadas pelos pretendentes à aquisição da
casa própria.
Já na primeira década do século atual, para atender ao dinamismo do
mercado, a Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, ampliou o campo de aplicação da
alienação fiduciária, possibilitando que as instituições financeiras a utilizassem como
forma de garantir obrigações em geral. Desta forma, o legislador afastou-se do
inicialmente pretendido no momento de criação do referido instituto.
Em segundo momento, o trabalho discorrerá sobre as discrepâncias entre o
objetivo inicial da Lei nº 9.514/97 e os termos da Lei nº 10.931/2004, sobretudo no
tangente ao método utilizado para execução da dívida em caso de inadimplência do
fiduciante. Exemplo prático é a aplicabilidade do artigo 27, § 5º, a qualquer contrato
de alienação fiduciária de imóveis. Este dispositivo institui a completa quitação da
dívida ainda que o valor obtido pelo imóvel seja inferior ao débito existente no segundo
leilão.
Sob o pensamento motivador da Lei nº 9.514/97, que adota como parte
vulnerável do financiamento imobiliário o devedor, a disposição presente no § 5º do
artigo 27 só se justifica ao mostrar seu caráter protetivo no âmbito do Sistema
Financeiro de Habitação. Porém, com o advento da Lei nº 10.931/04, especialmente
o art. 51, a disposição do parágrafo 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97 deixou de ser
protetiva ao devedor e passou a privilegiá-lo de maneira indevida, em detrimento dos
direitos do credor, sem considerar a vulnerabilidade em concreto.
Também será examinado que a alteração no panorama legislativo do instituto
e a problemática causada foram progressivamente percebidos pela doutrina e pelo
legislativo brasileiro. Desta forma, o debate recairá sobre a possibilidade de execução
do saldo remanescente, visando a demonstrar a incongruência normativa atualmente

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vigente. Além disso, serão comentados os Projetos de Lei nº 1.070/2007 e nº
6.525/2013, apresentados na Câmara dos Deputados para alterar o parágrafo 5º do
artigo 27.
Será demonstrado que a previsão da possibilidade de o devedor responder
pelo saldo remanescente, como na Lei nº 11.795/2008, que dispõe sobre o Sistema
de Consórcios, ou ainda, o cabimento de cobrança por meio de ação monitória do
saldo remanescente oriundo de venda extrajudicial de bem alienado fiduciariamente,
consubstanciada na Súmula 384 do STJ, não solucionam o problema.
Por fim, encerra-se o trabalho com uma análise dos potenciais impactos da
extensão imotivada a qualquer fiduciante do beneplácito da quitação do débito pelo
credor, sob a ótica da Nova Economia Institucional. Busca-se demonstrar que a
elaboração normativa algumas vezes poderá afastar-se da pretensão que originou a
sua própria criação, por meio da produção de efeitos indesejáveis ou insuficientes,
quando então, a opção pela alteração da norma é medida que se impõe, em proveito
da eficiência econômica e social.

2 A INTRODUÇÃO DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA NO DIREITO


BRASILEIRO E A AMPLIAÇÃO DA UTILIZAÇÃO DO INSTITUTO COM O
ADVENTO DA LEI Nº 10.931/2004

A alienação fiduciária é reconhecida como modalidade contratual que


assegura ao credor o cumprimento da obrigação assumida pelo devedor quando da
aquisição de determinado bem, mediante financiamento do credor, em praticamente
todas as economias contemporâneas. É também corrente o entendimento de que as
formas de garantia asseguradas pela lei tendem a consolidar um ambiente econômico
de oferta de crédito menos custoso1.
Para se compreender a função econômica do contrato, é interessante
observar que a origem da alienação fiduciária e da propriedade fiduciária

1Sobre o instituto da alienação fiduciária no direito anglo-saxão (Secured Transactions), cf. nos E.U.A:
SHUPACK, 2018; GILMORE, 2011. Na Europa e em normativas internacionais: BEALE, 2008

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compartilham do pressuposto de que o adquirente assume uma função de gestão de
bem cuja titularidade última pertence ao alienante/financiador2
A alienação fiduciária em garantia de bem imóvel foi implementada no
ordenamento jurídico brasileiro afim de conferir maior solidez e segurança ao Sistema
Financeiro de Habitação (SFH) e para proporcionar seu reerguimento em face da
intensa crise ao longo de suas duas primeiras décadas de existência.
Ainda que brevemente, cabe um escorço histórico do SFH para melhor
compreensão de sua reformulação em 1997 com a Lei nº 9.514.

2.1 ANTECEDENTES DA LEI Nº 9.514/1997

O Sistema Financeiro de Habitação foi criado pela Lei nº 4.380/64 com o


objetivo de formular a política nacional de habitação e planejamento territorial, pela
coordenação da ação dos órgãos públicos e orientação à iniciativa privada. O fito do
SFH era estimular a construção de habitações de interesse social e o financiamento
da aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da população de menor
renda (art. 1º).
O viés social do SFH é evidenciado, sobretudo, pelo artigo 4º da Lei nº
4.380/64 ao elencar as prioridades para alocação dos recursos:

Art. 4º Terão prioridade na aplicação dos recursos: I - a construção de


conjuntos habitacionais destinados à eliminação de favelas, mocambos e
outras aglomerações em condições sub-humanas de habitação; II - os
projetos municipais ou estaduais que com as ofertas de terrenos já
urbanizados e dotados dos necessários melhoramentos, permitirem o início
imediato da construção de habitações; III- os projetos de cooperativas e
outras formas associativas de construção de casa própria; IV- os projetos da
iniciativa privada que contribuam para a solução de problemas habitacionais;
V - a construção de moradia a população rural.

A partir do rol de prioridades elencadas pelo supracitado artigo, torna-se


evidente que a intenção do legislador no momento de criação do SFH era restringir
seu âmbito à construção de moradias, limitando sua influência dentro de um
determinado padrão destinado à população de baixa renda e poder aquisitivo.

2Sobre a origem da relação fiduciária e também com relação ao caráter diferente que lhe é atribuído
pelo Direito Civil do Quebec: CUMYN, 2013.

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Embora o SFH, no momento de seu advento, tenha se mostrado promissor
e, até 1997, tenha financiado cerca de 6 milhões de unidades residenciais dentro dos
moldes estabelecidos pela legislação que o rege, com o passar dos anos e com a
grave crise inflacionária que atingiu o país, o Sistema foi sofrendo crescente
esgotamento. Com isso, à época, o SFH já não financiava nem um décimo dos imóveis
necessários para suprir a demanda por moradias anualmente3.
Parte dessa crise deveu-se ao fato de que o Sistema possuía duas fontes
principais de recursos, quais sejam a caderneta de poupança e o Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço. Ambas as fontes se mostraram insuficientes para assegurar
os financiamentos a serem obtidos perante o Banco Nacional de Habitação (BNH).
Conforme consta da Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.242/97,
convertido na Lei nº 9.514/97:

Por seus efeitos negativos sobre a renda e o emprego, a aceleração


inflacionária, somada as sucessivas medidas que acentuaram o
descompasso entre os reajustes das prestações e dos saldos devedores,
acabou por desequilibrar o sistema de modo grave, senão irremediavelmente.
Do lado das fontes de recursos, a caderneta de poupança passou a enfrentar
a competição cada vez mais acirrada da indústria de fundos de investimento,
apresentando um comportamento menos dinâmico e mais volátil.
Paralelamente, os novos depósitos do FGTS tornaram-se insuficientes para
atender aos saques e ainda fazer novas aplicações.

Como agravante de todo o cenário de visíveis desgastes, em 16 de junho de


1967, havia sido criado o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS),
mediante a publicação da Resolução nº 25, do Conselho de Administração do BNH.
O FCVS tinha por finalidade, dentre outras, assumir, em nome do mutuário,
os descontos concedidos nas liquidações antecipadas, nas transferências de
contratos de financiamento habitacional e nas renegociações com extinção da
reponsabilidade do fundo, além de cobrir o saldo devedor de financiamento imobiliário,
total ou parcial, em caso de morte ou invalidez permanente do mutuário.
Ocorre que, em virtude da crise inflacionária nas décadas de 70 e 80, o
governo federal passou a conceder sucessivos benefícios aos mutuários do BNH para
impedir que as prestações previstas nos contratos de financiamento fossem

3Dados extraídos da Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.242, de 1997, apresentado à Câmara
dos Deputados em 12 de junho de 1997.

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majoradas. Com isso, o FCVS que, inicialmente, havia sido criado com o fim de
liquidar eventuais saldos devedores residuais, passou a assumir dívidas muito
superiores ao seu fluxo de caixa, como se percebe com e edição dos diplomas a
seguir.
O Decreto-Lei nº 2.164/1984 institui incentivo financeiro para os adquirentes
de moradia própria pelo SFH através de emissão de bônus de emissão do BNH,
variável de 10% a 25%. O diploma estabeleceu que, para os contratos firmados a
partir daquela data, o FCVS ressarciria os saldos devedores em parcela única.
O Decreto-Lei nº 2.291/86 e o Decreto-Lei nº 2.406/88 foram responsáveis
pela concessão de novos subsídios, sobrecarregando ainda mais o já desgastado
FCVS. Em 18 de setembro de 1988, além de todos os subsídios supramencionados,
o Decreto-Lei nº 2.476 dispôs que o FCVS passasse a garantir o equilíbrio do seguro
habitacional do SFH em todo o território nacional.
Por fim, a Lei nº 8.004/90, ao conceder novos subsídios, determinou que o
Fundo quitaria os saldos de sua responsabilidade no prazo de 10 anos, após o
cumprimento de 3 anos de carência a contar daquela data.
É importante frisar que, embora o pagamento dos saldos oriundos do FCVS
tenha sido aditado por diversas vezes, todos os normativos que estabeleceram prazos
para ressarcimento desses saldos asseguraram aos credores o reajuste mensal das
dívidas. Foi adotado o mesmo índice utilizado para corrigir depósitos de poupança e
juros adicionais calculados à taxa do contrato original.
A Lei nº 10.150/2000, em seu art. 1º, trouxe desfecho ao FCVS, dispondo
sobre a novação de suas dívidas junto às instituições financiadoras, a ser celebrada
entre cada credor e a União. Ficou estabelecido um prazo de até 30 anos, contado a
partir de 1º de janeiro de 1997, com os 8 primeiros anos de carência para pagamento
dos juros e os 12 primeiros de carência para pagamento do principal.
O BNH, por sua vez, foi extinto pelo Decreto-lei nº 2.291/86, tendo sido
incorporado à Caixa Econômica Federal. O BNH tinha uma dívida de
aproximadamente R$ 2,5 bilhões, passivo este incorporado pela Caixa Econômica

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Federal, juntamente com as obrigações de gestão do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço (art. 1º, § 1º).4
Diante deste cenário, com a sobrecarga das fontes de recursos anteriormente
utilizadas para fomentar os financiamentos, era preciso encontrar novas formas de
garantir o pagamento dos créditos que fossem fornecidos no âmbito do SFH, além de
reforçar e retomar a credibilidade do setor imobiliário que se encontrava abalada.
Tendo a experiência de crise anterior como justificativa, o Projeto de Lei nº
3.432/1997, convertido na Lei nº 9.514/97, foi apresentado na Câmara dos Deputados
pelo Poder Executivo para que a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel fosse
instituída e suprisse grave lacuna no sistema de garantias do SFH.

2.2 AMPLIAÇÃO DAS OPERAÇÕES GARANTIDAS POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA


DE IMÓVEIS COM O ADVENTO DA LEI Nº 10.931/2004

Se no momento de edição da Lei nº 9.514/97 possibilitou-se que a alienação


fiduciária fosse utilizada como forma de garantir operações de financiamento
imobiliário para dar maior celeridade e segurança a eventuais execuções de dívidas
e, portanto, maior credibilidade ao setor, com o tempo o instituto mostrou-se campo
fértil e capaz de ter sua utilização estendida a outros setores. Nesse sentido, em 2 de
agosto de 2004, a Lei nº 10.931 voltou a tratar da alienação fiduciária em garantia de
bem imóvel; contudo, dessa vez, com novo objetivo e roupagem.
A supracitada Lei tinha como objetivo, dentre outros, dispor sobre o patrimônio
de afetação em incorporações mobiliárias. Enquanto a Lei nº 9.514/97 tratava da
alienação fiduciária como forma de garantir que os financiamentos para aquisição da
casa própria fossem quitados, seja pelo pagamento regular das parcelas e juros, seja
pela execução do bem financiado, a Lei nº 10.931/04 veio dar à alienação fiduciária
nova função. O artigo 51 desse diploma estabeleceu que:

4Para Christopher Peterson, nos E.U.A. foram diversas as iniciativas nas décadas de 30 e 40 de criação
de instituições governamentais que pudessem incrementar a oferta de crédito voltado à construção
civil. Por outro lado, a crise do subprime foi uma das consequências do excesso de operações
secundárias relativas ao mercado de imóveis, acompanhada da cultura não intervencionista daquele
país. PETERSON, 2007.

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Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral
também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária
de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por
caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de
venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa
imóvel.

A partir de então, a alienação fiduciária de bem imóvel vem sendo utilizada


como instrumento de garantia de qualquer obrigação, não estando mais jungida ao
Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI). Além disso, o referido artigo trouxe a
possibilidade de o devedor fiduciante não permanecer mais vinculado à mesma
pessoa (física ou jurídica.). Destarte, o bem alienado fiduciariamente em garantia pode
ser tanto de propriedade do fiduciante quanto de terceiro garantidor da obrigação do
fiduciante.
Sem embargo, a parte tocante ao presente estudo não é a possibilidade de
aplicação da alienação fiduciária em garantia de bem imóvel para função diversa da
primordialmente concebida no âmbito do SFI. O relevante a ser ressaltado não é a
mudança da aplicabilidade do instituto, mas sim a mudança de intenção presente.
No SFH, o objetivo do legislador era sobretudo social, pois o direito à moradia
está insculpido como direito social no art. 6º da Constituição Federal. Portanto, o
Estado em sua função de garantidor, de provedor do mínimo essencial à vida com
dignidade à pessoa humana, concebeu o Sistema com o desiderato de que este fosse
capaz de suprir a crescente demanda por moradias e de sanar as já existentes
distorções.
A mens legis, ou seja, a real intenção trazida pela legislação editada à época,
tinha um viés totalmente socializador, visando à proporcionar a inserção de
determinadas camadas da população antes excluídas de um nicho selecionado e
restrito proprietário de imóveis próprios, não por meio de um tratamento isonômico,
mas sim mediante a previsão de medidas compensatórias (no caso a isenção de
pagamento de eventual valor residual). Desta forma, o instituto da alienação fiduciária
em garantia de bem imóvel, quando concebido como engrenagem na máquina que
movia o SFH, direcionava toda a sua funcionalidade a um fim de caráter
socioeconômico.

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Com o advento da Lei nº 10.931/04, o legislador se utiliza do instituto da
alienação fiduciária em garantia de bem imóvel como fonte de garantia para
operações de todo o gênero, podendo essas serem celebradas entre partes paritárias
ou não (considerando-se as figuras do credor e devedor), sob uma ótica social ou
meramente financeira. Isto tem impacto direto na assimetria ou simetria de
informações entre as partes e, por conseguinte, na existência ou não de
vulnerabilidade do devedor.
Ocorreu, portanto, uma mudança não apenas na aplicação da alienação
fiduciária de bem imóvel, mas também na sua função da garantia ao financiamento
habitacional e na nova percepção de vulnerabilidade presumida entre as partes do
contrato, independentemente do perfil do contratante.
Assim sendo, até mesmo nos contratos empresariais (“as obrigações em
geral”), em que não se presume a vulnerabilidade nem assimetria de informações
entre as partes, passam a incidir as disposições da Lei nº 9.514/97. Com isso, nesse
novo cenário econômico, ficou alterada a concepção legislativa originária para a
alienação fiduciária de imóveis, mas sem uma análise do alcance e aplicação de
certas disposições normativas, em especial o parágrafo 5º do art. 27 da Lei nº
9.514/97.

2.3 A VULNERABILIDADE DO FIDUCIANTE NO CONTEXTO DA ALIENAÇÃO


FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS

Tanto pelo histórico da criação e dos objetivos do SFH e da Exposição do


Motivos ao PL nº 3.242/97, percebe-se que o legislador intentou assegurar a tutela ao
mutuário, visivelmente hipossuficiente – técnica, econômica e juridicamente – diante
de instituições financeiras, construtoras e demais entes do mercado imobiliário que
ocupam o polo contrário, por meio de um mecanismo compensatório, a dispensa de
pagamento do valor residual.
Diante do caráter protecionista do Estado em relação às famílias de baixa
renda e com o fito de proporcionar a construção de moradias dignas e suficientes para
atender a demanda populacional em crescimento, nada mais coerente que

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estabelecer mecanismos que pudessem compensar a desigualdade dos potenciais
compradores.
Não obstante, a possibilidade de aplicação da alienação fiduciária de bem
imóvel foi ampliada pelo artigo 51 da Lei nº 10.931/04, podendo, hodiernamente,
garantir quaisquer obrigações. Com essa ampliação, passou a não ser mais possível
afirmar que as partes do contrato, credor e devedor, encontram-se em patamares
desiguais.
Não há, assim, como se estabelecer a vulnerabilidade do devedor como uma
constante em todas as operações garantidas por alienação fiduciária em garantia de
bem imóvel isentas de pagamento do valor residual. A operação de crédito pode, a
partir de então, ser realizada entre quaisquer partes capazes (empresários ou não) e
não apenas dentro dos limites traçados pelo SFH.
Ao estabelecer, no artigo 51 da Lei nº 10.931/04, que quaisquer obrigações
poderiam ser garantidas pelo instituto da alienação fiduciária em garantia de bem
imóvel, o legislador acabou por criar uma incongruência enorme com o restante da
legislação em vigor sobre o tema e muitos dos dispositivos que serviam para essa
manutenção acabaram por assumir viés diverso e passaram a ser os geradores da
desigualdade contratual.
É compreensível que o legislador tenha pretendido compensar a
vulnerabilidade do polo mais fraco da relação contratual, o que se depreende da
exposição de motivos do projeto que deu origem à Lei nº 9.514/97. Porém, essa
compensação só faz sentido se, de fato, no caso concreto houver um sujeito que
necessite de proteção especial.
Se a opção legislativa é de compensar desigualdades, os benefícios dispostos
devem ser disponibilizados apenas àqueles realmente vulneráveis em sua posição
contratual e ainda restritos aos fins habitacionais. Não há que se compreender como
vulnerável quem financia imóvel cujo preço excede o valor correspondente ao padrão
de moradia da população economicamente desprivilegiada, o que sugeriria, por
exemplo, que a isenção de pagamento do valor residual estivesse condicionada em
Lei a determinados negócios, atrelados, por exemplo, a faixa de preço ou renda do
adquirente.

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Por não ter havido qualquer alteração das disposições da legislação especial
sobre alienação fiduciária de imóveis com o advento da Lei nº 10.931/2004, criou-se
um privilégio totalmente incompatível ao pretendido inicialmente ao fiduciante, ao se
pretender sua exoneração do restante do débito na situação prevista no art. 27, §5º,
da Lei nº 9.514/97, como será exposto a seguir.

2.4 O ALCANCE DO § 5º DO ARTIGO 27 DA LEI Nº 9.514/97

Seguindo a lógica protecionista imposta pelo SFH, a Lei nº 9.514/97


estabeleceu regras para a constituição e a execução da garantia obtida mediante a
alienação fiduciária de um bem imóvel, sempre atentando ao caráter vulnerável do
devedor. Dessa maneira, o art. 27 elenca as fases do procedimento executório5, que
devem ser seguidas em caso comprovação do inadimplemento do devedor e da
necessidade de consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor6.
No âmbito do SFH, o devedor pretende adquirir a casa própria, mas não foi
capaz de pagar as parcelas e juros que lhe cabiam. Em virtude de seu inadimplemento
e posterior consolidação da propriedade, deverá entregar o imóvel à leilão, em
atendimento à execução da alienação fiduciária, como forma de cobrir o valor da
dívida e ressarcir o credor das despesas acessórias.
Se em um dos dois leilões previstos, o valor auferido for superior ao da dívida,
o restante será devolvido ao devedor (art. 27, § 4º).
No § 5º do referido art. 27, o legislador foi além e determinou que, após
cumpridos os procedimentos de realização de dois leilões do imóvel a dívida seria
considerada extinta, caso não fosse oferecido em nenhum deles valor superior ou
igual ao da dívida, somado das despesas, dos prêmios do seguro, dos encargos
legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.

5 Registra-se o art. 27 teve sua redação parcialmente alterada pela Lei nº 13.465/2017 (conversão da
Medida Provisória nº 759/2016). Foi dada nova redação ao parágrafo 1º e incluídos os parágrafos 2º-
A, 2º-B e 9º. Não obstante, persiste a redação originária do parágrafo 5º, cerne da exposição.
6 A mora do fiduciante deve ser comprovada na forma do art. 26, § 1º. Caso não haja sem a purgação

da mora, o oficial do Registro de Imóveis, certificará esse fato e fará a averbação na matrícula do imóvel
da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do
imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio (art. 26, § 7º). Em seguida, o fiduciário,
no prazo de trinta dias, contados da data do registro da consolidação da propriedade, promoverá
público leilão para a alienação do imóvel (art. 27, caput).

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Percebe-se que a previsão legislativa de extinção da dívida do fiduciante
constitui norma especial, totalmente oposta à orientação do Código Civil quanto à
propriedade fiduciária nele regulada. De acordo com o art. 1.366, caso a coisa objeto
de propriedade fiduciária venha a ser vendida e seu produto não bastar para o
pagamento da dívida e das despesas de cobrança, o fiduciante continuará obrigado
pelo saldo.
Exatamente por reconhecer a especialidade da Lei nº 9.514/97 e seus
objetivos, o art. 1.367 do Código Civil ressalva a aplicação “da legislação especial
pertinente” para a propriedade fiduciária de bens imóveis.
Pode-se compreender que se o imóvel dado em garantia, em nenhum dos
dois leilões legais, receber lance capaz de quitar o débito na sua integralidade (art.
26, § 1º), deverá o credor ficar com a propriedade do bem e dar plena e irretratável
quitação ao devedor, nada mais deste podendo cobrar.
A respeito desta imposição legal, comenta Melhim Namem Chalhub (2012,
p.264-265):

Com efeito, trata-se de mecanismo compensatório justificado pelo sentido


social do crédito habitacional e dele há precedente no direito positivo
brasileiro: a Lei nº 5.741, de 1971, que institui processo especial de execução
de crédito vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação, prevê que, não
havendo lance que cubra o valor da dívida, dá-se automática adjudicação do
imóvel ao credor com a quitação da dívida, operando a adjudicação os
mesmos efeitos da dação em pagamento.

Em razão da dação em pagamento do imóvel ao fiduciário em substituição à


prestação original, este deverá aceitá-lo e dar por quitada a obrigação do fiduciante.
Embora não haja o consentimento necessário do credor disposto no art. 356 do
Código Civil, os efeitos e a aplicação são tecnicamente os mesmos previstos para a
dação em pagamento.
Com a ampliação da alienação fiduciária para fins de garantir qualquer
obrigação, a Lei nº 10.931/04 criou a possibilidade de o credor ser obrigado a dar
quitação do saldo não coberto pela venda do imóvel em segundo leilão a qualquer
devedor (pessoa física ou jurídica) e não mais apenas ao cidadão vulnerável.
Destarte, não há mais a presunção de que as relações das partes envolvidas no
contrato seriam não-paritárias e assimétricas.

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Como conclui Melhim Namem Chalub (2012, p.265) em breve explanação
sobre o tema:

No que tange à alienação fiduciária sobre bens imóveis, quando da


formulação do Projeto de Lei que resultou na Lei nº 9.514/97 cogitava-se de
sua aplicação restrita ao mercado habitacional, de modo que, em atenção ao
grande alcance social desses financiamentos, a lei exonerou o fiduciante da
obrigação de pagar o saldo devedor que remanescesse, caso o imóvel fosse
levado a leilão e não se alcançasse valor suficiente para resgate da dívida.
Sucede que, posteriormente, a Lei nº 10.931, de 2004, no seu art. 51, veio a
estender a aplicação da alienação fiduciária de bens imóveis para garantia
das obrigações em geral, sejam habitacionais ou empresariais, sem, contudo,
fazer qualquer ressalva quanto ao perdão da dívida previsto na legislação
anteriormente, de modo que, mesmo nos empréstimos destinados a
atividades empresariais a empresa devedora ficará exonerada de pagar o
saldo devedor, caso não se alcance no leilão valor suficiente para resgatar
inteiramente sua dívida.

No mesmo sentido procede a crítica de Milena Donato Oliva (2014, p.114):

Já se observou que o regime diferenciado da alienação fiduciária de imóveis


se justificaria para a tutela do mutuário vulnerável no financiamento
imobiliário. Nessa direção, a Lei nº 5.741/1971 [art. 7º], no âmbito da proteção
do financiamento de bens imóveis vinculados ao Sistema Financeiro de
Habitação, já previa dispositivo semelhante, o que corroboraria o escopo
protetivo e excepcional do preceito. No entanto, a Lei nº 10.931/2004, em seu
art. 51, estendeu o emprego da alienação fiduciária de coisa imóvel à garantia
das obrigações em geral, abrangendo, assim, relações paritárias e não
paritárias, de maneira que não procede mais a justificativa inicialmente
alvitrada para a exoneração do devedor no que tange o saldo remanescente
após a execução da garantia.

A grande incongruência reside no fato de a Lei nº 10.931/2004 em momento


algum ter feito qualquer ressalva sobre como deveria ocorrer o procedimento
executório da garantia, caso se evidenciasse que as partes contratantes estão em pé
de igualdade uma perante a outra.
Melhim Namen Chalhub (2012, p.256), um dos juristas que colaborou para a
elaboração do PL nº 3.242/97, assim se manifestou sobre a problemática ora
levantada:

Nada justifica, entretanto, que seja esse benefício estendido ao tomador de


financiamento para atividades empresariais ou para outras finalidades não-
habitacionais, nem aos participantes de grupos de autofinanciamento
denominado consórcio na linguagem comum.

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Não é plausível que se mantenha a disposição constante no artigo 27, §5º, da
Lei nº 9.514/97 aplicável a todos os casos e, consequentemente, na geração de uma
condição desfavorável ao financiador. Com esta situação, no longo prazo, o instituto
torna-se inseguro devido ao seu alto grau de risco no momento da execução para o
credor.
Da maneira como se encontra normativamente estabelecido, abre-se a
oportunidade para decisões judiciais que impõem ao financiado, além de arcar com
os riscos já inerentes ao empreendimento, suportar os riscos de desvalorização do
imóvel no mercado na vigência do contrato. Isso porque, ainda que ocorra qualquer
variação que justifique a queda do preço do imóvel, o que motivaria a não obtenção
de valor bastante para cobrir o saldo devedor nos leilões, o credor deverá aceitá-lo
como quitação total do débito, suportando o saldo remanescente não pago.
Percebe-se que a previsão legislativa, com o fito de criar externalidades
positivas ao mercado imobiliário, ao ampliar ilimitadamente as possibilidades de
extinção do saldo devedor, trouxe externalidades negativas com potencial impacto
direto nos custos de transação do financiador imobiliário. A posição adotada pelo
Poder Judiciário, quando reafirma a extensão do benefício e inviabiliza a possibilidade
de continuidade da execução em relação ao valor residual, encontra seus
fundamentos diretos no modelo normativo vigente, daí a existência de movimentos no
sentido de alterá-lo.

3 PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS PARA ALTERAÇÃO DO § 5º DO ART. 27 DA


LEI Nº 9.514/97

No seio do Poder Legislativo federal também se percebeu a distorção no


sistema de financiamento imobiliário por meio de alienação fiduciária de imóveis e a
problemática causada pela impossibilidade de execução do saldo remanescente.
Desta forma, serão examinados os Projetos de Lei apresentados na Câmara
dos Deputados para alterar a redação do § 5º do artigo 27.
Em maio de 2017, encontravam-se em tramitação na Câmara dos Deputados
os PL nº 6.525/2013 e nº 4.714/2016, ambos de autoria do deputado Carlos Bezerra

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(MT) 7. Sem embargo, o mesmo deputado já havia apresentado em 2007, o PL nº
1.070. O projeto consistiu na primeira tentativa de alteração das incongruências
normativas constantes na Lei nº 9.514/97 e consequente atualização deste diploma
legal a sua atual aplicabilidade.
O PL nº 1.070 pretendia alterar o §5º, do artigo 27, da Lei nº 9.514/97 para
que sua redação passa a vigorar da seguinte forma:

§ 5º - No caso de financiamento de imóvel habitacional, se, no segundo leilão,


o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º,
considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que
trata o §4º.

Se por um lado a alteração proposta ao texto não tiraria o benefício dado ao


devedor vulnerável quando da promulgação da lei em 1997, por outro, limitava a
aplicação da remissão legal apenas ao financiamento de imóvel com fins
habitacionais.
Além da alteração acima, o PL 1.070 visava também a mudança no §8º do
art. 27, o qual passaria a vigorar com a seguinte redação: “§ 8º As disposições dos §§
5º e 6º deste artigo não se aplicam às operações de financiamento não-habitacional e
às de autofinanciamento realizadas por grupos de consórcio”.
O § 6º do art. 27 refere-se à obrigação do credor em dar quitação ao devedor,
no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão, mediante termo próprio. A
proposição de lege ferenda isentaria o credor de financiamento não-habitacional e os
consórcios deste procedimento, possibilitando a estes a cobrança de saldo existente.
Como justificação para a alteração da lei, o deputado suscitou os motivos
pelos quais esta foi idealizada, relembrando que, no momento de sua instituição,
cogitava-se sua aplicação de forma restrita ao mercado habitacional e visando ao
alcance social dos financiamentos concedidos nesse âmbito (BRASIL, 2007).
Assim, com a implementação das alterações sugeridas, a lei manteria seu
sentido social sem dar benefícios que o extrapolam, decorrentes de um perdão
descabido. Ocorre que o Projeto de Lei foi arquivado por término da legislatura em

7 O PL nº 4.714/2016 foi apresentado em virtude do arquivamento em 2011 do PL nº 1.070/2007,


propondo também a alteração do mesmo dispositivo legal. O PL 4.714/2016 encontra-se apensado ao
PL 6.525/2013, razão pela qual não será comentado.

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31/01/2011 e não proporcionou a retomada do progresso na sistematização do
instituto da alienação fiduciária de imóvel que propunha.
Em 2013 o mesmo deputado retomou a proposição por meio do PL nº 6.525,
porém mediante a inclusão de um novo parágrafo no art. contendo a seguinte redação:

§ 9º A extinção da dívida e a exoneração do devedor da respectiva obrigação,


previstas nos §§ 4º e 5º deste artigo, aplicam-se tão somente às operações
de financiamento imobiliário, não se estendendo, em hipótese alguma, a
qualquer outra modalidade de financiamento na qual se utilize
contratualmente da alienação fiduciária em garantia.

Exaltando as melhorias trazidas pelo advento da Lei nº 9.514/97 e os avanços


no mercado imobiliário brasileiro, com aumento na compra de imóveis, o deputado,
mais uma vez, tentou mostrar à Câmara dos Deputados a necessidade de
aperfeiçoamento da alienação fiduciária de imóveis, após mais de quinze anos de
vigência da Lei.
O PL nª 6.525/13 encontra-se ainda em tramitação na Câmara dos Deputados
na Comissão de Desenvolvimento Urbano, com parecer favorável do relator deputado
Carlos Marun na forma de substitutivo8.

4 DA INAPLICABILIDADE DO ART. 14, § 6º DA LEI Nº 11.795/2008 E DA SÚMULA


384 DO STJ AOS CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS

É notório que o processo legislativo para a aprovação de leis ordinárias é lento


e as proposições apresentadas podem ser rejeitadas ou arquivadas. Considerando-
se que a aplicação da norma do art. 27, § 5º, da Lei 9.514/97 é inadmissível fora do
âmbito do financiamento imobiliário habitacional, é preciso pensar, dentro do

8 No substitutivo propõe-se o acréscimo à Lei nº 9.514/97 do art. 26-A: “Os procedimentos de cobrança,
purgação de mora, consolidação da propriedade e leilão relativos aos contratos de financiamento
habitacional sujeitam-se às seguintes normas especiais [...] III – Se, no segundo leilão o maior lance
oferecido não for igual ou superior ao valor da dívida e seus acréscimos, considerar-se-á extinta a
dívida; no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão o credor dará quitação ao devedor
mediante termo próprio”. Para os contratos de financiamento não habitacional, na forma da redação de
lege ferenda do art. 27, § 5º. "O devedor continuará obrigado pelo pagamento do saldo remanescente,
mediante ação de execução, caso no procedimento de venda do bem não haja oferta de quantia
suficiente para pagamento integral da dívida garantida, seus encargos e despesas de cobrança”.

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instrumental legislativo vigente e sua interpretação pelos Tribunais Superiores, em
soluções viáveis.
A exemplo do aperfeiçoamento necessário à legislação atualmente em vigor
sobre alienação fiduciária de imóveis, no que tange aos sistemas de consórcios, foi
promulgada a Lei nº 11.795/2008.
Consoante definição do art. 2º da Lei nº 11.795/2008, Consórcio “é a reunião
de pessoas naturais ou jurídicas em grupo, com prazo de duração prazo e número de
cotas previamente determinados, promovida por administradora de consórcio, com a
finalidade de propiciar a seus integrantes, de forma isonômica, a aquisição de bens
ou serviços, por meio do autofinanciamento”.
Os integrantes do consórcio são tratados de maneira isonômica, todos no
mesmo patamar e mediante a formação de um grupo sem privilégios ou diferenciação
(art. 3º, § 2º). Ao contrário dos financiamentos habitacionais, não cabe, portanto, falar
em benefícios embasados na vulnerabilidade de um perante os demais.
Caso fosse aplicado o modelo previsto na Lei nº 9.514/97, em caso de
execução do imóvel e verificação de saldo remanescente, seria concedido o perdão
da dívida ao consorciado e o consórcio suportaria a diferença, com prejuízo para todo
um grupo, em prol de apenas um membro responsável pela prestação da garantia.
Enxergando a necessidade de suprir esta lacuna, o legislador, incluiu o art. 14, que
versa a respeito das garantias exigidas dos consorciados para utilizar o crédito.
O § 6º do art. 14, por sua vez, foi o responsável por trazer a inovação há muito
pretendida e ainda não implementada na Lei nº 9.514/97.
O oferecedor de garantia por meio de alienação fiduciária de imóvel ficará
responsável pelo pagamento integral das obrigações pecuniárias estabelecidas no
contrato de participação em grupo de consórcio, por adesão, inclusive da parte que
remanescer após a execução dessa garantia. Portanto, caso o imóvel alienado
fiduciariamente seja levado à execução e, após cumprido o procedimento previsto na
Lei nº 9.514/97, se remanescer diferença, o fiduciante deverá cobri-la, realizando o
pagamento integral da dívida. Com este expediente, cada membro do consórcio
arcará com sua obrigação sem prejudicar os demais, ainda que o imóvel dado em
garantia seja insuficiente para cobrir todo o valor do débito.

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Em que pese a previsão da obrigação do consorciado cobrir a diferença e
realizar o pagamento integral da dívida, a disposição da Lei nº 11.795/2008 não pode
ser aplicada aos financiamentos garantidos por alienação fiduciária de imóveis.
Justifica-se tal assertiva pelo critério da especialidade, pois a premissa adotada pela
Lei dos Consórcios é a paridade entre as partes. Tal pressuposto, como visto, é uma
das características do instituto e impõe a impossibilidade de perdão da dívida a um
dos consorciados em prejuízo ao consórcio como um todo.
Na Lei nº 9.514/97, ao contrário, a premissa adotada para a extinção da dívida
em favor do devedor é a vulnerabilidade. A questão não é afastar tal premissa, mas
sim limitá-la aos financiamentos habitacionais para aquisição da casa própria dentro
de limites máximo de valor do imóvel, para garantir o escopo que motivou a criação
da Lei. A aplicação da norma da Lei nº 11.795/2008 poderia aniquilar totalmente o art.
27, § 5º da Lei nº 9.514/97, impedindo que a dívida pudesse ser considerada quitada,
inclusive nos casos de vulnerabilidade do devedor.
Outra razão importante para a inaplicabilidade da regra dos consórcios aos
financiamentos imobiliários em geral decorre da previsão contida no art. 1.367 do
Código Civil de que a propriedade fiduciária de bens imóveis é regulada pela
legislação especial pertinente. Desta forma, estaria afastada a disposição do art. 1.366
de que o fiduciante continuará obrigado pelo saldo, mesma orientação da Lei nº
11.795/2008.
A constatação supra aumenta ainda mais a importância da necessidade de
alteração legislativa, que só virá com a aprovação do PL nº 6.525/2013 pelo
Congresso.
Também não seria possível sustentar a admissão da execução judicial do
saldo devedor remanescente pelo fiduciário com fulcro na orientação jurisprudencial
pacificada exarada na Súmula 384 do Superior Tribunal de Justiça9.
A referida súmula está fundamentada legalmente no art. 1.102A do Código de
Processo Civil de 1973, correspondente ao art. 700, I, do CPC 2015, que trata das
hipóteses de cabimento da ação monitória.

9BRASIL. 2009: “Cabe ação monitória para haver saldo remanescente oriundo da venda extrajudicial
de bem alienado fiduciariamente em garantia”.

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Em simples leitura perfunctória da supracitada súmula, poder-se-ia concluir
que incongruência normativa existente no disposto no art. 51 da Lei nº 10.931/2004
c/c art. 27, § 5º da Lei nº 9.514/97 fora sanada por entendimento consolidado do STJ.
Ao permitir a ação monitória para reaver saldo remanescente da venda
extrajudicial de bem alienado fiduciariamente, o STJ teria afastado a automaticidade
do perdão imposto pela lei e condicionado sua aplicação à análise do caso concreto,
solucionando o problema trazido pela ampliação da utilização do instituto
proporcionada pela Lei nº 10.931/04. Contudo, em simples leitura dos precedentes10
apresentados como justificativa para edição da Súmula 384, percebe-se que não é o
que se infere do texto da súmula o pretendido no momento de sua aprovação.
Pela análise das quatro decisões precedentes para edição da Súmula 384
evidencia-se que, não obstante essa conter em seu texto a expressão “bem alienado
fiduciariamente em garantia”, sem dispor de maneira clara se se trata de bem móvel
ou imóvel, todos os precedentes se referem a vendas extrajudiciais de bens móveis.
A discussão travada no STJ que levou à edição da Súmula 384 se deu em
virtude da iliquidez do título após a venda extrajudicial da garantia (veículos). Em
havendo alienação extrajudicial do bem móvel, ainda que haja saldo remanescente, o
STJ entendeu que esse saldo não pode ser executado de pronto. Isto porque, não é
válido que o valor do débito seja unilateralmente declarado pelo fiduciário, sem que
haja por parte do fiduciante reconhecimento do valor exato da dívida, depois de
descontado o valor obtido na venda do bem alienado e, se for o caso, com a
oportunidade para o segundo de apontar erros no cálculo apresentado pelo primeiro.
Ao contrário, na alienação fiduciária de imóveis, a lei especial determina
expressamente o perdão do saldo remanescente existente depois da venda do imóvel
e o procedimento de cobrança é diverso da alienação fiduciária de bens móveis 11.

10 Nesse sentido, cf. Recurso Especial nº 2432/CE, Recurso Especial nº 63392/MG, Recurso Especial
nº 331789/MG, todos julgados pela Quarta Turma e Recurso Especial nº 647002/PR, julgado pela
Terceira Turma.
11 Na alienação fiduciária de bem móvel, o Decreto Lei nº 911/1969, com alteração promovida pela Lei

nº 10.931/2004, criou a obrigação de que o devedor pague a integralidade da dívida, não havendo
perdão ao que remanescer dos valores apresentados pelo fiduciário na inicial, conforme se verifica pela
redação do art. 3º, § 2º: “No prazo do § 1º [cinco dias], o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade
da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual
o bem lhe será restituído livre do ônus”.

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Desta forma, a edição da Súmula 384 do STJ apenas corrobora a disparidade
do tratamento dado aos credores de alienação fiduciária de bens imóveis, em relação
aos bens móveis, e para a necessidade latente de adequação das disposições
constantes na Lei nº 9.514/97, sobretudo do parágrafo 5º do artigo 27, por meio de
reforma legislativa.

5 ANÁLISE ECONÔMICA DO REGIME PROTECIONISTA DA LEI Nº 9.514/97 EM


RELAÇÃO AO FIDUCIANTE: COMPORTAMENTOS E NORMAS

A promulgação da Constituição Federal de 1988 ocorreu no Brasil num


momento de transição do regime militar para o restabelecimento pleno da democracia
no país. País no qual um percentual significativo de seus cidadãos enquadrava-se nos
mais baixos patamares de renda, formando uma massa excluída do pleno acesso a
bens e serviços.
Daí a extensão de seus dispositivos, especialmente aqueles voltados aos
direitos fundamentais e de ordem social, incluído o direito à propriedade privada
(art.5º, XXII), o que se relaciona diretamente com a generalização do modelo de
alienação fiduciária mais benéfica ao adquirente, ao se ter o direito de moradia como
direito social corolário do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, c/c art.
6º).
Os quase trinta anos de vigência da Constituição Federal brasileira, ao mesmo
tempo em que se fazem acompanhar de inegável mudança social, apresentam-nos a
conta da opção interventiva mais ampla, especialmente no campo da economia:
contas públicas negativas, déficit preocupante da previdência, decretação de estado
de calamidade financeira em vários Municípios e Estados.
No campo da disciplina da alienação fiduciária e do regime protecionista em
relação ao fiduciante, os itens anteriores deste artigo apontam para a necessidade de
revisão de sua disciplina normativa ao se cotejar a origem e a função do regime mais
benéfico, porém restrito, estabelecido pela lei originária e a sua ampliação posterior.
O quadro exige do intérprete e estudioso do direito que reconheça que a
edição normativa pode ser eficiente, em termos de produção dos efeitos pretendidos,

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em determinado contextos, ou, ainda, estar absolutamente dissociada de suas
pretensões. Essa é a base do pensamento de Douglass North.

5.1 INSTITUIÇÕES FORMAIS E COMPORTAMENTO

No dizer de Douglass North, no âmbito das teorias que compõe a escola


chamada de Nova Economia Institucional, as instituições são as regras do jogo, sejam
elas formais ou informais. Dentre as instituições formais, destacam-se as normas
jurídicas. As regras do jogo, logo, as instituições, ao mesmo tempo em que levam a
uma limitação na autonomia privada devem estar associadas à eficiência, já que os
atores ou agentes deixaram de ter um plano ilimitado de decisões possíveis, para
estarem condicionados ao que a lei determina (NORTH, 1994, p.360).
Para os institucionalistas, a edição de uma norma, em tese, significa
reconhecer que o ordenamento jurídico conhece os seus potenciais efeitos e, por
intermédio de uma política de estímulo (normas promocionais) ou de desestímulo
(normas punitivas) já sugere ou impõe, respectivamente, o cumprimento de uma
determinada conduta.
As normas jurídicas se mostram, sob essa ótica, como instrumentos de
eficiência, já que tem a pretensão de redução de tempo e custos associados ao
processo de escolha, o que pode ser sintetizado na expressão trade off (NORTH,
1994, p.360).
Sobre a real eficiência da Análise Econômica do Direito, segundo Ivo GICO
JR (2016, p.18):

[....] é um movimento que se filia ao consequencialismo, isto é, seus


praticantes acreditam que as regras às quais nossa sociedade se submete,
portanto, o direito, devem ser elaboradas, aplicadas e alteradas de acordo
com suas consequências no mundo real, e não por julgamentos de valor
desprovidos de fundamentos empíricos (deontologismo).

Porém, a escolha dos métodos e critérios de aferição de eficiência normativa


traz grande dificuldade (MACRAE, 2009, p.255-264).
Ainda, assim, o papel das instituições é reduzir as incertezas e orientar o
comportamento, representando um guia para a interação humana (ROCHA, 2016,

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p.164). São as oportunidades criadas pelas instituições, por sua vez, que dão
surgimento às organizações. Organizações são grupos de indivíduos vinculados por
certos propósitos ou objetivos, enquadrando-se aí tanto o Estado como uma
sociedade empresária (WILLIAMSON, 1996, p.361).
As mudanças nas instituições somente ocorrem quando os indivíduos
acreditam que podem melhorar sua situação, por meio de mudanças estruturais
(WILLIAMSON, 1996, p.361-362). Por outro lado, as mudanças serão para melhor ou
não, a depender do conhecimento agremiado pelos indivíduos. É imprescindível
identificar a questão a ser modificada e o convencimento do agente político para que
seja promovida a alteração que se faz necessária.
A norma jurídica, em seu aspecto meramente formal, à condição de ter sido
elaborada a partir de critérios estabelecidos pelo ordenamento jurídico, será
vocacionada a dirigir os comportamentos, seja de forma direta, seja pela imposição
de sanções. Todavia, no campo de sua aplicabilidade, a norma é vazia de significado
se não for acompanhada dos comportamentos que condicionam a sua eficácia. É
possível mencionar aqui, por exemplo, a necessidade de monitoramento das condutas
tipificadas pela norma, de que efetivamente sirvam de condução ao comportamento
humano a partir da premissa legal, seja espontaneamente, seja por coerção.
Logo, norma e comportamento são indissociáveis no campo prático. E,
comportamentos, por sua vez, remetem à figura do agente que, utilizando-se de sua
racionalidade, de sua necessidade ou de sua paixão, irá escolher a conduta a ser
executada. Porém, agentes têm diferentes níveis de racionalidade, sendo equivocado
imaginar que agirão sempre de forma maximizadora ou de boa-fé.
Os limites de racionalidade e os desvios à boa-fé permitem que determinados
agentes retirem uma vantagem pessoal que desequilibre a relação jurídica, no campo
privado, ou caracterize um mau uso da instituição, no campo da incidência normativa.
Na seara privada contratual, a conduta oportunista pode conduzir a que um contrato
seja descumprido ou uma relação estável descontinuada. No campo da incidência
normativa, as vantagens pessoais acobertadas por um suposto interesse social, para
serem coibidas, dependerão de reforma normativa ou da consolidação hermenêutica
no sentido da correção na aplicação da norma.

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Uma situação de vantagem pessoal travestida de interesse social pode ser
identificada, por exemplo, quando uma norma, no propósito declarado de minimizar
danos ambientais, estabelece multas aplicáveis nas situações indesejadas, mas que,
em razão do proveito econômico real do empresário na dada situação concreta, acaba
por consolidar a prática infratora que se repete, já que o proveito é maior do que a
sanção.
Assim é que, infelizmente, normas podem produzir efeitos indesejáveis desde
a sua origem, ou em razão do contexto na qual estão sendo aplicadas ter sofrido
modificações. Os efeitos negativos podem, por sua vez, decorrer de um
comportamento oportunista do agente, ou serem o reflexo de um comportamento não
desejado ou pensado pelo legislador quando disciplinou a matéria, ou pelo agente
público, quando tomou a decisão administrativa.

5.2 EFEITO PELTZMAN VIS-À-VIS A EXONERAÇÃO DO FIDUCIANTE

O chamado Efeito Peltzman pode ser invocado quando uma decisão


normativa ou administrativa produz um resultado que não havia sido pensado quando
de sua edição. Efeito negativo decorrente de uma conduta de relaxamento das partes
sujeitas ao efeito da norma ou decisão. No episódio constatado pelo economista Sam
Peltzman, a duplicação de uma ponte (decisão administrativa) acabou por produzir
um aumento no número de acidentes naquela ponte. No entanto, a opção pela
duplicação havia sido pautada exclusivamente no propósito de melhorar a eficiência
para os usuários do percurso, não para ser uma concausa no aumento do índice de
sinistros (SHIKIDA, 2016, p.40).
Se a pretensão da ação era o aumento do bem-estar, o fato de ter aumentado
o número de acidentes graves sinaliza para uma distorção, ou seja, para a formação
do efeito Peltzman. Uma determinada norma (exatamente como se dá no caso da
limitação da responsabilidade do fiduciante, nos termos artigo 27, §5º, da Lei nº
9.514/97) pode atingir o reverso de sua pretensão inicial.
Tome-se o exemplo de uma norma muito rigorosa que imponha um limite de
velocidade em uma dada rodovia: há a possibilidade de que seja destinada à
diminuição no número de acidentes, ou, prestar-se somente ao objetivo de

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maximização da receita governamental; ou, no tema deste artigo, a limitação da
responsabilidade do fiduciante, independentemente de faixa de preço do imóvel e de
sua condição social, pode restringir, encarecer ou eliminar o crédito indispensável
para a incorporação de novas construções de moradia. A eliminação pode se dar
precisamente em relação aos agentes que se queria proteger, os mais carentes. A
restrição, por sua vez, pode refletir em face dos potenciais adquirentes de unidades
habitacionais voltadas à classe média e alta, sem qualquer benefício para os
destinatários originais no âmbito do SFH.
Um dos grandes problemas na intervenção por meio da norma jurídica reside
justamente nos efeitos indesejáveis que podem dela recorrer, seja desde a sua
origem, ou a partir de um dado momento histórico. Dissonância entre os objetivos que
nortearam a norma editada e outros efeitos que dela decorrem involuntariamente .
Como já visto neste artigo, no caso do regime da alienação fiduciária, a
exposição de motivos da norma originária estabeleceu claramente a função a que se
destinava a sua sistemática de excepcionalização. A norma jurídica foi concebida para
limitar a obrigação do fiduciante, mediante a retirada da possibilidade de o fiduciário
continuar a execução para além do valor do bem alienado: a proteção do menos
favorecido, como parte da política de acesso à casa própria.
A mesma limitação, agora projetada para qualquer contrato de alienação
fiduciária, perde a conexão com o objetivo e com o contexto de sua criação, o que
deve justificar a sua revisão, sob pena de o objetivo inicial do legislador quando de
seu estabelecimento afastar-se indelevelmente da prática.
Aliás, sob o aspecto econômico, a depender da capacidade de endividamento
do devedor e da possibilidade de acesso à informação do credor, a doutrina debate
até que ponto a simples existência de créditos mais privilegiados do que outros, por
força de lei, pode impactar negativamente no mercado de crédito. Existirá o risco de
os credores não garantidos/privilegiados aumentarem seus juros (associados ao
spread) de forma desproporcional à redução associada ao estabelecimento de
garantias (SHUPACK, 1989).
Partindo-se do pressuposto de que as normas devem ser ponderadas, para
além da teoria expressa em sua redação, ganha destaque a necessidade de
identificação da conveniência da intervenção normativa, assim como a possibilidade

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de que processos de revisão sejam desencadeados a fim de promover-se
adequações, quando necessário.

5.3 CONTRIBUIÇÃO DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO PARA A


CONSTRUÇÃO NORMATIVA

Os autores optaram por não desenvolver um pensamento teórico prévio


acerca da Análise Econômica do Direito- AED. No entanto, em cada um de seus
tópicos, a forma de argumentação do artigo está respaldada em metodologia sugerida
pela AED. Uma análise consequencialista do sistema que disciplina a alienação
fiduciária.
A análise desenvolvida perpassa não apenas pela identificação dos fatores
que levaram à edição da Lei nº 9.514/97, como também pelas propostas de
modificação deste sistema, de forma a se reconhecer o desvirtuamento na aplicação
generalizada do tratamento favorecido ao adquirente de bens imóveis pela via da
alienação fiduciária. A revisão proposta tem por proposito, ainda, a preservação do
regime de financiamento de bens imóveis de cunho de moradia. A impossibilidade
sistemática de recuperação do valor financiado tem por inequívoca consequência,
senão o desaparecimento desta linha de financiamento, o seu encarecimento
generalizado. Diante do quadro relatado, ou os agentes financeiros reduzem esta linha
de crédito ou farão incidir sobre as demais linhas o custo do risco de perda de parcela
do valor oferecido no financiamento.
A AED pode ser invocada em sua vertente normativa ou positiva. A análise
positiva volta-se ao estudo das normas editadas, a fim de se aquilatar a eficiência ou
não das normas existentes e a análise normativa sugere que, apuradas as carências
ou ineficiências, sejam sugeridas modificações no sistema normativo.
Segundo Ivo Gico Jr (2016, p.18):

A Análise Econômica do Direito (AED), portanto, é o campo do conhecimento


humano que tem por objetivo empregar os variados ferramentais teóricos e
empíricos econômicos e das ciências afins para expandir a compreensão e o
alcance do direito e aperfeiçoar o desenvolvimento, a aplicação e a avaliação
de normas jurídicas, principalmente com relação às suas consequências.

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Os impactos do aspecto econômico no Direito vão muito além das
considerações sobre custos de transação ou eficiência. Os efeitos econômicos, pelo
fato de transbordarem para o mercado, podem fazer com que determinada norma se
torne ineficiente, desabilitando-a aos seus propósitos com impactos de ordem social.
Assim é que o direito constitucionalmente assegurado à propriedade e a
política habitacional podem trazer determinações legais que, em sua aplicabilidade,
acabam por produzir efeitos indesejáveis ou pouco eficientes, não apenas em termos
econômicos, mas igualmente sociais.
Para Ivo Gico Jr. (2010):

A AED tem por característica a aplicação da metodologia econômica a todas


as áreas do direito, de contratos a constitucional, de regulação a processo
civil, de direito ambiental a família e é justamente essa amplitude de aplicação
que qualifica uma abordagem AED da simples aplicação de conhecimentos
econômicos em áreas tradicionalmente associadas à economia.

Há duas alternativas para aquele que pensa o Direito. Satisfazer-se com a


vigência da norma, considerar que nada mais há a fazer para o aprimoramento da
vida em sociedade, ou, aceitar o desafio de considerar o contexto da edição normativa,
a sua aplicabilidade no decorrer do tempo, para assinalar e propor eventuais
modificações com o propósito de aprimoramento da vida em sociedade, inclusive
valendo-se das ferramentas da Análise Econômica do Direito.

CONCLUSÃO

Como parte de uma política habitacional voltada à oferta de aquisição de bens


imóveis para moradia e diante da não sustentabilidade do programa nacional pautado
na utilização de recursos oriundos das cadernetas de poupança e do FGTS, foram
editadas normativas que estimularam a utilização do regime de financiamento pela via
do contrato de alienação fiduciária em garantia na aquisição de bens imóveis.
Com o propósito de favorecer os adquirentes de imóveis de baixa renda, no
âmbito do Sistema Brasileiro de Habitação, foram crescentes os descompassos entre
o valor efetivamente devolvido pelo fiduciante ao fiduciário, fortalecidos pelas políticas

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voltadas à antecipação de parcelas para quitação ou ainda, pela desconformidade
entre o valor total das parcelas pagas e a recuperação do valor investido e de sua
remuneração comparativamente ao mercado. Como proposta de solução foram
consolidadas estratégias que operaram por meio da criação e utilização de fundos
garantidores para os referidos contratos de financiamento.
Todavia, as formas de intervenção do Estado na economia, especialmente
quando voltadas a condutas que impactam no mercado, o deficit no sistema financeiro
da habitação e sua relativa insustentabilidade no longo prazo, produziram limitações
na oferta de crédito habitacional e estimularam a busca por outros mecanismos de
financiamento, e como visto, a alienação fiduciária em garantia ganhou espaço.
Ainda com o propósito de salvaguarda dos adquirentes de imóveis de baixa
renda, a Lei disciplinadora da alienação fiduciária imobiliária prevê limitações à
responsabilidade do fiduciante, pois, atendidas as condições e os processos
estabelecidos na Lei, este não responde mais perante o fiduciário pela diferença entre
o valor obtido na venda do bem (executado) e o valor da obrigação.
O que foi pensado, conforme demonstrado pela exposição de motivos da
normativa aqui analisada, para estimular o acesso ao bem imóvel de moradia para o
adquirente de baixa renda, acabou sendo repassado para qualquer aquisição de bem
que se processe pela via da alienação fiduciária em garantia.
A AED permite que se identifique a necessidade de modificação de
normativas, como a ora analisada, seja porque a jurisprudência firmada não resolve o
impasse produzido pela generalização do sistema protetivo, seja porque há
consequências indesejáveis que decorrem inevitavelmente da generalização do
benefício. Os efeitos estão consubstanciados na potencialidade de redução de oferta
de financiamento pela via da alienação fiduciária justamente para os adquirentes de
baixa renda, seja pela projeção das potenciais perdas do fiduciante na oferta de
financiamento para outras faixas de adquirentes, mediante aumento dos juros.
As normas, instituições formais, são modelos de comportamento
estabelecidos e dotados de força coercitiva que encontram a sua razão de ser na sua
vocação à produção de resultados economicamente e socialmente eficientes.
Quando o conteúdo normativo produz efeitos indesejáveis, o que pode ocorrer
em decorrência das normas estarem relacionadas a comportamentos, e esses não

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serem necessariamente aqueles esperados pelo legislador – pela carência de
informação do agente ou por deliberada atuação oportunista- ocorre um afastamento
entre a pretensão e o resultado. O afastamento pode ser resultado também da
modificação do contexto social que emoldurou a construção normativa e aquele do
momento de sua aplicação.
Desta forma, o legislador brasileiro já identificou a necessidade de alteração
da normativa aplicável à alienação fiduciária em garantia na aquisição de bens
imóveis. Sem embargo, é preciso implementá-la, de forma a delimitar o tratamento
excepcional que hoje permite, de forma generalizada, a impossibilidade de o fiduciário
buscar o pleno ressarcimento pelo valor inadimplido pelo fiduciante.
A efetiva alteração da norma analisada é medida necessária para a correção
do atual sistema de forma a superar-se a inadequação do regime vigente.

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(DOI): 10.5902/1981369424912

O DEVER DE LEALDADE E OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM


SOCIEDADES

ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES


ILAN GOLDBERG

O DEVER DE LEALDADE E OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM


SOCIEDADES

THE DUTY OF LOYALTY AND ABUSES OF PARTNER RIGHTS IN COMPANIES

EL DEBER DE LEALTAD Y LOS ABUSOS DEL DERECHO DE SOCIO EN


SOCIEDADES

ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES


Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UERJ na linha de
pesquisa Empresa e Atividades Econômicas. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
http://lattes.cnpq.br/4600525837414056 / http://orcid.org/0000-0002-4623-2953 / asaa@uol.com.br

ILAN GOLDBERG
Doutorando em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor dos Cursos de Pós-
Graduação lato sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro). Professor Substituto da Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
http://lattes.cnpq.br/4199535337003697 / http://orcid.org/0000-0003-1720-9954 / Ilan@cgvf.com.br

RESUMO
O presente artigo tem por finalidade analisar a constituição do contrato de sociedade com ênfase na importância do
dever societário de lealdade. Nesse viés, foram realizadas considerações acerca da função social e do interesse da
sociedade. Mais especificamente, discorre a respeito dos abusos praticados pelos sócios tanto da perspectiva da
minoria, quanto da perspectiva da maioria. Examinam-se determinadas consequências que atingem o próprio mercado
como vítima de condutas abusivas. A partir do emprego do método dedutivo e pesquisa bibliográfica, concluiu-se que
a disciplina dos abusos por parte de sócios em sociedades deve, necessariamente, remeter à função social do
contrato. Por ter o contrato de sociedade função social, quaisquer condutas tomadas pelos administradores devem se
pautar no dever de lealdade, estejam eles na condição de representantes dos sócios majoritários ou minoritários. Caso
inobservado o dever de lealdade, estará caracterizada a conduta abusiva dos administradores.

Palavras-chave: Abuso do direito; dever de lealdade; sociedade.

ABSTRACT
The present article aims to analyze the conception of the company’s contract, emphasizing the importance of the
duty of loyalty. In this sense, there are considerations about social function and about corporate interest. Moreover,
specifically about the abuses practiced by partners in the perspective of the minority, as well as in the perspective of
the majority. The article also looks to consequences that affect the own market as a victim of such abusive conducts.
Through the use of the deductive method and literature research, it concluded that the discipline of abuses by
partners in companies must necessarily refer to the social function of contracts. For having the contract a social
function, any steps taken by the administrators must be based on the duty of loyalty, whether they act as
representatives of the majority or minority partners. If the duty of loyalty is unobserved, the abusive conduct of the
administrators will be characterized.

Keywords: Abuse of rights; duty of loyalty; company.

Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM www.ufsm.br/revistadireito v. 12, n. 2 / 2017 p.472-496


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ISSN 1981-3694
(DOI): 10.5902/1981369424912

O DEVER DE LEALDADE E OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM


SOCIEDADES

ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES


ILAN GOLDBERG

RESUMEN
El presente artículo tiene por objeto analizar la constitución del contrato de sociedad con énfasis en la importancia
del deber societario de lealtad. En ese sesgo, se realizaron consideraciones sobre la función social y el interés de la
sociedad. Más específicamente, discurre acerca de los abusos practicados por los socios tanto desde la perspectiva de
la minoría, como desde la perspectiva de la mayoría. Se examinan determinadas consecuencias que afectan al propio
mercado como víctima de conductas abusivas. A partir del empleo del método deductivo e investigación bibliográfica,
se concluyó que la disciplina de los abusos por parte de socios en sociedades debe, necesariamente, remitir a la
función social del contrato. Por tener el contrato de sociedad función social, cualquier conducta tomada por los
administradores debe guiarse en el deber de lealtad, estén ellos en la condición de representantes de los socios
mayoritarios o minoritarios. En caso de inobservado el deber de lealtad, se caracterizará la conducta abusiva de los
administradores.

Palabras clave: Abuso del derecho; Deber de lealtad; Sociedad.

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1 O CONTRATO DE SOCIEDADE, A PESSOA DO SÓCIO E OS INTERESSES ENVOLVIDOS; 1.1 O
dever societário de lealdade; 1.2 Função e interesse da sociedade; 1.2.1 A função social da
sociedade; 1.2.2 O interesse da sociedade; 2 OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM SOCIEDADES; 2.1
Condutas abusivas da maioria; 2.2 Condutas abusivas da minoria; 2.3 Direito concorrencial – o
mercado como vítima; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

A reunião de pessoas em sociedade é prática antiquíssima e pode ser observada em


momentos diversos na história da humanidade. Muito antes de se cogitar a respeito da
constituição de sociedades formais, o homem sempre teve imbuído em seu espírito a noção de
que a consecução de tarefas consideradas difíceis seria menos árdua apenas se concebida
coletivamente.
Dentre as várias formas associativas, personificadas ou não, este trabalho centra seu
escopo na sociedade personificada, notadamente do tipo anônima. Em que pese a essência do
esforço comum para a realização da atividade econômica, frequentemente se verifica a prática
de atos abusivos por parte de sócios, controladores ou não. Nestes casos, o dever societário de
lealdade está sendo descumprido, com potenciais e reais prejuízos à pessoa jurídica, aos sócios
e a terceiros (empregados, fornecedores, credores, sociedade civil, entre outros). Na seara
contratual a atuação do sócio fulmina o princípio da função social do contrato e outros que lhe
são associados como a boa-fé objetiva, a eticidade e a probidade.
No que tange à pessoa jurídica, com relevo para as grandes corporações, a violação a
deveres legais ou estatutários pelos sócios e administradores pode gerar consequências
previsíveis e imprevisíveis, que transcendem os limites da atuação da sociedade, envolvendo

Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM www.ufsm.br/revistadireito v. 12, n. 2 / 2017 p.472-496


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O DEVER DE LEALDADE E OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM


SOCIEDADES

ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES


ILAN GOLDBERG

uma rede de colaboradores e, em casos extremos, a economia e o desenvolvimento de uma


região ou de um país, dependendo das proporções do dano.
O objetivo central do presente artigo é a investigação sobre a prática de abusos por
parte do sócio e suas consequências no âmbito da sociedade e de terceiros. Para tanto, utiliza-se
o método dedutivo, partindo da compreensão da regra geral do dever de lealdade inserido na
função e interesse da sociedade, para então perscrutar casos específicos relacionados ao abuso
do direito de sócio. A pesquisa realizada é do tipo bibliográfica.
O trabalho foi estruturado em duas partes. Na primeira, será exposto o contrato de
sociedade com ênfase na pessoa do sócio e dos interesses que gravitam em torno da pessoa
jurídica, como dos fornecedores e empregados, por exemplo. Também nessa parte do trabalho
serão analisados o dever societário de lealdade, a função e o interesse da sociedade e os abusos
dos sócios em sociedades. Na segunda e última parte, âmago do artigo, enfrenta-se a questão
dos abusos do direito de sócio, apresentando casos relacionados ao poder de controle, abuso por
parte da maioria e minoria acionária e reflexos do abuso no direito concorrencial.

1 O CONTRATO DE SOCIEDADE, A PESSOA DO SÓCIO E OS INTERESSES


ENVOLVIDOS

Absolutamente diversas podem ser as motivações que conduzem pessoas à constituição


de sociedades ou, conforme expresso no Código Civil brasileiro em seu art. 981, à celebração de
contratos de sociedade, com a condição óbvia de que o objeto perseguido seja lícito (art. 104,
CC). Da definição prevista no art. 981, lê-se “celebram contrato de sociedade as pessoas que
reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade
econômica e a partilha, entre si, dos resultados”1.
Dependendo da complexidade da atividade econômica a ser realizada e seus custos, a
pessoa que pretenda empreender terá dificuldades para alcançar seu desiderato sozinha2. Com
isso, uma solução possível para perseguir na pretensão é a busca de parceiros que queiram

1
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 18 jul. 2017.
2
Fica ressalvada a possibilidade de constituição de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada
(EIRELI) nos termos do art. 980-A do Código Civil, que se caracteriza pela unipessoalidade permanente.

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constituir sociedade, com o propósito de arregimentar maiores recursos financeiros, melhorar a


organização, obter benefícios tributários, entre outros3.
Da redação do disposto no art. 981, verifica-se menção a pessoas que, reciprocamente,
se obrigam a contribuir, tendo como finalidade determinada atividade econômica e a posterior
partilha dos resultados, qual seja, lucros e perdas. A reflexão a respeito da reciprocidade a que
o Código se refere conduz a uma comunhão de interesses comuns e, no seio das sociedades cum
intuitu personae, via de regra de menor porte em relação às grandes sociedades, uma boa dose
de afinidade entre os sócios é altamente recomendável. Difícil imaginar o início de uma pequena
sociedade na qual seus dois sócios hipotéticos se detestem4.
Passando-se a observar as chamadas sociedades de capital, as características pessoais
de cada acionista cedem espaço para o capital empregado na atividade social. Assim, enquanto
que nas sociedades de pessoas privilegiam-se aspectos como competência, dedicação e
eficiência dos sócios, nas de capital concentra-se o foco justamente no investimento realizado,
geralmente disperso numa grande quantidade de acionistas5. Sob a perspectiva da comunhão de

3
Não é demasiado lembrar que determinadas atividades econômicas, por sua relevância e interesse
público envolvidos no exercício da empresa, exigem sejam observadas certas formas típicas de sociedades
como, por exemplo, as sociedades anônimas para bancos múltiplos (Resolução CMN nº 2.099, de 1994) e
também para operações de seguros privados (Decreto-Lei nº 73/66, art. 24).
4
O Superior Tribunal de Justiça apreciou hipótese na qual numa sociedade de pessoas, determinado sócio
pretendia valer-se de provimento jurisdicional para, forçosamente, ingressar no quadro de sócios. A Corte,
mencionando a necessidade da affectio societatis, reputou incabível a pretensão do sócio demandante:
“Recurso especial. Ação de rescisão de contrato cumulada com perdas e danos. Extensão da obrigação.
Interpretação de cláusulas contratuais. Reexame de provas. Súmulas 5 e 7/STJ. Affectio societatis.
Ruptura. Inexequibilidade do contrato social. Obrigação de fazer. Ingresso em sociedade limitada.
Determinação judicial. Não cabimento. [...] 3. Em contrato preliminar destinado a ingresso em quadro de
sociedade limitada, a discussão passa pela affectio societatis, que constitui elemento subjetivo
característico e impulsionador da sociedade, relacionado à convergência de interesses de seus sócios para
alcançar o objeto definido no contrato social. A ausência desse requisito pode tornar inexequível o fim
social. Inteligência dos arts. 1.399, inciso III, do Código Civil de 1916 ou 1.034, inciso II, do Código Civil de
2002, conforme o caso. 4. Apresenta-se incabível provimento jurisdicional específico que determine o
ingresso compulsório de sócio quando ausente a affectio societatis, motivo pelo qual se impõe a reforma
do acórdão recorrido para decretar a resolução do contrato, a fim de que se resolva a questão em perdas
e danos. [...].” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1192726/SC. Francisco
Francovig e outros; Santa Terezinha Transportes e Turismo Ltda. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.
20 de março de 2015. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1390551&nu
m_registro=201000836598&data=20150320&formato=PDF. Acesso em: 19 jul. 2017.)
5
O Superior Tribunal de Justiça fez exatamente esta distinção entre sociedades de pessoas versus
sociedades de capital. Cita-se o trecho da ementa do acórdão mais relevante para a exposição “[...] 6. A
pretensão deduzida no recurso negligencia uma diferença marcante entre as sociedades anônimas
(geralmente de capital) e as sociedades limitadas (geralmente de pessoas, nas quais predomina a affectio
societatis): nas sociedades anônimas, a lei dificulta o reembolso das ações ao acionista dissidente,
incentivando a alienação das ações para que terceiros ingressem em seus quadros; em contraste, nas

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interesses derivada da reciprocidade, a sociedade de pessoas permite um olhar mais claro, haja
vista que seus sócios, no cotidiano, muito provavelmente estarão até mesmo trabalhando juntos,
de maneira que eventuais condutas contrárias aos interesses comuns serão facilmente
perceptíveis e, conforme forem, ajustáveis.
A questão torna-se mais instigante ao examinar a multiplicidade de interesses que
habitam todos e cada um dos acionistas de uma grande sociedade de capital. Nesse sentido,
basta pensar que, em não raras ocasiões, estarão convivendo as mais diversas espécies de sócios,
quais sejam, aqueles que têm poder de voto (titulares das ações ordinárias), os que não o têm
(ações preferenciais), acionistas que, concomitantemente, ostentem a figura de controladores
da companhia, na qualidade de administradores/diretores, meros investidores que,
simplesmente, aplicam seus recursos no mercado de bolsa de valores com o único propósito de
auferir dividendos pagos pela companhia, entre outros.
Embora num plano diferente dos acionistas propriamente ditos, convém ressaltar que
também estarão convivendo com a companhia e seus acionistas os empregados, credores,
associações de classe e, a depender do tipo de atividade empresarial desempenhada, as mais
diversas instituições públicas e privadas, como agências reguladoras, Ministério Público, órgãos
de proteção ao meio ambiente e aos consumidores. Exsurge, portanto, a necessidade de que
seja buscado um equilíbrio bastante sensível entre todos esses personagens.
A reciprocidade interpessoal, característica do contrato plurilateral, traz em si valores
como afinidade, senso de comunhão e harmonia, o que remete à affectio societatis6. Esse liame
entre sócios relaciona-se ao dever de lealdade deles em relação à sociedade. Tal dever, previsto

sociedades limitadas, a lógica é inversa, pois a lei tem predileção pela dissolução parcial - com apuração
dos haveres - e dificulta o ingresso de terceiros nos quadros societários, haja vista que sua essência reside
exatamente no vínculo pessoal entre os consorciados.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso
Especial 1179342/GO. Cilene Maria Elias Metran e Goiás Refrigerantes S/A. Relator: Min. Luis Felipe
Salomão. 01 de agosto de 2014. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1325480&nu
m_registro=201000260074&data=20140801&formato=PDF. Acesso em: 19 jul. 2017.)
6
Destacando a importância dessas características nas sociedades de pessoas, Marcelo Marco Bertoldi e
Marcia Carla Pereira Ribeiro afirmam: “[...] No entanto, foi na pujança mercantilista da Idade Média,
especialmente nas cidades italianas, que surgiu o modelo mais próximo do que hoje se entende por
sociedade empresária, desenvolvendo-se a ideia de separação dos patrimônios dos sócios em relação ao
patrimônio da sociedade. Nessa época, as sociedades eram eminentemente intuitu personae, ou seja, o
que aproximava os sócios eram suas características pessoais e seus objetivos em comum. É o que se
denomina de affectio societatis, característica existente até os dias de hoje nas chamadas sociedades de
pessoas.” (BERTOLDI, Marcelo M; RIBEIRO, Marcia Carla P. Curso avançado de direito comercial. 5. ed.
São Paulo: RT, 2009. p. 145)

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no art. 155 da Lei nº 6.404/76, também emana da cláusula geral da boa-fé objetiva de que trata
o art. 422 do Código Civil.

1.1 O dever societário de lealdade

Marcelo Vieira von Adamek refere-se à tríplice função do dever de lealdade nas
sociedades: atuar como cânone hermenêutico e integrativo, como limite ao exercício de
posições jurídicas subjetivas e como fonte de deveres anexos de conduta:

O dever de lealdade aplica-se a todos os sujeitos da relação societária, na sua


interação com a sociedade e com os sócios entre si. O controlador, pelo poder
que tem de definir os rumos da sociedade, de decidir vinculantemente também
para a minoria e, com isso, indiretamente dispor de patrimônio alheio, responde
por deveres mais intensos de lealdade. No entanto, também a minoria pode, no
exercício das suas posições jurídicas subjetivas, influir na esfera alheia,
sobretudo quando dispõe do poder de bloquear determinadas deliberações
societárias, e, por isso, também responde por deveres de lealdade. Em cada
caso, porém a intensidade desses deveres depende da concreta situação jurídica
do sócio e, para isso, têm influência a participação detida, os poderes de que é
titular (se tem ou não certos direitos de minoria, de administração ou direitos
especiais) e a estrutura real da sociedade – embora, em qualquer caso, até
mesmo em autênticas sociedades de capitais haja deveres de lealdade entre os
sócios. Tais deveres impregnam, outrossim, toda a relação societária e perduram
não só durante o ciclo normal de execução do contrato, mas antes e depois dele,
nas fases pré e pós contratual.
Tal qual a boa-fé objetiva, da qual se despregou, o dever societário de lealdade
é uma cláusula geral e, portanto, carece de mediação concretizadora; além
disso, exerce a tríplice função de atuar como cânone hermenêutico e integrativo,
limite ao exercício de posições jurídicas subjetivas e fontes de deveres anexos de
conduta.7

Observando a temática proposta acima pelo autor, o dever de lealdade – calcado na


boa-fé objetiva – opera como uma espécie de eixo principal, do qual devem derivar todas as
condutas realizadas pelos sócios. Não se espera dos mesmos “sentimentos puros da alma” –
amor, compaixão ou caridade; não obstante, de modo pragmático, o dever de lealdade se traduz
numa conduta que, se descumprida, pode ensejar diversos abusos tanto por parte da minoria
quanto por parte da maioria.
O dever de lealdade desdobra-se em comportamentos positivos e negativos que
efetivamente põem-se em relevo. Não basta, por exemplo, exercer o direito de voto em
conformidade com o interesse social (comportamento positivo); cumpre, também, deixar de se

7
ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 63-
64.

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abster de votar quando colocado em xeque o interesse social, o que a doutrina chama de
absenteísmo8. Que se tenha o dever societário de lealdade em mente de maneira permanente,
funcionando como um verdadeiro norte a ser observado por todos os sócios no seio da vida
social, independentemente da classe ou espécie de suas ações ou quotas.
Na medida em que os estudos de direito societário se aprofundam, mais e mais o dever
de lealdade se faz presente, trespassando desde as questões mais triviais até as mais complexas.
Seja no ato de constituir uma sociedade, propor aumento do capital social, abrir o capital em
bolsa, prestar informações ao mercado, nas tomadas de controle, exercício do direito de voto
(viés positivo) ou abster-se de votar (viés negativo), entre tantas outras possibilidades, o dever
estará presente, espraiando-se valorosamente em diversos institutos do direito societário.
Arnoldo Wald, discorrendo a respeito da governança corporativa, tece considerações
interessantes quanto ao chamado fim do “absolutismo na sociedade anônima”, exatamente
porque a companhia deixa de ser propriedade de seus controladores ou da maioria. Segundo o
autor, o dever de lealdade deve ser a tônica, a verdadeira guia para o comportamento salutar de
todos os acionistas, não importando a quantidade, espécie e classe de ações que titularizem:

[...] De qualquer modo, a instauração do Estado de Direito e o fim do


absolutismo na sociedade anônima significam que ela deixou de ser propriedade
individual e exclusiva do acionista controlador, para dar origem a uma parceria,

8
“[...] A dispersão acionária pelo grande público, que é característica das sociedades anônimas abertas,
originou, contudo, o absenteísmo acionário, que é o marcante desinteresse da maior parte dos
proprietários de ações em participar das assembleias gerais e tentar influir na gestão da companhia. O
absenteísmo torna inoperantes os direitos assegurados às minorias qualificadas, na medida em que estas
não conseguem alcançar o quórum mínimo exigido pela lei. O absenteísmo tem como uma das causas o
fato de a aquisição de ações se dar por diferentes motivos. Essa constatação levou a que se classificassem
os acionistas quanto aos interesses que os impulsionavam à aquisição de ações, dividindo-os em:
empresários, especuladores e rendeiros. É forçoso afirmar, ainda, que, quanto maior a dispersão, maior o
número de pessoas que buscam, no mercado de ações, apenas uma fonte de rendimentos, seja na forma
de dividendos, seja mediante as valorizações dos títulos (rendeiros e especuladores, respectivamente). O
absenteísmo influenciou, sob dois aspectos distintos, o estudo das minorias societárias. Em primeiro lugar,
constatou-se que o controle, em razão desse elevado desinteresse, poderia ser mantido com uma ínfima
participação no capital da sociedade. Assim, passou-se a tratar a questão das minorias, e de sua tutela,
em função da oposição entre a maioria de acionistas não organizados e a minoria que os controla. O
absenteísmo pôs à lume, ainda, não só a oposição de interesses entre a massa de acionistas e o controle,
mas também entre os próprios grupos de acionistas minoritários. O estudo das minorias, assim, pode se
referir aos grupos de acionistas (acionistas-empresários) atuantes e interessados na administração da
companhia, mas que se encontram alijados do poder em razão de não pertencer ao controle; ou aos
grupos de acionistas formados por pequenos investidores (acionistas especuladores e rendeiros),
detentores, muitas vezes, da maior parte do capital social, mas que, por desinteresse e inaptidão,
encontram-se distantes da gestão social. [...]”. (AGUIAR, Danilo Augusto Barboza de. Proteção dos
acionistas minoritários nas sociedades anônimas abertas como forma de promover o desenvolvimento do
mercado de capitais nacional. Alterações no regime legal das ações preferenciais. In: Revista de Direito
Bancário e do Mercado de Capitais, v. 22, out./dez. 2003. p. 95).

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exigindo, pois, um novo padrão de conduta por parte dos administradores e dos
maiores acionistas. É preciso que todos atuem sempre com boa-fé e lealdade. A
boa-fé deve ser objetiva e não subjetiva, não bastando que a pessoa acredite que
a sua conduta é a mais adequada.
É necessário que a atuação esteja de acordo com os padrões dominantes na
sociedade em determinado momento histórico. A lealdade, por sua vez, não é
tão-somente a ausência de deslealdade, tal como o amor não é tão-somente a
ausência de ódio. Lealdade é uma atitude de diligência no cumprimento das
obrigações contratuais e uma verdadeira affectio contractus.
No fundo, a boa-fé, a lealdade e a probidade, que se exigem do administrador e
do controlador da empresa, correspondem à definição de Treu und Glauben, do
art. 242 do CC alemão, no qual se determina a sinceridade (veracidade) e a boa-
fé dos contratantes tanto no firmamento quanto na execução do contrato.
Constituem, na lição de Ripert, a introdução da regra moral no direito, com o
propósito de atenuar, reforçar ou afinar a norma jurídica para compatibilizá-la
com a ética. [...]9

Pelos ensinamentos do autor é possível perceber que lealdade, sinceridade (veracidade)


e boa-fé, antes, durante e depois de eventualmente dissolvida a sociedade, é o conjunto de
valores que preenchem o padrão de conduta que a vida em sociedade reclama no direito
societário brasileiro. O dever de lealdade decorre do dever de diligência (art. 153 da Lei nº
6.404/76 e art.1.011 do Código Civil) e, ao atuar como administrador da sociedade, o sócio deve
se pautar pelas regras éticas do negócio, abstendo-se de praticar atos ou tomar decisões que não
faria caso estivesse gerindo seus próprios negócios e interesses.
Se o sócio administrador for responsabilizado civilmente por ato ilícito praticado em
detrimento da companhia, mas ficar comprovado que não se afastou do dever de lealdade, o juiz
poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade, se convencido de que ele agiu de boa-fé e
visando ao interesse da companhia (art. 159, § 6º, Lei nº 6.404/76). Tal disposição legal é fruto
da Common Law, estando embasada na “regra de julgamento do negócio” (business judgment
rule)10. Trata-se de uma forma de proteção para o administrador da companhia admitida pelos
Tribunais dos países de tradição anglo-saxã.
O cotidiano de uma grande sociedade de capitais é marcado pela necessidade constante
de tomada de decisões sérias, impactantes do ponto de vista financeiro e social, de maneira que
se exige de seus administradores agilidade, informação adequada para decidir, respeito aos

9
WALD, Arnoldo. O governo das empresas. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 5, n.
15, jan./mar. 2002. p. 53.
10
“[…] a regra do business judgment rule busca evitar que pessoas capazes fiquem com receio de
administrar uma companhia, sabendo que poderão colocar em risco ou até perder todo seu patrimônio
pessoal quando assumirem qualquer risco, mesmo que inerente à atividade da companhia. A regra tem por
finalidade estabelecer parâmetros para evitar a responsabilização do administrador que agiu de boa-fé e
nos interesses da companhia.” (SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade Civil dos Administradores de
S/A: business judgment rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 142)

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contratos e, por que não dizer, certa dose de ousadia em determinadas situações. Considerando
o preenchimento desses requisitos, a business judgment rule protege o bom gestor da empresa,
evitando que se possa cogitar de sua responsabilidade pessoal caso alguma decisão venha a
causar prejuízos11.
A boa-fé objetiva e o dever societário de lealdade afiguram-se importantíssimos e,
direta ou indiretamente, estarão presentes na ratio de todos os exemplos práticos de abusos,
seja por parte da maioria ou minoria que titulariza as frações do capital com direito a voto.

1.2 Função e interesse da sociedade

A positivação das cláusulas gerais de boa-fé objetiva (art. 422) e da função social do
contrato (art. 421) representou uma real mudança de perspectiva no ordenamento jurídico
brasileiro, comparativamente àquela que caracterizou o Código Civil de 1916. O atual Código
Civil, definitivamente, refletiu uma mudança na forma de experimentar e viver o direito. Foi
mitigada a autonomia privada da vontade exacerbada e de forte influência do Código Civil
francês, do pacta sunt servanda elevado à sua mais alta potência, valendo a máxima segundo a
qual “o contrato fazia lei entre as partes” e que ao juiz, na qualidade de “boca da lei”, caberia
apenas buscar no Código a solução para todos os problemas existentes.
Atentando especificamente à função social do contrato, o entendimento pretérito, que
o enxergava como um instituto pronto e acabado em si mesmo e de aplicação restrita às partes,
cedeu espaço para uma proposta mais abrangente, preenchida pela valoração principiológica da
Constituição Federal, tanto os princípios fundantes da República (art. 3º) quanto os relacionados
à Ordem Econômica (art. 170). Esta transformação também atingiu o contrato de sociedade,
como se examinará no item 1.2.1.
Na Exposição de Motivos do anteprojeto de Código Civil, Miguel Reale realça que um dos
aspectos fundamentais do Livro consagrado ao Direito das Obrigações é
“Tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a
liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato,

11
Cf. WARDE JÚNIOR, Walfrido Jorge; CASTRO, Rodrigo Rocha Monteiro de. Poderes de controle no âmbito
da companhia. In: CASTRO, Rodrigo Rocha Monteiro (Coord.). Direito Empresarial e outros estudos em
homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 510.

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implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade”12, bem como da eticidade,


socialidade e solidariedade. Tais valores foram consagrados nos arts. 421 e 422 do Código Civil.
A conjugação do art. 421 com o art. 2.035 do Código Civil revela que todo contrato,
inclusive o de sociedade, na qualidade de negócio jurídico inserido dentro de um sistema, jamais
poderia contrariar a sua função social e a ordem pública. O contrato não mais se encerraria em
si mesmo, de maneira por assim dizer egoísta, passando a carregar uma densidade axiológica
maior e mais profunda, o que também teve repercussão sobre a função social da sociedade. O
comentário de Emílio Betti é preciso nessa direção: “O direito [...] não dá o seu apoio ao
capricho e ao arbítrio individual, mas a funções práticas que tenham uma relevância e uma
utilidade social, e que, por isso mesmo, mereçam ser estavelmente organizadas”13.
Enzo Roppo, ao estudar o contrato e a propriedade, comenta a respeito de uma
característica estática da propriedade, ao passo que o contrato, em sentido oposto, seria
dinâmico. Ao distinguir os dois institutos, o autor inicia afirmando que nas sociedades do
capitalismo nascente a propriedade era enxergada quase como um dogma,

[...] a verdadeira e única fonte de produção e fruição das utilidades económicas,


enquanto ao contrato se assinalava o papel – complementar – de simples meio
para a sua circulação, para a transferência daquele senhorio de um sujeito para
outro: a única e verdadeira riqueza económica era representada pela
propriedade; o contrato não criava riqueza, antes se limitava a transferi-la14.

Em abono a essa doutrina percebe-se que com a chegada da industrialização, das novas
tecnologias e do desenvolvimento, houve uma notável mudança nessa relação ‘protagonista
versus coadjuvante’, na exata medida em que o contrato, de mero agente responsável pela
transferência da propriedade, passou a ser o real responsável por sua criação. Enzo Roppo
comenta a importância do contrato vis-à-vis a propriedade:

Mas já nesta perspectiva deveria reconhecer-se que, permanecendo embora


firmes a posição e o papel proeminentes da propriedade no sistema económico
(para o que ocorreu uma profunda revisão do conceito de propriedade), a relação
entre propriedade e contrato resulta, em qualquer caso, transformada em
profundidade: porque agora o contrato não se limitaria a transferir a
propriedade, mas até mesmo a criaria. Mas em rigor não parece necessário nem

12
REALE, Miguel. Novo código civil: exposição de motivos e texto sancionado. 2. ed. Brasília: Senado
Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005. Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/70319. Acesso em: 12 ago. 2016.
13
BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Tomo I. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama.
Campinas: LZN, 2003. p. 150.
14
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009.
p. 63-64.

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oportuno recorrer a um tal artifício lógico: parece mais razoável considerar que,
em todos esses casos, existe riqueza (“imaterial”, mas nem por isso menos
relevante) que não se concretiza na forma tradicional do direito de propriedade,
e que tal riqueza é produzia directamente pelo contrato. Neste sentido, dentro
de um sistema capitalista avançado parece ser o contrato, e já não e
propriedade, o instrumento fundamental de gestão dos recursos e de propulsão
da economia.15

Com base neste tecido teórico, na qualidade de instituto responsável pela criação de
riquezas e sob inspiração da densa carga de princípios constitucionais como a função social da
livre iniciativa e a função social da propriedade, o contrato, no Código de 2002, passou a exercer
uma função distinta e com reflexos diretos na função social da sociedade.

1.2.1 A função social da sociedade

Antes de repercutir nas ciências sociais, o estudo da função social, inicialmente,


concentrou-se no exame da propriedade, destacando-se os posicionamentos de Karl Renner e
Léon Duguit. Sinteticamente, Karl Renner16 observava na função social o retrato da função
econômica do mesmo instituto. Segundo esse posicionamento, até mesmo uma propriedade
improdutiva atenderia a uma função social, já que a função econômica existe tanto em
propriedades produtivas quanto nas improdutivas. No polo oposto, Léon Duguit17 preconizava o
abandono da característica meramente individualista ligada à vontade humana, propondo que a
função social tivesse um escopo promocional, sucedendo-se o embate entre as duas posições.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, apoiado em Fábio Konder Comparato, chama a
atenção para uma característica própria da função social nos tempos hodiernos, que lhe outorga
um direito subjetivo e um dever jurídico:

Se analisarmos mais de perto esse conceito abstrato de função, em suas múltiplas


espécies, veremos que o escopo perseguido pelo agente é sempre o interesse
alheio, e não o próprio do titular do poder. O desenvolvimento da atividade é,
portanto, um dever, mais exatamente, um poder-dever; e isto, não no sentido
negativo, de respeito a certos limites estabelecidos em lei para o exercício da
atividade, mas na acepção positiva, de algo que deve ser feito ou cumprido 18.

15
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009.
p. 66.
16
RENNER, Karl. The Institutions of Private Law and their Social Functions. New Brunswick (U.S.):
Transaction Publishers, 2010. p. 195.
17
DUGUIT, Léon. Las transformaciones del Derecho Publico y Privado. Buenos Aires: Heliasta S.R.L.,
1975. p. 290.
18
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno Paiva. Função social da empresa. In: Revista
dos Tribunais, v. 96, n. 857, mar. 2007, p. 11.

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O “poder-dever” enunciado por Fábio Konder Comparato vai justamente ao encontro da


forma por meio da qual a função social da sociedade deve operar no ordenamento jurídico
brasileiro. A Constituição da República, em seu art. 170, como eixo centralizador de todo o
sistema, traz em si os chamados princípios de integração, traduzidos na defesa do consumidor,
do meio ambiente, busca de pleno emprego e redução de desigualdades sociais19.
Nesse sentido, a sociedade, além de buscar o lucro a ser distribuído entre os seus
acionistas, deverá concomitantemente ocupar-se dos referidos princípios, deixando de lado o
posicionamento pretérito que encerrava na órbita societária endógena um fim em si mesmo20.
Exatamente nesse sentido é o comentário de Arnoldo Wald que, cotejando passado e presente,
afirma:

Do ponto de vista técnico, podemos dizer que o conjunto de medidas que


assegura o funcionamento eficiente, rentável e equitativo das empresas deve
assegurar a prevalência do interesse social sobre os eventuais interesses
particulares dos acionistas, sejam eles controladores, representantes da maioria
ou da minoria. Trata-se, portanto, da criação do Estado de Direito dentro da
sociedade anônima, em oposição ao regime anterior de onipotência e de poder
absoluto e discricionário do controlador ou grupo de controle. Cria-se, dessa
forma, um sistema de equilíbrio e separação dos poderes para substituir a
vontade do príncipe que tinha, no passado, força de lei.21

Cumpre distinguir a função da responsabilidade social da sociedade. No século XXI,


diante da flagrante ineficiência do Estado, o empresariado privado acabou avocando para si mais
e mais atribuições que, ao menos legalmente, não lhe seriam imputáveis. Ao caminhar pelas
ruas, avenidas e parques de grandes metrópoles mundo afora, quantos exemplos de altruísmo

19
COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 85,
n. 732, out. 1996. p. 41.
20
Nesse sentido, cabe mencionar o Enunciado 2.14, proposto na II Jornada de Direito Comercial:
“Proposição 2.14. Resumo das proposições: a) a função social da empresa e os princípios previstos no
artigo 170 da Constituição Federal devem nortear a determinação do interesse da companhia. Portanto, o
interesse da companhia deve incluir, razoável e proporcionalmente, o interesse de todos os acionistas, dos
empregados, dos credores, dos consumidores e da sociedade, bem como a defesa do meio ambiente. b) Do
princípio da função social da empresa decorre um complexo de deveres e obrigações, positivas e
negativas, impostas aos controladores e administradores, perante os sócios minoritários, empregados,
fornecedores, consumidores, meio-ambiente, Estado, e toda a comunidade que com ela interage, cujos
interesses devem ser compatibilizados com a busca do lucro. c) Na interpretação das normas relativas às
empresas [sic] que desenvolvam atividades consideradas socialmente relevantes, deve-se levar em
consideração a sua função social e a sua natureza institucional, da qual decorrem deveres e
responsabilidades para com a comunidade em que vivem.”
21
WALD, Arnoldo. O governo das empresas. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 5,
n. 15, jan./mar. 2002. p. 2.

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empresarial não podem ser identificados? Canteiros, avenidas, mobiliários urbanos, parques,
etc., são “adotados” pela iniciativa privada, gerando benefícios para toda a comunidade.
Investimentos com recursos privados são cada vez mais realizados em searas que, até
bem pouco tempo atrás, eram realizados exclusivamente pelo Estado. Segurança pública,
saneamento, educação, esporte e cultura, apenas para exemplificar alguns, foram objeto de
iniciativas empreendidas por particulares, o que se convencionou chamar de responsabilidade
social das sociedades ou, também, de “empresa-cidadã”.
Percebe-se que o principal traço distintivo entre a função social da sociedade e sua
responsabilidade social consiste na sua qualificação: a responsabilidade social é mera faculdade
da pessoa jurídica tomar medidas de cunho assistencial e promocional; por outro lado, a função
social da sociedade decorre de valorosa carga axiológica que emana da Constituição Federal,
notadamente o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV). Portanto, cumprirá aos sócios
controladores o “poder-dever” de observá-la, dirigindo o cotidiano dos seus negócios, valorando
a defesa do meio ambiente, dos consumidores, reduzindo as desigualdades sociais e buscando o
pleno emprego, etc. As sociedades do século XXI devem procurar, além de distribuir dividendos
aos seus acionistas, zelar e, com razoabilidade e proporcionalidade, promover o
desenvolvimento na comunidade em que estiverem inseridas.

1.2.2 O interesse da sociedade

De maneira sutilmente diferente daquela empregada no art. 981 do CC, a Lei nº


6.404/76 (Lei das S.A.) alude, frequentemente, à noção de interesse. Considerando os múltiplos
personagens acima referidos, qual seria o interesse tutelado pela lei acionária? Qual seria o
interesse perseguido por uma sociedade anônima?
Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, em sua tese de doutorado cuja temática
está voltada aos conflitos de interesses nas assembleias gerais de S.A., discorre a respeito do
que caracteriza o interesse. Em primeiro lugar, o autor explica:

Por interesse pode-se entender a relação existente entre um sujeito, que possui
uma necessidade, e o bem apto a satisfazê-la, determinada na previsão geral e
abstrata de uma norma. Para satisfação das suas necessidades, o homem vale-se
de bens. Entre o sujeito e o bem, portanto, forma-se uma relação que, na
situação jurídica enfocada, toma o nome de interesse.22

22
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. São Paulo:
Malheiros, 1993. p. 13-14.

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À luz dos múltiplos interesses presentes, o autor comenta quais seriam as possíveis
relações existentes entre os interesses, isto é, relevância, indiferença, possivelmente conflito
ou, num viés positivo, solidariedade:

Dada a multiplicidade de interesses que podem competir a um mesmo indivíduo,


é de grande utilidade, para o nosso tema, o estudo das relações entre os
interesses.
Diz-se, assim, primeiramente, que os interesses podem ter uma relação de
relevância ou de indiferença. Há indiferença entre os interesses quando não há
qualquer relação ou interferência entre a satisfação de uma necessidade e a de
uma outra do mesmo indivíduo. Há relevância quanto existe essa relação ou
interferência, que pode ser de solidariedade (ou instrumentalidade) ou de
conflito (ou incompatibilidade).23

Conflito e solidariedade são duas palavras intrinsicamente relacionadas aos abusos


cometidos em sociedades que, naturalmente, remetem ao já comentado dever de lealdade.
A questão do interesse no contexto das sociedades acionárias requer menção ao art. 115
da Lei das S.A. Segundo a norma prevista no caput, caberá ao acionista exercer o seu direito de
voto no interesse da companhia. O parágrafo 3º responsabiliza o acionista que exerça
abusivamente o direito de voto e no parágrafo 4º positivou-se que deliberação tomada em
decorrência de voto de acionista que tenha interesse conflitante com o da companhia é
anulável24. Percebe-se, assim, a importância conferida pela lei ao interesse da companhia, o
que, com efeito, suscita a questão anteriormente proposta quanto à identificação do interesse
da companhia em face da multiplicidade de personagens presentes.
O equilíbrio sensível anteriormente mencionado já foi objeto de comentários da
doutrina comercialista. Alfredo Lamy Filho assim pontuou:

É mister, por isso, buscar a dificílima linha de conciliação entre o interesse da


empresa, cujo êxito deve ser assegurado, do acionista que deve ser protegido
contra a fraude, do gestor que precisa de liberdade para agir, do credor que faz
jus à segurança de seu crédito e do próprio Estado, fiscal do interesse público em
jogo.25

23
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. São Paulo:
Malheiros, 1993. p. 16-17.
24
O Código Civil não trata do abuso no exercício do direito de voto de modo tão específico como a Lei das
S.A., limitando-se a responsabilizar civilmente por perdas e danos o sócio que, tendo em alguma operação
interesse contrário ao da sociedade, participar da deliberação que a aprove graças a seu voto (art. 1.010,
§ 3º).
25
LAMY FILHO, Alfredo. A Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. Revista de Direito Mercantil (RDM),
n. 7, 1972, p. 130.

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Prosseguindo com o raciocínio apresentado por Alfredo Lamy Filho, a linha de


conciliação a ser buscada deve harmonizar os interesses da sociedade, do acionista, do gestor,
do credor e do próprio Estado. A pretendida harmonização passa por uma das mais tormentosas
discussões existentes entre comercialistas mundo afora, entre os chamados contratualistas e os
institucionalistas. Contextualizando a discussão, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França
ensina:

O art. 2.373 do Código Civil Italiano preceitua que o acionista não poderá exercer
o direito de voto nas deliberações em que ele tenha, por contra própria ou de
terceiro um interesse em conflito com o da sociedade. Da mesma forma, o § 1º
do art. 115, da nossa lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404, de 15.12.1976),
determina que o acionista não poderá votar nas deliberações em que ele tenha
interesse conflitante com o da companhia. Em que consiste esse interesse da
sociedade ou da companhia, denominado de interesse social (em contraposição
ao interesse individual do sócio ou acionista)?
Tendo em vista, sobretudo, a problemática trazida pela grande empresa e suas
repercussões sociais, trava-se, desde o início do século, intensa polêmica entre
os juristas sobre o conceito de interesse social. Indaga-se, assim, qual o
significado de tal expressão: cuida-se, meramente, do interesse coletivo dos
sócios? Do interesse da sociedade, como pessoa distinta da dos sócios? Ou
também abrange o interesse da empresa, dos trabalhadores, dos credores e da
própria comunidade e do país? Tal é a polêmica que monopolizou as atenções dos
estudiosos do direito, tendo sido considerada por alguns como o “problema
fundamental” das sociedades por ações. E não sem razão, pois não se trata de
questão estéril, tendo influenciado ao revés, como se verá, legisladores e juízes
na elaboração e aplicação da lei.
As teorias elaboradas em torno do interesse social dividem-se em dois grandes
grupos: as teorias institucionalistas e as contratualistas. Para as primeiras, o
interesse social abrange também interesses diversos dos interesses dos
acionistas26; para as segundas, resume-se ele ao interesse coletivo destes. É o
critério distintivo fundamental proposta por Jaeger.

Os autores contratualistas enxergam o interesse social exclusivamente como o interesse


dos sócios, ao passo que os institucionalistas analisam a questão de maneira mais aberta,
defendendo a existência de um interesse superior àquele detido pelos sócios.
Marcelo Vieira von Adamek expõe, detalhadamente, o embate entre as duas principais
correntes, explicando que o conceito de interesse social no Código Civil teria um viés mais
contratualista, ao passo que a lei acionária brasileira seria de índole institucionalista,
demonstrando quão controvertida é a matéria. Enquanto que no regime do Código Civil (art.
1.010) o voto seria exercido como direito subjetivo, na Lei das S.A. o seria como um

26
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. São Paulo:
Malheiros, 1993. p. 21-22.

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direito/função. A partir dessas tormentas, o autor arremata com clareza formulando as


seguintes observações críticas:

A primeira observação é a de que, se o interesse social em sentido estrito é


definido pelo escopo-meio e pelo escopo-fim – que, genericamente, pode ser
chamado de fim comum (fim social) –, a pedra angular do moderno direito
societário realmente está, como enfatizam os lúcidos juristas alemães (no
subitem 3.3.1, supra), no rico conceito de fim social. Com efeito, se o interesse
social é o interesse comum dos sócios na consecução do fim social, o conflito que
pode se estabelecer não é propriamente o conflito entre o interesse extrassocial
do sócio e o interesse social; é, antes de tudo entre o interesse extrassocial do
sócio e o fim comum. A noção de interesse social, que aparece de entremeio,
perde a sua necessidade e, portanto, parece mais complicar a solução dos
problemas, do que ajudar na sua resolução.
A segunda observação é a de que, rigorosamente, o infindável embate entre
contratualistas e institucionalistas talvez não precisasse se colocar em termos de
conformação do interesse social e, sim, de qualificação da lei. Por essa trilha, a
lei societária é quem teria nuanças institucionalistas, mais ou menos fortes, e
não propriamente o interesse social em sentido estrito. Em qualquer caso, o que
é possível afirmar, sim, é que a lei societária tem, em alguma medida, natureza
institucional, mas o que se nos afigura um equívoco é imaginar que o conceito de
interesse social possa gestar em seu interior interesses outros que não o dos
sócios.
A terceira observação, por fim, é a de que, no regime do Código Civil, o direito
de voto constitui direito subjetivo e, embora lá tenha o legislador tratado do
voto conflitante, não se referiu ao voto abusivo, para cuja caracterização torna-
se necessário recorrer a outros institutos; no regime Lei das S/A, diversamente, o
voto é direito/função [...].
Alguns estudiosos, diante do que ficou exposto, colocam em evidência as
deficiências práticas da noção de interesse social e outros vão além, e advogam
de lege ferenda, o seu abandono e a sua substituição pelos conceitos de fim
comum e dever de lealdade.27

Pela doutrina citada, verifica-se que o interesse da sociedade, seja ela disciplinada pelo
Código Civil ou pela Lei das S.A., deverá ter como norte o dever de lealdade entre os sócios e,
no mesmo sentido, o interesse dos sócios uti socii e não uti singuli.

2 OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM SOCIEDADES

Os abusos em sociedades constituem uma disciplina instigante que remete, de pronto,


ao exercício do poder de controle. Seja no âmbito de uma sociedade de pessoas, seja de uma
grande sociedade de capitais, o apetite por poder, por prestígio e, por que não dizer, vaidade,

27
ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p.
159-160.

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determinam que certas decisões sejam tomadas de maneira egoísta, privilegiando interesses
particulares em detrimento do interesse da sociedade.
Observando a questão sob o ângulo da minoria e da maioria do capital, o presente texto
necessariamente precisaria de maior espaço, o que fugiria ao objetivo inicialmente delineado.
Dessa maneira, em virtude dessas limitações, foram analisados alguns casos cujos detalhes
tocam nos diversos elementos comentados anteriormente.
Inicialmente, o sentido do verbo abusar, consoante o Dicionário Aurélio, auxilia na
compreensão da matéria: “1. Usar ou consumir de forma excessiva, errada ou inconveniente;
[...] 3. Insultar; 4. Agir de forma a servir apenas os próprios interesses, mesmo se prejudicando
outrem.”28
Os abusos praticados nos contratos de sociedade têm afinidade com a conceituação
acima, o que remete, com o propósito de explicar a motivação que está por detrás de tantos
conflitos, a uma citação feita por Marcelo Vieira von Adamek no início de sua obra, altamente
inspiradora para o presente propósito:

Homens adoram poder [...].


Dê todo o poder à maioria, que ela oprimirá a minoria.
Dê todo o poder à minoria, que ela oprimirá a maioria.
Todos, assim, devem ter poder,
a ser usado por ambos para defender-se, reciprocamente. (tradução livre)29

É exatamente como prega o ditado popular: “dê poder ao homem e verás quem ele é”.
No interior das mais diversas coletividades, é comum a ideia do convívio entre maiorias e
minorias e, logicamente, o ideal é que se dê de forma harmoniosa.
No âmbito do contrato de sociedade, embora sejam mais comuns os abusos praticados
pelos sócios titulares de ações ou quotas representativas da maioria do capital, via de regra mais
forte, numerosa e poderosa, há também situações nas quais essa lógica se inverte e a minoria,
de frequentemente oprimida, passa à condição de opressora, causando inúmeros problemas ao
bom funcionamento da sociedade.
É preciso entender, inicialmente, que nessa análise maioria versus minoria o critério
quantitativo (número de cabeças) nem sempre será decisivo. Entenda-se bem: uma minoria

28
Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/abusar. Acesso em: 13 jul. 2016.
29
Men love power […]. Give all power to the many, they will oppress the few. Give all power to the few,
they will oppress the many. Both therefore ought to have power, that each may defend itself against the
other.
HAMILTON, Alexander apud BOWEN, Catherine Drinker. Miracle at Philadelphia: the Story of the
Constitutional Convention May, September 1787. Boston: Back Bay Book, 1986.

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detentora de parcela considerável do capital social de uma dada sociedade pode, efetivamente,
assumir o controle e, assim, dirigi-la. Portanto, aqui se consigna uma importante observação:
atentar tanto para o critério quantitativo, quanto para o qualitativo, examinando o
contrato/estatuto social, com o propósito de se certificar quanto à regra aplicável ao caso
concreto30.
Conforme mencionado, a casuística tratando de abusos praticados pela maioria e pela
minoria é riquíssima. Para facilitar a compreensão do leitor, a exposição versará, em primeiro
lugar, sobre os abusos praticados pela maioria societária para, a seguir, tratar dos abusos
praticados pela minoria e, por fim, de certos abusos dos sócios que atinjam o mercado, sob a
perspectiva do direito societário vis-à-vis o direito da concorrência (antitruste).

2.1 Condutas abusivas da maioria

A primeira casuística refere-se a acionistas majoritários e titulares do poder de controle


de certa companhia que deliberaram e aprovaram aumento vultoso do capital social, saltando de
um determinado valor para outro quase três vezes maior, com a singela justificava de que a
companhia estaria experimentando a expansão dos seus negócios, argumento esse que não fora
acompanhado de quaisquer evidências concretas. O referido aumento do capital social implicou
apenas na emissão de ações ordinárias, ao passo que a composição das ações da companhia
encontrava-se dividida entre ordinárias e preferenciais. É relevante também a questão do preço
de emissão das ações que, segundo análise realizada, estaria aquém daquele realmente devido.
A conduta do bloco controlador teve por finalidade enfraquecer e diluir a posição dos
minoritários, caracterizando assim o abuso, em prejuízo ao interesse social (o art. 170, § 1º, da
Lei nº 6.404/76 veda, na fixação do preço de emissão nos aumentos de capital, a diluição

30
Marcelo Vieira von Adamek pontua com propriedade que “Minoria aqui é o não controlador, pouco
importando a proporção e a espécie de sua participação societária. O termo ‘minoria’ assume aqui, pois, a
ideia de não controlador e constitui, precisamente, uma específica situação jurídica subjetiva de sócio
diante da sociedade e dos demais membros. Admite-se, pois, que a minoria (não controladora) possa
episodicamente até ser bastante numerosa e detentora de expressiva participação no capital social (mas
sem direito de voto) e até se contrapor a um controlador minoritário.” (ADAMEK, Marcelo Vieira von.
Abuso de minoria em direito societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 61). No mesmo sentido e de
forma ainda mais enfática, Rubens Requião afirma: “Não nos agrada a expressão ‘minoria’ ou mais
particularmente ‘proteção da minoria’, pois leva a certas ambiguidades e confusões; nem sempre, como
se viu, é a maioria de acionistas que controla a sociedade, podendo perfeitamente esse controle ser
detido pela minoria, capaz, diante da dispersão e do desinteresse dos acionistas-especuladores e
rendeiros, de aglutinar maior número de ações inclusive através de procurações” (REQUIÃO, Rubens.
Curso de Direito Comercial. v. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 144-145)

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injustificada da participação dos antigos acionistas). Faz-se oportuno lembrar do dever de


lealdade entre todos os sócios e da necessidade de gerir a sociedade no interesse comum uti
socii.
Essa hipótese foi objeto de parecer da lavra de Waldírio Bulgarelli que, amparado por
sólidos fundamentos, reputou ilegal a conduta adotada pela maioria controladora. De seu
arrazoado chamam a atenção os seguintes pontos: (i) aumento do capital social desvirtuado de
seu real propósito, isto é, o aumento realizado não geraria reforço ou ampliação do caixa da
sociedade, mas, ao contrário, apenas diminuiria sensivelmente a posição dos minoritários; (ii) os
abusos praticados pela maioria poderiam ser ilegais, ou, o que seria ainda pior, formalmente
legais, porém contrários ao interesse da sociedade. Neste particular, o autor invoca a teoria do
“desvio de poder” do direito administrativo; (iii) o aumento do capital social operou-se apenas
quanto às ações ordinárias, não havendo proporcionalidade no aumento das ações ordinárias e
das preferenciais, com nítidos prejuízos aos sócios minoritários; e (iv) estudos técnicos
realizados demonstraram que o aumento do capital social proposto não trouxe ganhos reais à
companhia, seja em matéria de liquidez ou rentabilidade (lucratividade)31.

2.2 Condutas abusivas da minoria

Sob a perspectiva da “tirania dos fracos”32, Waldírio Bulgarelli, em outro parecer,


comentou a preocupação eminentemente individualista da minoria do capital, com finalidades
obtusas considerando o interesse social. Na hipótese examinada, a minoria envidou ações para
embaraçar a marcha normal dos negócios da sociedade. Entre os fundamentos mencionados pelo
parecerista, chamam a atenção: (i) o abuso do direito e (ii) os princípios da confiança e da boa-
fé que, evidentemente, devem nortear o agir de todos os sócios no seio social,
independentemente do quantum de participação de cada um33.
Retomando a questão sob a perspectiva da minoria que, qualitativamente, assume o

31
BULGARELLI, Waldírio. Sociedades por ações – aumento abuso de capital. Prejuízo dos minoritários e
vantagens indevidas dos majoritários. Diluição injustificada da posição dos antigos acionistas. Abuso do
poder e conflito de interesses. Anulação da deliberação assembelar que aprovou o aumento e reparação
dos danos. Revista dos Tribunais, v. 555, jan. 1982. p. 1039.
32
Expressão utilizada por Marcelo Vieira von Adamek, citando COZIAN, Maurice et al. Droit des sociétés,
n. 382. 20. ed. Paris: Litec, 2007. p. 185. (com a nota: “face à la superbe des forts, il faut compter avec
la tyrannie des faibles”).
33
BULGARELLI, Waldírio. Anulação de assembleia geral de sociedade anônima – assembleias gerais
posteriores – abuso de minoria. Revista dos Tribunais, v. 514, ago. 1978. p. 1073.

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controle da sociedade, o conflito entre os interesses do controlador – uti singuli e os interesses


dos demais sócios (da própria sociedade – uti socii) foi apreciado pelo Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo34, só que num contexto além da discussão societária. No caso concreto,
travou-se um litígio entre Procid Participações e Negócios S.A. e o Banco Santos S.A., no polo
ativo, contra Unibanco AIG Seguros e IRB Brasil Resseguros S.A., no polo passivo, motivado pela
contratação de seguro de responsabilidade civil para diretores e administradores, o conhecido
seguro D&O (Directors & Officers). Tendo como objetivo a transferência do risco que incide
sobre o patrimônio pessoal dos administradores/diretores, este seguro visa, prima facie, a
protegê-los, desde que, naturalmente, sua conduta seja regular.
O Banco Santos S.A., consoante noticiado pela mídia à época, acabou sendo liquidado
(regime de liquidação extrajudicial realizado pelo Banco Central), oportunidade na qual
demandas diversas foram ajuizadas contra a pessoa jurídica e seu acionista controlador.
No âmbito das investigações realizadas, apurou-se a ocorrência de nítido conflito de
interesses entre o acionista controlador e os interesses da sociedade, exatamente como
explicado anteriormente. O conflito deu-se na exata medida em que o acionista controlador,
privilegiando seus próprios e exclusivos interesses, acabou transferindo para seu patrimônio
pessoal parte considerável dos ativos da companhia, deixando-a em situação financeira difícil.
Assim, considerando a intencionalidade da conduta, a seguradora acabou negando a cobertura
pretendida pelo segurado, o que acabou ensejando a prolação do acórdão anteriormente
mencionado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O percuciente voto do relator foi denso, pesquisando em doutrina estrangeira a
fundamentação que o acabou convencendo a prestigiar a negativa praticada pela seguradora,
calcado em diversos fundamentos, dentre os quais convém destacar: (i) a omissão de
informações relevantes no momento pretérito à contratação do seguro e (ii) a não aplicabilidade
da business judgment rule ante o conflito de interesses entre o controlador e a sociedade. A
conduta intencional, no caso concreto do contrato de seguro, gera a sua nulidade e perda do
direito à garantia (art. 762 do Código Civil).
Concluindo o presente tópico, Erasmo Valladão de Azevedo e França, quanto à conduta

34
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível 543.194-4/9-00. Apelantes:
Procid Participações e Negócios S.A. e Banco Santos S.A. Apelados: Unibanco Aig Seguros e Previdência e
IRB Brasil Resseguros S.A. Relator: Desembargador Vito Guglielmi. 11 de dezembro de 2008. Disponível
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do controlador, afirma: “Ora, embora seja controlador, ele não deixa de ser acionista, não
podendo portanto pretender, nessa qualidade, vantagens diversas das que competem, por lei,
aos demais acionistas.”35 Uma vez mais, o dever societário de lealdade está presente como
fundamento, seja para o administrador ou para o controlador como se infere da leitura do art.
116, parágrafo único, da Lei nº 6.404/76: “O acionista controlador [...] tem deveres e
responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com
a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”36.

2.3 Direito concorrencial – o mercado como vítima

Ao demonstrar preocupação com o bom funcionamento do mercado, Fábio Ulhôa Coelho


afirma que “diferentes objetivos reclamam diferentes padrões normativos”37. Na perspectiva do
direito societário, o objetivo encontra-se voltado à proteção dos acionistas minoritários; já na
perspectiva do direito concorrencial o objetivo alude ao bom funcionamento do mercado, no
sentido de evitar práticas anticoncorrenciais (art. 173, § 4º, da Constituição), abuso de posição
dominante e, assim, lesão aos interesses dos consumidores. Essa é a finalidade da Lei nº
12.529/2001, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem
econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre
concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do
poder econômico.
Emerge a necessidade de conjugar dispositivos de ordem societária e de ordem
concorrencial, alcançando o objetivo colimado e expressamente previsto no art. 170, IV, da
Constituição Federal, isto é, a livre concorrência. A respeito, pronunciou-se Fábio Ulhôa Coelho:

Se as normas legais e infra-legais destinadas, direta ou indiretamente, a impedir


ou reprimir práticas anticoncorrenciais ficarem adstritas ao conceito de
controlador do direito das sociedades (construído para atender à devida
composição dos interesses intrasocietários), podem acabar não cumprindo,
satisfatoriamente, o determinado no texto constitucional, ao deixarem de

35
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Op. Cit., p. 85-86.
36
BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial
da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 dez. 1976. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm. Acesso em: 19 jul. 2017.
37
COELHO, Fábio Ulhôa. O conceito de poder de controle na disciplina jurídica da concorrência. Revista
do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 3, jan./jun. 1999. p. 22.

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reprimir certas modalidades de infração da ordem econômica.38

No mesmo sentido, Calixto Salomão Filho pondera que os objetivos do direito societário
e do direito concorrencial são diferentes, de maneira que o atingimento dos objetivos de ambos
requer condutas distintas:

[...] objeto de proteção do direito societário são, em primeira linha, os


interesses dos acionistas minoritários e dos credores, enquanto as preocupações
do direito concorrencial se centram, como já visto, em concorrentes e
consumidores. Ocorre que os interesses desses diferentes grupos nem sempre,
aliás raramente, coincidem. Práticas que configuram abuso de posição
dominante, claramente prejudiciais aos consumidores, são benéficas a
minoritários e credores, na medida em que produzem lucros extraordinários. Essa
diferença de objetivos e de interesses protegidos sugere a necessidade de fixar
as diferenças entre empresas e os conceitos societários correspondentes.39

Com efeito, as questões relativas aos eventuais abusos praticados em sociedades, numa
primeira abordagem, realmente tocam no relacionamento entre os acionistas, deflagrando
diversos conflitos entre minoritários e majoritários. A partir dos elementos acima colhidos
verifica-se que as repercussões dos atos abusivos não ficam limitadas à própria sociedade, pois
poderão ser sensivelmente prejudiciais ao mercado, aos consumidores e à própria comunidade.
Nessa linha de raciocínio, afigura-se de todo pertinente que o controle quanto aos abusos seja
realizado tanto do ponto de vista societário, quanto do ponto de vista concorrencial, zelando,
assim, pelos interesses dos acionistas, dos credores, dos consumidores, ou seja, do mercado
como um todo.

CONCLUSÃO

A investigação dos abusos por parte de sócios em sociedades está relacionada à função
social do contrato e, ato contínuo, à função social da sociedade.
O valor social da livre iniciativa, um dos fundamentos republicanos insculpidos na
Constituição e que se irradia na interpretação e aplicação das normas de todo ordenamento
jurídico, impõe às sociedades – através da atuação dos sócios controladores e administradores -
atentar para os interesses de terceiros, além da distribuição de lucros entre os seus sócios.
Somente assim haverá convivência harmônica no seio da sociedade e tutela de todos os

38
COELHO, Fábio Ulhôa. O conceito de poder de controle na disciplina jurídica da concorrência. Revista
do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 3, jan./jun. 1999. p. 3.
39
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 241.

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interesses, isto é, dos sócios, empregados, consumidores, meio ambiente e, também, do


mercado como um todo, realizando-se objetivos e princípios da Ordem Econômica (v.g.
valorização do trabalho humano, existência digna, busca pelo pleno emprego, livre
concorrência, função social da propriedade).
A questão intrassocial tem como eixo principal o dever societário de lealdade que,
também como explicado, originou-se da cláusula geral de boa-fé objetiva, positivada no Código
Civil pelo artigo 422.
Dessa maneira, quaisquer condutas que sejam tomadas pelos sócios, seja na condição
de representantes da maioria, seja da minoria, deverão estar pautadas no dever societário de
lealdade e, sempre que inobservado esse postulado, caracterizada estará a conduta abusiva e
suas consequentes repercussões.
Em síntese, a vida em sociedade requer a observância por todos os sócios do interesse
comum, que é o interesse da sociedade (uti socii) e não os interesses individuais dos sócios (uti
singuli). Quando houver conflito de interesses entre o interesse individual e o interesse da
sociedade, prevalecerá este.

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Recebido em: 27/11/2016 / Revisões requeridas em: 24/05/2017 / Aprovado em: 31/05/2017

COMO CITAR O ARTIGO (ABNT)


ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GOLDBERG, Ilan. O DEVER DE LEALDADE E OS ABUSOS DO DIREITO DE SÓCIO EM
SOCIEDADES. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 12, n. 2, p. 472-496, ago. 2017. ISSN 1981-
3694. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/24912>. Acesso em: dia mês. ano.
doi:http://dx.doi.org/10.5902/1981369424912.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

Considerações sobre a Cláusula de


Raio no Direito Brasileiro

Considerations on The Radius Clause


in Brazilian Law

Alexandre Ferreira de Assumpção Alves*

Como citar: ALVES, Alexandre Ferreira de


* Doutor e Mestre em Direito
pela Universidade do Estado
Assumpção. Considerações sobre a cláusula
do Rio de Janeiro (UERJ). de raio no direito brasileiro. Scientia Iuris,
Graduado em Direito pela
Universidade Federal do Rio Londrina, v. 21, n. 2, p. 182-213, jul. 2017.
de Janeiro (UFRJ). Professor DOI: 10.5433/2178-8189.2017v21n1p182.
Associado III da UFRJ e Pro-
fessor Associado do programa ISSN: 2178-8189.
de pós-graduação stricto sen-
su da UERJ. Líder do grupo
de pesquisa Empresa e Ativi- Resumo: O artigo analisa a cláusula de raio no
dades Econômicas no DGP/
CNPq. Membro do Conselho direito brasileiro, apresentando seu conceito e
Editorial da Revista Semes- discorrendo sobre a ausência de previsão de
tral de Direito Empresarial
(RSDE), da Revista de Direito tratamento da matéria no ordenamento pátrio,
Empresarial (RDEmp) e da
Revista Brasileira de Estudos
sem se olvidar do disposto no artigo 54 da
Políticos (RBEP). Email: Lei nº 8.245/91, que afirma a prevalência da
asaa@uol.com.br
autonomia da vontade nos contratos de locação
em shopping center. Em seguida, o trabalho
expõe a forma como a matéria é tratada na
doutrina, na jurisprudência e na visão do
Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE). Por fim, é realizado um estudo do
caso Sindicato dos Lojistas de Porto Alegre x
Shopping Iguatemi Porto Alegre e da cláusula
de raio inserida unilateralmente pelo locador,
com base nas decisões do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul e do Superior
Tribunal de Justiça com as conclusões dos

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183
ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

autores sobre a decisão.

Palavras-chave: Livre iniciativa. Livre


concorrência. Shopping center. Cláusula de
raio.

Abstract: This study analyzes the ‘radius


clause’ in Brazilian law, presents its concept,
and discusses the absence of its regulation in
our domestic law. However, it is important
to highlight article 54 of the Law n. 8,245/91
because it affirms the prevalence of party
autonomy in lease agreements of shopping
malls. Sequentially, this paper discusses
the treatment of this subject in legal texts,
important court decisions, and exhibits the
vision of the Brazilian Administrative Council
of Economic Defense (CADE). Finally, this
research analyzes a contract dispute that has
the following opposing parties: the Sindicato
dos Lojistas de Porto Alegre (the Brazilian city
of Porto Alegre´s tenant union) vs. Shopping
Iguatemi Porto Alegre (Iguatemi Porto Alegre
shopping mall). This case questioned whether
the latter´s unilateral insertion of the radius
clause was just, with decisions of the Court of
Justice of the State of Rio Grande do Sul and
the Superior Court of Justice (STJ), and with
the authors’ conclusions of the decision.

Key words: Free initiative. Free competition.


Shopping malls. Radius clause.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

INTRODUÇÃO

O artigo tem por objetivo analisar a aceitação ou rejeição da


cláusula de raio, atualmente prevista nos contratos de shopping center,
pela doutrina, pelos tribunais brasileiros e pelo Conselho Administrativo
de Defesa Econômica (CADE). Tal cláusula impõe ao locatário a vedação
de explorar a mesma atividade econômica a uma determinada distância
do local onde está situado o imóvel ou espaço locado.
Na medida em que a cláusula de raio impede a escolha e fixação
do ponto empresarial, limitando o exercício da empresa, o estudo é
relevante em razão da possibilidade de ela acarretar prejuízos à livre
concorrência e limitações à livre iniciativa e configurar abuso de poder
econômico do locador.
Para a realização da pesquisa adotou-se o método dedutivo,
partindo da compreensão da regra geral da licitude da cláusula de raio
nos contratos de locação em shopping center para então compreender em
quais situações a premissa inicial é afastada, configurando-se a ilicitude
por abuso do direito. A pesquisa é do tipo bibliográfica e documental,
com suporte em livros, artigos, de periódicos, documentos em suporte
eletrônico e análise de decisões judiciais e administrativas.
O trabalho está estruturado em sete partes. Na primeira será
conceituada a cláusula de raio e traçados seus efeitos para o empresário
e para a livre concorrência. Em seguida será abordada a ausência de
previsão da matéria na legislação brasileira, dando margem ao exercício
da autonomia da vontade das partes, diante da previsão expressa no artigo
54 da Lei nº 8.245/91 de que, nas relações entre lojistas e empreendedores
de shopping center, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos

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185
ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

contratos de locação respectivos. Na terceira parte serão elencados os


argumentos favoráveis e desfavoráveis à cláusula de raio. Na quarta parte
examina-se a relação entre a cláusula de raio e a de aluguel percentual,
inseridas em contrato de locação de espaço em shopping center, por
adesão, para efeito de abusividade da estipulação, por estabelecer
prestações iníquas entre as partes. Por fim, nas partes cinco a sete serão
tecidos comentários críticos sobre o caso Sindicato dos Lojistas de
Porto Alegre x Shopping Iguatemi Porto Alegre, julgado pelo Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e, em última instância, pelo
Superior Tribunal de Justiça, cotejando-se a decisão do STJ com o
posicionamento do CADE.

1 CLÁUSULA DE RAIO: CONCEITO E SEU EFEITO PARA O


EMPRESÁRIO E PARA A LIVRE CONCORRÊNCIA

A cláusula de raio surgiu na década de 30 do século XX nos


Estados Unidos, no período da depressão econômica decorrente da
“quebra” da Bolsa de Nova Iorque (1929), tendo por fulcro impedir
que o locatário fixasse outro ponto comercial a uma certa distância do
imóvel locado.
Em conjunto com a cláusula de raio havia a previsão da cláusula
de aluguel percentual como forma de compensar o locador, em razão
de ter sido estipulado um aluguel fixo menor em benefício do locatário,
de modo a propiciar sua consolidação no mercado. Nesse contexto, a
cláusula de raio servia, portanto, como meio de evitar o desvio de clientela
para o estabelecimento próximo, de modo a garantir a persecução do
aluguel percentual (CRISTOFARO, 2006, p. 49-50).

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186
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

Atualmente, as cláusulas de raio são previstas em contratos


de locação em shopping centers, cujo valor do aluguel fixo é elevado.
Entretanto, é comum que a inserção de tais cláusulas esteja associada
à cláusula de aluguel percentual. Como o aluguel percentual está
vinculado ao faturamento mensal do locatário, que é variável, o desvio
de clientela para um estabelecimento próximo repercute negativamente
no faturamento e, por conseguinte, pode acarretar prejuízos ao locador.
Nota-se que a cláusula de raio busca, se bem implementada
e negociada, um equilíbrio da relação contratual, seja porque permite
ao locador um retorno a médio prazo do investimento na construção
ou aquisição do imóvel, seja porque dá ao locatário uma alternativa ao
aluguel fixo, muitas vezes elevado e excessivamente oneroso a depender
do volume mensal de vendas ou faturamento.
Portanto, a cláusula de raio, tanto nos dias atuais como na
origem, impede o desvio de clientela como forma de evitar a burla
do aluguel percentual. Contudo, ela não tem o escopo de compensar
o locador pela estipulação de um aluguel fixo menor, como tivera
outrora. Hodiernamente, a finalidade é impedir o desvio de clientela do
empreendimento shopping center, de forma a permitir que este se beneficie
da externalidade de tráfego produzida pelos lojistas. Considerando-se
tal finalidade, a cláusula de raio deve ser estendida a todos os sócios e
parceiros do lojista, como forma de garantir sua efetividade. Como o
objetivo da cláusula de raio é impedir o desvio de clientela do shopping
center, ela deve ser classificada como cláusula de não-concorrência, pois
o escopo é evitar a concorrência entre os shopping centers.
Para não ser abusiva, no âmbito do direito civil-empresarial,
a previsão da cláusula de raio pressupõe um contrato negociado ou
paritário; além disso, ela deve ser limitada no tempo. Já no direito
SCIENTIA IURIS, Londrina, v.21, n.2, p.182-213, Jul.2017 DOI: 110.5433/2178-8189.2017v21n2p182
187
ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

concorrencial a cláusula de raio para ser considerada abusiva deve,


além de ser por tempo limitado, se restringir a outros shopping centers
do mesmo padrão. Outrossim, deve impedir somente o fornecimento
de produtos e serviços da mesma marca e dentro do mesmo segmento.
O efeito imediato desta cláusula para o lojista é a limitação
da livre iniciativa, um dos fundamentos da ordem econômica (art. 170,
caput, da Constituição Federal), porque impede o livre estabelecimento
de unidades econômicas de produção ou prestação de serviços no âmbito
geográfico. Além disso, caso não se observe os parâmetros mencionados,
a cláusula de raio criará barreiras à entrada de concorrentes no mercado,
fato que, por si só, pode levar ao abuso do poder econômico pelo
empreendedor, com a elevação do aluguel fixo ou percentual, aumento
do perímetro da cláusula de raio ou, ainda, a não estipulação de prazo
para sua vigência.

2 AUSÊNCIA DE TRATAMENTO DA MATÉRIA NA LEGISLAÇÃO


BRASILEIRA E A AUTONOMIA DA VONTADE

Na legislação brasileira não há um diploma específico que


estabeleça as regras a serem observadas no contrato de locação em
shopping center. A única previsão legal está contida no artigo 54 da Lei
nº 8.245/91. O referido dispositivo legal, ao se referir ao contrato de
locação em shopping centers, o faz de forma lacônica: “Nas relações
entre lojistas e empreendedores de  shopping center, prevalecerão as
condições livremente pactuadas nos respectivos contratos de locação
e as disposições procedimentais previstas nesta lei.” (BRASIL, 1991).
Sem embargo, verifica-se certo dirigismo contratual nos parágrafos 1º e

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

2º do referido artigo que proíbem ao empreendedor a cobrança de certas


despesas do locatário e a transparência da cobrança através de orçamento;
porém nada sobre a cláusula de raio.
Ora, o dispositivo conferiu ampla liberdade às partes contratantes;
contudo, a liberdade contratual é restringida pelo ordenamento jurídico
com base na função social do contrato, prevista no artigo 421 do Código
Civil, e pela vedação ao abuso do direito, prevista no artigo 187 do Código
Civil. Desse modo, em que pese haver previsão legal de livre estipulação
das cláusulas do contrato de locação, elas não poderão infringir preceitos
de ordem pública.
O fato de o contrato de locação em shopping center ser celebrado
entre empresários, e não ser a relação jurídica de consumo, não retira
dele a possibilidade de conter cláusulas abusivas, mormente em razão
de não ser dado ao locatário, no momento da celebração do contrato a
possibilidade de alterar cláusulas substanciais. Desse modo, a despeito
da liberdade contratual assegurada pela Lei nº 8.245/91, na hipótese de
o contrato de locação em shopping center consistir em um contrato de
adesão, é possível que ele contenha cláusulas que, apesar de não serem
ilícitas, se tornem abusivas1. Nessas situações, caberá ao prejudicado,
por provocação ao Poder Judiciário2 pleitear sua intervenção na relação
contratual e restabelecimento, se possível, do equilíbrio do contrato,
em consagração ao princípio do equilíbrio contratual entre as partes,
que surgiu em razão da inadequação do modelo contratual estabelecido
pelo liberalismo, marcado pela supremacia da autonomia da vontade
(HENTZ, 2007).
1 Em cumprimento ao disposto no art. 423 do Código Civil, a cláusula de raio, quando se revelar contraditória
com outras cláusulas do contrato de locação em shopping center de adesão (v.g. aluguel percentual) deve
ser interpretada de modo mais favorável ao aderente, isto é, ao empresário locatário.
2 Cf. Art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito (BRASIL, 1988).

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

3 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E DESFAVORÁVEIS À


CLÁUSULA DE RAIO

A doutrina e a jurisprudência divergem quanto a licitude ou


ilicitude da cláusula de raio, bem como sobre o fato de, em sendo lícita,
ser abusiva.
Pedro Paulo Salles Cristofaro (2006, p. 49) preconiza que a
cláusula de raio seria lícita, pois teria o escopo de proteger o tenant mix
criado pelo empreendedor e, dessa forma, evitaria o desvio de clientela.
O tenant mix é o planejamento feito pelo empreendedor, ainda durante
a etapa de construção ou mesmo antes, dos tipos e tamanhos de lojas
e sua localização no imóvel, com o fito de maximizar os lucros para si
e os lojistas. Nesse planejamento os espaços no shopping envolvem a
instalação de lojas âncora e outras adjacentes de modo que o mix atenda
às necessidades dos consumidores e da localidade. De acordo com
Cristofaro (2006, p. 57-58):

Ao integrar ambos os tenant mix, a loja torna-se


neutra como fator determinante da escolha, pelo
consumidor, do shopping ao qual frequentará. O
consumidor, que quer adquirir um produto específico
naquela loja, continuará escolhendo entre dois
shoppings, mas por outros motivos, que não a
presença daquela loja em si.

Ladislau Karpat (2000, p. 149) coaduna do mesmo entendimento


de Pedro Paulo Cristofaro. De acordo com ele, a cláusula de raio seria
uma forma de proteção prévia do estabelecimento shopping center e
seria estipulada em benefício de todos os lojistas.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

Muitas vezes, num futuro até não muito distante,


um novo Shopping Center se estabelece nas
proximidades, quando não literalmente do outro
lado da rua. Prevendo o empreendedor-locador esta
possibilidade, é quase que obrigado, na medida do
possível e do permitido, defender os interesses do
grupo de comerciantes que integram o Shopping; pois
estão em jogo não apenas seus negócios, mas de todos
que compõem o seu Centro. Observados, então, todos
os preceitos legais, a cláusula assim mencionada é
válida, não havendo mesmo como negar seu conteúdo
(KARPAT, 2000, p. 149).

No mesmo sentido, também com base no aspecto civil-


empresarial, Fábio Konder Comparato (1995, p. 27) defende a licitude
da cláusula de raio, pois ela seria inerente ao contrato de locação em
shopping center, devendo ser observada ainda que não tenha sido
estipulada.
Em que pese o entendimento dos autores citados, Waldir de
Arruda Miranda Carneiro (2000, p. 422), ao analisar a licitude da cláusula
de raio, conclui que ela extrapola os limites da relação locatícia e, em
regra, será considerada ilícita, por ser prevista tão somente em virtude
do poder econômico do empreendedor.

Diante das regras jurídicas que protegem a livre


iniciativa (possibilidade de agir em qualquer
sentido sem influência externa, nem do Estado nem
de terceiros) e a livre concorrência (liberdade de
competição no mercado), difícil é atribuir legalidade
a uma convenção que as limita. Mormente nos
casos, como o em exame, onde se sabe que tal
ajuste só consta dos referidos contratos em razão do

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

elevado poder econômico do empreendedor (cujo


abuso, as referidas normas tentam evitar). Não
se deslembre, por outro lado, que a liberdade de
iniciativa e concorrência são princípios que visam
a prosperidade e o aprimoramento econômico da
nação, sendo sua proteção não apenas legal como,
também, moralmente justa.

Gladston Mamede (2000, p. 111), corroborando a posição de


Waldir de Arruda Miranda Carneiro, defende que a cláusula de raio
seria inconstitucional, por violar a livre iniciativa dos lojistas e do
empreendedor, garantida a todos os empreendedores pela Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 (arts.1º, IV, e 170, parágrafo
único). De acordo com o autor:

[...] tais cláusulas são inconstitucionais, já que


cerceiam o direito de agir economicamente com
liberdade e, simultaneamente, pretendem constituir
mecanismo que impeça a concorrência. Mas essa,
viu-se, deve ser livre para o bem da República e
da economia, não sendo legítimo ao empreendedor
colocar os seus interesses privados acima dos
interesses públicos, que beneficiam à totalidade da
nação (MAMEDE, 2000, p. 111).

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE),


por sua vez, se mostra favorável à cláusula de raio, desde que ela seja
utilizada para assegurar a consolidação do empreendimento (CADE,
2001). Além disso, o CADE traça parâmetros que devem ser observados
para que a cláusula de raio seja considerada lícita.
No aspecto espacial, o CADE considera que até 2 (dois)
quilômetros de distância a cláusula de raio é lícita; entre 2 (dois)

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

quilômetros e 5 (cinco) quilômetros devem ser analisados, dentre


outros aspectos: “[...] (i) densidade populacional da área; (ii) indício de
delimitação do raio com o objetivo de prejudicar eventuais concorrentes já
instalados ou com previsão de instalação; (iii) investimentos do shopping
na área para torná-la comercialmente atrativa; e (iv) poder de mercado
do agente dentro do raio definido”(CADE, 2007); acima de 5 (cinco)
quilômetros a cláusula seria ilícita.
No que tange à duração da cláusula, segundo posição do CADE,
deve-se observar:

[...] um período razoável para que o shopping


recupere seu investimento e estabeleça sua clientela,
sem que haja maiores riscos a possíveis shoppings
concorrentes e aos lojistas, que, após esse período,
poderão instalar-se dentro do raio estabelecido.
Assim, entende-se que cláusulas de raio de até cinco
anos devem ser aceitas. [...] Nos casos em que o
período de duração da cláusula for superior a cinco
anos, os seguintes parâmetros devem ser levados
em consideração: (i) investimento greenfield ou
de ampliação de espaço; (ii) tempo de retorno do
investimento realizado; (iii) indício de delimitação
do tempo da cláusula com objetivo de prejudicar
concorrentes já instalados ou com previsão de
instalação; e (iv) investimentos do shopping na área
para torná-la comercialmente atrativa (CADE, 2007,
p. 19).

Por fim, no aspecto material, na concepção do CADE (2007, p.


19), a cláusula “[...] deve limitar-se apenas aos controladores da locatária
e à marca estabelecida no empreendimento.”
Ao contrário do âmbito administrativo-concorrencial, na

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

seara judiciária a questão da licitude da cláusula de raio ainda não está


pacificada. Em 1996, o Segundo Tribunal de Alçada Cível do Estado
de São Paulo no julgamento do caso Shopping Center Morumbi x Mei
Mei Comercial Ltda se valeu da liberdade contratual para considerar a
cláusula de raio lícita (apud CARNEIRO, 1999, p. 122-125)
De certo, trata-se de uma decisão ainda amparada no Código
Civil de 1916, arraigado pelo liberalismo e autonomia da vontade, sem
limitação ao princípio da função social do contrato; no entanto, decisões
posteriores à vigência do Código Civil de 2002 seguiram o mesmo
entendimento. Nesse sentido, decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo no caso Shopping Iguatemi São Paulo x Valdac Ltda, tendo o
desembargador-relator do acórdão Edgard Rosa assim se manifestado:

[...] a cláusula de raio instituída pelo Shopping Center


Iguatemi busca, por meio de um mecanismo jurídico
absolutamente válido, proteger a clientela do centro
comercial, pois foi estipulada de forma convencional,
contando com o prévio conhecimento e aceitação dos
lojistas nele instalados (SÃO PAULO, 2011, p. 12).

A liberdade contratual também foi o principal argumento para


se considerar a cláusula de raio lícita no caso Via Veneto Roupas Ltda x
Shopping Iguatemi São Paulo (SÃO PAULO, 2005) No julgamento, o
desembargador-relator do recurso na Vigésima Quinta Câmara de Direito
Privado, Ricardo Pessoa de Mello Belli, concluiu:

Não se trata de impedimento à livre iniciativa,


mesmo porque o locatário tem a opção de romper a
relação contratual e, assim, se instalar onde melhor
lhe aprouver. Cuida-se, isto sim, de mera e relativa
restrição à faculdade de ampliação da empresa,
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

ajustada no âmbito da larga liberdade contratual que


a lei expressamente confere nas locações celebradas
entre shopping center e lojistas (Lei 8.245/91, art.
54) (SÃO PAULO, 2005, p. 11).

O Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, por sua vez, ao julgar


o caso North Shopping x Lojas Americanas S/A se ateve a aspectos
concorrenciais. Desse modo, considerou abusiva a cláusula de raio de 5
(cinco) quilômetros prevista no contrato de locação do North Shopping
(CEARÁ, 2006).
No voto da desembargadora Gisela Nunes da Costa ela declarou
que:

Com efeito, a impossibilidade de a apelante, com


filial no Shopping Center apelado, abrir novos
estabelecimentos comerciais em um raio de 05
(cinco) quilômetros afigura-se nesta sede irrazoável,
porquanto prejudica a livre concorrência, na medida
em que visa tão somente a dominação do mercado pelo
North Shopping [...] Ademais, estreme de dúvidas
que a referida cláusula objetiva não só o aumento do
faturamento geral do Shopping Center apelado, mas
também o monopólio, ou seja, a exclusividade de
algumas lojas em seu espaço, prática esta que vai de
encontro ao disposto no art. 20, incisos I e II, da Lei
nº 8.884/94 [Art. 36, I e II da Lei nº 12.529/2011],
porquanto limita, abruptamente, o acesso do cliente
aos serviços oferecidos pelos centros comerciais
concorrentes (CEARÁ, 2006, p. 15).

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao analisar a cláusula


de raio no caso Associação de Lojistas do Estado de São Paulo x Shopping
Iguatemi São Paulo, também o fez considerando aspectos do direito

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

concorrencial, assim como o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará,


sendo que a análise foi mais técnica. Desse modo, com a observação do
mercado relevante, abrangência do raio e tempo de vigência, concluiu-se
pela ilicitude da cláusula de raio (BRASIL, 2014, p. 16-17).

4 ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA DE RAIO

Segundo Souza (2015), a análise da abusividade da cláusula de


raio está atrelada, necessariamente, à verificação de o contrato de locação
em shopping center ser de adesão ou negociado (paritário). Caso se trate
de um contrato de adesão, como há previsão do aluguel percentual, a
cláusula de raio, apesar de não poder ser considerada abusiva em si, ao
ser conjugada com a cláusula de aluguel percentual deve ser considerada
abusiva, por estabelecer prestações iníquas entre as partes.

As obrigações são iníquas porque o lojista


remunera o empreendedor pelo serviço prestado
com o aluguel percentual. Uma das obrigações
do empreendedor é atrair a clientela, e conseguir
atrair ou não a clientela consiste em um dos riscos
inerentes a atividade econômica do empreendedor de
shopping center. À medida que o empreender proíbe
o lojista de se estabelecer nas áreas adjacentes ao
shopping center, ele quer simplesmente eliminar os
riscos de sua atividade negocial e diminuir os seus
esforços na manutenção da atração da clientela,
pelo qual o lojista o remunera com o aluguel
percentual. Em síntese, o lojista compra um serviço
do empreendedor, por contrato de adesão, por esse
serviço ele remunera o empreendedor com o aluguel
percentual. Até aqui, o contrato está equilibrado.
No entanto, o empreendedor, para diminuir seus

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

esforços na manutenção do tenant mix atrativo, bem


como os riscos de sua atividade, impõe a cláusula
de raio ao lojista, que limita o exercício da sua
atividade econômica, sem oferecer uma contrapartida
para essa limitação, porque a contrapartida que o
empreendedor diz que oferece já é remunerada com
o aluguel percentual. Por isso, a cláusula de raio
culmina no desequilíbrio econômico contratual.
Ademais, o fato de o lojista integrar o tenant mix do
empreendimento, que lhe trará maior rentabilidade,
em geral, se comparado ao comércio de rua, é
justamente o serviço inerente que o lojista contrata
do empreendedor. Logo, o benefício auferido pelo
lojista é compensado com o pagamento do aluguel
percentual (SOUZA, 2015, p. 38-39).

Caso se trate de um contrato negociado, a cláusula de raio, no


aspecto civil-empresarial, a princípio, não pode ser considerada abusiva,
ainda que conjugada com o aluguel percentual, em razão da presunção
de se ter atingido o equilíbrio contratual justamente com a previsão
de ambas as cláusulas. No entanto, ainda que se trate de um contrato
negociado, caso a cláusula de raio não seja limitada no tempo, ela deverá
ser considerada abusiva, em razão:

[...] da alteração que ocorre no entorno do shopping


center com o passar dos anos. Desse modo, o estudo
de viabilidade econômica realizado na época de
inauguração do shopping center e que determinou
o ingresso de um lojista específico não apresentaria
o mesmo resultado se realizado anos após a
inauguração. Dessa maneira, a finalidade da cláusula
de raio, que no aspecto civil-empresarial é a não
concorrência entre o lojista e o shopping center para
que o empreendedor se beneficie das externalidades

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

produzidas por cada lojista de forma a lucrar com


o aluguel percentual, com o tempo deixa de ser
razoável, porque a demanda de produtos da área de
influência do shopping center se altera ao longo do
tempo (SOUZA, 2015, p. 177-178).

Como o objetivo da cláusula é a não-concorrência do lojista


com o shopping center, entende-se que o prazo de 5 (cinco) anos seja
razoável, o mesmo prazo previsto para a cláusula de não restabelecimento
em casos de trespasse do estabelecimento (artigo 1.147, do Código Civil),
na ausência de estipulação contrária.
No âmbito do direito da concorrência admite-se a cláusula de
raio para que haja a viabilidade do empreendimento. Contudo, ela para
ser considerada lícita deve observar certos parâmetros:
1 no aspecto material, no âmbito do mercado relevante, ela
deve se restringir a shopping centers do mesmo padrão.
2 a restrição deve abranger a mesma marca, dentro do
mesmo segmento e se estender a todos os sócios ou parceiros do lojista.
Busca-se com a extensão da restrição evitar burla à cláusula de raio e
alcançar a sua finalidade, ou seja, garantir um tenant mix diferenciado que
seja mais atrativo do que o do efetivo ou potencial concorrente. A inclusão
dos sócios majoritários evita burla à cláusula de raio porque eles poderiam
constituir uma nova sociedade empresária que, por comercializar os
mesmos produtos, e, ainda, com o mesmo know how, atrairia os mesmos
clientes da sociedade anterior. Caso a cláusula não fosse estendida aos
sócios minoritários ou parceiros do lojista, poderia haver transferência
de know how para eles. Dessa forma, a finalidade da cláusula de raio não
seria alcançada, pois eles, da mesma forma que os sócios majoritários,
comercializariam os mesmos produtos, tal como na sociedade localizada

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

dentro do shopping center que a cláusula de raio visa proteger. Assim, a


sociedade anterior deixaria de produzir externalidades para o shopping
center, ao deixar de ser mais um fator de atração da clientela.
3 quanto à fixação do tempo de duração da cláusula de raio,
como se trata de uma cláusula de não-concorrência, que visa assegurar a
fixação da clientela do empreendimento, entende-se que o prazo de até
cinco anos é razoável, sendo o mesmo tempo previsto no artigo 1.147
do Código Civil para a cláusula de não restabelecimento.
4 no aspecto espacial, relacionado ao mercado relevante no
aspecto geográfico, entende-se razoável o tempo de deslocamento de 15
minutos entre os dois empreendimentos.
Observados os parâmetros fixados supra, a cláusula de raio
será considerada lícita “[...] se for prevista para assegurar a viabilidade
econômica do [...] empreendimento, fato que ensejará a concorrência entre
os shopping centers (benefícios para os consumidores) e a diminuição
do poder de mercado dos empreendedores (benefícios para os lojistas)
(SOUZA, 2015, p. 176). No entanto, deve-se considerar que só poderá
haver violação à ordem econômica com a estipulação da cláusula de raio
se o agente detiver poder econômico.
Para que a cláusula de raio seja considerada lícita, tanto no
aspecto civil-empresarial quanto no aspecto concorrencial, ela deve ser
assim redigida:

AS DECLARANTES reservam-se o direito de resilir


ou rescindir o contrato de locação, se a locatária ou
seus sócios e parceiros, no prazo de xxx (máximo
5 anos), sem a prévia concordância escrita das
DECLARANTES, vier a abrir outro estabelecimento
comercial, sede ou filial, que comercialize a mesma
marca e no mesmo segmento da comercializada

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

em qualquer de suas lojas no shopping center


contratante, desde que esse estabelecimento, sede ou
filial, fique localizado em outro shopping center do
mesmo padrão e a uma distância de até 15 minutos
de deslocamento de qualquer ponto de acesso do
shopping center contratante à qualquer ponto de
acesso do outro shopping center, independente do
meio de transporte utilizado (SOUZA, 2015, p. 179).

5 DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO


GRANDE DO SUL NO CASO SINDICATO DOS LOJISTAS DE
PORTO ALEGRE X SHOPPING IGUATEMI PORTO ALEGRE

Os desembargadores da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça


do Estado do Rio Grande do Sul consideraram abusiva a cláusula de
raio prevista nos contratos de locação celebrados entre os lojistas e o
Shopping Center Iguatemi Porto Alegre. No voto proferido em sede de
apelação o desembargador Ergio Roque Menine sintetizou as razões do
julgamento nos seguintes termos:

[...] várias são as razões fáticas e jurídicas para


considerar a “cláusula de raio” do Iguatemi abusiva
e ilegal, sendo relevante destacar as seguintes: 1)
alteração unilateral do raio para 3 km, violando
o princípio da boa-fé objetiva; 2) violação da
livre concorrência com os outros shoppings;
3) violação da livre iniciativa com a criação de
obstáculo aos pequenos e médios empreendedores
interessados em locar espaço nos outros shoppings;
4) prejuízos aos consumidores, que serão induzidos
e estimulados a frequentarem o Iguatemi (pois
vários estabelecimentos comerciais consagrados e
de renome somente estarão em funcionamento lá); 5)

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200
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

cláusula de Raio estabelecida “ad eternum”, violando


regra/princípio/postulado da proporcionalidade e
razoabilidade (RIO GRANDE DO SUL, 2014).

Dentre os argumentos elencados pelo desembargador, o


último (prazo indeterminado), por si só, é suficiente para embasar a
fundamentação de que a cláusula de raio, no caso concreto, é abusiva,
ainda que reste provado tratar-se de um contrato negociado. Explica-se:

No âmbito da relação contratual (contrato negociado),


no aspecto temporal, a cláusula de raio ilimitada no
tempo não se justifica em razão da alteração que
ocorre no entorno do shopping center com o passar
dos anos. Desse modo, o estudo de viabilidade
econômica realizado na época de inauguração do
shopping center e que determinou o ingresso de um
lojista específico não apresentaria o mesmo resultado
se realizado anos após a inauguração. Dessa maneira,
a finalidade da cláusula de raio, que no aspecto
civil-empresarial é a não concorrência entre o lojista
e o shopping center para que o empreendedor se
beneficie das externalidades produzidas por cada
lojista de forma a lucrar com o aluguel percentual,
com o tempo deixa de ser razoável, porque a demanda
de produtos da área de influência do shopping center
se altera ao longo do tempo. Como tanto no aspecto
civil-empresarial, quanto no aspecto concorrencial o
objetivo é a não concorrência, entende-se razoável
o prazo de até cinco anos, o mesmo previsto para a
cláusula de não restabelecimento (SOUZA, 2015,
p. 177-178).

A alteração unilateral da abrangência do raio pelo locador


Shopping Center Iguatemi Porto Alegre indica tratar-se de um contrato

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201
ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

de adesão. Sem embargo, o fato de ser ou não o contrato de adesão não


prejudica a conclusão acerca da abusividade da cláusula de raio no caso
concreto.
O segundo argumento (violação da livre concorrência) foi muito
bem explorado pelo desembargador-relator. Nota-se que a cláusula de
raio, ao impedir que os lojistas ingressem no empreendimento dentro do
raio de sua abrangência, impede ou dificulta que outro shopping center
se torne um efetivo concorrente. Tal conclusão parte da constatação que
o tenant mix do empreendimento novo, em razão da limitação imposta
pela cláusula de raio, não será tão atrativo quanto o empreendimento
antigo, mormente quando os dois empreendedores visam atrair o mesmo
público-alvo.
Quanto à violação da livre iniciativa dos lojistas deve-se
considerar que não se trata de um princípio absoluto. Logo, pode ser
restringido pelo Estado para evitar violação à livre concorrência e por
iniciativa do particular. Portanto, apesar de a cláusula de raio restringir
a livre iniciativa dos lojistas, não se pode afirmar que ela restará violada
pela mera previsão da cláusula de raio. No caso concreto, houve violação
em razão de a cláusula de raio ter sido prevista por prazo indeterminado.
Em relação ao quarto argumento, que analisa o prejuízo aos
consumidores, melhor seria se tivessem sido invocados os benefícios
trazidos pela existência de dois shopping centers, de fato, concorrentes
entre si. Tal situação levaria à melhoria dos serviços prestados
pelos empreendedores aos consumidores (estacionamento, praça de
alimentação, limpeza, locais de convivência, espaço para leitura, entre
outros).
Apesar de não ter sido feito o cotejo entre a cláusula de raio
e a cláusula de aluguel percentual, o desembargador-relator concluiu
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

acertadamente pela abusividade da cláusula de raio imposta aos lojistas


pelo Shopping Iguatemi Porto Alegre.

6 DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO CASO


SINDICATO DOS LOJISTAS DE PORTO ALEGRE X SHOPPING
IGUATEMI PORTO ALEGRE

O Shopping Iguatemi Porto Alegre interpôs recurso especial ao


Superior Tribunal de Justiça para reformar a decisão de segunda instância
que lhe foi desfavorável.
A Quarta Turma do STJ, ao julgar o caso adotou posicionamento
diametralmente oposto. Contudo, o ministro-relator Marco Buzzi
ressalvou no voto que a análise deve ser feita perante o caso concreto e
que, neste caso, não existiria nos autos “[...] lastro para a manutenção
da alegada abusividade da cláusula.” (BRASIL, 2016).
O voto do ministro-relator perpassa pelos seguintes argumentos:

a) o shopping center é um empreendimento híbrido


e peculiar; b) a cláusula de raio não prejudica os
consumidores, ao contrário, os beneficia, ainda
que indiretamente; c) é inaplicável o Código de
Defesa do Consumidor à espécie, pois ainda que
o sindicato/autor atue como substituto legal, os
eventuais lesados seriam lojistas que entabulam
contratos de locação de espaço em shopping center,
sendo que os ditames consumeristas não alcançam
essas relações comerciais; d) a análise acerca da
abusividade de cláusula somente é possível quando
realizada em concreto e não de forma genérica/em
tese; e) a modificação unilateral das normas gerais
complementares do empreendimento quanto à

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

cláusula de raio de 2.000 (dois mil) para 3.000 (três


mil) metros, uma vez respeitados os contratos de
locação em curso quando da modificação estatutária,
não apresenta qualquer ilegalidade/abusividade; e, f)
a conquista de mercado resultante de processo natural
fundado na maior eficiência de agente econômico em
relação a seus competidores não caracteriza ilícito,
tanto que prevista como excludente de infração da
ordem econômica (§ 1º do artigo 36 da Lei 12.529/11)
(BRASIL, 2016, p. 21-22).

De fato, o shopping center é um empreendimento híbrido e


peculiar; seus clientes são tanto os lojistas quanto os consumidores.
Ademais, nele o empreendedor se esforça para atrair a clientela: quanto
mais pessoas frequentarem o shopping center maior será o faturamento
do lojista e, consequentemente, maior será o aluguel percentual auferido
pelo empreendedor. Portanto, o contrato de locação dos espaços é
marcado pela cooperação entre o empreendedor e os lojistas na atração
da clientela, o que o diferencia do contrato de locação comercial típico.
A cláusula de raio ao proporcionar a viabilidade do
empreendimento beneficia os consumidores, tendo em vista que a
concorrência entre os shopping centers, como já afirmado, levará à
melhoria dos serviços. Ademais, facilita que lojistas diversos ingressem
no shopping center concorrente, considerando que a livre iniciativa dos
lojistas do primeiro shopping center estará restringida pela cláusula de
raio.
Também assiste razão ao ministro-relator ao afirmar que o
Código de Defesa do Consumidor não se aplica aos contratos de locação
celebrados entre os lojistas e os empreendedores. No entanto, o principal
motivo de não ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor é o

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

fato de o lojista não ser o destinatário final do serviço prestado pelo


empreendedor. Destarte, se o lojista adquire um serviço que é utilizado
para o incremento de sua atividade econômica, não se pode falar na
existência de relação de consumo.
Quanto à afirmação da abusividade da cláusula poder ser aferida
somente em concreto, deve-se considerar que, no caso julgado, o fato
de a cláusula ter sido prevista por tempo indeterminado permite que ela
seja considerada abusiva abstratamente.
A modificação unilateral da cláusula indica que os contratos de
locação celebrados entre os lojistas e o shopping center são de adesão,
ainda que tenham sido respeitados os contratos em curso.
Para Judith Martins-Costa (2012, p. 115) é justamente a
unilateralidade na elaboração das normas gerais complementares, as
quais o lojista adere, que caracteriza o contrato de locação em shopping
center como um contrato de adesão. No entanto, para se concluir acerca
de se tratar de um contrato de adesão ou negociado é necessário analisar
se o lojista é capaz de alterar as cláusulas operacionais (substanciais) do
shopping center.
Conforme Virgínia de Medeiros Claudino Milani (2005, p. 71),
são cláusulas operacionais (substanciais) aquelas:

[...] imprescindíveis para se entender na sua


globalidade e complexidade o sentido da operação.
Assim acontece com as cláusulas que determinam:
o horário de funcionamento comum das lojas; a
qualidade dos produtos e serviços ofertados; a
proibição ao direito de preferência na aquisição do
imóvel, evitando os percalços inerentes ao direito de
propriedade; a não exclusividade no ramo de atuação,
dando ao consumidor a possibilidade de escolha;

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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

a proibição de cessão, empréstimo ou sublocação


de parte da área locada a terceiros, conservando
o equilíbrio do tenant mix; a unidade estética do
empreendimento, com a supervisão de vitrines e
de decoração de interiores, para que se forme uma
imagem única do shopping. [...] Já as cláusulas de
cunho econômico [...] não dizem diretamente com o
modus operandi de um shopping e, por conseguinte,
tendemos a não considerá-las como substanciais.

Portanto, nesse ponto, o ministro-relator deveria ter realizado


uma análise mais profunda do contrato de locação, mormente em razão
do fato de se tratar de um contrato de adesão, o que altera toda a análise
jurídica do caso concreto.
Quanto ao último ponto, assiste razão ao ministro ao afirmar
que a conquista natural de mercado em razão da eficiência do agente
econômico não configura infração à ordem econômica. No entanto,

O shopping center que detém poder de mercado,


em razão do interesse do lojista em se fixar no
empreendimento, pode impor condições que não
seriam favoráveis aos lojistas, como pode ocorrer
com a previsão da cláusula de raio. O faturamento
do shopping center demonstra se ele possui poder
de mercado. Assim, se este for superior em relação
aos demais shopping centers concorrentes dentro do
mercado relevante considerado, estará caracterizado
o poder de mercado desse agente econômico
(SOUZA, 2015, p. 55).

Como o Shopping Iguatemi Porto Alegre detém poder de


mercado, ainda que a conquista do mercado tenha ocorrido de forma
natural, ele detém poder econômico e seu exercício abusivo configura

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

infração à ordem econômica. Nesse sentido, a lição de Tércio Sampaio


Ferraz Junior (1995, p. 24-25):

Poder de mercado é poder dentro do mercado. Para


gozar de poder de mercado, o agente tem de ser
dotado de algum poder econômico, que lhe confere
a capacidade de influir nas condições fáticas da
concorrência, o que pode gerar conflitos jurídicos.
Esta capacidade também confere a possibilidade
de não se submeter às regras da ordem econômica.
A noção de poder econômico, portanto, assinala,
de um lado, um fenômeno da realidade, objeto de
limitações jurídicas, mas também uma situação
jurídica de tolerância, base para a configuração de
um direito de concorrer. Em si, o poder econômico
não é ainda um direito subjetivo, mas uma situação
admitida ou permitida negativamente, isto é,
permitida na medida em que não é proibida (mas
não permitida positivamente, isto é, autorizada por
normas permissivas expressas). Na medida em que
é permitido negativamente (situação jurídica de
tolerância), o poder econômico goza de uma certa
legitimidade a contrario sensu, isto é, não pode
ser limitado pelo Poder Público, salvo se abusivo.
Ou seja, quando desta tolerância indiretamente
legitimadora se abusa, constitui-se a infração contra
a Ordem Econômica concorrencial, por um desvio
no exercício do direito de concorrer do qual o poder
econômico é base jurídica e de fato.

Portanto, à medida que o Shopping Iguatemi Porto Alegre


ignorou o interesse dos lojistas em potencial (considerando que a alteração
só produziu efeitos prospectivos) diante de seu poder de mercado, resta
caracterizado o abuso do poder econômico por limitar a livre iniciativa.
Ademais, a cláusula de raio repercute na livre concorrência e dificulta a
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ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

consolidação no mercado de um efetivo concorrente.


Data venia, conclui-se que a decisão da Quarta Turma do
Superior Tribunal de Justiça, que reformou a decisão do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, analisou o caso de forma
perfunctória e desconsiderou o fato de a cláusula ter sido estabelecida
“ad aeternum”.

7 A DECISÃO DO STJ VIS-À-VIS O POSICIONAMENTO DO


CADE.

O CADE, ao decidir sobre a validade da cláusula de raio, realiza


a análise do mercado relevante nos aspectos material e geográfico do
agente, para concluir sobre a existência ou não de poder econômico.
Essa análise é imprescindível para a conclusão acerca de violação à
ordem econômica, matéria afeta ao direito da concorrência. Se o CADE
constatar o abuso de poder econômico, será investigado em inquérito
administrativo se a conduta teve ou tem a capacidade de gerar impactos à
ordem econômica (art. 48, I, Lei nº 12.529/2011). Posteriormente, o órgão
examinará a cláusula de raio nos aspectos espacial, temporal e material.
A análise da cláusula pelo CADE é eminentemente de cunho
técnico. O órgão administrativo tem por escopo verificar a ocorrência
de infração à ordem econômica ou a mera potencialidade de ocorrência.
Dessa maneira, não se cogita de abusividade na relação inter partes.
Para perquirir se a cláusula de raio infringe a ordem econômica ou tem
a possibilidade de fazê-lo, o CADE identifica as externalidades positivas
e negativas geradas com a cláusula de raio e aplica a regra da razão para
concluir sobre quais parâmetros ela poderá ser considerada lícita.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

No caso Shopping Iguatemi Porto Alegre, a decisão do Superior


Tribunal de Justiça, apesar de reconhecer o poder de mercado do shopping
Iguatemi Porto Alegre, com amparo em laudos periciais, se absteve de
analisar se o agente econômico praticou abuso do poder econômico
(presume-se o poder econômico em razão da existência de poder de
mercado) com a conduta de impor a cláusula de raio por tempo ilimitado
e ampliado o raio em 1 (um) quilômetro.
Constata-se pelo voto do ministro-relator que ele optou por não
adentrar nos aspectos do direito da concorrência, fato que prejudicou a
análise acerca da abusividade da cláusula de raio. Afirmou o ministro
do STJ Marco Buzzi:

Afigura-se salutar mencionar que dentre os


instrumentos/ mecanismos protetivos da livre
concorrência e da defesa do consumidor (entendido
esse, no caso, o cidadão que usufrui dos serviços
do shopping) temos que o CADE - Conselho
Administrativo de Defesa Econômica tem a
atribuição específica de cuidar dos entraves que
imponham riscos ou limitem de qualquer modo a
concorrência e a livre iniciativa, sendo esse órgão
o mais adequado para afirmar, categoricamente,
se determinada conduta gera ou tem condão de
ensejar a violação de garantias e princípios da ordem
econômica (BRASIL, 2016, p. 28-29).

O CADE já decidiu que o prazo da cláusula de raio deve ser


limitado. De acordo com a Superintendência Geral, “[...] uma vez que a
cláusula visa proteger o investimento realizado pelo shopping, deve estar
limitada ao tempo necessário para recuperá-lo, não podendo ser aceitas
cláusulas ad eternum” (CODE, 2007, p. 18).

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209
ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES

No caso concreto, a cláusula de raio analisada pelo Superior


Tribunal de Justiça é ad aeternum; por conseguinte, ainda que o
ministro não quisesse adentrar em questões técnicas afetas ao direito
da concorrência, poderia, com base na análise contratual e amparado
no entendimento do CADE, ter concluído pela abusividade da cláusula.

CONCLUSÃO

A cláusula de raio é lícita no direito brasileiro, mas ela pode ser


considerada abusiva se estabelecida em caráter unilateral e por tempo
indeterminado vinculada à cobrança de aluguel percentual pelo locador
num contrato de adesão.
A análise da cláusula de raio deve ser sempre realizada
em concreto. No entanto, alguns parâmetros objetivos devem ser
estabelecidos para sua validade no âmbito do direito da concorrência,
tais como: no aspecto material ela deve se restringir a shopping centers
do mesmo padrão; a restrição deve abranger a mesma marca, dentro do
mesmo segmento e se estender a todos os sócios ou parceiros do lojista;
seu tempo de duração deve ser de até cinco anos, em analogia com o
artigo 1.147 do Código Civil para a cláusula de não restabelecimento;
no aspecto espacial, relacionado ao mercado relevante no aspecto
geográfico, é razoável o tempo de deslocamento de 15 minutos entre
os dois empreendimentos. Tais parâmetros permitiriam a estipulação da
cláusula de raio sem que houvesse abuso do direito por parte do locador.
O fato de o contrato de locação em shopping center consistir em
um contrato de adesão ou em um contrato negociado deve ser analisado,
mas muitas decisões judiciais não se manifestam de maneira expressa

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CLÁUSULA DE RAIO NO DIREITO BRASILEIRO

sobre a diferente forma de interpretação da cláusula de raio nas duas


hipóteses de contratação.
Além disso, a razão da previsão da cláusula de raio na origem,
que já não é a mesma, não é analisada com a devida atenção. Tal
expediente deveria ser feito, para então, com base na finalidade atual da
cláusula de raio, o julgador pudesse perquirir sobre sua abusividade em
concreto.
A análise perfunctória realizada pelos tribunais em certos
julgados abre espaço para que os empreendedores, cientes do poder
de mercado que possuem, abusem da liberdade contratual de forma a
se locupletarem às custas dos lojistas. Ademais, pactuam, ainda que
indiretamente, contra a livre iniciativa e a livre concorrência.

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1941 - Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de julho de
1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei
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Como citar: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Considerações


sobre a cláusula de raio no direito brasileiro. Scientia Iuris, Londrina,
v. 21, n. 2, p. 182-213, jul. 2017. DOI: 10.5433/2178-8189.2017v21n
1p182. ISSN: 2178-8189.

Recebido em: 16/06/2016


Aprovado em: 09/03/2017

SCIENTIA IURIS, Londrina, v.21, n.2, p.182-213, Jul.2017 DOI: 110.5433/2178-8189.2017v21n2p182

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