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Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional

ISBN 978-65-5821-019-1

59844 9 786558 210191


Temas sociais
e educacionais
contemporâneos

Graziella Rollemberg

IESDE BRASIL
2021
© 2021 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R656t

Rollemberg, Graziella
Temas sociais e educacionais contemporâneos / Graziella Rollem-
berg. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021.
176 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5821-019-1

1. Educação ambiental. 2. Meio ambiente. 3. Desenvolvimento susten-


tável. I. Título.
CDD: 363.7
21-70382
CDU: 502.1

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Graziella Rollemberg Mestre em Educação Profissional e Tecnológica pelo
Instituto Federal de Sergipe (IFS). Especialista em
Docência do Ensino Superior pela Universidade Norte do
Paraná (Unopar). Licenciada em Sociologia pelo Centro
Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi). Bacharel
em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Docente e coordenadora editorial de coleções didáticas
e paradidáticas para Ensino Fundamental e Ensino
Médio. Autora de obras didáticas para Educação Básica
e Educação Superior e de obras paradidáticas para
Educação Básica das redes pública e privada há 25 anos.
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SUMÁRIO
1 Educação ambiental e consumo responsável  9
1.1 Compreendendo conceitos  10
1.2 Preservação e conservação do meio ambiente  13
1.3 Novas tendências de sustentabilidade  23
1.4 Educação ambiental  28

2 Educação financeira: um aprendizado para a vida  37


2.1 Sistemas econômicos e racionalidade econômica   37
2.2 Relações de produção e de trabalho   45
2.3 Economia solidária   50
2.4 Educação financeira e fiscal   56

3 Educação científica e inclusão digital  65


3.1 O que é conhecimento?   65
3.2 A ciência   71
3.3 A tecnologia   83
3.4 Ciência, tecnologia e educação   89

4 Promoção da saúde na escola  103


4.1 Saúde integral e qualidade de vida   104
4.2 Prevenção de doenças e de riscos   118
4.3 Promoção da saúde integral na escola   127

5 Respeito à diversidade na sociedade  139


5.1 Direitos humanos, igualdade e diversidade  139
5.2 Desigualdade e exclusão   153
5.3 Diversidade cultural: multiculturalismo e interculturalismo   159

Gabarito   171
APRESENTAÇÃO
Vídeo

Esta obra pretende subsidiar a abordagem, no contexto escolar,


dos Temas Transversais Contemporâneos (TCTs), propostos pela
Base Nacional Comum Curricular (BNCC), articulando conteúdos
conceituais e encaminhamentos didático-pedagógicos, no sentido
de contribuir para a formação integral do estudante e de fortalecer
o exercício das funções sociais da escola.
Segundo a BNCC, os TCTs podem explicitar a ligação entre
os diferentes componentes curriculares de maneira integrada
e relacioná-los com situações vivenciadas pelos estudantes em
suas realidades sociais, contribuindo para agregar contexto e
contemporaneidade aos objetos do conhecimento recomendados.
No primeiro capítulo, serão abordados conceitos como
natureza e meio ambiente, conservação e preservação ambiental,
ética ambiental e desenvolvimento sustentável, bem como
educação para o consumo responsável. Serão apresentados,
também, elementos para a construção de práticas em educação
ambiental e de intervenções no contexto escolar e local, a fim
de promover hábitos de consumo sustentável e uma cultura de
conservação do meio ambiente da comunidade.
O segundo capítulo trará conceitos básicos relativos
ao funcionamento dos sistemas econômico e financeiro e
orientações gerais sobre gestão da vida financeira, visando
formar cidadãos cientes das relações econômicas nas quais
estão inseridos e capazes de administrar suas finanças com
responsabilidade individual, social e ética, o que contribui para a
saúde financeira de toda a sociedade.
No terceiro capítulo, serão vistos os conceitos básicos
da ciência e da tecnologia e seus métodos próprios, assim
como noções da sua aplicação à análise da realidade e à
interpretação das informações às quais temos acesso no
cotidiano, buscando formar cidadãos capazes de selecionar,
compreender e interpretar criticamente essas informações,
assim como de construir sua visão de mundo e suas ações por
meio do conhecimento acumulado pela humanidade.
O quarto capítulo tratará das várias dimensões ligadas ao conceito de
saúde integral, que fundamenta as políticas públicas para a área de saúde no
Brasil, abordando as dimensões da saúde física, mental e social. O objetivo
é construir estratégias para a adoção de hábitos saudáveis que contribuam
para reduzir o risco de desenvolvimento de doenças, físicas ou mentais, como
hábitos alimentares saudáveis, atividade física regular, sono de qualidade,
interação social saudável, gerenciamento do estresse, redução de riscos e
doenças, eliminação do tabagismo, bons hábitos posturais, entre vários outros
que devem fazer parte das orientações voltadas para a formação integral dos
alunos no contexto escolar.
Por fim, o quinto capítulo abordará conceitos essenciais para a construção
de sociedades democráticas mais igualitárias e inclusivas – por exemplo,
diversidade, igualdade, desigualdade, equidade, alteridade, multiculturalismo,
cidadania e direitos humanos –, no intuito de contribuir para a construção
de práticas inclusivas de tolerância e respeito à diversidade na escola, bem
como para a mobilização da comunidade escolar na luta pela promoção da
igualdade de acesso aos direitos básicos e à cidadania plena.
Bons estudos!

8 Temas sociais e educacionais contemporâneos


1
Educação ambiental e
consumo responsável
Você já deve ter ouvido muitas vezes o termo meio ambiente em
contextos que destacavam a necessidade de proteger recursos na-
turais, como florestas, rios e mares, ou preservar espécies animais e
vegetais, ou ainda cuidar da vida do planeta em face do aquecimen-
to global etc.
O tema do meio ambiente é frequente em jornais e revistas, nas
notícias veiculadas na televisão e no rádio, em vídeos, postagens
e discussões nas redes sociais. Está presente também na escola
e em outros locais nos quais há diálogo sobre temas importantes
para a sociedade.
Os movimentos ambientalistas vêm ganhando cada vez mais
espaço na mídia, e a preservação do meio ambiente tem se torna-
do uma grande luta social em todo o mundo, principalmente para
a geração mais jovem.
Mas o que é o meio ambiente? Por que é tão importante
preservá-lo? É possível protegê-lo e, ainda assim, extrair subsistên-
cias e riquezas da natureza? Como gerar desenvolvimento para a
sociedade sem prejudicar o meio ambiente? O que pode acontecer
se algumas das práticas que prejudicam o meio ambiente não fo-
rem repensadas?
Neste capítulo você vai compreender os conceitos de nature-
za e meio ambiente, conservação e preservação ambiental, ética
ambiental e desenvolvimento sustentável e estudará um pouco a
educação para o consumo responsável. Com esses conhecimen-
tos, poderá responder às questões apresentadas aqui e a várias
outras, o que contribuirá para a construção de suas práticas em
educação ambiental e para suas intervenções no contexto escolar,
no sentido de promover hábitos de consumo sustentável e uma
cultura de conservação do meio ambiente da comunidade.

Educação ambiental e consumo responsável 9


1.1 Compreendendo conceitos
Vídeo Natureza e meio ambiente são conceitos que se transformaram ao
longo da história e que podem ter diferentes significados dependendo
da área de conhecimento e dos autores escolhidos.

De uma maneira simples, a natureza pode ser definida como um


conjunto de elementos presentes no mundo natural, como rios, ma-
res, montanhas, árvores, animais etc. Em geral, ela costuma ser vista
como algo externo aos indivíduos e muitas vezes como uma coleção
de recursos que servem à sobrevivência humana, o que sugere certa
oposição entre os seres humanos e o mundo natural, o qual precisaria
ser dominado e explorado em benefício das pessoas.

Uma definição simples de meio ambiente é: conjunto de fatores fí-


sicos, biológicos e químicos que cerca os seres vivos, influenciando-os
e sendo influenciado por eles (ONU, 1972). Nessa concepção o ser hu-
mano nem é citado.

Outra forma mais complexa de conceituar o meio ambiente é: con-


junto de unidades ecológicas que funciona como um sistema natural,
mesmo com uma intensa intervenção humana e de outras espécies do
planeta, incluindo toda a vegetação, os animais, os micro-organismos,
o solo, as rochas, a atmosfera e os fenômenos naturais que podem
ocorrer em seus limites (LIMA, 2010).

Percebemos que o meio ambiente costuma ser considerado algo que


engloba, além da natureza, todos os seres vivos e não vivos que existem
nela, sendo os humanos apenas um de seus integrantes, com importân-
cia equivalente à dos animais, das plantas, dos minerais etc.

A relação entre os seres humanos e a natureza assume as-


pectos diferentes dependendo da época, do local e do tipo de
organização social, cultural e econômica de cada grupo
humano. Ao longo da história, em alguns contextos,
a natureza foi vista como algo a ser conquistado e
explorado e, em outros, como algo a ser contemplado
e respeitado, quase como um paraíso na Terra.
sar
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utte Segundo Gonçalves (2000), o termo natureza não é
rsto
ck
um conceito natural, mas sim inventado pelos se-

10 Temas sociais e educacionais contemporâneos


res humanos, e depende muito da cultura e das intenções de cada grupo
social. Para o autor:
toda sociedade, toda cultura, cria, inventa, institui uma deter-
minada ideia do que seja a natureza. Nesse sentido, o con-
ceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e
instituído pelo ser humano. Constitui um dos pilares atra-
vés do qual os homens e as mulheres erguem as suas rela-
ções sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua
cultura. (GONÇALVES, 2000, p. 23)

Se a noção do que é a natureza foi construída pelo ser humano e


não é sempre a mesma em todas as culturas, épocas e lugares, é im-
portante conhecermos a história das interações humanas com ela. Va-
mos recuar um pouco no tempo: como nossos antepassados da época
pré-histórica interagiam com o ambiente que os cercava, com a nature-
za e com seus elementos?

Os seres humanos sempre exploraram de alguma forma o meio


ambiente para obter recursos e garantir sua sobrevivência. Itens como
água, alimentos e abrigo estavam disponíveis na natureza, mas era
preciso enfrentar alguns desafios para obtê-los, como percorrer longas
distâncias, lutar ou fugir de predadores, proteger-se de eventos climá-
ticos, entre muitos outros.

No início da história dos grupos humanos no planeta, a natureza era


vista como fonte de sobrevivência, mas também como força poderosa
e impossível de ser dominada pelos seres humanos. Gradativamente,
porém, isso foi se modificando. Nossos antepassados foram aprenden-
do com as experiências e, com base no que vivenciavam no
cotidiano, entendendo como evitar plan- Gorodenkoff/Shutterstock

tas venenosas e locais perigosos,


lutar com determinados animais
e fugir de outros, obter melho-
res alimentos, proteger-se me-
lhor do frio, da chuva ou do
calor excessivo etc.

Educação ambiental e consumo responsável 11


Esses conhecimentos adquiridos pela interação com o meio foram
sendo transmitidos de geração em geração. Com o tempo, a natureza
se tornou mais do que fonte de sobrevivência, passando a representar
também fonte de riquezas. Sua exploração foi então se ampliando e
começou a gerar consequências negativas, como a progressiva degra-
dação do meio ambiente. Entretanto, se no início os grupos humanos
eram pouco numerosos e nômades, isto é, quando a caça e a coleta no
local em que se encontravam começavam a ficar escassas, migravam
para outro ambiente que pudesse oferecer alimento por mais um pe-
ríodo. No decorrer do tempo essa situação foi se transformando.

A partir do período histórico chamado de Neolítico, os grupos hu-


manos descobriram como produzir seu próprio alimento por meio da
agricultura e da criação de animais. Com isso, passaram a se fixar em
um só local e foram crescendo e estabelecendo núcleos de convivência,
com moradias fixas, plantações etc. Para isso, era preciso intervir mais
ativamente no ambiente, derrubar árvores e arar a terra.

Sedat Demir /Shutterstock

Cidade de Çatalhöyük, Turquia, descrita como uma das mais antigas povoações do período Neolítico.

Bem mais à frente, nos séculos XVIII e XIX, com a invenção das
máquinas e o estabelecimento das primeiras fábricas, no contexto
da Revolução Industrial, a produção aumentou muito. As cidades se
ampliaram, e a retirada de matérias-primas da natureza assim como
a intervenção no ambiente para a construção de ruas, casas, fábricas,
ferrovias etc. aumentaram de modo considerável.

12 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Essa industrialização trouxe desenvolvimento para os centros urba- Documentário
nos, transformou os processos produtivos, melhorando a quantidade
Uma verdade inconveniente
e a qualidade dos produtos, e gerou lucro para a classe industrial, além é um famoso documentá-
rio, premiado com o Oscar
de novos postos de trabalho para a população em geral, mesmo que
de Melhor documentário
muitas vezes sem a justa remuneração ou as condições adequadas de em 2007, que mostra a
campanha que Al Gore,
trabalho e de vida. Basta observarmos as periferias das grandes cida-
na época vice-presidente
des para notarmos que a industrialização não trouxe desenvolvimento dos Estados Unidos e eco-
logista desde a década de
igual para todos.
1970, empreendeu pelo
A industrialização também proporcionou impactos cada vez mais país, alertando para os pe-
rigos do aquecimento glo-
profundos ao meio ambiente, contribuindo para que tenhamos de bal e incentivando os de-
conviver com o aquecimento excessivo do planeta, o desflorestamento bates sobre a necessidade
de reduzir a emissão de
causado por desmatamentos e queimadas, a desertificação, a poluição gases provenientes de
do ar, do solo, dos rios e dos mares, a produção de enormes quanti- combustíveis fósseis.

dades de lixo causadas pelo consumo desenfreado, a extinção de es- Direção: Davis Guggenheim. EUA:
Lawrence Bender Productions, 2006.
pécies, a destruição da biodiversidade, o surgimento de epidemias e
pandemias em razão da invasão dos seres humanos aos habitat natu-
rais de determinadas espécies animais, entre outros impactos negati-
Desafio
vos da ação humana.
Como proteger o meio ambiente
Vamos a partir de agora ampliar a compreensão de conceitos como dos impactos negativos da
preservação e conservação do meio ambiente, ética ambiental e de- industrialização e do consumo
exagerado e ao mesmo tempo
senvolvimento sustentável, bem como conhecer os movimentos am-
promover os desenvolvimentos
bientais e ecológicos e aprofundar as noções de educação ambiental e econômico e social?
consumo responsável. Assim, construiremos as bases de nossas ações
educativas na comunidade escolar com relação ao meio ambiente.

1.2 Preservação e conservação do meio ambiente


Vídeo Há meios de evitar a degradação do meio ambiente sem, no entanto,
proibir toda e qualquer exploração de recursos naturais. Para começar-
mos a entender melhor esse assunto, vamos conhecer dois conceitos
importantes: a conservação e a preservação do meio ambiente.

A legislação brasileira considera conservação ambiental a proteção


dos recursos naturais por meio da utilização racional, garantindo sua
sustentabilidade, ou seja, que continuem disponíveis para as próximas
gerações (BRASIL, 1981). O uso racional desses recursos previne tan-

Educação ambiental e consumo responsável 13


to a degradação do meio ambiente quanto o desaparecimento deles,
contribuindo também para a manutenção da vida humana no planeta.

Já a preservação ambiental é tida como a promoção da total integri-


dade dos recursos naturais exatamente como são hoje, permanecendo
intocados, o que é desejável nos casos em que há risco de perda de
biodiversidade, seja a extinção de uma espécie, um ecossistema ou um
bioma inteiro (DIEGUES, 2001). As áreas de preservação ambiental são
exemplos dessa forma de gestão do meio ambiente.

Figura 1
Ativistas em favor do meio ambiente

Valmedia/ shutterstock
Filme
O filme Na natureza
selvagem se baseia no
livro Into the Wild (1996),
do escritor, jornalista e
alpinista Jon Krakauer,
e narra a história
verídica de Christopher Jovens do mundo todo inspiraram-se no movimento liderado pela ativista ambiental sueca Greta
McCandless, um jovem Thunberg e marcharam, em várias cidades, em defesa do meio ambiente. Tais manifestações
recém-formado que abre culminaram em um protesto com milhares de jovens em Roma e no Vaticano, em abril de 2019.
mão de toda e qualquer
posse para empreender Esses conceitos muitas vezes são usados como sinônimos, mas não
uma jornada solitária em
busca de uma vida de
têm o mesmo significado, como acabamos de ver. Vamos conhecer um
equilíbrio com a natureza pouco da história dos debates a respeito do meio ambiente, assim com-
e despojada de qualquer
tipo de consumo. A
preenderemos melhor como os conceitos surgiram e se desenvolveram.
trilha sonora premiada
de Eddie Vedder e a
A noção da necessidade de preservar a natureza, precursora da
atuação inspiradora de ideia de preservacionismo, surgiu muito antes de existir o que cha-
Emile Hirsch no papel do
protagonista imprimem
mamos de movimento ambientalista. Um dos primeiros estudiosos
profundidade a esse a defender, ainda no século XIX, que a natureza deveria permanecer
drama real.
“intocada” pelos seres humanos foi o naturalista escocês-americano
Direção: Sean Penn. EUA: River Road
John Muir (1838-1914), cuja sensibilidade ecológica inspirou o ambienta-
Entertainment, 2007.
lismo, movimento que se consolidaria apenas em meados do século XX,

14 Temas sociais e educacionais contemporâneos


após a Segunda Guerra Mundial. Muir afirmava que o ser humano é
Curiosidade
parte integrante da natureza, por isso não poderia ter direitos mais
John Muir era proprietário
amplos do que outros animais (MCCORMICK, 1992). Bem mais tarde, rural, explorador, botânico,
essa ideia deu origem à corrente teórica chamada de biocentrismo, uma zoólogo e escritor, tendo
concepção que considera que todas as formas de vida têm importância discutido em suas obras o
que atualmente chamamos
equivalente, ou seja, o ser humano não seria mais importante que os de filosofia ambiental. Teve
outros seres vivos, nem o centro do universo. papel central na criação das
primeiras áreas de proteção
O preservacionismo pregava que era preciso proteger a natureza do ambiental norte-americanas
ser humano e, para isso, criar “ilhas” de preservação naturais, como e é considerado um dos
precursores do pensamento
unidades de conservação, parques nacionais etc., nas quais não fosse ecológico e dos movimentos
permitido o manejo de recursos naturais nem para a subsistência. ambientalistas modernos
(GRETEL, 2000).
O conservacionismo, por sua vez, surgiu com o objetivo de alertar
as pessoas dos impactos negativos da intensificação do consumo nas
sociedades capitalistas e das suas consequências, como a exploração
exagerada dos recursos naturais, que pode levar à escassez, ao desma-
tamento, à contaminação da água e do ar, à superprodução de lixo etc.

Gifford Pinchot (1865-1946), engenheiro florestal e político norte-


-americano, é considerado o criador do movimento conservacionis-
ta. Ele defendia o uso racional dos recursos naturais no intuito de
os conservar para as próximas gerações. Também
considerava o meio ambiente como fonte de lu-
cro e prosperidade, mas alertava para os abusos
de sua exploração, que poderiam causar escassez e
pobreza.

O movimento conservacionista propôs


três princípios fundamentais a respeito do
meio ambiente: o uso dos recursos natu-
rais pela geração presente, a prevenção do
desperdício e o uso dos recursos em benefício
da maioria dos cidadãos, e não apenas para uma elite
econômica (MCCORMICK, 1992; DIEGUES, 2001).

1.2.1 Ética ambiental e desenvolvimento


sustentável Ricardo Medina C/Shutterstock

É possível identificarmos no pensamento preservacionista a


essência da ética ambiental, pois essa corrente em geral considera

Educação ambiental e consumo responsável 15


que o ser humano não tem o direito de destruir outras vidas ou o meio
em que vive apenas para benefício próprio e que deve se relacionar de
maneira harmônica com tudo que o cerca. Por outro lado, para alguns
preservacionistas defensores da filosofia do “especismo”, os animais
existiriam apenas para servir ao ser humano. Este, por ser a única espé-
cie “racional”, seria eticamente responsável por conservar o ambiente
de que todos necessitam para viver.

Podemos pensar que a ética com relação ao meio ambiente é algo


“intuitivo”, “natural” do ser humano. Talvez tenhamos um impulso natu-
Saiba mais
ral por apreciar e nos sentir bem em meio à natureza, porém é necessário
No contexto da ética ambiental
ensinarmos e aprendermos princípios éticos referentes ao meio ambien-
surge a ética animal, que
fundamenta vários movimentos te, assim como a importância de proteger animais e plantas, de manter
em defesa dos animais e contra hábitos de uso racional da água e de outros recursos, sem desperdício,
sua exploração irresponsável.
de descartar corretamente o lixo etc.
Os princípios éticos na criação
e no abate de animais, nos experi- Uma educação centrada na relação com o outro e com tudo o que
mentos científicos que os usam
como cobaias e na noção de que nos cerca e baseada no respeito a todas as pessoas e a todos os seres
o ser humano deveria eliminar vivos abre as portas para o aprendizado da ética ambiental e das ações
completamente o consumo sustentáveis no cotidiano.
deles inspiram ativistas de vários
movimentos ao redor do mundo. Por outro lado, podemos identificar nas bases do que chamamos
Muitos desses denunciam
de sustentabilidade os princípios conservacionistas que influen-
o “especismo”, um tipo de
“discriminação” do ser humano ciaram boa parte dos movimentos ambientalistas contemporâneos.
em relação às outras espécies, Diegues (2001, p. 29) destaca que:
segundo o qual os humanos
teriam o direito de explorar e [o conservacionismo] foi um dos primeiros movimentos
matar outras espécies porque elas teórico-práticos contra o “desenvolvimento a qualquer custo”; a
seriam “inferiores”. Os ativistas dos grande aceitação desse enfoque reside na ideia de que se deve
direitos dos animais repudiam procurar o maior bem para o benefício da maioria, incluindo as
não só o especismo como
gerações futuras, mediante a redução dos dejetos e da ineficiên-
também a prática de classificar os
seres vivos entre os que sentem cia na exploração e do consumo dos recursos naturais não reno-
(seres sencientes) e os que não váveis, assegurando a produção máxima sustentável.
possuiriam tal capacidade, tendo
uma vida de “menor valor”. A noção conservacionista de que precisamos de um desenvolvimen-
to social e econômico sustentável, com base em uma produção de
bens e de riquezas que se sustente ao longo do tempo, conservando
os recursos em vez de apenas explorá-los até o fim e beneficiando a
maioria da sociedade, esteve presente desde os debates ecológicos da
década de 1970 até as grandes conferências mundiais sobre meio am-
biente, como a Eco-92.

16 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Livro
Essa ideia influenciou as políticas públicas am-
bientais de vários países, incluindo o Brasil, que em
1981 já dispunha de uma política nacional para o
meio ambiente, garantida por lei, a qual destacava o
papel do Estado na sua conservação, no desenvolvi-
mento sustentável e na educação ambiental de seus
cidadãos. Vamos conhecer um pouco melhor a traje-
tória histórica do pensamento e das ações em favor
do meio ambiente?

A origem dos movimentos ambientalistas da No livro Ética e experimentação animal:


fundamentos abolicionistas, a professora brasileira
atualidade advém do período pós-Segunda Guerra Sônia Felipe, doutora em filosofia moral e teoria
Mundial. A destruição das cidades japonesas de Hi- política pela Universidade de Konstanz, Alemanha,
constrói uma rica rede argumentativa contra a ex-
roshima e Nagasaki por bombas atômicas levantou perimentação científica em animais vivos, partin-
uma séria preocupação no mundo todo: será que o do de quatro diferentes perspectivas morais: as
tradições religiosas antigas, as filosofias moderna
ser humano irá em pouco tempo destruir o planeta e contemporânea, a ciência e a tradição jurídica.
Terra com uma guerra atômica? A autora também aponta duas noções opostas
presentes nessas perspectivas: a de que existe
O medo de que tanto desenvolvimento tecno- um valor inerente à vida de todas as espécies e
a de que o valor das outras espécies só existe à
lógico e industrial, tanto “progresso” nas ativida- medida que tragam benefícios à espécie humana.
des humanas acabasse por destruir o mundo e Florianópolis: Edufsc, 2014.
com ele a espécie humana se tornou presente no
imaginário coletivo. Inspirado no pensamento con-
servacionista, começou a surgir na Europa e nos
Estados Unidos a exigência legal de relatórios de impacto ambiental Documentário

para os empreendimentos que pudessem poluir ou prejudicar de O documentário


Hiroshima: the real story é
alguma forma o meio ambiente, como um modo de impor limites ao uma boa dica para saber
crescimento industrial e evitar catástrofes ecológicas. mais detalhes de um dos
mais marcantes eventos
Observe uma pequena linha do tempo das iniciativas mundiais para do século XX.

o desenvolvimento sustentável, lembrando que em 2021 realiza-se a Direção: Lucy van Beek. UK: Brook
Lapping Productions, 2015.
Cúpula de Líderes sobre o Clima, organizada pelo Presidente dos EUA
Joe Biden, na qual o tema do desmatamento na Amazônia é central.

Educação ambiental e consumo responsável 17


1986
O Brasil torna
obrigatório o estudo de
impacto ambiental para
qualquer licenciamento
de empreendimentos
potencialmente
danosos ao meio
ambiente. 1997
1983
1992
Assinatura do Protocolo
Criação da Comissão de Quioto.
Mundial sobre o Conferência Mundial
2002
Meio Ambiente e o das Nações Unidas
Desenvolvimento. sobre o Meio Ambiente
e Desenvolvimento, Conferência Rio+10, em
a ECO-92, no Rio de Joanesburgo, na África
Janeiro. do Sul.

2015
Pet Firmado o Acordo de
r Vac
lave Paris, na França.
k/Shu
utte
rsto
ck

2012
Conferência Rio+20, no
Rio de Janeiro.

2019
Conferência das
Nações Unidas sobre
Mudanças Climáticas,
em Madri, Espanha.

Em 2019, em Madri, a Conferência das Nações Unidas sobre Mu-


danças Climáticas avaliou o andamento do cumprimento das metas
anteriores com relação ao clima e estabeleceu em documento o com-
promisso de 70 países com a zero emissão de carbono até 2050. O
Brasil foi um dos principais obstáculos à assinatura do documento, ne-
gando-se a se comprometer com a não emissão de carbono.

Apesar de o país ter recentemente se posicionado de modo contrá-


rio aos compromissos mundiais com a conservação ambiental, foi um
dos pioneiros, ainda em 1981, do estabelecimento de políticas públicas
para o meio ambiente, garantidas por lei. Vejamos o que esclarece o
artigo 2º da Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a
Política Nacional do Meio Ambiente:
Art. 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo
a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambien-
tal propícia à vida, visando assegurar, no país, condições ao

18 Temas sociais e educacionais contemporâneos


desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança
nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos
os seguintes princípios:
I - ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico,
considerando o meio ambiente como um patrimônio público a
ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o
uso coletivo;
II - racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do ar;
III - planejamento e fiscalização do uso dos recursos ambientais;
IV - proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas
representativas;
V - controle e zoneamento das atividades potencial ou efetiva-
mente poluidoras;
VI - incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias orientadas
para o uso racional e a proteção dos recursos ambientais;
VII - acompanhamento do estado da qualidade ambiental;
VIII - recuperação de áreas degradadas;
IX - proteção de áreas ameaçadas de degradação;
X - educação ambiental a todos os níveis do ensino, inclusive a
educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participa-
ção ativa na defesa do meio ambiente. (BRASIL, 1981)

Podemos perceber no texto da lei o reconhecimento do papel do


Estado brasileiro no uso racional dos recursos ambientais, na prote-
ção e na recuperação de ecossistemas e áreas ameaçadas, no contro-
le de atividades com potencial de poluição do meio ambiente e, não
menos importante, na educação ambiental, tanto no contexto escolar
quanto na comunidade. Sem a educação ambiental de crianças e jo-
vens será inviável garantir o desenvolvimento sustentável do país, ou
mesmo proteger o meio ambiente de catástrofes ecológicas como te-
mos assistido ao longo do tempo, tais como queimadas e desmata-
mentos constantes, vazamento de petróleo nos mares, rompimento de
barragens e tantas outras.

1.2.2 Educação para o consumo sustentável


O sistema econômico capitalista se baseia na produção e no consu-
mo. Se não houver consumidores para comprar os produtos fabricados,
esse sistema não funciona. E é preciso lembrar que o desenvolvimento
sustentável não envolve apenas a produção, que demanda a retirada
de recursos da natureza, mas também o consumo, que gera impactos
no meio ambiente. Ou seja, todos nós precisamos incorporar princípios

Educação ambiental e consumo responsável 19


éticos com relação ao meio ambiente e modificar nossos hábitos coti-
dianos de consumo, contribuindo para que ocorra uma transformação
nos padrões de consumo de toda a sociedade.

Mas se por um lado a constante compra de objetos, móveis, equi-


pamentos, alimentos industrializados, roupas, produtos tecnológicos
etc. auxilia a manter as fábricas produzindo, o comércio vendendo os
produtos e parte dos trabalhadores em seus empregos, por outro, com
a intensificação e aceleração do consumo, estamos assistindo a uma
série de consequências negativas para o meio ambiente, a sociedade e
a qualidade de vida dos indivíduos.

Segundo o instituto Global Footprint Network (TERRA, 2013), se não


transformarmos nossos padrões de consumo até 2050, precisaremos
de dois planetas Terra para sustentar as necessidades da população
mundial. Ou seja, é uma questão de sobrevivência eliminarmos o con-
sumo exagerado, o chamado consumismo.

Carvalho (2017) aponta que por trás do consumo exagerado está


um modelo de pensamento predominante nas sociedades capitalistas
Para refletir contemporâneas – principalmente nas gerações mais recentes, que
Que exemplos estamos dando cresceram sob a aceleração tecnológica – voltado para a satisfação ime-
às crianças e aos adolescentes a
diata dos desejos, sem preocupação com as consequências desse tipo
respeito do consumo e de suas
consequências? de atitude, seus impactos no meio ambiente, na própria sociedade e na
qualidade de vida das pessoas.

A autora destaca que a crise ecológica tem raízes também em uma


crise educacional. Isto é, precisamos repensar o que tem sido ensinado
nas escolas no sentido de evitar o incentivo à cultura do consumismo,
do consumo exagerado, do desperdício e do descarte irresponsável.
Devemos refletir também sobre como o tema do consumo é tratado
nos meios de comunicação e até em nossas famílias.

É muito importante inserir na escola e nas famílias as reflexões sobre


o consumo para que crianças e adolescentes possam diferenciar a ne-
cessidade de adquirir do simples desejo de ter.

Uma noção importante que devemos construir com os alunos é a de


que existem dois tipos de consumo, um relacionado às necessidades
básicas das pessoas e outro à vontade, ao desejo de adquirir determi-
nados produtos. É preciso aprender a diferenciar as necessidades das
vontades.

20 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Há produtos que servem às necessidades básicas dos seres huma-
nos, relacionadas à garantia de sua sobrevivência, como ingerir água
e alimentos, abrigar-se do frio ou do calor excessivos e descansar em
segurança, mas também há inúmeros que não são essenciais à sobre-
vivência, apesar de ajudarem de algum modo a tornar as tarefas do
cotidiano mais fáceis, por exemplo.

Os itens não essenciais, como eletrodomésticos, eletrônicos, rou-


pas da moda, objetos de decoração, alimentos refinados, cosméticos
e tantos outros, são alvo do desejo das pessoas e muitas vezes têm
seu consumo incentivado na sociedade, principalmente pelos meios de
comunicação.

Quando dizemos que “precisamos” trocar de celular porque o apare-


lho está “ultrapassado”, mesmo que ainda esteja funcionando, na verda-
de não se trata de uma necessidade, mas sim de um desejo de compra.

Somos convencidos pelas propagandas de que é preciso comprar a


última novidade tecnológica ou nos sentiremos excluídos. Essa lógica, po-
rém, leva ao consumismo irresponsável, pois, ao comprar o novo apare-
lho, descartamos o antigo, e ele vai somar-se a toneladas de lixo que se
acumulam em todas as regiões do mundo, prejudicando o meio ambiente. Curiosidade
Durante a Eco-92 foi assinada a Agenda 21 Global, com metas a se- Pense na seguinte situação:
rem alcançadas no século XXI. O capítulo 4 desse documento trata do um eletrodoméstico comprado
há apenas dois ou três anos
consumo sustentável. Leia um trecho desse capítulo, apresentado no
quebra e você, comparando a
portal do Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2020): durabilidade dele com a de um
equipamento similar que teve no
O Consumo Sustentável envolve a escolha de produtos que uti-
passado, acha que o antigo pare-
lizaram menos recursos naturais em sua produção, que garan- ce ter durado muito mais tempo.
tiram o emprego decente aos que os produziram, e que serão Já passou por essa situação? É
facilmente reaproveitados ou reciclados. Significa comprar aqui- comum ouvirmos relatos como
lo que é realmente necessário, estendendo a vida útil dos produ- esse, mas será que é apenas
tos tanto quanto possível. Consumimos de maneira sustentável uma impressão ou há algum
fundamento? Na verdade não é
quando nossas escolhas de compra são conscientes, responsá-
apenas uma impressão, mas um
veis, com a compreensão de que terão consequências ambien- fato, e existe até um nome para
tais e sociais – positivas ou negativas. ele: obsolescência programada.
Mudança de comportamento é algo que leva tempo e amadure- Trata-se de um conjunto de
cimento do ser humano, mas é acelerada quando toda a socie- características que o fabricante
desenvolve propositalmente em
dade adota novos valores. O termo “sociedade de consumo” foi
seu produto para que este se tor-
cunhado para denominar a sociedade global baseada no valor ne ultrapassado ou não funcione
do “ter”. No entanto, o que observamos agora são os valores de mais após determinado tempo, a
sustentabilidade e justiça social fazendo parte da consciência co- fim de pressionar o consumidor
letiva, no mundo e no Brasil. Este novo olhar sobre o que deve a comprar um produto novo.

Educação ambiental e consumo responsável 21


ser buscado por cada um promove a mudança de comportamen-
to, o abandono de práticas nocivas de alto consumo e desperdí-
cio e adoção de práticas conscientes de consumo.
Consumo consciente, consumo verde, consumo responsável são
nuances do Consumo Sustentável, cada um focando uma dimen-
são do consumo. O consumo consciente é o conceito mais amplo
e simples de aplicar no dia a dia: basta estar atento à forma como
consumimos – diminuindo o desperdício de água e energia, por
exemplo – e às nossas escolhas de compra – privilegiando produ-
tos e empresas responsáveis. A partir do consumo consciente, a
sociedade envia um recado ao setor produtivo de que quer que
lhe sejam ofertados produtos e serviços que tragam impactos
positivos ou reduzam significativamente os impactos negativos
no acumulado do consumo de todos os cidadãos.

Agora vamos analisar o que o trecho propõe.

De início já temos uma explicação do que é o consumo sustentável.


Ele ocorre quando decidimos comprar determinados produtos não
apenas por razões ligadas às suas características, ao seu preço ou nos
baseando em propagandas sobre ele, mas porque analisamos quais
impactos terá no ambiente, incluindo seus efeitos sobre os seres hu-
manos. Consumimos de maneira sustentável quando escolhemos pro-
dutos considerando o modo como foram produzidos e distribuídos e a
forma como serão usados e descartados no ambiente.

As decisões de compra para um consumo sustentável envolvem


produtos que tenham sido produzidos usando menos recursos da
natureza; que foram feitos por trabalhadores que tiveram condições
dignas de trabalho; que foram produzidos localmente, para não en-
volver transporte de longas distâncias, o que gera poluição e consu-
mo de energia não renovável, como o petróleo; que gerarão menos
lixo quando forem descartados;
Photographee.eu/Shutterstock
e, se possível, que possam ser re-
ciclados ou reaproveitados.

22 Temas sociais e educacionais contemporâneos


O trecho mostra que o processo de mudança nos padrões de consu-
mo é complexo, mas afirma que é possível modificar os hábitos coleti-
vamente por meio da conscientização de cada um sobre a importância
de melhorar seu próprio comportamento no cotidiano. Para isso, preci-
samos prestar atenção ao que consumimos e por que consumimos, pre-
ferindo adquirir produtos de empresas ambientalmente responsáveis,
evitando o desperdício de recursos naturais como água, energia etc.

Mas como desenvolver padrões de consumo consciente, responsá-


vel e sustentável nas novas gerações?

Existem algumas alternativas inovadoras que podem inspirar as no-


vas gerações e ajudar a mudar seus hábitos de consumo. Há também
os caminhos da educação ambiental e da educação para os consumos
consciente, responsável e sustentável, que podemos desenvolver por
meio de práticas pedagógicas no âmbito escolar e com intervenções na
realidade social da comunidade.

1.3 Novas tendências de sustentabilidade


Vídeo A crescente conscientização dos impactos negativos do consumo no
meio ambiente gerou novas tendências no cenário contemporâneo. Uma
delas, ligada à proposta de consumo sustentável, é o lowsumerism. Esse
termo em inglês vem da junção das palavras low (baixo) e consumerism
(consumismo), ou seja, baixo consumismo.

Essa tendência, adotada principalmente por jovens na Europa e nos


Estados Unidos, mas que de várias formas já chegou a outros países
como o Brasil, propõe que consumamos menos, buscando alternativas
para viver apenas com o necessário, sem exageros, já que o consu-
mismo desenfreado é insustentável sob o ponto de vista da sobrevi-
vência do planeta. É por isso que alguns estudiosos da área traduzem
lowsumerism como consumo equilibrado, representando o contrário de
ser consumista.

Antes de conhecer melhor essa tendência, vamos refletir sobre uma


prática que se tornou comum nas grandes e médias cidades brasileiras:
o uso de transporte urbano por aplicativo. Cada vez mais as pessoas
deixam de usar seus carros particulares para se locomover nas cida-

Educação ambiental e consumo responsável 23


des, e preferem chamar um motorista de aplicativo e até mesmo com-
partilhar o veículo para realizar seus trajetos.

Por que várias pessoas gastariam altos valores para manter, cada
uma, um carro na garagem, disponível para eventuais deslocamen-
tos, quando podem compartilhar um mesmo automóvel por aplicati-
vo, cada uma conforme suas necessidades, sem arcar com o preço do
carro e de sua manutenção?

A pesquisa Deloitte Global Automotive Consumer Study (DELOITTE


GLOBAL, 2019), um estudo da indústria automotiva sobre tendências
de consumo no setor de transportes, publicado em 2019, e que ouviu
25 mil pessoas em 20 países, mostra que as chamadas gerações Y, ou
millennials (pessoas hoje com idade entre 26 e 39 anos), e Z (a parce-
la de 18 a 25 anos) são as que têm menor interesse de possuir carro
próprio, sendo os mais propensos a usar a mobilidade compartilhada.

No Brasil não é diferente. A edição de 2017 da mesma pesquisa reve-


la que 62% dos millennials brasileiros não deseja comprar um automóvel
e opta por serviços de transporte por aplicativos. Essa prática pode ser
Documentário incluída na tendência do lowsumerism, pois além de trazer praticidade e
Em Minimalismo: um do- economia ao consumidor contribui para a redução de automóveis circu-
cumentário sobre as coisas lando – muitas vezes com uma pessoa apenas –, o que diminui a emissão
importantes, dois amigos
de infância percorrem os de gases poluentes e os impactos negativos ao meio ambiente.
Estados Unidos buscando
fugir do consumismo e
Outra prática que se inclui nessa tendência é preferir o consumo
levar uma vida de maior de produtos com melhor qualidade e em menor quantidade. Um
liberdade e satisfação
pessoal em meio a uma
exemplo disso é o vestuário: em vez de ter um guarda-roupa cheio,
sociedade consumista, ter poucas peças de qualidade, que durem bastante e combinem
em que comprar parece
ser a prioridade.
bem entre si.
O próprio título da pro-
dução refere-se a uma
Reutilizar ou reciclar embalagens, roupas e objetos, dando outros
visão de mundo em que usos ao que seria descartado, adquirir peças usadas, assim como com-
“menos é mais”, ou seja,
uma postura que leva a
partilhar livros, vestuário e até apartamentos e casas também são prá-
viver de modo simples, ticas ligadas à redução do consumo. É cada vez mais difundida a prática
consumindo o menos
possível, em equilíbrio
de, em uma viagem, em vez de se hospedar em hotéis ou pousadas,
com o meio ambiente e ficar em imóveis compartilhados com os proprietários, pagando menos
sem ceder à tentação de
valorizar apenas o “ter” ao
e tendo uma experiência mais próxima de “viver” naquele lugar.
invés do “ser”.
Há hoje uma tendência chamada de moda acessível ou moda
Direção: Joshua Fields Millburn e
sustentável e estabelecimentos conhecidos como guarda-roupa
Ryan Nicodemus. EUA: Netflix, 2015.
compartilhado, os quais oferecem a oportunidade de adquirir itens para

24 Temas sociais e educacionais contemporâneos


uso por períodos curtos, o que evita a compra de pe-
ças que ocupam o armário para serem usadas apenas
em determinadas ocasiões. Isso reduz os impactos no
meio ambiente, já que a indústria da moda é uma das
mais poluentes: cerca de 35% das microfibras lança-
das nos oceanos vem de têxteis, e as etapas de
processamento de roupas emitem 20% do carbono
Tero Vesalainen/Shutterstock
na atmosfera.

Feiras de trocas de roupas, livros e outros objetos também fazem


parte da tendência de baixo consumismo ou consumo equilibrado e
podem ser facilmente organizadas na comunidade e dentro das esco-
las, com a colaboração da comunidade escolar.

1.3.1 Produção, trabalho e consumo para um mundo


sustentável
Na sociedade capitalista em que vivemos, muitas vezes a valorização
do individualismo, da competitividade e do lucro a qualquer custo preju-
dica a percepção da coletividade sobre o que realmente importa: a vida.

Assim como é importante valorizarmos a vida de todos os seres vi-


vos e do ambiente que possibilita a sobrevivência das espécies, tam-
bém é fundamental zelarmos pela qualidade de vida e dignidade do
trabalho dos seres humanos, pois é essa a atividade essencial das
pessoas para gerar sua própria subsistência. Do mesmo modo que é
antiético explorar de modo irresponsável o ambiente, os animais etc.,
é também antiético explorar as pessoas em processos de produção in-
justos ou insalubres.

A busca de ampliar cada vez mais a produção e os lucros, como


objetivo dos desenvolvimentos industrial e tecnológico, foi vista como
o único caminho para o desenvolvimento humano. Entretanto, grada-
tivamente está se consolidando a noção de que “progressos” técnico e
produtivo nem sempre trazem desenvolvimentos social e econômico
para toda a sociedade, e muitas vezes as consequências são a escassez
de recursos naturais, a degradação do meio ambiente e até o adoeci-
mento da população.

Educação ambiental e consumo responsável 25


Desenvolvimento sustentável, como a própria expressão diz, é um
desenvolvimento que se sustenta no tempo, que não destrói para se
estabelecer, pois ao destruir está condenando todos à escassez. Para
desenvolver o país de modo sustentável é preciso pensar na melhoria
das condições de vida de toda a população e na conservação dos recur-
sos do nosso território em benefício de todos.

Se pelo lado do consumo a tomada de consciência ambiental já está


rendendo bons frutos, por parte da produção também observamos
algumas mudanças. As chamadas soluções verdes, novos processos e
tecnologias que tornam a produção mais sustentável, reduzindo a ex-
ploração de recursos naturais e os impactos no meio ambiente, já es-
tão sendo adotadas por vários setores da indústria.

Muitas vezes as medidas tomadas para diminuir o potencial poluidor


de uma fábrica também geram redução nos custos de produção e agre-
gam valor às marcas das empresas, as quais já começam a perceber que
o perfil dos consumidores mudou, que muitas pessoas passam a preferir
empresas que prezam pelas responsabilidades ambiental e social, e que
decidem consumir produtos com menor impacto no meio ambiente.

Algumas dessas medidas em busca da sustentabilidade são:


• Reutilização de água em processos industriais, evitando a explo-
ração continuada das águas dos rios.
• Tratamento de resíduos descartados no meio ambiente.
• Uso de matrizes energéticas sustentáveis, como a energia eóli-
ca e a fotovoltaica, para movimentar máquinas e fazer funcionar
equipamentos industriais.
• Responsabilidade pela reciclagem de embalagens e outros com-
ponentes descartados ligados à produção.
• Emprego de substâncias biodegradáveis e substituição de carbo-
no derivado de combustíveis fósseis como o petróleo na fabrica-
ção de produtos de limpeza e higiene.
• Aplicação de tecnologias alternativas no manejo de pragas na
agricultura extensiva destinada à indústria de alimentos.
• Controle e redução de emissão de gases de efeito estufa em fábricas.

Essas e outras iniciativas são exemplos de práticas de produção sus-


tentáveis e que contribuem para a conservação ambiental.

26 Temas sociais e educacionais contemporâneos


As pequenas empresas também estão começando a aderir às ten- Curiosidade
dências de sustentabilidade. Segundo o Sebrae (2018), são seis as prin- A Unilever, empresa multinacio-
nal considerada a terceira maior
cipais tendências para os pequenos negócios:
fabricante de bens de consumo
do mundo, com produtos pre-
Empreendedorismo com Diversidade como vantagem
sentes em 190 países, anunciou
propósito competitiva
que substituirá 100% do car-
bono derivado de combustíveis
Pequenos empreendedores criam A percepção de que as chamadas fósseis de seus produtos de lim-
negócios que possam realizar seus minorias são consumidores em peza e lavanderia por carbono
propósitos pessoais de acordo potencial tem gerado interesse de obtido de fontes renováveis ou
com seus valores e suas crenças criar pequenos negócios com linhas de recicladas (a chamada química
e preocupados com os desafios produtos e serviços que contemplem verde). A iniciativa é parte de
socioambientais. esse nicho de mercado que as grandes seu programa de inovação e
empresas por vezes não enxergam. sustentabilidade denominado
Futuro Limpo, que também
pretende: zerar as emissões
Inovação e tecnologia em favor de Economia colaborativa como líquidas de seus processos de
negócios mais sustentáveis fonte de crescimento produção até 2039; eliminar os
petroquímicos, substituindo-os
Diante da ameaça de escassez de Em um cenário em que as pessoas por matéria-prima vegetal;
recursos naturais, a inovação é a estão ultrainformadas e conectadas e tornar todos os seus produtos
resposta para desenvolver produtos há o desejo de criar soluções inovadoras biodegradáveis; diminuir o
com menos impactos ambiental e e contribuir com a coletividade, cresce consumo de água; e reduzir
social. o papel da colaboração como base de o plástico de uso único nas
novos pequenos negócios. embalagens, substituindo-o por
plástico reciclado e plástico verde
provenientes da cana-de-açúcar
(UNILEVER..., 2020).
Economia circular como Cidades sustentáveis,
ambientes para o
oportunidade de negócio empreendedorismo

Com o planeta dando mostras de As pequenas empresas têm papel


que não suportará por muito tempo importante na oferta de produtos
o modelo de desenvolvimento e serviços adequados às realidades
exploratório do sistema capitalista locais, tornando os espaços urbanos
tradicional, surgem negócios que mais sustentáveis e garantindo a
não seguem mais a lógica linear de qualidade de vida.
produção, consumo e descarte, mas
a lógica circular do reuso, reciclagem,
trocas e compartilhamento.

Essas e outras tendências de sustentabilidade para os pequenos


negócios podem não só trazer benefícios para o meio ambiente e a
qualidade de vida das pessoas, mas também gerar renda direta para as
famílias que se dedicam ao empreendedorismo como forma de driblar
a falta de oportunidades no mercado de trabalho.

Educação ambiental e consumo responsável 27


1.4 Educação ambiental
Vídeo No contexto da Eco-92 foram elaborados documentos importan-
tes, como a Carta da Terra, a Convenção sobre Diversidade Biológica,
a Convenção sobre Mudanças Climáticas, a Declaração sobre Florestas
e a Agenda 21, os quais orientam como promover o desenvolvimento
sustentável das sociedades, com melhor qualidade de vida e por meio
da preservação dos ecossistemas. Surgiu então uma importante linha
de pensamento educacional, que amplia a noção de educação ambien-
tal: a ecopedagogia.
Documentário Gadotti (2005), em seu livro Pedagogia da Terra, trata da ecopedago-
O belo documentário/ gia como uma educação sustentável, voltada para uma relação saudá-
drama Home – Nosso
planeta, nossa casa ilustra
vel com o meio ambiente e centrada na noção de que o que realizamos
muito bem as teses de na vida cotidiana e o sentido mais profundo de nossa existência estão
Gadotti sobre a cidadania
planetária. Com suas
ligados diretamente ao futuro da humanidade e do planeta Terra.
impressionantes imagens
Na obra o autor desenvolve conceitos importantes a serem traba-
aéreas de diversos locais
do planeta, faz refletir lhados no contexto escolar, como a consciência e a cidadania planetá-
sobre a trajetória do ser
ria. Ele defende que se inclua no currículo escolar a formação para a
humano na Terra, sua
exploração do meio am- cidadania planetária, ou seja, a formação para se situar como parte da
biente, seus padrões de
humanidade e do planeta como um todo, não apenas como cidadão de
consumo e a necessidade
de buscar a sustentabi- determinada região ou país, já que todos vivemos em uma comunida-
lidade. Foi dirigido pelo
de que é global e local ao mesmo tempo.
jornalista, fotógrafo e
ambientalista francês
Gadotti (2005, p. 19-20) defende que:
Yann Arthus-Bertrand, o
qual declara, na obra, que o desenvolvimento sustentável, visto de forma crítica, tem um
sua intenção era mostrar
componente educativo formidável: a preservação do meio am-
que “o nosso ecossistema
não tem fronteiras. Onde biente depende de uma consciência ecológica e a formação da
quer que estejamos, consciência depende da educação. É aqui que entra em cena a
as nossas ações terão ecopedagogia. Ela é uma pedagogia para a promoção da apren-
repercussões”.
dizagem do sentido das coisas a partir da vida cotidiana. [...] Não
Direção: Yann Arthus-Bertrand. aprendemos a amar a Terra lendo livros sobre isso, nem livros
França: EuropaCorp, 2009.
de ecologia integral. A experiência própria é o que conta. Plan-
tar e seguir o crescimento de uma árvore ou de uma plantinha,
caminhando pelas ruas da cidade ou aventurando-se numa flo-
resta, sentindo o cantar dos pássaros nas manhãs ensolaradas
ou não, observando como o vento move as plantas, sentindo a
areia quente de nossas praias, olhando para as estrelas numa
noite escura.

28 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Para orientar as práticas pedagógicas dos educa-
dores, o autor lista alguns princípios de referência
para a ecopedagogia, nos quais podemos reconhecer
a influência de Jean Piaget e Paulo Freire:
• O planeta como uma única comunidade.
• A Terra como mãe, organismo vivo e em
evolução.
• Uma nova consciência que sabe o que é sus-
tentável, apropriado, e faz sentido para a Rawpixel.com/Shutterstock
nossa existência.
• A ternura para com essa casa. Nosso endereço é a Terra.
• A justiça sociocósmica: a Terra é um grande pobre, o maior de
todos os pobres.
• Uma pedagogia biófila (que promove a vida): envolver-se,
comunicar-se, compartilhar, problematizar, relacionar-se,
entusiasmar-se.
• Uma concepção do conhecimento que admite só ser integral
quando compartilhado.
• O caminhar com sentido (vida cotidiana).
• Uma racionalidade intuitiva e comunicativa: afetiva, não
instrumental.
• Novas atitudes: reeducar o olhar, o coração.
• Cultura da sustentabilidade: ecoformação. Ampliar nosso ponto
de vista. (GADOTTI, 2005, p. 26)

O papel da escola na construção de uma cultura da sustentabilida-


de, o que Gadotti chama de ecoformação, é muito importante. Mais do
que educar para a sustentabilidade e mostrar aos alunos que todos
nós fazemos parte de um mesmo organismo vivo, a Terra, a escola pre-
cisa oferecer cotidianamente exemplos práticos de comportamentos e
atitudes sustentáveis e exercitar esses atos de cidadanias ambiental e
planetária. Mas como inserir no currículo esse tipo de formação?

É justamente a função dos temas transversais, previstos na Base Para refletir


Nacional Comum Curricular (BNCC), proporcionar a inserção no
De que adianta falar aos alunos da
currículo, de modo transversal, de temas sociais contemporâneos im- conservação do meio ambiente,
portantes para a formação integral de crianças e jovens. Um desses explicar a sustentabilidade e
o consumo responsável, mas
temas é a educação ambiental, que abarca a educação para a susten- colocar copos de plástico junto ao
tabilidade e o consumo responsável e que pode ser abordada sob a bebedouro, por exemplo?
perspectiva da ecoformação de que fala Gadotti.

Educação ambiental e consumo responsável 29


As práticas cotidianas na escola são a melhor forma de estimular
comportamentos sustentáveis e novos padrões de consumo. A refle-
xão sobre os próprios comportamentos, estimulada durante as aulas
por meio de rodas de conversa, palestras de profissionais externos à
escola e membros da comunidade, campanhas de conscientização no
meio escolar etc., pode ser um bom início para a mudança de atitudes
e hábitos na comunidade escolar. Entretanto, é preciso colocarmos em
prática os novos hábitos por meio de condutas cotidianas, como evitar
o desperdício de recursos, o descarte exagerado de lixo na escola, en-
tre outras.

Por meio da reflexão e conscientização e da convivência com exem-


plos de comportamentos sustentáveis no cotidiano escolar, crianças
e adolescentes passam a adotar novos hábitos também em casa e
tornam-se divulgadores desses novos padrões em suas famílias.

1.4.1 Atitudes e comportamentos sustentáveis


Há comportamentos que precisam ser ensinados e exemplificados
diariamente na escola, pois significam o bom uso dos recursos naturais
e a conservação do meio ambiente, e devem ser incorporados ao coti-
diano familiar dos alunos, tais como: não desperdiçar água; nunca dei-
xar torneiras abertas enquanto se ensaboa as mãos, escova os dentes
ou realiza qualquer outra atividade; economizar energia – para isso não
deixar a luz acesa em espaços que não estão sendo utilizados, preferir
a luz solar durante o dia e evitar abrir a geladeira a todo momento;
separar o lixo orgânico do reciclável; e tentar reaproveitar embalagens
e produtos usados.

Para estimular e exemplificar esses comportamentos, podem ser


aplicadas estratégias lúdicas como um concurso ou uma gincana per-
manente de economia de recursos naturais na escola, em que os alu-
nos ganham e perdem pontos conforme economizam ou desperdiçam
água e energia.

A aferição pode ser feita por meio de estratégias de avaliação conti-


nuada com observação e registro do professor e estratégias de autoa-
valiação dos alunos, que podem ser implementadas, por exemplo, com
base nos princípios da aprendizagem por pares, na qual dois alunos
colaboram no registro das ações um do outro.

30 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A pontuação pode ser exposta em um ranking da sustentabilidade de Documentário
cada turma. Ao final do ano, a sala que mais economizou água, energia Narrado pelo ator inglês
Jeremy Irons e grande
elétrica etc. pode ganhar uma medalha ou outro prêmio simbólico. Desse sucesso de crítica, o
modo, os alunos são incentivados a alcançar metas de sustentabilidade documentário investigativo
Trashed – Para onde vai o
coletivamente e acabam adotando as mesmas atitudes em suas casas. nosso lixo revela o modo
como as autoridades da
Outra estratégia que pode ser divertida e ajuda a construir hábitos administração pública
sustentáveis é a confecção de lixeiras pelos próprios alunos para desti- de países do Hemisfério
Norte tratam da desti-
nação de cada tipo de lixo reciclável na sala de aula. Isso pode ser feito nação do lixo industrial
reaproveitando caixas de papelão, por exemplo, ou com sacos plásti- desde o final do século XIX
até a atualidade, e busca
cos coloridos fixados em painéis na parede ou em suportes. apontar caminhos para o
manejo sustentável dos
Desse modo o aprendizado da separação correta de lixo, sua des- materiais descartados,
tinação e reciclagem parecerá mais significativo para os alunos e será mostrando a importância
da reciclagem do lixo.
mais facilmente aplicado no dia a dia.
Direção: Candida Brady. EUA: Blenheim
Films, 2012.

versus/Shuttestock
Vermelho
Amarelo

Marrom

Verde
Azul

Lixeiras para destinação separada de lixo, com cores que caracterizam cada tipo de resíduo: amarelo –
metais; azul – papel e papelão; marrom – resíduos orgânicos; verde – vidro; vermelho – plástico.

Para construir atitudes e hábitos de consumo sustentáveis, respon-


sáveis com relação ao meio ambiente, precisamos levar os alunos à
reflexão sobre os próprios padrões de consumo, para depois propor-
mos mudanças com base na percepção deles mesmos sobre as conse-
quências negativas de algumas de suas decisões de compra. Esse
trabalho pode ser desenvolvido na sala de aula ou na escola como um
todo e envolver toda a comunidade escolar. ock

É necessário explicarmos que, quando se está em um momento de


terst

decisão de compra, é importante fazer a si mesmo alguns questiona-


Shut
und/

mentos importantes antes de comprar, pois ajudam a tomar decisões


ob L

de consumo mais sustentáveis:


Jac

A bicicleta é uma opção de meio de transporte


mais econômico e com menos impacto sobre
no ambiente.

Educação ambiental e consumo responsável 31


• Eu preciso realmente do produto?
• Eu tenho algum produto com as mesmas funções que poderia
ser consertado, reformado ou reciclado, evitando a compra de
um novo?
• Vou usar o produto com muita frequência ou provavelmente fi-
cará abandonado em um canto da casa? (Esse questionamento é
muito útil com relação a brinquedos).
• O produto fará uma diferença real no meu dia a dia ou posso
muito bem continuar sem ele?
• Eu preciso do produto imediatamente ou posso adiar a compra?
• Eu tenho dinheiro sobrando para comprá-lo ou isso trará dificul-
dades para o meu orçamento?
• Comprar o produto é apenas um desejo de exibi-lo para os ou-
tros, de me sentir incluído em um grupo ou de estar “na moda”?
• De que modo irei descartar o produto quando não for usá-lo
mais? É um item reciclável?
• O produto foi produzido tendo alguma preocupação com os
impactos ao meio ambiente?
• Ele foi produzido localmente ou transportado de muito longe?

Esses questionamentos podem ser levantados com alunos de todas


as faixas etárias, para que os adotem toda vez que estiverem em uma
situação de compra, mesmo que apenas acompanhando familiares.

Se a cada compra que pensamos em realizar fizermos essas pergun-


tas a nós mesmos e tentarmos responder a elas de maneira honesta,
com certeza evitaremos muitas das chamadas compras por impulso, das
quais provavelmente vamos nos arrepender.

Com as crianças e os adolescentes é a mesma coisa: se aprende-


rem a fazer esses autoquestionamentos antes de cada decisão de
compra, estarão realizando o que denominamos preciclagem, que é a
escolha de um produto em função de seu menor impacto ambiental
ou social. Notemos que a reciclagem é feita após o uso de um produto,
para reaproveitá-lo de algum modo; já a preciclagem é um processo
anterior ao consumo e que o define. Com essa aprendizagem, estudan-
tes podem se tornar adultos mais responsáveis com seu consumo e
contribuir para o desenvolvimento sustentável da sociedade.

32 Temas sociais e educacionais contemporâneos


1.4.2 Intervenção na comunidade
escolar
Há várias estratégias interessantes de inter-
venção na comunidade escolar para incentivar a
conscientização da sustentabilidade e estimular
comportamentos sustentáveis. Algumas delas são:
Robert Kneschke/Shutterstock
• Iniciar a primeira aula da semana sempre com
uma roda de conversa sobre o que os alunos fize-
ram no fim de semana e ajudá-los a analisar suas atitudes com
relação ao consumo, à economia de recursos como água e ener-
gia e ao descarte de lixo.
• Promover campanhas regulares na escola, com cartazes, pales-
tras etc. sobre um tema ligado à busca do desenvolvimento sus-
tentável: consumo equilibrado, defesa dos animais, conservação
de áreas ambientais na comunidade local etc.
• Instituir na escola datas comemorativas ligadas à conserva-
ção ambiental, como: Dia Mundial da Água (21 de março), Dia
Internacional da Biodiversidade (22 de maio), Dia Mundial do
Meio Ambiente (5 de junho), Dia do Consumo Consciente (15 de
outubro), entre várias outras previstas no calendário. Para esses
dias é possível preparar eventos – com a divisão das tarefas entre
as turmas de alunos – como mostras culturais e científicas, cam-
panhas de conscientização, projeção de filmes e documentários
sobre os temas ligados ao meio ambiente etc.
• Criar e manter uma horta na escola com a colaboração de toda a
comunidade escolar e até dos familiares dos alunos e dos outros
membros da comunidade local. A horta é uma excelente estraté-
gia para construir conhecimentos práticos relacionados à susten-
tabilidade, ao meio ambiente e à alimentação saudável, podendo
constituir um eixo permanente na escola para a educação am-
biental dos alunos. Mesmo em pequenos espaços é possível criar
coletivamente hortas verticais ou pequenos canteiros suspensos,
por exemplo.
• Promover regularmente na escola feiras de trocas de livros, revis-
tas, brinquedos, roupas e outros objetos de interesse dos alunos,
conforme cada faixa etária, é uma boa estratégia para educar
para o consumo sustentável e passar a reconhecer a qualidade,

Educação ambiental e consumo responsável 33


o valor de uso e o valor sentimental dos objetos, e não sua quan-
tidade. As feiras de trocas, muito aplicadas como estratégia de
ensino de matemática, podem contribuir para a criação de uma
cultura de sustentabilidade na escola e até na comunidade local.
• Manter coleções de compartilhamento nas salas de aula. Montar
coletivamente uma biblioteca comunitária da turma, uma brin-
quedoteca coletiva, um guarda-roupa compartilhado etc. contri-
bui para a compreensão prática da economia circular, que não se
baseia em consumo e descarte, mas no reuso e no compartilha-
mento de produtos, para que tenham vida útil mais longa e evi-
tem o consumo e o descarte exagerado de lixo no meio ambiente.
• Montar uma pequena oficina de reciclagem na escola. Sob orien-
tação de docentes e outros membros da comunidade escolar, os
alunos, conforme suas capacidades, perfis e idade, podem cole-
tar e reciclar embalagens e outros materiais, transformando-os
em objetos úteis para os espaços escolares. Garrafas PET, caixas
de papelão e de madeira e outras embalagens recicladas podem
se tornar suportes para a horta escolar, para as feiras de troca e
coleções compartilhadas, assim como podem ser transformadas
em brinquedos, utensílios para a sala de aula, entre outras inú-
meras funções que a criatividade alcançar.

Essas e outras estratégias de intervenção na comunidade escolar


para incentivar a conscientização para a sustentabilidade são meios
práticos de engajar docentes, funcionários e alunos em ações efetivas e
gerar mudanças de hábitos e padrões cotidianos no sentido de formar
para a adoção de comportamentos sustentáveis no dia a dia da escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É urgente a conscientização dos impactos causados no meio ambiente
do planeta pelos modos de exploração, produção e consumo da socie-
dade capitalista, assim como da ação individual de cada um de nós por
meio de atitudes, hábitos e comportamentos. A Terra tem mostrado sinais
de que não temos mais tempo: precisamos transformar nossos valores e
nosso modo de vida antes que sejamos responsáveis pela destruição de
nosso habitat e do de inúmeras outras espécies.
A busca do desenvolvimento sustentável é mais do que uma tendên-
cia, um estilo de vida ou uma opção pessoal: é uma necessidade plane-
tária. Antes de sermos cidadãos brasileiros, somos cidadãos do planeta

34 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Terra e é nossa obrigação contribuir para que o planeta sobreviva, já que
dependemos dele para nossa própria sobrevivência.
A qualidade da vida em comunidade, das relações de trabalho, da saú-
de coletiva e do futuro de todos nós como sociedade depende da conser-
vação ambiental, da manutenção dos recursos naturais e da convivência
em equilíbrio entre as espécies. Consumir não pode ser mais importante
do que assegurar a permanência da vida no planeta.
E a chave para isso é a educação: ecopedagogia, ecoformação, for-
mação para a cidadania planetária, educação ambiental, educação para
a sustentabilidade, educação para o consumo consciente e responsável,
educação para o respeito a todas as espécies, educação para a recicla-
gem, educação para a economia circular etc. Não importa como chame-
mos, a educação passa por todas essas perspectivas e é a solução para a
criação de uma cultura da sustentabilidade e para a formação de novas
gerações comprometidas com a saúde do planeta e da sociedade como
um todo e que respeitem o valor universal da vida.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Quais são as semelhanças e diferenças entre os conceitos de
preservacionismo e conservacionismo?

2. Há um termo que expressa, essencialmente, o modo de proteger o meio


ambiente dos impactos negativos da industrialização e do consumo
exagerado e, ao mesmo tempo, promover os desenvolvimentos
econômico e social. Qual é esse termo?

3. O posicionamento do Estado brasileiro na conferência mundial do


meio ambiente de 2019 difere de seus posicionamentos em todas
as conferências anteriores. Qual é a principal diferença entre tais
posicionamentos?

4. Explique o que é lowsumerism e dê um exemplo dessa tendência.

REFERÊNCIAS
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Educação ambiental e consumo responsável 35


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mais-recursos-para-sustentar-padrao-de-consumo-atual/. Acesso em: 4 dez. 2020.
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verde. Revista Meio Ambiente Industrial, 26 out. 2020. Disponível em: https://rmai.com.
br/unilever-anuncia-transicao-dos-produtos-de-limpeza-e-lavanderia-para-quimica-
verde/. Acesso em: 4 dez. 2020.

36 Temas sociais e educacionais contemporâneos


2
Educação financeira: um
aprendizado para a vida
Os aspectos econômicos e financeiros estão muito presentes
em nosso cotidiano, mas nem sempre percebemos como os sis-
temas econômico e financeiro funcionam e, várias vezes, também
não temos clareza sobre como gerir da melhor maneira nossa
vida financeira.
Para formar adultos conscientes das relações econômicas em
que estão inseridos e capazes de administrar suas finanças com
responsabilidade e ética, de modo a proporcionar conforto e tran-
quilidade para si e para os outros, é preciso desenvolver deter-
minados conhecimentos e habilidades. Essas aprendizagens serão
abordadas neste capítulo.

2.1 Sistemas econômicos e


Vídeo racionalidade econômica
Quando se fala em sistemas econômicos, é provável que nos venha
à mente algo relacionado ao sistema que organiza a economia de um
país. É comum pensarmos também que esse tipo de sistema é o que
promove economia, ou seja, mais ganhos e menos gastos, ou maior
produção a um custo menor, gerando maior lucro.

Essas ideias estão atreladas àquilo que conhecemos, à maneira


como a nossa sociedade está estruturada e ao sistema econômico vi-
gente: o capitalista. No entanto, não existe apenas um tipo de sistema
econômico em todos os lugares do mundo, assim como já existiram
diferentes sistemas econômicos ao longo da história.

A base econômica das sociedades, seus modos de produção e suas


relações de trabalho se transformam conforme passa o tempo e dife-

Educação financeira: um aprendizado para a vida 37


rem entre si. Segundo Godelier (1969, p. 327), a regra econômica de
“maximizar a produção e minimizar os custos” só faz sentido no con-
texto de uma “hierarquia de necessidades e valores que se impõem
aos indivíduos no seio de determinada sociedade e que têm seu funda-
mento na natureza das estruturas desta sociedade”. Isso significa que
o modo de pensar a economia – ou o que chamamos de racionalidade
econômica – nas sociedades capitalistas não faria nenhum sentido nas
sociedades pré-industriais ou em outras regiões do mundo que ado-
tam sistemas diferentes.

De maneira simples, podemos definir sistema econômico como a


forma política, social e econômica pela qual uma sociedade se organi-
za, incluindo o tipo de propriedade, o modo de produção e distribuição
de riquezas, a gestão da economia e a divisão e as relações de trabalho.
Dependendo do tipo específico de sistema econômico de que estamos
tratando, podemos incluir no conceito os processos de circulação das
mercadorias, o consumo e os níveis de desenvolvimento tecnológico
da sociedade.

Indo além, de modo mais elaborado, temos vários conceitos para


sistemas econômicos. Um deles é o do historiador polonês Kula (1970),
que os define como um conjunto mais amplo que integra coerente-
mente uma série de fatos econômicos e relações de dependência eco-
nômica em uma sociedade, durante determinado período histórico.

A racionalidade econômica do sistema capitalista baseia-se na lógi-


ca de mercado, que considera tudo como recurso – a natureza, o ser
humano, o conhecimento, o trabalho –, tudo deve se tornar lucrativo.
Sob essa visão, só existe um único modelo de desenvolvimento possí-
vel para a sociedade, o qual depende de aumentar cada vez mais a
produção e o lucro, o que muitas vezes ocasiona danos irreversíveis ao
meio ambiente e à vida das pessoas.

Mas existem outras lógicas e visões de mundo. Por exemplo: no Bra-


sil, povos indígenas que mantiveram parte significativa de sua cultura e
modo de vida, tendo sofrido pouca influência da sociedade capitalista,
não possuem a mesma racionalidade econômica que o restante da po-
pulação, como esclarece Bonin (2015):
um elemento constitutivo das distintas lógicas indígenas é a es-
treita relação estabelecida entre os processos e os meios de pro-
dução – por isso, a terra é de posse coletiva e não individual; a

38 Temas sociais e educacionais contemporâneos


terra não é vista como propriedade privada e sim como espaço
de relações sociais lançadas sobre esta base territorial. A nature-
za, por sua vez, é entendida como provedora, mas cada ser pre-
cisa aprender a respeitar os demais, para não destruir o tecido
denso e delicado dessa relação entre as pessoas, os seres e as
coisas que, na cultura ocidental, são vistas como inanimadas.
Como se vê, o valor simbólico da terra, para os povos indígenas,
difere do valor que ela tem numa sociedade capitalista. Para os
povos indígenas, a terra não se restringe a um mero recurso, a
ser explorado em todo o seu potencial.
Cmacauley/Wikimedia Commons
Do mesmo modo, em períodos históricos passa-
dos ou em países com outros sistemas econômicos,
a regra de produzir o máximo gastando o mínimo
para obter maior lucro, ou de explorar as terras ao
máximo, não faria sentido para as pessoas. Ou seja,
a lógica capitalista, baseada no lucro, não pode ser
aplicada para analisar outros tipos de sistemas eco-
nômicos que operam sob diferentes lógicas e racio-
nalidades econômicas.

Podemos dizer, de uma forma mais genérica,


abrangendo as sociedades em várias épocas e lu-
gares, que a economia é um conjunto de ativida-
des e relações desenvolvidas pelos seres humanos
com o objetivo de produzir, distribuir e consumir
bens e serviços necessários à sobrevivência e à Mulher e criança Yanomami, no Amazonas, Brasil, 1997.
vida em sociedade.

Na maior parte dos casos, as pessoas não têm noção de qual é a


“racionalidade econômica” de sua sociedade ou do seu tempo. Quem
vivia, por exemplo, sob o sistema econômico feudal, durante a Idade
Média, não tinha plena consciência sobre a lógica que regia o sistema
econômico da época. São os historiadores, economistas etc. que, com
base nas características produtivas e nas relações econômicas de uma
sociedade, constroem o que seria seu modelo econômico e o nomeiam.

2.1.1 Sistemas econômicos ao longo da história


Vamos, então, conhecer os sistemas econômicos na história?

No início da Pré-História, os grupos humanos reuniam poucas


pessoas e eram nômades. Como não produziam alimentos e apenas

Educação financeira: um aprendizado para a vida 39


caçavam e coletavam frutos, sementes etc. na natureza, precisavam
se mudar de local toda vez que os alimentos se tornavam escassos.
A divisão do trabalho nesse período era baseada predominantemente
em critério de gênero, com homens caçando e mulheres se dedican-
do à coleta – apesar de estudos arqueológicos recentes revelarem que
não era tão incomum que mulheres também realizassem a caça nessa
época.
Curiosidade Na fase final da época pré-histórica, no período chamado de Neolítico,
Nos Andes, em um sítio com o surgimento da agricultura e, em seguida, a criação de animais,
arqueológico do Peru, foi en- houve uma transformação no modo de vida dos grupos humanos, que
contrada uma sepultura, que
tinha 9.000 anos, de uma passaram a se fixar em um local apenas e foram se ampliando e sobre-
mulher que teria sido caçadora vivendo dos alimentos que produziam. Surgiram, então, as primeiras
de animais de grande porte.
cidades, e a divisão do trabalho passou a ser mais complexa e espe-
Questionou-se, então: qual se-
ria a presença das mulheres na cializada. Na fase seguinte, a Idade do Bronze, a divisão do trabalho
caça nas Américas nessa época? foi se tornando ainda mais complexa e já passaram a ser identificadas
Para obter respostas, foram
investigadas as informações
desigualdades socioeconômicas nas populações.
sobre indivíduos de outros sítios Posteriormente, na Antiguidade, várias sociedades – como a grega,
arqueológicos, onde a equipe
de cientistas diz ter encontrado a romana e a egípcia, que nesse período já contavam com grandes ci-
mais dez mulheres caçadoras. dades e uma variedade de atividades laborais – baseavam seus modos
Essa não é a primeira vez que
de produção no sistema escravista, que se originou, muitas vezes, de si-
se chega à hipótese de que as
mulheres no passado caçavam tuações de guerra e conquista de território, quando parte do povo con-
animais de grande porte, mas o quistado era privado da liberdade e submetido a trabalhos forçados
artigo científico recentemente
pelos conquistadores. Nesse tipo de relação de trabalho, não existia
publicado na revista Science
Advances mostra um padrão da remuneração nem direitos básicos para quem trabalhava, o que atual-
sua participação na caça – isso mente é proibido por lei em quase todo o mundo.
desafia as hipóteses ante-
riores de que a caça era uma Sob esse sistema, a terra e os escravos eram os bens mais valoriza-
tarefa exclusiva dos homens dos, sendo de propriedade da elite que dominava social, econômica e
(SERAFIM, 2020).
politicamente a sociedade; assim, as noções de desigualdades socioe-
conômicas eram bem diferentes das que temos atualmente. Entretan-
to, propriedade e riqueza não eram totalmente ligadas, como são hoje,
ao sistema capitalista, no qual quem possui propriedades, como terras,
automaticamente tem riquezas. Na Grécia Antiga, por exemplo, segun-
do Barros (2012, p. 115):
riqueza e propriedade eram noções perfeitamente desentrela-
çadas. Portanto, os critérios para a avaliação da desigualdade
deveriam considerar cada uma destas noções [...] a proprieda-
de significava que o indivíduo possuía concretamente um lugar
no mundo e que, portanto, pertencia ao mundo político com os

40 Temas sociais e educacionais contemporâneos


consequentes direitos à cidadania (ARENDT, 1989, p. 71). Por
isso, a riqueza de um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, não
substituía esta propriedade que era exclusiva dos cidadãos, e
não lhe conferia obviamente um acesso ao mundo político. Per-
cebe-se aqui que o poder se entrelaçava com a propriedade, e
ambos se situavam em um espaço de conexões em separado da
riqueza.

Mais tarde, durante a Idade Média, sobretudo na Europa, o sistema


vigente foi o feudalismo, um sistema econômico, político e social tam-
bém baseado na propriedade de terras (os feudos) por parte da elite
(os nobres), que dependia de um tipo de relação de trabalho chamado
de servidão. Nessa relação, os camponeses (servos) não podiam deixar
as terras e deviam obrigações aos seus proprietários, como impostos
e serviços.

Ainda existia trabalho escravo na sociedade medieval, mas com a


base da produção ocorrendo no trabalho servil, já que a nobreza não
trabalhava e apenas administrava os feudos e, quan-
do necessário, participava de guerras.

Soviete dos Pimentas/Wkimedia Commons


A escravidão não se limitou apenas à Antiguidade.
No decorrer da Idade Moderna, na América, durante
o processo de colonização, o sistema escravista foi
amplamente utilizado como base da produção. A es-
cravidão indígena e a africana foram a base do sis-
tema econômico colonial brasileiro, que se fundava
também na propriedade de terras por parte da elite.

Na Idade Moderna, entre os séculos XV e XVIII,


no contexto da expansão marítima, comercial e
colonial dos países europeus e do surgimento das
práticas econômicas do mercantilismo, surgiram Cena agrícola do século XIII. Le Régime des princes.
Gilles de Rome, 1279.
as bases do capitalismo comercial, considerado o
pré-capitalismo.

Com a Revolução Industrial, iniciada na metade do século XVIII na


Europa – período de grande desenvolvimento tecnológico, ligado à
industrialização, com a invenção e o uso de novas máquinas e equi-
pamentos, bem como o surgimento das fábricas –, os processos e as re-
lações de trabalho sofreram profundas transformações. Pela primeira
vez, dezenas de operários trabalhavam juntos em fábricas para fabricar
grandes quantidades de produtos, em vez de trabalharem artesanal-

Educação financeira: um aprendizado para a vida 41


mente, em pequenos grupos, levando bastante tempo para produzir
em pequenas quantidades.

Entretanto, se os artesãos sabiam produzir cada produto de modo


completo, executando todas as etapas de sua produção, nas fábricas os
operários passaram a desempenhar tarefas correspondentes apenas a
uma pequena etapa da produção, desconhecendo como se davam as
demais fases e não sendo capazes de produzir o produto completo,
pois as tarefas foram divididas no que, mais tarde, daria origem à cha-
mada linha de produção. Essa foi uma das bases do sistema econômi-
co capitalista, que só pôde surgir após essa enorme transformação do
processo produtivo e das relações de trabalho.

Segundo Catani (2011), de uma perspectiva histórica, o capitalismo


é um determinado modo de produção de mercadorias, gerado his-
toricamente desde o início da Idade Moderna e que encontrou seu
auge na Revolução Industrial. Desse modo, o capitalismo seria não
apenas um sistema em que se produz mercadorias, mas também no
qual a força de trabalho se transforma em mercadoria, como qualquer
objeto de troca.

Para que exista capitalismo, é necessária a concentração da proprie-


dade dos meios de produção (terras, máquinas, equipamentos etc.) em
mãos de uma classe social, bem como a presença de uma outra classe,
para a qual a venda da força de trabalho seja a única fonte de sub-
sistência. Esses requisitos, como o sociólogo alemão Karl Marx (2011)
demonstrou, foram estabelecidos com base no processo histórico que
transformou as antigas relações econômicas dominantes no feudalis-
mo, destruindo-as ao mesmo tempo que se construía o capitalismo.

A posse desses meios de produção pertence aos fazendeiros, in-


dustriais etc., enquanto os trabalhadores, que vendem sua força de
trabalho em troca de um salário, são os responsáveis por produzir, no
campo ou nas fábricas, os produtos que depois de serem distribuídos
e vendidos gerarão lucro aos proprietários. É por esse motivo que, de
modo simplificado, dizemos que o sistema capitalista se baseia na bus-
ca do lucro e da acumulação de riquezas.

No sistema capitalista, a circulação de mercadorias ocorre por meio


do chamado livre mercado, no qual o Estado interfere pouco ou nada.
Esse mercado, segundo as regras clássicas da economia, é regulado pe-
las leis da oferta e da procura: quando há muita oferta e pouca procura

42 Temas sociais e educacionais contemporâneos


de determinado produto, o preço de mercado dele diminui; por outro
lado, quando há pouca oferta e muita procura de um produto por parte
dos consumidores, seu preço aumenta.

No contexto competitivo do mercado, os consumidores estão sem-


pre em busca dos menores preços, e os donos dos meios de produção
procuram sempre os maiores lucros. Para isso, por vezes, a solução
encontrada é diminuir os salários dos trabalhadores para reduzir os
custos de produção. Desse modo, os preços são mantidos atrativos
aos consumidores, sem que os lucros diminuam. Quem sai perdendo,
nesse caso, são os trabalhadores (MARX, 2011).

Fundamentadas nas ideias de Marx, o qual considerava injusta a Filme


exploração dos trabalhadores no sistema capitalista e propunha um O premiado documentá-
modelo mais igualitário de sociedade, surgiram ao longo do século XX, rio Ilha das Flores – consi-
derado pela Associação
em países distintos, várias experiências de implantação de sistemas Brasileira de Críticos de
bastante diferentes do capitalista. São exemplos disso: Rússia (antiga Cinema como um dos
100 melhores filmes
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), Cuba, Alemanha Oriental, brasileiros de todos os
Vietnã do Norte, Coreia do Norte, China, entre outros. tempos e o melhor curta-
-metragem brasileiro da
Na Rússia, em um contexto de miséria da população sob um regime história – mostra, com
uma forma de narrativa
monárquico, ocorreu a Revolução de 1917, que implantou o sistema pioneira para a época, as
socialista, no qual a propriedade privada é substituída pela proprieda- bases e o funcionamento
do sistema capitalista de
de coletiva dos meios de produção. Com isso, terras, fábricas, equipa- modo criativo e didático,
mentos, imóveis etc. passam a ser geridos pelo Estado e distribuídos por meio do ciclo de
produção, distribuição e
aos trabalhadores segundo suas necessidades, na busca de promover consumo de um tomate.
justiça social e abolir as diferenças entre as classes sociais. Direção: Jorge Furtado. Brasil: Nora
Goulart; Monica Schmiedt, 1989.
Características do sistema econômico capitalista – como a compe-
tição entre empresas, as regras de mercado e o lucro como objetivo
dos processos produtivos – não fazem parte do sistema econômico so-
cialista, o qual privilegia a distribuição igualitária dos bens e coloca a
produção a serviço da coletividade, pois não permite lucros individuais.

Nesse contexto, a economia é planificada pelo Estado, e os investi-


mentos são centralizados por ele e feitos nas áreas que possam criar
mais empregos e um maior desenvolvimento para a sociedade como
um todo. Para Singer e Machado (2000, p. 27):
a quase totalidade dos países que aderiram ao “socialismo
real” fizeram-no em situações de penúria, provocadas por
guerras. [...] A desapropriação das antigas classes dominantes
e a introdução de educação e saúde públicas ensejaram uma

Educação financeira: um aprendizado para a vida 43


repartição mais igualitária da renda e uma rápida recuperação
das indústrias e da produção agrícola. A maior parte da po-
pulação pôde voltar a satisfazer suas necessidades básicas e,
crescentemente, outras. A economia centralmente planejada
começou a entrar em crise quando a economia superou os
efeitos da destruição bélica e a população passou a reclamar
um padrão de vida semelhante ao do Primeiro Mundo, que a
globalização das comunicações e do turismo trouxe aos lares
dos países do “socialismo real”.

Para refletir A economia planificada pelo Estado ainda está presente em al-
guns países, como a China, mas, desde a década de 1990, vem sendo
Como um sistema econômico
poderia conseguir, atualmente, mesclada a elementos do sistema capitalista, pois, apesar de ter forte
reduzir as desigualdades na presença estatal e projetar o desenvolvimento com base nas priorida-
sociedade e, ainda assim, ter um
papel relevante na economia des nacionais, a economia chinesa incorporou a exploração da mão
mundial? de obra, as regras de mercado e a busca do lucro. Nas três últimas
décadas, esse novo modelo misto tem levado o país a um grande
avanço econômico no mercado mundial e o coloca como candidato
à liderança econômica mundial. Entretanto, na sociedade chinesa, as
desigualdades econômicas e sociais têm se ampliado. O país passou
de moderadamente desigual, em 1990, para um dos países mais de-
siguais do mundo, em 2018, segundo relatório emitido pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI).

Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2001


e autor com trabalhos pioneiros sobre finanças públicas, crescimento,
distribuição de renda e mercados e eficiências das economias capita-
listas, é um crítico da globalização e do liberalismo. Ele defende que se
revise as regras do sistema capitalista para alcançar o que ele chama de
capitalismo progressivo, no qual as desigualdades devem ser reduzidas
sob pena de destruírem o próprio sistema.

Para Stiglitz (2013), em muitos contextos os mercados não funcio-


nam, ou seja, não se autorregulam, como propõem as teorias econômi-
cas liberais do livre mercado, já que as decisões econômicas estariam
regidas, na realidade, por interesses e bases ideológicas, sendo neces-
sário que o governo intervenha seletivamente para auxiliar seu fun-
cionamento, estabelecendo um equilíbrio, evitando concentrações
excessivas de capital por grandes corporações e agindo na redistribui-
ção de renda na sociedade.

44 Temas sociais e educacionais contemporâneos


2.2 Relações de produção e de trabalho
Vídeo Uma definição simples e ampla para o termo trabalho é: execução
de tarefas cujo objetivo é a satisfação de necessidades humanas.

Esse trabalho pode ser remunerado ou não. O trabalho de uma


faxineira ou diarista, que limpe a casa de alguém, por exemplo, se ba-
seia em atividades muito parecidas com as que pessoas de uma família
precisam dividir quando moram na mesma residência: varrer a casa,
lavar os banheiros, espanar os móveis etc. No entanto, o trabalho da
faxineira é remunerado, isto é, ela recebe um pagamento pelo dia de
trabalho; já o trabalho das pessoas que moram em uma mesma casa e
precisam mantê-la limpa não é remunerado.

Mas há diferenças fundamentais entre o trabalho não remunera-


do voluntário, em que a pessoa desempenha determinadas tarefas de
manutenção de sua moradia ou de ajuda a pessoas que precisam, e
o trabalho escravo, que é uma forma forçada, na qual um indivíduo é
obrigado a trabalhar sem remuneração e em condições por vezes sub-
-humanas. Essas diferenças nos fazem pensar sobre o que é o trabalho
e qual é o seu significado social.

No sistema capitalista, o trabalho é a base da produção de rique-


zas, mas nem sempre essas são bem distribuídas na sociedade. Marx,
quando trata especificamente do trabalho remunerado no contexto
capitalista, conceitua-o como a atividade sobre a qual o ser humano
emprega sua energia (força de trabalho), a fim de produzir os meios
para sua subsistência. Para esse autor, é no trabalho que se manifesta
a superioridade humana ante os demais seres vivos. Ele seria “a realiza-
ção do próprio homem, a fonte de toda riqueza e bem material” (MARX,
2004, p. 80).

No entanto, para o sociólogo, quando o trabalhador vende sua for-


ça de trabalho aos proprietários dos meios de produção – aos donos de
uma indústria, por exemplo –, ele gera uma renda bem maior do que
a que lhe é paga como salário, a qual Marx chamou de mais-valia. Essa
renda compõe o lucro que o industrial obterá após a venda dos produ-
tos que o trabalhador produziu, retirando, é claro, os gastos envolvidos
na produção, como a estrutura, os equipamentos, a energia elétrica,
entre outros, além do pagamento de impostos e outros tributos.

Educação financeira: um aprendizado para a vida 45


Desse modo, para Marx (2004), o trabalhador, na

Jklamo/Wikimedia Commons
verdade, ganha bem menos do que vale sua força
de trabalho, e o valor excedente é o lucro que fica
para seu patrão. Para o autor, o justo seria que uma
parte desse lucro fosse paga aos trabalhadores que
o geraram. Algo semelhante a essa ideia é aplicado
nas empresas que concedem aos seus funcionários
participação nos lucros.
Trabalho infantil em uma fábrica Há organizações que remuneram seus funcioná-
nos Estados Unidos, em 1908.
rios de maneira justa e cumprem adequadamente suas obrigações le-
gais, valorizando as boas condições de trabalho de seus contratados,
pois compreendem que dependem deles para ampliar sua produção
ou manter sua boa marca no mercado. No entanto, nem sempre é
assim.

Quando o empregador explora injustamente o trabalho de seus


empregados, pagando-lhes muito pouco, exigindo muitas horas de
trabalho ou se eximindo de responsabilidade quando o funcionário se
acidenta durante a produção, por exemplo, podemos dizer que esse
trabalhador está sendo explorado. Essa situação era muito comum no
início da industrialização, quando as jornadas diárias de trabalho nas
fábricas chegavam a 16 horas e os operários ganhavam pouquíssimo
e não tinham nenhum tipo de amparo. Além disso, crianças pequenas
também trabalhavam, manejando máquinas perigosas, e não havia
pausa para alimentação ou mesmo para ir ao banheiro, e os locais de
trabalho eram insalubres.

Ao longo do tempo, sobretudo com as lutas dos trabalhadores e


sua organização em sindicatos, foram conquistados mais direitos e
condições justas de trabalho. Surgiram, então, as leis trabalhistas, que
limitam as jornadas de trabalho, impõem condições dignas de traba-
lho – como local com ventilação e luminosidade adequada, intervalo
para alimentação e um salário mínimo a ser pago aos trabalhadores
– e estabelecem responsabilidades ao empregador em relação a doen-
ça, maternidade, aposentadoria e outras necessidades vitais de seus
empregados.

A necessidade de promover condições decentes de trabalho é uma


bandeira da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um braço da

46 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Organização das Nações Unidas (ONU), e está fundamentada em qua-
tro princípios:

1 2
A abolição definitiva do trabalho
A eliminação de todas as formas de
infantil.
trabalho forçado.

3 4
A liberdade sindical e o reconheci- A eliminação de todos os modos de
mento efetivo do direito de negocia- discriminação (em matéria de em-
ção coletiva. prego e ocupação), a promoção do
emprego produtivo e de qualidade, a
extensão da proteção social e o forta-
lecimento do diálogo social.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garante, desde a década Filme


de 1940 no Brasil, uma série de direitos aos trabalhadores, no sentido No filme Você não estava
de promover condições decentes de trabalho. A CLT passou por várias aqui, o motorista Ricky e
sua mulher, constante-
reformas no decorrer dos anos, e algumas delas têm gerado precarie- mente com dificuldades
dade nas condições de trabalho. Os trabalhos terceirizados, por exem- financeiras, trabalham
muito, ganham pouco e
plo, especialmente nos contextos de crise econômica, têm significado não veem perspectiva de
uma opção de renda para muitos trabalhadores. melhoria de vida para sua
família. Quando recebe
No entanto, nesse tipo de trabalho, muitas vezes os compromissos uma oferta para abrir
um negócio próprio, o
da empresa com o empregado são muito menores ou até inexistem. protagonista agarra a
Assim, há trabalhadores que precisam realizar jornadas muito altas de oportunidade sem saber
que, como “franqueado”
trabalho para ganhar o suficiente para sobreviver e, se ficam doentes de uma grande empresa
ou se acidentam, não têm nenhum apoio e passam por dificuldades. de transportes, trabalha-
ria 14 horas diárias sem
Os negócios próprios também apresentam dois lados. Eles podem nenhum apoio, arcando
com todas as despesas
significar uma oportunidade de exprimir habilidades pessoais e alcan- e com altas multas se
çar independência financeira e satisfação pessoal, mas podem também adoecesse e faltasse ao
trabalho. O filme mostra
ser uma saída desesperada para quem está desempregado e não vê a realidade de traba-
alternativa para sobreviver durante a crise, o que está longe de ser lhadores terceirizados
na Inglaterra, revelando
empreendedorismo. sua precariedade e seus
efeitos devastadores nas
Além da subsistência e da produção de riqueza nas sociedades, o tra- famílias.
balho pode ter outras funções, como a obtenção de satisfação pessoal
Direção: Ken Loach. Inglaterra;
e autoestima, a “ocupação do tempo e estruturação das relações e dinâ- França; Bélgica: Sixteen Films, 2018.

Educação financeira: um aprendizado para a vida 47


micas sociais e o auxílio na construção da identidade pessoal” (GIDDENS,
2005, p. 305-306), no sentido de propósito e reconhecimento por parte
da coletividade, bem como de utilidade para a sociedade, desempe-
nhando um papel importante em muitos aspectos da vida.

Entretanto, é preciso lembrar que muitas pessoas não têm condi-


ções reais de exercer um trabalho que traga satisfação pessoal e re-
conhecimento, fortaleça a autoestima ou proporcione a sensação de
contribuição relevante para a coletividade. Simplificando: nem todo
mundo pode trabalhar com aquilo de que gosta. Boa parte das pes-
soas, infelizmente, trabalha no que é possível, em qualquer atividade
que possa garantir o sustento básico. Mas por que isso acontece?

Um dos fatores determinantes para essa situação é a falta de oportu-


nidades educacionais e de uma formação profissional. Para se especia-
lizar em alguma área, seja ela acadêmica ou técnica, precisa-se de uma
boa formação e, para isso, é necessário ter acesso à educação. Entretan-
to, apesar de ter havido ampliação de vagas e do direito à educação no
país nas últimas décadas, até hoje há diversas crianças e adolescentes
fora da escola. Além disso, a educação pública ainda carece de mais
investimentos em estrutura, equipamentos e, sobretudo, professores, a
fim de garantir a melhoria da qualidade da educação para todos.

Muitas vezes, jovens e até crianças que vivem em condições socioe-


conômicas precárias e em vulnerabilidade social são levados a traba-
lhar em vez de estudar, o que é proibido por lei, já que o trabalho de
menores de 16 anos é ilegal no Brasil em praticamente qualquer situa-
ção. Uma exceção, por exemplo, é o trabalho do jovem aprendiz (14 a
16 anos), que deve durar no máximo quatro horas diárias e não atra-
palhar, de nenhuma forma, a frequência à escola, o estudo e o pleno
desenvolvimento físico e mental do adolescente.

O trabalho infantil é proibido pelas leis brasileiras por vários mo-


tivos. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) aponta as
características que tornam o trabalho precoce prejudicial ao desenvol-
vimento das crianças:

48 Temas sociais e educacionais contemporâneos


I. aquele realizado em tempo integral, em idade muito jovem;
II. o de longas jornadas;
III. o que conduza a situações de estresse físico, social ou psicológico ou que
seja prejudicial ao pleno desenvolvimento psicossocial;
IV. o exercido nas ruas em condições de risco para a saúde e a integridade física
e moral das crianças;
V. aquele incompatível com a frequência à escola;
VI. o que exija responsabilidades excessivas para a idade;
VII. o que comprometa e ameace a dignidade e a autoestima da criança, em particu-
lar quando relacionado com trabalho forçado e com exploração sexual; e
VIII. trabalhos sub-remunerados.
(BRASIL, 1998, p. 12-13)

É um importante papel da escola manter os alunos estudando, de


modo a prevenir a evasão e mostrar aos estudantes o valor do conheci-
mento e das aprendizagens para sua formação como cidadãos críticos
e futuros trabalhadores.

Para isso, é preciso promover uma formação integral, que capacite


os jovens a fim de que compreendam o seu lugar no mundo e o fun-
cionamento da sociedade sob os pontos de vista econômicos, sociais
e políticos, bem como para que ajam sobre seu meio social, transfor-
mando-o para melhorar suas vidas e as da comunidade em que vivem.

Como defende o educador Freire (2011), a educação deve ser liber-


tadora e transformadora, e o professor precisa refletir continuamente
sobre suas práticas para que elas superem a mera transmissão de co-
nhecimentos e se tornem emancipadoras, colaborando para a forma-
ção de seres humanos mais livres, críticos, autônomos e capazes de
agir sobre suas realidades sociais.

Além disso, de um modo geral, mesmo fora dos itinerários ligados


à educação profissional e tecnológica, faz parte do papel da escola pro-
mover a orientação vocacional dos alunos, contribuindo para a escolha
profissional e incorporando atividades dessa natureza ao longo da for-
mação dos estudantes, sobretudo no final da educação básica, quando
é fundamental abrir perspectivas de futuro para os jovens.

Educação financeira: um aprendizado para a vida 49


Nesse sentido, o papel da orientação pedagógica é fundamental,
como salientam Oliveira, Melo e Almeida (2016, p. 3):
essa orientação surge a partir das dificuldades relacionadas à es-
colha profissional, auxilia os jovens em todos os níveis sociais a
escolherem e se prepararem para enfrentar uma ocupação pro-
pícia, deixando-os satisfeitos, pois pessoas descontentes com
o trabalho tornam-se improdutivas nas funções que desempe-
nham. É também um instrumento que dá condições ao jovem
de fazer uma reflexão sobre os diversos tipos de profissões, tor-
nando pertinente a tentativa de ingressar no campo de trabalho.

É importante, também, considerar o trabalho como um princípio


educativo, e o próprio trabalho educativo como um meio de formar
integralmente o ser humano, como destaca Saviani (2003, p. 1):
o/ trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencional-
mente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzi-
da historicamente pelo conjunto de homens. Assim, o objeto da
educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos
culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da es-
pécie humana para que se tornem humanos e, de outro lado e
concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas
para atingir esse objetivo.

O trabalho docente não é apenas o de transmitir conhecimentos acu-


mulados historicamente ou de desenvolver habilidades práticas e tecno-
lógicas, mas também o de formar os estudantes para a compreensão de
como se dão as relações no mundo do trabalho e seus impactos nas re-
lações sociais, na vida das pessoas, no meio ambiente e na produção de
novos conhecimentos.

2.3 Economia solidária


Vídeo Pudemos perceber que, no sistema capitalista, todas as relações eco-
nômicas estão atreladas à produção e ao consumo e visam ao lucro. Sen-
do assim, produzir mais com um custo menor amplia os lucros.

Nesse contexto, a concepção de desenvolvimento da sociedade está


ligada ao progresso científico e tecnológico como instrumento para
maximizar a produtividade e os lucros. Porém, nem sempre esse de-
senvolvimento atinge efetivamente toda a sociedade ou melhora suas

50 Temas sociais e educacionais contemporâneos


condições de vida, visto que a exclusão é uma realidade para grande
parte da população.

No sentido de promover a inclusão econômica e social, uma alter-


nativa de desenvolvimento tem sido discutida, a economia solidária,
que é uma proposta de organização da produção e do trabalho, ba-
seada na autogestão e em um modelo de desenvolvimento inclusi-
vo e que atende às necessidades locais, sendo passível de aplicação
tanto em práticas de grupos locais, organizações não governamentais
(ONGs) e movimentos sociais organizados quanto por políticas públicas
governamentais.

A proposta da economia solidária, no plano teórico, abrange um am-


plo espectro de experiências e, em uma perspectiva prática, nomeia ex-
periências concretas bastante diferentes entre si, mas que podem ser
incluídas no chamado Movimento por uma Economia Solidária, como em-
preendimentos econômicos solidários e suas formas de organização.

Segundo Carvalho (2011, p. 2-3), com base na fundamentação concei-


tual proposta pelo atualmente extinto Ministério do Trabalho e Emprego
em 2008,
a economia solidária se configura como uma resposta dos pró-
prios trabalhadores às transformações atuais do mundo do
trabalho. Estas respostas são caracterizadas por iniciativas ca-
racterizadas como organizações econômicas (organizações co-
letivas, organizadas sob a forma de autogestão que realizam
atividades de produção de bens e de serviços, crédito e finanças
solidárias, trocas, comércio e consumo solidário) e organizações
solidárias (empresas de autogestão, associações, cooperativas
e grupos informais de pequenos produtores ou prestadores de
serviços, individuais e familiares, que realizam em comum a com-
pra de seus insumos, a comercialização de seus produtos ou o
processamento dos mesmos).

A autora considera ainda que “ao constituírem um modo de pro-


dução alternativo ao capitalismo, onde os próprios trabalhadores/as
assumem coletivamente a gestão de seus empreendimentos econômi-
cos, as iniciativas de economia solidária vêm apontando para soluções
mais definitivas à falta de trabalho e renda” (CARVALHO, 2011, p. 2-3).
Entre esses empreendimentos econômicos, estão as organizações soli-
dárias e os empreendimentos sociais.

Educação financeira: um aprendizado para a vida 51


2.3.1 Organizações solidárias e empreendimentos
sociais
Segundo Andion (1998, p. 13-15), “as organizações solidárias possuem
um objetivo social, de contribuição da economia solidária à riqueza coleti-
va”, que é medido não apenas pela produção de bens e de serviços, mas
principalmente pela rentabilidade social gerada, a qual está relacionada à
capacidade dos grupos de produzir mudanças institucionais no meio em
que atuam. Para Archimbaud (1993), nesses grupos, a lógica solidária deve
prevalecer sobre a lógica mercantil, sendo esta não mais do que um ins-
trumento de viabilidade, e não um objetivo em si mesma.

Para caracterizar melhor as organizações solidárias e diferenciá-las


das organizações ligadas à economia formal, que seguem os princípios
tradicionais do sistema capitalista, visando apenas ao lucro, e das or-
ganizações relacionadas à economia social – como é o caso dos em-
preendimentos sociais, que visam ao lucro, mas objetivam igualmente
gerar impactos sociais positivos na sociedade –, Andion (1998) propõe
a seguinte classificação:
Quadro 1
Comparação entre diferentes formas de economia

Economia formal Economia social Economia solidária

Cooperativas, mutualistas Associações ou organiza-


Tipos de organização Empresas privadas
e associações ções comunitárias

Organização autônoma (in-


Iniciativa de uma comuni-
dependente do Estado e
Sociedades anônimas ou dade local auto-organizada
Origem da iniciativa privada) criada
limitadas ou organizada com apoio
livremente por um grupo
de atores externos
de pessoas
Produção de bens e ser- Produção, sobretudo, de
Produção de bens e servi- viços para satisfazer às serviços, a partir de uma
Objetivo principal ços para satisfazer às ne- necessidades de clientes, necessidade social deter-
cessidades dos clientes dos membros ou de uma minada e visando a uma
coletividade mudança institucional
Dimensão
Econômica Econômica e social Social e solidária
predominante
Utilização de meios de par-
Apropriação do lucro Em função do capital tilha entre os membros do Inexistente
grupo
Por meio do livre merca- Por meio de relações de
Definição da oferta
Por meio do livre mercado do ou da necessidade dos proximidade entre usuá-
e da demanda
membros rios e produtores
(Continua)

52 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Economia formal Economia social Economia solidária
Combinação de recursos
Principais fontes de Mercantil ou financiamento
Mercantil mercantis, não mercantis,
recursos do Estado
e não monetários
Assalariados, voluntários,
Trabalhadores Assalariados Assalariados e membros
usuários e outros parceiros
Grupos da comunidade,
Beneficiários Clientes Clientes e/ou membros
sobretudo os excluídos

Fonte: Andion, 1998, p. 16. Saiba mais


Podemos perceber, por meio das características das organizações O British Council e o
solidárias, que o sentido de inclusão social e de transformação institu- Developing Inclusive
and Creative Economies
cional é o predominante nesse tipo de arranjo, que tem como objetivo (DICE), programas do go-
verno britânico de apoio
o desenvolvimento local sustentável e a geração de melhores condições ao desenvolvimento no
de vida para as comunidades, fugindo da lógica mercantil e do lucro. Reino Unido, no Brasil, no
Egito, na Indonésia, no Pa-
Já os empreendimentos sociais, como cooperativas e associações, ou quistão e na África do Sul,
realizaram o mapeamento
mesmo empresas que visam aos impactos sociais positivos, mesclam a sobre o empreendedo-
lógica mercantil de livre mercado e de busca de lucro com o atendimen- rismo social e criativo no
Brasil. O trabalho baseou-
to de necessidades coletivas e a melhoria das condições de vida de uma -se na hipótese de que
apoiar o desenvolvimento
coletividade, reunindo dimensões econômicas (lucrativas) e sociais. de negócios sociais e cria-
tivos é uma maneira eficaz
Um levantamento do Sebrae em parceria com o Programa das Na- de abordar questões
como desemprego, desi-
ções Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2018, identificou mais gualdade e crescimento
de 800 negócios de impacto social em todo o país (SEBRAE/PNUD, 2018). econômico, bem como de
construir sociedades mais
São iniciativas variadas que envolvem desde empreendedores individuais inclusivas. A conclusão
foi de que as empresas
até grupos maiores com influência em suas comunidades de origem. sociais e criativas do Brasil
estão gerando mais em-
A Fundação Schwab, uma organização internacional sem fins lucra- pregos formais para mu-
tivos, lança anualmente uma lista de empreendedores sociais do ano, lheres, jovens e pessoas
LGBTI+ em comparação à
na qual reconhece os responsáveis por práticas que, na busca por su- economia brasileira no ge-
ral. No entanto, o quadro
perar desafios sociais e ambientais, estão mudando o mundo. Na lis- é menos positivo quanto
ta de 2020, estão dois jovens brasileiros: Adriana Barbosa e Henrique à inclusão de negros, o
que reflete os obstáculos
Guilherme Brammer Junior. estruturais da sociedade
brasileira. O mapeamento
Adriana é criadora da PretaHub, uma plataforma para impulsionar o mostra, ainda, que nos
negócios sociais com até
empreendedorismo negro, que oferece cursos de formação para esse um ano de atuação 23%
das equipes são formadas
grupo de empreendedores, atuando também como incubadora de no-
por jovens com menos
vos negócios sociais e combatendo o racismo estrutural e as dispari- de 25 anos. Para saber
mais a respeito desse
dades de gênero. Henrique é fundador da Boomera, que promove a mapeamento, acesse o
link a seguir.
reciclagem de produtos com processos mais complexos, como restos
Disponível em: https://www.
de cigarro, fraldas descartáveis usadas e cápsulas de café expresso, por britishcouncil.org.br/sites/default/
meio de uma metodologia inovadora chamada pacote circular; trata-se files/_relatorio_dice_brasil_pt_
web.pdf. Acesso em: 22 jan. 2021

Educação financeira: um aprendizado para a vida 53


de uma iniciativa que gera escala e impacto, trans-
formando o lixo reciclável em uma linha de produtos
que reúne tecnologia, design, ciência e inclusão so-
cial (SCHWAB, 2020).

Esses e outros exemplos geram, junto com tantas


outras maneiras alternativas à economia formal, im-
pactos sociais positivos nas comunidades, inclusão
Dmytro Zinkevych/Shutterstock
social e econômica, bem como desenvolvimento so-
cial, local e regional sustentável. Além disso, quando se reúnem em
redes empreendedoras sociais, podem causar impacto sistêmico e in-
fluenciar a criação de políticas públicas.

2.3.2 Educação empreendedora


O empreendedorismo não se restringe às iniciativas sociais; há em-
preendimentos regidos apenas pela lógica do lucro, no sentido de ge-
rar renda e custear a subsistência do empreendedor e de sua família,
por meio de negócios tradicionais, com a venda de produtos ou servi-
ços. Mas nem por isso é preciso esquecer a dimensão social de todas
as ações humanas e os impactos que esse tipo de negócio também tem
na comunidade local.

Para Dolabela (2003, p. 29), empreender significa “modificar a reali-


dade para dela obter a autorrealização e oferecer valores positivos para
a coletividade. Significa formas de gerar e distribuir riquezas materiais
e imateriais por meio de ideias, conhecimentos, teoria, artes, filosofia”.

Segundo Lopes e Rollemberg (2014), o empreendedor não pre-


cisa necessariamente inovar ou inventar um produto ou serviço.
Ele pode identificar um problema na sua localidade e, de modo
criativo, buscar meios para solucionar esse problema, contando
com a ajuda da comunidade. Isso pode ser rentável e, ao mesmo
tempo, beneficiar de alguma forma a comunidade, mesmo que o
lucro não seja repartido com essas pessoas, como seria o caso de
empreendimentos solidários ou mesmo negócios sociais de gera-
ção de renda. Esses benefícios podem ser ambientais, criativos ou
de oferta de produtos e serviços que nunca foram disponibiliza-
dos localmente, facilitando o cotidiano das pessoas. Empreender,
nesse sentido, ultrapassa o individualismo e tem uma visão muito
mais ampla e social: todos ganham algo com ele.

54 Temas sociais e educacionais contemporâneos


O empreendedorismo não deve ser focado no “ter”, mas sim em
uma forma de “ser”, pois está relacionado ao sonho de um indivíduo
de transformar a sua realidade de maneira positiva, ajudando a sua
comunidade a crescer. Se o empreendedor foca exclusivamente o enri-
quecimento pessoal e não gera valores positivos para a sociedade, está
Site
contribuindo para perpetuar a exclusão social.
Conheça algumas
Para Costa (2003), a pedagogia empreendedora trata o empreende- iniciativas bem-sucedidas
de empreendedorismo
dorismo como uma forma de ser, ligando o individual ao coletivo, articu- social acessando os sites
lando o compromisso de gerar riquezas com o de distribuí-las e propondo indicados a seguir.

um desenvolvimento humano e social como um todo integrado. O projeto FA.VELA é a


primeira aceleradora de
Educar para o empreendedorismo, nessa acepção, é promover o empreendedorismo de
olhar e o agir coletivo e apoiar o desenvolvimento de habilidades que base favelada do Brasil.

possam contribuir para tornar a realidade social mais inclusiva e justa Disponível em: https://favela.org.br.
Acesso em: 22 jan. 2021.
para todos, promovendo geração de renda e realização pessoal e co-
O Carambola Tech
letiva. Ou seja, ao invés de focar apenas a geração de lucro individual,
promove inclusão e
deve-se educar para apostar na criação de valor para a sociedade. Para diversidade no mercado
de Tecnologia da
isso, são interessantes as práticas pedagógicas voltadas para o levan-
Informação.
tamento de problemas e demandas na escola e no bairro e, ainda, a
Disponível em: https://www.
sistematização de soluções coletivas que possam angariar apoio da co- carambola.com.vc. Acesso em: 22
jan. 2021.
munidade local e mobilizar a comunidade escolar.
O Centro Cultural Lá da
Sendo assim, a escola também pode ser palco de ações solidárias. Favelinha promove o Fa-
Entre tantas ações coletivas em âmbito escolar, pode-se planejar a arre- velinha Fashion Week, em
que jovens da comunida-
cadação de fundos e de material, bem como organizar mutirões para de desfilam com roupas
resolver problemas da escola e/ou do bairro, como revitalizar uma qua- recicladas.

dra de esportes ou uma praça, pintar um muro da escola desgastado Disponível em: https://
ladafavelinha.com.br. Acesso em:
ou pichado, limpar e reformar carteiras, quadros negros e outros equi- 22 jan. 2021.
pamentos escolares, organizar uma feira de trocas para a comunidade
do bairro, implantar uma horta escolar ou comunitária em benefício de
todos etc. Trata-se de ações viáveis e que podem ser empreendidas de
maneira solidária, sem o objetivo de alcançar lucro, apenas como uma
forma de beneficiar a comunidade local.

A escola é um espaço público de produção e divulgação de co-


nhecimento, mas também é um ambiente catalisador de saberes e
práticas populares e de mobilização de ações coletivas em prol da co-
letividade. Usar o espaço escolar para promover o desenvolvimento
local e a melhoria das condições de vida é fazer um uso justo de um
espaço que é de todos.

Educação financeira: um aprendizado para a vida 55


O empreendedorismo social ou de base comunitária pode ser um
caminho de futuro para os estudantes, podendo ainda ser explorado
transversalmente durante as aulas. Um bom começo é apresentar aos
alunos e à comunidade escolar exemplos bem-sucedidos de empreen-
dedorismo social.

2.4 Educação financeira e fiscal


Vídeo De início, a circulação de bens era baseada na troca. Por exemplo,
uma família de agricultores produzia para sua subsistência e o que so-
brava era trocado pelos ovos de uma família vizinha que criava galinhas.

Entretanto, nem sempre era fácil estabelecer qual quantidade de


um produto, como grãos ou animais de corte, era equivalente à de
outro produto. Era preciso também encontrar alguém interessado em
trocar o que tinha pelo que lhe era oferecido. O sal, útil na preservação
de alimentos, foi usado por muito tempo para representar o valor de
determinadas quantidades de cada produto, assim, a troca era feita
por sal e, com esse sal, eram adquiridos outros produtos.

Gradativamente, produtos passaram a ser substituídos por uma for-


ma única de representação de valor, a moeda. Com o surgimento do
dinheiro, já não podemos mais falar de trocas, e sim de compra e venda.

Com o passar do tempo, alguns grupos sociais privilegiados passa-


ram a acumular dinheiro e, então, surgiu uma dinâmica nova: quem
tinha dinheiro sobrando emprestava-o para quem estava sem dinhei-
ro, porém cobrava uma quantia em troca do tempo que esperaria para
receber o dinheiro de volta. Logo, quem tomou o dinheiro emprestado
deveria pagar uma quantia mais alta do que obteve. Essa diferença en-
tre o valor emprestado e o valor pago é o que conhecemos por juros.
Assim, surgiu o que chamamos de sistema financeiro.

Na realidade, mesmo antes da existência do dinheiro, havia a co-


brança e o pagamento de juros. Na antiga Mesopotâmia, os sacerdotes
emprestavam cevada, trigo e outros grãos para os agricultores da vizi-
nhança. Era costume, na devolução, que fosse incluída uma quantida-
de a mais. A diferença é que, com o advento do sistema financeiro, a
cobrança de juros não faz parte de um “costume”, mas é regulamen-
tada, e quem não cumprir com a regra, tendo concordado com ela no
momento em que tomou dinheiro emprestado, pode ser penalizado.

56 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Na Idade Média, por exemplo, qualquer cobrança de juros era proi-
bida pela Igreja Católica. Com o crescimento do comércio dentro da
Europa, a partir do século XI, surgiram os primeiros bancos, e os em-
préstimos a juros foram se tornando mais comuns. A condenação à
cobrança dos juros foi diminuindo, porém ainda havia restrições para o
caso de famílias ricas cobrarem juros de empréstimos feitos a pessoas
pobres, pois isso significava explorá-las. Por outro lado, a situação era
diferente quando quem tomava o empréstimo eram os negociantes,
que usariam o recurso para comprar mercadorias e ganhar mais di-
nheiro. Atualmente, há limitações para a cobrança abusiva de juros, o
que não impede que algumas modalidades de empréstimos tenham
juros bastante difíceis de pagar.

O sistema financeiro serve basicamente para ligar quem não tem


dinheiro com quem o tem de sobra, como bancos e financeiras, po-
dendo emprestá-lo a juros. Mas como tratar de sistema financeiro com
crianças e adolescentes no contexto escolar?

Os professores têm um papel muito importante na sociedade na


formação de indivíduos capazes de realizar seus próprios sonhos e de
contribuir para as realizações da coletividade, e isso passa pela educa-
ção financeira.

2.4.1 Educação financeira


Para formar os estudantes, com o objetivo de que compreendam
as bases do sistema financeiro e saibam gerir adequadamente suas fi-
nanças, é preciso explicar de modo simples como nós, seres humanos,
encaramos as transações com dinheiro, o consumo
e o seu adiamento, em nome de poupar recursos
para o futuro. Pesquisadores de várias áreas, princi-
palmente da psicologia, vêm estudando o compor-
tamento das pessoas em relação a essas questões.

Na década de 1960, o pesquisador e psicólogo


norte-americano Walter Mischel, ao estudar meca-
nismos de autocontrole, fez uma série de experi-
mentos que visavam medir a capacidade de espera
das crianças. Um desses experimentos era realizado
com um adulto entrando com uma criança em uma
sala fechada e explicando que ela teria de escolher
Prostock-studio/Shutterstock

Educação financeira: um aprendizado para a vida 57


uma entre duas alternativas: de um lado, uma unidade do chocolate de
que ela mais gosta e, do outro, duas unidades desse mesmo chocolate.
O pesquisador, então, dá à criança um sininho e avisa que ele vai sair
da sala e, depois disso, se a criança tocar o sininho, ele voltará imedia-
tamente e dará a ela um chocolate, mas que, no entanto, se a criança
aguardar sem tocar o sininho até que ele retorne, ela ganhará duas
unidades do chocolate. A decisão que a criança deve tomar é: menos
chocolate agora ou mais chocolate depois (TASSARA; MACCA, 2009).

Refletindo sobre os resultados dos experimentos, o pesquisador


destacou que o autocontrole demonstrado pelas crianças que conse-
guiram esperar é decisivo em qualquer outra situação e fase da vida.
“‘Se você consegue lidar com essas emoções, então você consegue es-
tudar para o vestibular em vez de assistir televisão’, diz Mischel. ‘E você
consegue economizar dinheiro para a aposentadoria’” (LEHRER, 2009).

Sendo assim, se conseguimos adiar um prazer imediato em nome


de uma recompensa futura, seremos capazes de não ceder ao impul-
so de consumir imediatamente e poupar o dinheiro para um melhor
investimento no futuro. Essa é a lógica dos juros. Quem empresta o
dinheiro e aguarda durante certo tempo receberá mais do que empres-
tou. Essa lógica serve também para quem investe dinheiro na poupan-
ça, por exemplo. Quem aceita poupar e espera para gastar obtém mais
dinheiro do que guardou.

Mas o inverso também é verdadeiro: quem não quer aguardar para


poder ter algo e deseja comprar um produto imediatamente, sem ter
dinheiro para adquiri-lo, terá de parcelar seu valor e acabará pagando
um preço bem maior do que se aceitasse esperar e guardasse dinheiro
durante um tempo para comprar o produto à vista. É essa a lógica bá-
sica financeira que precisa ser ensinada às crianças e aos jovens. Sobre
isso, Giannetti (2005, p. 9-10) afirma:
as trocas no tempo são uma via de mão dupla. A posição credo-
ra (pagar agora, viver depois) é aquela em que abrimos mão de
algo no presente em prol de algo esperado no futuro. O custo
precede o benefício. No outro sentido temos a posição devedora
– viver agora, pagar depois. São todas as situações em que valo-
res ou benefícios usufruídos mais cedo acarretam algum tipo de
ônus ou custo a ser pago mais à frente. [...] A realidade dos juros
não se restringe ao mundo das finanças, como supõe o senso
comum, mas permeia as mais diversas e surpreendentes esferas
da vida prática, social e espiritual.

58 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A educação financeira deve desenvolver hábitos
saudáveis em relação ao consumo e à poupança,
incluindo os hábitos de economia de recursos e de
planejamento do orçamento pessoal e familiar. Uma
boa estratégia é estimular os estudantes a contribuir
com a redução de gastos na escola e em casa, por
meio de controle do uso de equipamentos elétricos SFIO CRACHO/Shutterstock

e de água e optando por atividades gratuitas ou de


baixo custo, como brincar ao ar livre, ler, ouvir música, passear em lo-
cais públicos gratuitos etc. Para esse objetivo, pode ser desenvolvido
um projeto interdisciplinar de mapeamento e divulgação dos espaços
públicos e atividades gratuitas ofertadas no bairro ou município.

Outra tática interessante é instrumentalizar os estudantes para


poupar dinheiro. Para isso, é preciso primeiro motivá-los a economi-
zar e guardar dinheiro individualmente ou em família com o intuito de
adquirir algo que eles desejam. Pode ser um produto, um serviço, um
passeio, um curso, uma viagem em família, enfim, algo pelo qual valha
a pena poupar.

Depois, é preciso ensiná-los a fazer um planejamento financeiro,


que começa com o hábito de anotar os gastos e, posteriormente, orga-
nizar de modo regular o orçamento pessoal e/ou familiar. Esse tipo de
planejamento pode ser desenvolvido nas aulas de Matemática.

Em um orçamento, é necessário registrar tudo o que se ganha e


tudo o que se gasta. É interessante mobilizar os alunos para que
passem essas informações para a família, pois poderão incentivar que
os adultos da casa façam o orçamento familiar mensal.

No orçamento familiar, igualmente devem ser registrados todos os


ganhos da família (salários, comissões, pagamentos por serviços etc.)
e todas as despesas fixas da casa, isto é, aluguel, despesas com água,
energia elétrica, alimentação, produtos de limpeza e higiene, meio de
transporte dos membros da família, mensalidades, entre outros. As-
sim, todos têm a ideia do dinheiro que entra e de quanto sai e, assim,
podem identificar no que é possível economizar para que sobre um
valor a ser poupado. É relevante também calcular por quanto tempo
será necessário poupar determinado valor para comprar o que todos
desejam.

Educação financeira: um aprendizado para a vida 59


Outro instrumento a ser ensinado aos estudantes é o chamado con-
trole de caixa, que será muito útil para aprender a gerir, mais tarde, um
orçamento pessoal. Esse instrumento pode ajudar os alunos e suas fa-
mílias em decisões relativas a prioridades de gastos, controle de gastos
e poupança para evitar pressões financeiras.

No orçamento, ficam registradas as receitas e as despesas recorren-


tes, isto é, que se repetem, como os salários ou ganhos que costumam
“entrar” todo mês e as despesas que ocorrem regularmente, como as
contas, o aluguel, as mensalidades, o valor que costuma ser gasto em
compras de alimentos etc.

Já no controle de caixa, não entram apenas as despesas fixas, mas


também aquelas eventuais, referentes a gastos ou compras que só
ocorrem de vez em quando, e os ganhos eventuais, como um pagamen-
to por um trabalho extra ou um presente em dinheiro recebido de um
parente. Ou seja, no controle de caixa, é feito o registro de tudo que
entra e sai. Comprou uma bala de alguns centavos? O valor é anotado no
controle de caixa. Ganhou R$ 10,00 da avó? O valor também é registrado.

Desenvolver esses hábitos nos estudantes contribui para que


eles possuam, futuramente, controle sobre suas vidas financeiras,
não tenham a sensação de que seu dinheiro “desaparece” antes de
acabar o mês e possam planejar seus gastos e sua poupança para
alcançar metas maiores, como adquirir um bem, fazer uma viagem
ou investir nos estudos.

Por outro lado, também é essencial ensinar aos estudantes que aci-
ma de valores financeiros e do dinheiro estão os valores humanos uni-
versais, como a honestidade, a justiça e a solidariedade.

2.4.2 Educação fiscal


Os estudantes necessitam aprender noções básicas sobre o sistema
fiscal e entender a importância de fiscalizar o modo como os impostos
pagos pela população estão sendo aplicados pelo Poder Público. Esses
aprendizados precisam ser desenvolvidos na escola, pois fazem parte
de uma formação cidadã.

É preciso abrir espaço transversalmente no currículo para ensinar


sobre o sistema fiscal brasileiro e mostrar aos alunos que os serviços

60 Temas sociais e educacionais contemporâneos


públicos ofertados pelos órgãos públicos – escolas públicas, hospitais
públicos e unidades de saúde, serviços de limpeza e asfaltamento das
ruas, recolhimento de lixo, tratamento e condução da água e do esgo-
to, iluminação pública, transporte coletivo etc. – são administrados pelo
Poder Público, na maior parte das vezes pelos governos de estados e
de municípios, mas são financiados pelos cidadãos, com os impostos
que todos pagam ao governo. Muitos desses impostos são pagos ao
Governo Federal e redistribuídos para estados e municípios.

Desse modo, uma estratégia interessante é orientar uma pesquisa


coletiva sobre os tipos de impostos pagos pela população, como são
cobrados, qual esfera faz a cobrança, para que servem e de que modo
são aplicados. Pode ser feita uma lista de impostos (ISS, IPTU, IRPF,
ICMS, IPVA, IPI, FGTS, INSS etc.) e cada aluno ou grupo de alunos fica
responsável por pesquisar um deles.

Assim como as pessoas, as famílias, os proprietários de pequenos


negócios e os donos de grandes empresas fazem orçamentos, os go-
vernos também os fazem. De modo simplificado, os orçamentos pú-
blicos registram como receita o dinheiro arrecadado com impostos e
taxas cobradas dos cidadãos, e como despesas os salários pagos aos
funcionários públicos, o custeio de obras, a manutenção de serviços
Curiosidade
públicos e os investimentos em educação, saúde, segurança, bem
As crianças e adolescen-
como em tantos outros setores essenciais para a vida dos cidadãos e
tes, e mesmo muitos
para o funcionamento do país. adultos, costumam não
saber que, no preço que
No entanto, o orçamento público é muito mais complexo do que se paga em qualquer
produto, estão embutidos
o de uma família. Em uma família, quando as despesas estão altas
os impostos pagos ao go-
demais, é preciso verificar, sem considerar as despesas essenciais – verno, sendo impossível
comprar alguma coisa
como moradia e alimentação –, onde é possível economizar. Já no or-
sem pagar essa taxa.
çamento público, apesar de parecer óbvio que não há como cortar Um desses impostos é o
Imposto sobre Circulação
despesas em setores essenciais, como saúde, educação e segurança
de Mercadorias e Servi-
pública, muitas vezes é justamente em uma dessas áreas que o go- ços (ICMS). Para saber
quanto pagamos de im-
verno faz cortes de orçamento, enquanto despesas que pareceriam
posto sobre os produtos
menos essenciais são mantidas. que compramos, acesse
o link a seguir.
São múltiplas as fontes de financiamento, os custos e os investimen-
Disponível em: https://
tos do Estado, e as obrigações de destinação de verbas são regidas por impostometro.com.br/home/
leis e regras que não podem ser modificadas para “ajeitar” o orçamen- relacaoprodutos. Acesso em: 22
jan. 2021.
to, como ocorre em uma família ou pequena empresa. Ou seja, não é

Educação financeira: um aprendizado para a vida 61


possível, por exemplo, tirar o que está sobrando em uma área para
aplicar em outra.

O orçamento público é feito com antecedência e é obrigatório


prestar contas à população. Cada proposta é submetida à aprovação
do Poder Legislativo, por meio de um projeto de lei com prazos de-
finidos para ser apresentado e votado. Esse processo, no orçamento
federal, baseia-se em três documentos:
• Plano Plurianual: proposto a cada quatro anos, sempre no se-
gundo ano do mandato do presidente, até o dia 31 de agosto.
Contém as diretrizes do governo para programas de longa dura-
ção e as metas de investimento para cada região.
• Lei de Diretrizes Orçamentárias: estabelece metas e priorida-
des para o ano seguinte, servindo de base para a elaboração do
orçamento da União. Deve ser apresentada pelo governo até o
dia 15 de abril e precisa ser votada no primeiro semestre do ano.
• Lei Orçamentária Anual: abarca todos os gastos e investimen-
tos do Governo Federal para o ano seguinte, devendo ser encami-
nhada ao Congresso Nacional até o dia 31 de agosto e aprovado
durante o ano.

É possível acessar as informações desses documentos e acompanhar


sua tramitação. Essas práticas devem ser incentivadas no contexto esco-
lar e podem ser feitas de maneira coletiva sob a orientação dos docentes.

Todos nós precisamos conhecer esse orçamento público e fiscalizar


o correto cumprimento dos investimentos previstos, verificando se al-
gum recurso está sendo mal destinado ou aplicado, ou mesmo se foi
desviado desonestamente por agentes públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação financeira só está completa quando se articula à formação
ética e à valorização da vida, com uma educação voltada ao “ser” e não
ao “ter”. Para isso, é preciso desenvolver hábitos de consumo não ape-
nas benéficos para a própria saúde financeira e para a conservação do
meio ambiente, mas também positivos sob aspectos éticos. Consumir em
excesso, sem necessidade real, ceder a todos os impulsos de compra e
às propagandas de produtos de modo irresponsável é uma atitude indivi-
dualista e que prejudica a coletividade.

62 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A valorização das prioridades e dos valores humanos, bem como das
relações éticas e justas para todos, leva a uma vida mais saudável em to-
dos os sentidos, incluindo no financeiro. Por fim, é preciso destacar para
as crianças e os adolescentes que a honestidade que devemos cobrar
dos governantes eleitos e de todos os agentes públicos é a mesma que
devemos valorizar em nossas relações pessoais, familiares e profissionais.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Com base no cenário do desenvolvimento histórico dos sistemas
econômicos e suas racionalidades econômicas características, explique
por que não podemos aplicar a lógica do lucro a todas as sociedades.

2. As relações de trabalho em cada sistema econômico são diferentes e


influenciam o significado que o trabalho assume. De que forma você
descreveria as relações de trabalho no sistema capitalista?

3. O economista Joseph Stiglitz, em entrevista à Agência Efe – Revista Der


Spiegel, em 2012, afirmou, referindo-se aos EUA, que o preço a pagar
pela enorme desigualdade econômica e social é alto demais, e que a
crença no “sonho americano”, baseada na ideia de meritocracia, de
que qualquer cidadão pode, com trabalho e dedicação, ascender social
e economicamente, é um mito. Em seu livro O preço da desigualdade,
ele exemplificou essa tese com a seguinte assertiva: “90% das crianças
nascidas em lares pobres, morrem pobres, não importa quão capazes
sejam. Mais de 90% das crianças nascidas em lares ricos morrem ricos,
não importa o quão estúpidos sejam. Portanto, o mérito não é um
valor.”
Explique o significado do exemplo dado por Stiglitz no contexto do
pensamento desse economista.

4. De que modo é possível abordar o tema do empreendedorismo social


na escola?

5. Argumente em defesa da importância do papel da escola na educação


financeira e fiscal.

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Educação financeira: um aprendizado para a vida 63


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64 Temas sociais e educacionais contemporâneos


3
Educação científica e
inclusão digital
No contexto contemporâneo de “disputa de narrativas”, nas
redes sociais e em outros canais pretensamente informativos da
internet, sobre questões que no passado não costumavam es-
tar tão presentes no debate cotidiano, amplia-se a importância
de promover a educação científica e tecnológica nas escolas, de
modo a formar cidadãos capazes de selecionar, compreender e
interpretar criticamente as informações a que têm acesso, saben-
do diferenciar fatos de opiniões.
Mais do que conhecer conceitos da ciência e da tecnologia
e seus métodos próprios, é essencial termos noções básicas
de como aplicar esse conhecimento à análise da realidade e à
interpretação das informações disponíveis diariamente. São es-
sas capacidades que, em conjunto, formam o que chamamos de
educação científica básica, tão necessária na atualidade para que
as pessoas possam pautar seu pensamento e suas ações pelo
conhecimento acumulado pela humanidade.

3.1 O que é conhecimento?


Vídeo O conhecimento científico não é o único tipo de conhecimento exis-
tente. Há outros presentes na sociedade, como o do senso comum, o
filosófico e o religioso. Mas quais são as diferenças entre esses tipos? O
que caracteriza especificamente o científico?

Os modos de obtermos cada tipo de conhecimento, como e por que


adquiri-los e em que aplicá-los são diferentes. Cada tipo de conheci-
mento serve a fins específicos e um não substitui o outro. Não pode-
mos analisar fenômenos naturais ou sociais usando o conhecimento
do senso comum ou o religioso, assim como não aplicamos a lógica
racional da ciência à fé.

Educação científica e inclusão digital 65


É como se cada tipo de conhecimento fosse a chave para interpretar
determinados aspectos do mundo, e uma chave não abre todas
as portas, apenas aquela que corresponde ao seu desenho.

3.1.1 Tipos de conhecimento


O conhecimento filosófico se baseia na reflexão racional
de questões fundamentais, como a essência do universo ou
a natureza da verdade, conceitos e ideias, buscando construir
teorias explicativas. Estas, porém, não são verificáveis, ou seja,
Aha-Soft/Shutterstock não é possível as testar para checar se realmente “funcionam”. Elas
existem apenas no campo das ideias, em âmbito filosófico. Nesse as-
pecto, o conhecimento filosófico difere do científico, no qual uma teo-
ria é amplamente aceita apenas quando foi comprovada por meio de
testes ou experimentos.

Já o conhecimento religioso ou teológico baseia-se na fé, em um


conjunto de crenças fundamentadas em dogmas ou verdades religio-
sas, em narrativas das escrituras sagradas de cada religião ou em sua
tradição oral. Esse tipo de conhecimento não requer comprovação, pois
a natureza da fé e das crenças não é racional, ou seja, não depende de
que as narrativas ou os dogmas sejam testados e verificados.

Outro tipo de conhecimento é o do senso comum, que costuma se


fundamentar no que chamamos de conhecimento empírico, o qual
advém da interação com o mundo e das experiências pessoais. Entre-
tanto, o senso comum também sofre influência da grande quantidade
de informações veiculadas formal ou informalmente por veículos de co-
municação ou pelas redes sociais, que muitas vezes não estão corretos.

O senso comum reflete um modo de interpretar o mundo cons-


truído com base na experiência cotidiana de comunidade, que tem seu
valor, mas não traduz necessariamente um conhecimento generali-
zável para o todo da realidade social. Ou seja, não é possível afirmar
que um fato sempre acontece da mesma forma com todas as pessoas
apenas por ter acontecido com você ou com pessoas que conhece. A
possibilidade de generalização das conclusões é uma característica de
outro tipo de conhecimento, o científico.

Por outro lado, o conhecimento empírico, obtido por meio da


observação dos ciclos e das dinâmicas da natureza, por exem-
plo, e passado de geração a geração de modo tradicional, pode ser

66 Temas sociais e educacionais contemporâneos


classificado como saber popular ou tradicional. O saber da natureza,
por exemplo, é uma das bases da agricultura familiar e orienta práticas
agrícolas relativamente eficientes ao longo do tempo.

Um saber dominado por uma comunidade e arraigado em suas


práticas, que se comprovou útil para determinado grupo por meio da
observação informal dos resultados cotidianos ao longo do tempo e
que é transmitido às novas gerações oralmente ou por exemplos, está
no campo do saber popular.

O senso comum e os saberes populares não são necessariamen-


te errôneos, mas precisamos evitar usá-los para explicar fatos ou
fenômenos em que o adequado seria utilizar o conhecimento cien-
tífico. Temos inúmeros exemplos de noções do senso comum am-
parados em saberes populares, que induzem a uma interpretação
equivocada de fatos e fenômenos e que podem levar a pensamentos
e comportamentos equivocados.

As ferramentas do conhecimento científico e filosófico podem aju-


dar a desenvolver o que denominamos senso crítico, que é quando
desconfiamos do que nos é apresentado e investigamos de onde veio
e quais as intenções por trás de uma informação, um comportamento
habitual, uma opinião, uma interpretação da realidade, uma explica-
ção sobre o mundo.

Por outro prisma, há muitos saberes populares


extremamente úteis, como os ligados ao uso
adequado de plantas medicinais. Esse tipo de

Kerdkanno/Shutterstock
conhecimento tradicional é de grande valor e
objeto de pesquisas científicas que têm com-
provado os efeitos benéficos de grande parte
das ervas utilizadas há várias gerações em mui-
tas comunidades para aliviar os sintomas de
várias doenças.

Diferentemente do senso comum e dos sa-


beres populares, o conhecimento científico está
fundamentado no pensamento racional, na ob-
servação e na análise metódica dos fenômenos
em busca de explicá-los.

Os esclarecimentos e as teorias elaboradas


Ervas para medicina alternativa
cientificamente precisam ser verificados e com-

Educação científica e inclusão digital 67


provados de modo rigoroso, seguindo certos protocolos. Dessa forma,
podemos perceber que os fatores tradição, crença e percepção indivi-
dual ou opinião não podem estar presentes no pensamento científico.

Mas é importante notarmos que o procedimento empírico também


está presente na ciência. A diferença é que as conclusões científicas
não são elaboradas apenas com base na observação informal, já que
há regras e protocolos para a sua realização e é preciso testar inúmeras
vezes as hipóteses levantadas sobre o que foi observado, analisar rigo-
rosamente os resultados e comprovar a explicação elaborada antes de
afirmar ou generalizar qualquer conclusão ou teoria científica.

O conhecimento científico não é fixo, imutável. Ele está sempre


em transformação, pois descobertas, experimentos e resultados po-
dem comprovar que o que se pensava até determinado momento
estava equivocado, precisando ser aperfeiçoado, e que conceitos ou
teorias devem ser substituídos em função do desenvolvimento cien-
tífico em alguma área.

Destacamos que na ciência também se leva em conta o que já


foi observado e analisado no passado. Novos modelos, pesquisas
e teorias só podem ser criados considerando toda a trajetória dos
estudos feitos anteriormente, todo o conhecimento acumulado. Por-
tanto, mesmo não se caracterizando como tradição, o conhecimento
científico é cumulativo.

Sobre as relações entre conhecimento científico, senso comum e


saber popular, Kuhn (1982, p. 145) afirma que:
o pré-requisito para o estudo do desenvolvimento científico e,
logo, para a realização da ciência normal (entendida como a pes-
quisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas
passadas, que proporcionam os fundamentos para sua prática
posterior) é o conhecimento dos paradigmas, isto é, dos funda-
mentos extraídos dos mesmos modelos concretos que são com-
partilhados e que geram o comprometimento com as mesmas
regras e padrões para o desenvolvimento da prática científica.

Taquary (2007, p. 102), ao analisar as distinções entre senso comum,


saber popular e científico, explica que Kuhn considera que:
o diálogo entre o conhecimento passado e a sua prática pos-
terior é que ensejará a compreensão da essência dos mesmos
conteúdos que determinarão a construção de novos saberes. Há
continuidade na compreensão dos saberes e comprometimento
para a realização de outros. O saber popular e o senso comum

68 Temas sociais e educacionais contemporâneos


são ponto de partida para, depois de compartilhados, serem
geradores dos fundamentos que desencadearão o processo de
construção do saber científico.

Já para Santos (2003, p. 22), o senso comum é um “pensamento


necessariamente conservador e fixista”, e, para alcançar a ciência,
seria preciso romper com esse tipo de conhecimento. O estudioso
destaca, no entanto, que é impossível à ciência se livrar de todos os
preconceitos originários do senso comum, que se caracteriza por
restringir-se apenas “ao aparente, ao genérico e às experiências do
cotidiano” (SANTOS, 2003, p. 22).

Reforçamos que não devemos considerar um tipo de conhecimento


melhor ou pior que outro. Eles são diferentes e devem ser aplicados de
modo diverso em cada esfera da vida. É essencial também estarmos
alerta às explicações que nada têm a ver com conhecimento, repre-
sentando apenas informações falsas, errôneas ou mentirosas, as quais
prejudicam a compreensão do mundo e de seus fenômenos e têm cau-
sado muitos danos à sociedade.

O contexto escolar é um ambiente propício para desenvolver as ca-


pacidades relacionadas à seleção e à interpretação adequada de infor-
mações, contribuindo para a formação de cidadãos capazes de analisar
diferentes versões dos fatos e de construir sua própria visão de mundo
de maneira autônoma e esclarecida.

3.1.1.1 O conhecimento escolar


Na escola devemos respeitar todos os tipos de conhecimento,
assim como partir de conhecimentos prévios dos alunos, muitas ve-
zes provenientes do senso comum e dos saberes populares de sua
comunidade, para iniciar a abordagem de fenômenos e processos,
Cherries/Shutterstock

Educação científica e inclusão digital 69


mas sempre os levando a ressignificar suas visões à luz do conheci-
mento científico acumulado pela humanidade até a atualidade.

A educação formal – escolar – tem a responsabilidade de ensinar


conceitos, teorias, procedimentos e métodos ligados a cada disciplina
escolar e que sejam comprovados cientificamente por pesquisadores
e teóricos renomados em suas áreas de atuação. Ou seja, a base do
conhecimento escolar é o conhecimento científico.

O conhecimento escolar, entretanto, não coincide com o científico,


pois este deve ser selecionado, recortado, exemplificado e transposto
didaticamente para o ensino voltado a cada faixa etária, o que não sig-
nifica que seja o conhecimento científico simplificado. É preciso ensi-
nar a aplicação dos conhecimentos básicos produzidos pela ciência em
cada área da realidade e a situações e problemas concretos.

No contexto escolar, um dos focos é formar o senso crítico nos es-


Leitura tudantes, ou seja, a capacidade de perceber o mundo e seus eventos e
Para aprofundar sua de julgá-los de maneira autônoma, racional e esclarecida, sabendo ana-
compreensão do que é lisar argumentos, contextos, intencionalidades, veracidade, lógica e le-
o conhecimento escolar
e de que modo ele se gitimidade do que é apresentado como explicação para os fenômenos.
relaciona ao currículo e
aos saberes docentes, Para isso, com o aprendizado de ideias, conceitos, métodos e teo-
acesse e leia os artigos rias, necessitamos desenvolver habilidades como as de indução, de-
sugeridos a seguir.
dução, análise, levantamento de hipóteses, síntese, elaboração de
• PACHECO, J. A.; MENDES, G.
M. L.; SOUZA, J. R. F. de. O julgamentos e conclusões, aplicação prática e solução de problemas.
conhecimento escolar em Várias delas se baseiam em conhecimentos filosóficos, guiados pela re-
tempos de uma pluralidade
de saberes e novas formas flexão crítica e racional e pela lógica, já outras se pautam em conheci-
de aprendizagem. Educação mentos científicos, ligados ao método e ao rigor das observações.
Unisinos, v. 22, n. 4, p. 268-277,
out./dez. 2018. Disponível em: As concepções relativas ao currículo nas políticas públicas de edu-
http://revistas.unisinos.br/index.
php/educacao/article/view/ cação sempre apontam visões do conhecimento escolar. A BNCC, por
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docentes, conhecimento escolar senvolvido em todas as escolas.
e formação: possibilidades
para práticas pedagógicas Apesar de o conhecimento escolar ser central no currículo, a fun-
interdisciplinares. In: 12º
EDUCERE – CONGRESSO
ção social da escola ultrapassa o seu ensino, voltando-se ao desenvol-
NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Anais vimento de habilidades, ao estímulo à produção autônoma de novos
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Acesso em: 2 fev. 2021.
humanos e éticos. Para isso, é preciso considerar a importância, no
mundo atual, de ensinar como aplicar de modo correto os conheci-
mentos científicos à análise e à interpretação de tudo o que acontece
70 Temas sociais e educacionais contemporâneos
ao nosso redor e a utilizar eticamente as ferramentas tecnológicas
ligadas à informação e à comunicação.

Saber interpretar descobertas científicas e aplicar conhecimentos e


métodos advindos da ciência à vida cotidiana, assim como aprender a
diferenciar fatos de boatos (as chamadas fake news), a selecionar fontes
confiáveis de informação e a verificar o que será compartilhado nas re-
des sociais são competências a serem desenvolvidas na escola.

3.2 A ciência
Vídeo Podemos chamar de ciência o conhecimento humano acumulado com
base na observação, descrição, explicação e previsão de fenômenos e
nas teorias derivadas desses processos. Seu fundamento é a experiên-
cia, a descrição e a interpretação racional a fim de explicar os fenômenos
observados e estabelecer leis gerais para seu funcionamento.

joker1991/Shutterstock

A curiosidade intelectual e as tentativas de compreender fenôme-


nos da natureza são muito antigas na história da humanidade. Os pri-
meiros a tentar sistematicamente explicar os fenômenos naturais e a
refletir sobre o universo e a humanidade foram alguns dos filósofos da
Grécia Antiga, que deixaram de se contentar com as explicações mito-
lógicas do mundo e se voltaram para a construção de um pensamento
filosófico. Todavia, a criação de um “método” específico para a produ-
ção do conhecimento científico é bem mais recente, tendo ocorrido por
volta do século XVII.

No século VII a.C. surgiu na Grécia a Escola de Mileto, que reunia


filósofos materialistas, como Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxíme-
nes, dedicados a descobrir a essência material de todas as coisas, ou
Educação científica e inclusão digital 71
seja, a substância elementar que geraria todas as demais existentes no
mundo. Para Tales, essa substância seria a água; para Anaxímenes, o
ar; e para Anaximandro, uma substância “não gerada e imperecível”,
isto é, algo que nunca não se estraga.

Por volta de 500 a.C., o mundo físico, ou seja, a natureza e todas as


coisas que dela fazem parte, como os seres vivos e os fenômenos natu-
rais, deixou de ser o foco dos filósofos gregos, os quais passaram a se
preocupar em compreender aspectos mais abstratos e complexos, como
a natureza do ser e da matéria, o sentido da verdade e a essência do uni-
verso. São dessa época filósofos como Pitágoras, Parmênides e Heráclito.

Mais tarde, Sócrates, Platão e Aristóteles começaram a estabelecer


algumas das ideias que abriram caminho para o pensamento científico.
Sócrates afirmava que, para obter o conhecimento, é necessário pri-
meiro estabelecer princípios provisórios, os quais, se forem bem con-
duzidos, levarão a um conhecimento generalizável, universal.

O filósofo tinha um método de ensino que chamamos de dedutivo,


fundamentado em debates que levassem o outro a chegar, por si mes-
mo (por meio da dedução), às teorias ou leis gerais que ele pretendia
comprovar. Percebemos no método socrático um elemento fundamen-
tal do que mais tarde seria parte do método científico: a intenção de
chegar a regras ou leis gerais ou universais a respeito de algo.

Retrato da cena da morte de Sócrates, condenado a beber cicuta sob a acusação de ter
corrompido a juventude ateniense com seus ensinamentos.
DAVID, J. L. A morte de Sócrates. 1787. Óleo sobre tela, color: 1,3 x 1,96 m. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.

72 Temas sociais e educacionais contemporâneos


As primeiras investigações do que chamamos de método científico fo-
ram empreendidas por Francis Bacon (1561-1626) e desenvolvidas por
cientistas como Galileu Galilei (1564-1642), Isaac Newton (1643-1727),
Robert Boyle (1627-1691) e os enciclopedistas já no século XVIII.

Chibeni (2013, p. 2, grifos do original) descreve os principais pressupostos


desse método, ou o que denominados visão comum da ciência. Segundo o
autor, os dois primeiros pressupostos são:
a) A ciência começa por observações. Bacon propôs que a etapa ini-
cial da investigação científica deveria consistir na elaboração,
com base na experiência, de extensos catálogos de observações
neutras dos mais variados fenômenos.
b) As observações são neutras. [...] Podem e devem ser feitas sem
qualquer antecipação especulativa, sem qualquer diretriz teó-
rica. A mente do cientista deve estar limpa de todas as ideias
que adquiriu dos seus educadores, [...] ele não deve ter nada em
vista, a não ser a observação pura.

Quando o autor afirma que na ciência as observações são neutras,


está apontando que não devemos conduzir observações e experimentos
ou interpretar resultados de modo a validar uma hipótese prévia. Ou
seja, não é verdadeiramente científica uma pesquisa que interfere nos
resultados ou os seleciona conforme o que se quer comprovar. Quando
isso ocorre, dizemos que a pesquisa tem um viés de confirmação.

No âmbito do senso comum, notamos que muitas pessoas usam


algo semelhante ao viés de confirmação, selecionando informações,
dados ou interpretações – muitas vezes equivocados – que comprovem
sua própria opinião do assunto. Entretanto, na prática, a neutralidade
total da ciência é difícil de atingir.

É consenso entre os cientistas atualmente que nenhuma observação


ou interpretação é totalmente neutra, livre da visão de mundo do
cientista/pesquisador, de suas vivências, de sua trajetória formativa,
social e cultural, de seus interesses e de suas intenções. Por mais que
o cientista se proponha a ser objetivo, ele ainda exerce influência de
algum modo na observação e interpretação dos resultados.

Chibeni (2013, p. 2, grifo do original) destaca os pressupostos


científicos ligados à indução e à generalização e esclarece que “as
leis científicas são extraídas do conjunto das observações por um
processo supostamente seguro e objetivo, chamado indução, que
consiste na obtenção de proposições gerais (como as leis científicas) a

Educação científica e inclusão digital 73


partir de proposições particulares (como os relatos de observação)”.
A lei geral segundo a qual todo papel é combustível, por exemplo, é
obtida de modo seguro por meio de certo número de observações de
pedaços de papel que se queimam, representando uma generalização
da experiência. O método indutivo é uma das bases do conhecimen-
to científico. Já o processo inverso, de extrair proposições particulares
com base em uma lei geral, assumida como verdadeira, cai no domínio
da lógica, sendo um caso de dedução. Como vimos, o método dedutivo
é característico do conhecimento filosófico.

Mas os experimentos e as observações não podem ser feitos de qual-


quer maneira, precisam ser realizados com rigor e seguir alguns proto-
colos para que as conclusões possam ser generalizadas, por exemplo:
“d) O número de observações de um determinado fenômeno deve ser
grande; e) Deve-se variar bastante as condições em que o fenômeno
se produz; e f) Não deve existir nenhuma contraevidência, ou seja,
observação que contrarie a lei” (CHIBENI, 2013, p. 3).

No exemplo da combustão do papel, precisaríamos realizar deze-


nas e dezenas de experimentos queimando o objeto, sempre varian-
do as condições envolvidas (diferentes tipos de papel e de chamas,
ambientes diferentes para o experimento etc.). Se em algum dos
experimentos observados o papel não se queimasse, não podería-
mos induzir uma lei geral de que todo papel queima ao ser colocado
em contato com o fogo.

Esses elementos fazem parte do que chamamos de método


científico, e representam as condições ideais de obtenção de co-
nhecimento científico. Mas, como alerta Chibeni (2013, p. 5), o cien-
tista, “quando vai ao laboratório, sempre tem uma ideia, ainda que
provisória e reformulável, do que deve ou não ser observado, con-
trolado, variado”. No entanto, isso não significa que o profissional
irá manipular de alguma forma os experimentos ou seus resulta-
dos para favorecer uma ideia prévia, apenas que ele tem uma no-
ção – não definitiva – do que está procurando.

Os estudos científicos podem ser classificados como destina-


dos à ciência pura (ou básica), no desenvolvimento de teorias,
e voltados para a ciência aplicada, na aplicação das teorias às
necessidades e aos problemas humanos. Ambos objetivam de al-

74 Temas sociais e educacionais contemporâneos


gum modo (ou deveriam objetivar) a melhoria da qualidade de vida
das pessoas e o desenvolvimento social. A figura a seguir represen-
ta essa classificação.

Figura 3
Ciência básica e ciência aplicada
Pesquisa científica

Pesquisa básica ou fundamental Pesquisa aplicada ou tecnológica

Gera produtos, processos e


Gera conhecimento
conhecimento

Contribui para o avanço da ciência.

É empregada em pesquisas aplica- Tem finalidade imediata


das ou tecnológicas.

Fonte: Adaptada de Marques, [s. d.].

3.2.1 Método científico


Os conhecimentos que temos dos fenômenos naturais – climáti-
cos, comportamento da luz e do som, produção de energia etc. – do
comportamento de corpos celestes no universo, dos processos bioló-
gicos dos seres humanos e de outros seres vivos a respeito da cura
e do modo de evitar inúmeras doenças e muitos outros foram em
grande parte obtidos com a aplicação dos pressupostos da ciência e
do método científico.

A metodologia científica avançou e se diversificou muito conforme


cada área de pesquisa, mas o método científico tradicional ainda é um
meio utilizado por muitos cientistas para guiar suas pesquisas e obter
conhecimento confiável.

Esse método, cuja origem já vimos que data do século XVII, leva
em conta os principais pressupostos da ciência, como a racionali-
dade, a busca da verdade por meio de evidências experimentais, a
objetividade e a realidade e pode ser representado, de maneira re-
sumida, pela figura a seguir.

Educação científica e inclusão digital 75


Figura 4
Sequência básica do método científico

Pergunta Hipóteses Experimentos Conclusão

Realiza-se os Por meio da análise


Com base no experimentos em dos resultados
Questão ou problema
conhecimento condições controladas dos experimentos,
que gera uma
científico acumulado ou a coleta de dados aceita-se ou rejeita-se
pesquisa. É o que se
do tema, formula-se para testar as hipóteses, as hipóteses. A
busca descobrir ou
hipóteses de seguindo as regras e os conclusão é o novo
solucionar.
resposta. protocolos científicos da conhecimento
área de estudo. produzido.

Fonte: Elaborada pelo autora.

Todo cientista precisa conhecer o que já foi produzido na sua área


de estudo, assim, dedicará suas pesquisas a responder a algo que ain-
da não foi solucionado ou que possa necessitar de novas respostas.

O método científico pode ser considerado do tipo indutivo-dedutivo,


pois, para levantar hipóteses do que se quer responder, ele usa a indu-
ção, fazendo possíveis previsões de solução, e, ao fazer experimentos ou
coletar dados do fenômeno que se quer explicar, usa a dedução para,
com base na análise dos dados, decidir qual hipótese parece mais pro-
vável na realidade. Se a conclusão obtida puder ser generalizada, pode
gerar uma teoria ou um modelo explicativo sobre o fenômeno estudado.

Há estudos científicos mais teóricos, como as pesquisas de ciên-


cia básica, e outros mais aplicados, dedicados ao desenvolvimento
de produtos, que também envolvem a criação de novas tecnologias.
Por exemplo, no caso do desenvolvimento de vacinas, o método cien-
tífico tradicional é a base das pesquisas, e os pressupostos científi-
cos de rigor na elaboração e aplicação de protocolos de observação
e de análise de resultados são utilizados também na fase de testes
das novas vacinas.

Os testes, nesses casos, são feitos por meio de estudos clínicos


chamados de duplo cegos randômicos, que, de modo simplificado,
selecionam dois grupos de voluntários (por isso o nome duplo do es-
tudo) de categorias semelhantes – mesma faixa etária, mesma con-
dição de saúde etc. – e aplicam, para um grupo, a vacina em teste,
e, para outro, um placebo, ou seja, uma substância sem nenhum
efeito, como água. Entretanto, nem os voluntários nem os pesquisa-
dores sabem quem recebeu a vacina e quem recebeu o placebo (de
onde vem o nome cego do estudo).

76 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A distribuição de uma ou outra substância é feita de modo alea- Curiosidade
tório (de onde vem o nome randômico do estudo), porém é preciso Não só correlações
não implicam necessa-
garantir que haja a mesma quantidade de voluntários que recebeu riamente causalidade,
a vacina e que recebeu o placebo. Desse modo, é possível obser- como também muitas
vezes não são feitas
var rigorosamente a saúde dos voluntários, identificar quantos dos de modo adequado,
que foram vacinados ficaram doentes em comparação à quanti- gerando erros básicos
na interpretação de
dade de doentes no grupo que não recebeu a vacina, mas sim o fenômenos. No livro Cor-
placebo, e determinar a eficácia da vacina em imunizar ou evitar relações espúrias, Tyler
Vigen aponta uma série
formas graves de uma doença. Também é possível monitorar todos de correlações engraça-
os eventuais efeitos colaterais da vacina no grupo que a tomou e das entre variáveis que,
cientificamente, não sig-
determinar sua segurança. nificam nada. Entre elas
está a alta correlação
Ao tentar compreender o método científico, é comum cometermos entre a redução no con-
alguns equívocos, como confundir causalidade com correlação. A pri- sumo de margarina por
pessoa e a diminuição
meira significa que determinado fenômeno é consequência direta de de divórcios para cada
outro; já a segunda quer dizer que existe algum fator em comum entre mil pessoas no estado
do Maine (EUA).
dois fenômenos. Portanto, não é por dois fenômenos terem alguma É claro que por meio
relação entre si que um é necessariamente a causa do outro. dessa correlação não
podemos chegar a uma
Estatisticamente, podemos afirmar que dois fenômenos são relação de causalida-
de entre o consumo
correlacionados quando as duas variáveis caminham juntas, ou seja, de margarina e os
quando uma cresce, a outra aumenta na mesma proporção, ou em divórcios e concluir que
se acabássemos com o
proporção inversa (quando uma cresce, a outra decresce na mesma consumo de marga-
proporção). Entretanto, essas correlações podem não significar uma rina nesse estado
norte-americano, acaba-
relação de causa e efeito. ríamos com os divórcios.
Para conhecer mais
Vejamos o exemplo do desenvolvimento de vacinas: os voluntá-
algumas correlações
rios que tomaram placebo são de antemão desconsiderados para a estranhas, acesse o link
a seguir.
observação de efeitos colaterais da vacina, já que não a tomaram. Mas
Disponível em: http://revistacriatica.
suponhamos que um dos voluntários que tomou a vacina, infelizmen-
com.br/correlacoes-incriveis-
te, venha a falecer. Os dois fenômenos estão correlacionados, pois o permitem-mentir-com-a-
estatistica/. Acesso em: 2 fev. 2021.
mesmo voluntário que participou do estudo e tomou a vacina morreu.
Contudo, isso não significa que a vacina foi a causa da morte. Se o vo-
luntário, por exemplo, morreu em virtude de um assalto em sua casa,
tendo sido alvejado por um ladrão, a vacina não tem relação de cau-
salidade com a morte, foi apenas uma coincidência, pois poderia ter Saiba mais

ocorrido com qualquer um. Para saber mais sobre os


tipos de falácias formais
Em filosofia, esse tipo de raciocínio que transgride uma regra for- acesse o link a seguir.

mal da lógica, propondo um argumento pretensamente correto, mas Disponível em: https://www.
infoescola.com/filosofia/falacia/.
que contém algum erro grave que o torna falso, é chamado de falácia Acesso em: 2 fev. 2021.
formal. Nesse caso específico, trata-se da falácia da falsa causalidade.

Educação científica e inclusão digital 77


3.2.2 Ética na ciência
Como toda construção social, a ciência é desenvolvida por seres hu-
manos, portanto está sujeita a seus interesses. É por isso que se torna
tão importante o tema da ética na ciência. A aplicação dada a deter-
minada descoberta científica e os seus efeitos na sociedade são muito
importantes, e é preciso evitar usos antiéticos e que possam prejudicar
as pessoas, o meio ambiente ou as relações humanas. Além disso, todo
cientista deve se conduzir eticamente quanto à legitimidade de suas pes-
quisas e à veracidade dos resultados obtidos.

No entanto, nem sempre os princípios éticos foram considerados


na ciência. As descobertas científicas e o desenvolvimento tecno-
lógico ligados à energia nuclear, por exemplo, que representaram
grande avanço científico, foram aplicados na elaboração de bombas
nucleares lançadas durante a Segunda Guerra Mundial sobre duas
cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, matando 200 mil pessoas
e contaminando o meio ambiente por muitas décadas. Esse é um
exemplo marcante de falta de ética na ciência.

Everett Collection/Shutterstock

Foto da explosão da
bomba atômica em
Hiroshima, tirada de
Kure, Japão, em 6
de agosto de 1945.

78 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Após a guerra, houve um consenso entre os cientistas e foram insti- Série
tuídos acordos entre nações no sentido de evitar que o uso da ciência e A premiada minissérie
Chernobyl mostra, em cin-
da tecnologia para destruição em massa se repetisse. O uso da energia co episódios, os equívo-
nuclear, entretanto, se expandiu, apesar de seus riscos para a vida hu- cos científicos e técnicos
da equipe responsável
mana e planetária. pelo funcionamento da
usina nuclear de Cher-
Mesmo sob protestos dos movimentos antinucleares, várias nações nobyl, e que ocasionaram
implantaram usinas de exploração dessa matriz energética, e em 1986, o maior acidente nuclear
da história. Narra tam-
na Ucrânia, que na época integrava a União Soviética, ocorreu o maior bém os procedimentos
acidente nuclear da história, a explosão na usina de Chernobyl, liberan- aplicados para tentar
frear a propagação da
do uma gigantesca nuvem radioativa na atmosfera. Em decorrência do radiação, os impactos
acidente e do câncer por ele provocado na população e nas gerações gravíssimos na população
ucraniana e o dilema
seguintes, morreram 2,4 milhões de pessoas. ético enfrentado pelos
cientistas envolvidos na
Outras pesquisas, descobertas científicas e novas tecnologias também investigação do acidente.
são alvo de discussões éticas, como os estudos envolvendo células-tronco,
Direção: Johan Renck. EUA; Reino
clonagem e fabricação de androides dotados de inteligência artificial. Unido: Sister Pictures; The Mighty
Mint, 2019.
Atualmente, em grande parte do mundo, incluindo o Brasil, proje-
tos de pesquisa que estudem de alguma forma seres humanos – com
observações, entrevistas, testes etc. – devem ser apresentados a um co-
mitê de ética científica, o qual analisa se a pesquisa efetivamente não
trará prejuízos aos participantes ou a quem quer que seja. Além disso,
a publicação de resultados de pesquisas em revistas científicas costu-
ma ter análise bastante rigorosa de cientistas da mesma área, tentando
evitar que estudiosos antiéticos manipulem dados ou conclusões.

É interessante notarmos que até mesmo em áreas ligadas às


Para refletir
ciências humanas há risco de cruzar as fronteiras da ética e pre-
judicar pessoas. Teorias das ciências econômicas, por exemplo, se Você considera aceitável que,
em nome de um objetivo
estiverem equivocadas em razão do atendimento de interesses eco- econômico, territorial, político
nômicos específicos, podem prejudicar a sociedade que as adota ou ideológico, a ética científica
seja deixada de lado em uma
como política econômica. Em todas as áreas científicas e tecnológicas
pesquisa científica ou no desen-
existem perspectivas mais conservadoras e outras mais críticas, assim, volvimento de uma tecnologia?
nas ciências humanas não seria diferente.

3.2.3 As ciências humanas


É muito importante entendermos que o método científico tradi-
cional, tal como explicado até aqui, não é o único a ser utilizado na
ciência, principalmente porque, apesar de ser adequado em parte
das pesquisas científicas de áreas ligadas às ciências naturais, como

Educação científica e inclusão digital 79


a química, a física, a biologia e as áreas de saúde etc., muitas vezes é
preciso usar outras metodologias, sobretudo na área de ciências hu-
manas, como a sociologia, a economia, a antropologia, a arqueologia,
a história, a geografia e a ciência política.

Microgen/Shutterstock
A arqueologia é um exemplo de ciência humana na qual são aplicados métodos próprios da área
para analisar vestígios humanos e compreender contextos passados, mas que também se utiliza
de elementos do método científico tradicional.

Nessas áreas, fica mais evidente que, por mais que a objetividade e
a neutralidade sejam princípios do método científico, tão utilizado até
hoje como base de inúmeras pesquisas científicas, sobretudo na área
das ciências naturais, não há como produzir um conhecimento efetiva-
mente neutro, livre de qualquer tipo de subjetividade e historicidade,
“apagando” o cientista do processo.

Devemos considerar que, em qualquer área do conhecimento, não


é possível ser totalmente neutro, pois a própria presença do cientista
ou pesquisador já pode influenciar de alguma forma o estudo. Além
disso, o cientista é um ser humano e carrega por todo o tempo suas ca-
racterísticas, sua história e seu modo de pensar, sendo inviável apagar
completamente a subjetividade, apesar de ser desejável que ela não
influencie os resultados da pesquisa ou, pelo menos, que seja identifi-
cada e assumida no estudo.

Max Horkheimer (1976), teórico que integrava a Escola de Frankfurt


– movimento formado na década de 1940, e atuante por décadas, por
teóricos alemães de áreas ligadas à filosofia e às ciências sociais –, afir-

80 Temas sociais e educacionais contemporâneos


mava que a teoria tradicional, que guia a produção de conhecimento
científico, é caracterizada pelo positivismo, pelo cientificismo e por uma
abordagem de pesquisa puramente observacional, buscando generali-
zações ou leis gerais de diferentes aspectos da realidade.

O autor defendia que o método científico tradicional não serve


para as ciências sociais do mesmo modo que para as ciências naturais
e que as generalizações no campo das ciências sociais não são realiza-
das facilmente com base em experiências como nas ciências naturais,
pois a compreensão ou interpretação de uma experiência “social” por
parte do cientista social não pode ser exata e neutra, sendo sempre
construída com base em noções, interpretações, ideologias e nos con-
textos social e histórico do próprio pesquisador.

Para Horkheimer (1976, p. 213), o cientista, em meio aos seus estu-


dos e às pesquisas, não percebe que acaba filtrando seu pensamento
sob a perspectiva de seu contexto histórico. Para o autor:
os fatos que os nossos sentidos apresentam para nós são social-
mente efetuados de duas maneiras: através do caráter histórico
do objeto percebido e através do caráter histórico do órgão que
percebe. Ambos não são simplesmente naturais; eles são molda-
dos por atividade humana, e pelas percepções individuais deles
mesmos como receptivos e passivos no ato da percepção.

Horkheimer (1983, p. 134) considera que os fenômenos da sociedade,


os fatos sociais, não são dados por natureza como o são os fenômenos
estudados pelas ciências naturais, tais como eventos climáticos, mas sim
construídos pelos seres humanos, e que essa percepção, porém, não é
comum às pessoas, que não costumam “distinguir entre o que pertence
à natureza inconsciente e o que pertence à práxis social”. Para o teórico,
portanto, os indivíduos naturalizam a produção social da realidade, o
que conduziria à parcialidade que ele identifica nas ciências sociais e
que pretende eliminar, o que o leva a não descartar totalmente os mé-
todos tradicionais de pesquisa científica.

Para isso, o autor propõe, em oposição à atitude “naturalizan-


te” do método científico tradicional, uma atitude crítica, que assume
os fatos sociais como produção humana e que tem consciência da
impossibilidade da neutralidade e da objetividade total na pesquisa
científica em ciências sociais, apesar da busca constante de se apro-
ximar ao máximo dessas características. Esse tipo de comportamen-
to leva o pesquisador a desconfiar de categorias como “melhor, útil,

Educação científica e inclusão digital 81


conveniente, produtivo, valioso, tais como são aceitas nesta ordem
[social]” (HORKHEIMER, 1983, p. 138) e a se recusar a aplicá-las como
premissas em seus estudos.

Ao adotar essa postura denominada pelo autor de teoria crítica, o


pesquisador colabora para a transformação da sociedade, pois não
a enxerga como o produto de forças naturais imutáveis e difíceis de
compreender, passando a trabalhar no sentido de tornar transpa-
rentes seus mecanismos internos e dar aos indivíduos a chance de
se emanciparem, organizando racional e conscientemente as rela-
ções e a ordem social.

No cenário contemporâneo das ciências naturais, como a física,


a química, a astronomia etc., vêm ocorrendo algumas mudanças de
paradigma que apontam a flexibilização de princípios científicos tra-
dicionais. Segundo o físico italiano Marcello Cini (1998 apud PRETTO,
1997, p. 3), assistimos atualmente, sob a perspectiva da evolução da
ciência, a uma grande mudança de concepção, pois:
passou-se, em vez disso, a uma concepção de mundo em que,
em vez de se tentar reduzir tudo à ordem, regularidade e con-
tinuidade, emergem categorias e perspectivas completamente
opostas. Estudam-se a desordem, a irregularidade, os fenôme-
nos que não se repetem, em vez de tentar unificar fenômenos
muito diferentes pela explicação resultante de uma única lei
fundamental. A individualidade começa a ser reconhecida, por
exemplo, no fato de que sistemas estruturalmente idênticos
podem revelar comportamentos radicalmente diferentes, oca-
sionados apenas por pequeníssimas diferenças que, até então,
todos consideravam como sendo não essenciais.

A relação linear de causa e consequência que vimos enfatizada


no método científico e que é fundamentada na noção de racionali-
dade aponta a existência de um único caminho, um único método,
uma única maneira de realizar uma pesquisa ou de produzir conhe-
cimento científico.

Segundo Moraes (2004), a causalidade recursiva, descoberta nos


estudos da física quântica, aponta a existência de uma dinâmica não
linear, complexa, que implica um pensamento aberto ao inesperado,
ao desconhecido, ao acaso, pressupondo que não existe nem iní-
cio nem fim, com cada final sendo sempre um novo começo. Para a

82 Temas sociais e educacionais contemporâneos


autora, esse determinismo manifesta-se nas práticas educativas, ao
deixar prevalecer o valor da homogeneidade sobre a singularidade,
da objetividade sobre a intersubjetividade, bem como da uniformi-
zação sobre a diferenciação. O novo paradigma, no entanto, não eli-
mina de modo algum a necessidade de rigor científico, mas abre
espaço para novas formas de estruturar a produção de conhecimen-
tos e a educação científica.

Em ciências humanas podemos dizer que, apesar de poderem


ser usadas observações sistemáticas, análises estatísticas e experi-
mentos, ao pesquisador não basta descrever seu objeto de estudo
– que pode ser fenômenos sociais, movimentos populacionais, pa-
drões de comportamento, relações de trabalho, adventos tecnológi-
cos etc. – ou relacioná-lo a outros objetos. É necessário interpretá-lo,
compreendê-lo e analisar seu sentido nos contextos social, histórico,
político, cultural, econômico, entre outros.

Necessitamos considerar que, nos experimentos das ciências na-


turais, na maior parte das vezes, é possível controlar as variáveis
que interferem no fenômeno estudado. Já no estudo de fenômenos
sociais, suscetíveis a inúmeras variáveis, é inviável controlar todas
elas, e algumas vezes seria antiético esse controle, pois interviria na
vida das pessoas.

A generalização por meio da identificação de regularidades em um


fenômeno social também é mais complexa do que no caso do estudo
de fenômenos naturais. Por isso, não são tão comuns leis gerais nas
ciências humanas, e, quando existentes, acabam não explicando uma
série de exceções à regra, como é o caso da lei da oferta e da procura,
estabelecida por uma vertente das ciências econômicas.

3.3 A tecnologia
Vídeo Muitos teóricos consideram que estamos vivendo a Era Tecnológica,
Era da Informação ou Era Digital, na qual a sociedade como um todo,
as relações sociais e de trabalho, a vida cotidiana, as manifestações
culturais, os sistemas econômicos etc. estão impregnados de novas
tecnologias, sobretudo digitais, que se transformam rapidamente.

Educação científica e inclusão digital 83


metamorworks/Shutterstock
As tecnologias digitais, como a interface gráfica do usuário, representam o que há de mais
contemporâneo. Entretanto, tecnologias não são apenas técnicas, dispositivos e ferramentas atuais.

É comum pensarmos que a humanidade não conseguiria sobrevi-


ver sem os dispositivos e processos tecnológicos a que estamos habi-
tuados. Precisamos lembrar que a tecnologia não se resume a
computadores, celulares, internet, eletrodomésticos e automóveis de
última geração e o modo de produzi-los. Ferramentas, como uma ca-
neta ou um par de óculos e processos simples de produção também
são tecnologias.

A técnica e a tecnologia têm uma história muito


longa nas sociedades humanas. Um bom exemplo
disso são as tecnologias educacionais.

Comparadas às tecnologias contemporâneas de


escrita, como dispositivos digitais, computadores,
tablets etc., instrumentos de impressão manual
como os carimbos parecem simples demais, entre-
tanto são também tecnologias, e no passado foram
encarados como grandes novidades e auxiliaram o
trabalho docente.

A palavra técnica vem do grego téchne, que


significa arte, técnica, ofício, isto é, o modo de
criar alguma coisa. No passado, os artesãos cria-
vam objetos para uso cotidiano de modo isolado,
Estojo em madeira com letras e números para a
confecção de cartazes pertencente à coleção da Escola produzindo o artefato – como um sapato, uma
Estadual Caetano de Campos em São Paulo.
ferramenta etc. – do começo ao fim. Com o passar
Acervo da coleção Escola Pública e o Saber. Centro de Referência em Educação
Mário Covas, São Paulo. do tempo, esses profissionais passaram a se reu-

84 Temas sociais e educacionais contemporâneos


nir em grupos, as ditas corporações de ofício, e estruturaram manei-
ras de transmitir suas técnicas a aprendizes.

Após a Revolução Industrial, o trabalho dos artesãos passou a ser


substituído pelo trabalho dos operários nas fábricas, que contavam
com o auxílio de máquinas, exemplos de novas tecnologias que ser-
viam ao objetivo de produção em larga escala.

O processo de industrialização foi ao mesmo tempo resultado


e impulso dos desenvolvimentos científico, técnico e tecnológico.
Esse avanço contínuo não afetou apenas a produção e o sistema
econômico das sociedades, mas também suas relações, o modo de
viver e consumir, as maneiras de se deslocar, trabalhar, se divertir
e, sobretudo, as formas de se comunicar, divulgar e ter acesso à Livro
informação.

As novas tecnologias passaram a ser fonte de admiração, pois


pareciam facilitar todas as atividades humanas e representar o pro-
gresso e o desenvolvimento social, mas também de receio, já que as
máquinas pareciam ameaçar os empregos e, de certo modo, até mes-
mo a liberdade das pessoas.

Os teóricos da Escola de Frankfurt foram pioneiros nos debates


sobre os possíveis impactos das novas tecnologias na sociedade. O protagonista do livro
1984 vive em uma socie-
Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse criticavam forte-
dade totalitária na qual
mente a racionalidade tecnocientífica, alertando que a dominação o Estado é onipresente
por meio de dispositivos
entre as nações, no contexto mundial, não estava mais se dando
tecnológicos e ninguém
apenas entre “países ricos” e “países pobres”, mas entre países pro- tem direito à individuali-
dade ou à liberdade de
dutores/detentores de tecnologia e países excluídos dela.
pensamento. O romance
Marcuse (1973) considerou que a sociedade contemporânea indus- foi interpretado como
uma crítica a regimes
trial estava marcada por um elevado nível de racionalidade tecnológica, totalitários como o
o que, segundo o autor, levaria a características totalitárias. Nessa so- nazismo e o stalinismo. A
manipulação da realidade
ciedade, que ele chamou de unidimensional, o controle social se daria imposta pelo governo nos
pelo meio tecnológico. meios de comunicação
pode ser comparada, sob
Um famoso livro de ficção, publicado por George Orwell em 1949, certos aspectos, ao que
hoje chamamos de fake
chamado 1984, narra um futuro distópico totalitário, no qual o mun- news, as quais promovem
do é governado por uma grande corporação, personificada na figura uma confusão generali-
zada do que é ou não a
do Grande Irmão (Big Brother). Nessa sociedade, todas as pessoas são verdade dos fatos. É uma
vigiadas dia e noite por meio de dispositivos tecnológicos, privadas da leitura essencial.

liberdade até mesmo de pensar criticamente ou de se comunicar de ORWELL, G. São Paulo:


Companhia das Letras, 2009.
modo espontâneo, e obrigadas a aceitar, sem questionar, todas as in-

Educação científica e inclusão digital 85


formações fornecidas a elas por meio das telas onipresentes, das quais
ninguém consegue fugir.

Para além da crítica política e social, o livro, adaptado para o ci-


nema e para a televisão, expressa um dos grandes medos da época:
o de que os seres humanos fossem dominados pela tecnologia ou
por meio dela.

3.3.1 Ciência, tecnologia e sociedade


O desenvolvimento tecnológico, que de início adveio do aperfeiçoa-
mento das técnicas artesanais tradicionais, tendo depois se estendido
à aplicação do conhecimento científico para a solução de problemas so-
ciais, muitas vezes por meio do desenvolvimento de novas tecnologias,
converteu-se na promessa de condução segura da sociedade rumo a
um futuro próspero para todos.

Prova disso é o fato de que ele tem sido utilizado cada vez mais
como indicador do progresso humano em geral e do desenvolvi-
mento social em específico, legitimando a classificação das socieda-
des em avançadas ou atrasadas segundo seu nível de sofisticação
tecnológica (DICKSON, 1980).

Em geral, as conquistas da ciência e da tecnologia trouxeram inú-


meras vantagens para os seres humanos, que se refletem até em uma
maior longevidade de vida das pessoas. Entretanto, grande parte das
populações do mundo não tem acesso aos frutos dos desenvolvimen-
tos científico e tecnológico, mostrando que esse tipo de progresso
não se estendeu a todos.

O fenômeno contemporâneo da aceleração tecnológica, ou seja, do


surgimento de inovações e novas tecnologias a todo momento, é único
na história, e gerou grandes impactos na sociedade e na vida cotidiana,
assim como suscitou diferentes perspectivas teóricas que foram elabo-
radas após essa intensificação dos processos técnico-científicos.

De um lado, as concepções ligadas à ideia de que o progresso


crescente da ciência e da tecnologia é determinante para os desen-
volvimentos econômico e social, além de possuir natureza neutra e
não normativa; de outro, as concepções fundadas nas indetermina-
ções que rondam o futuro da sociedade – moldada pelos sistemas
técnico-científicos contemporâneos – e que questionam o suposto pa-

86 Temas sociais e educacionais contemporâneos


pel determinante e neutro da ciência e da tecnologia (GARCIA, 2007).
Vários autores têm se debruçado sobre esses conceitos, alguns deles
ligados aos chamados Estudos ou Movimento Ciência, Tecnologia e
Sociedade (CTS), que abarcam análises das relações entre a ciência, a
tecnologia e a sociedade contemporânea.

Esse movimento busca desconstruir a ideia de ciência como uma


atividade neutra, de domínio exclusivo de um grupo de especialistas,
que trabalha desinteressadamente e com autonomia, bem como com
liberdade total, na busca de um conhecimento universal, cujas conse-
quências ou usos inadequados não são de sua responsabilidade.

A Teoria Crítica da Tecnologia, proposta por Feenberg (2004),


defende que a tecnologia poderia promover um desenvolvimento
que atendesse às necessidades da sociedade, mas para isso seria
necessário um controle social que orientasse o desenvolvimento
não sob a racionalidade técnica, mas sob uma racionalidade demo-
crática, considerando que a tecnologia está a serviço da humanida-
de, e não o contrário.

3.3.2 Novas alternativas: democratização da ciência


e da tecnologia
As teorias críticas sobre a tecnologia apontam para a necessidade de
ultrapassar a visão tradicional de tecnologia e de desenvolvimento para
alcançar uma perspectiva mais democrática e inclusiva de tecnologia.

O modelo da cadeia linear da inovação tecnológica convencional,


inspirado no trabalho de Schumpeter (1961), supõe que a pesquisa
científica é seguida da tecnológica, e que esta, por sua vez, produz o de-
senvolvimento econômico, o qual possibilita o desenvolvimento social.
As inovações tecnológicas, nessa acepção, seriam processos por meio
dos quais novas ideias, objetos e práticas são criados, desenvolvidos ou
reinventados (CROSSAN; APAYDIN, 2010).

Essa perspectiva relaciona diretamente o avanço ou atraso das so-


ciedades ao nível de sofisticação tecnológica que possuem, podendo
ser chamada de concepção convencional de inovação tecnológica, e está
ancorada a um modelo liberal de interpretação da realidade.

As tecnologias alternativas às convencionais, por outro lado, es-


tão ligadas a outro modelo de inovação, a inovação social, concei-

Educação científica e inclusão digital 87


tuada por Mulgan (2006) como relacionada a atividades e serviços
inovadores que possuem a finalidade de atender a uma necessidade
social e que são desenvolvidos e difundidos, predominantemente,
por organizações de cunho social, além de instituições de ensino e
pesquisa e, por vezes, agentes públicos.

De acordo com Pinto (2005), a concepção de que o progresso da


ciência e da tecnologia determina o desenvolvimento das socieda-
des implica considerar que as regiões “não tecnológicas”, como o
Brasil e suas localidades menos desenvolvidas, correm o risco de
planejar seu desenvolvimento imitando o desenvolvimento tecnoló-
gico das regiões mais desenvolvidas, renegando sua própria realida-
de e suas condições objetivas. Ou seja, o autor questiona o que é o
desenvolvimento social e o econômico em cada realidade e a quem
exatamente eles beneficiam.

Nesse sentido, Silveira e Bazzo (2009) propõem que, para os de-


senvolvimentos científico e tecnológico serem efetivamente menos
excludentes, é necessário considerar os problemas reais da popu-
lação. A questão central do debate não é se a ciência e a tecnologia
são “boas” ou “más” em si, mas se elas podem melhorar a vida dos
seres humanos em sociedade de maneira mais justa e igualitária e
de que modo. Uma das alternativas para atingir esse objetivo é por
meio da tecnologia social.

3.3.2.1 O que são tecnologias sociais


Ao contrário da transferência de tecnologia, que de modo sim-
Para refletir
plificado é a importação de uma tecnologia desenvolvida em outro
Será que a transferência de país, quase sempre gerando lucros para quem adquiriu os direitos
tecnologia é sempre a resposta
para solucionar problemas sobre ela e a exclusão de grande parte da população do acesso à
específicos das comunidades, tecnologia transferida, já que usualmente é cara, a tecnologia social
trazendo desenvolvimento é uma alternativa que “corre por fora” da lógica do lucro.
local? As comunidades
locais possuem recursos para A transferência de tecnologia se dá em torno da chamada
adquirir essas tecnologias de
tecnologia de ponta, uma técnica ou produto tecnológico avançado
ponta? A comunidade poderia
aplicar a tecnologia de modo desenvolvido pela indústria tecnológica de última geração, fruto
autônomo de acordo com da revolução tecnocientífica e informacional. Ela utiliza recursos
suas necessidades? Quem
efetivamente se beneficia com tecnológicos altamente sofisticados, está em constante processo
essa tecnologia? de inovação e aplica grandes investimentos financeiros no desen-
volvimento de pesquisas.

88 Temas sociais e educacionais contemporâneos


As tecnologias sociais são técnicas, métodos ou produtos construídos Livro
com a participação da comunidade que as usará e no intuito de resolver
um problema ou uma necessidade local. Trata-se de uma tecnologia que
favorece o desenvolvimento local sustentável e que promove a inclusão.

De modo geral, podemos dizer que a tecnologia social integra sabe-


res teóricos, científicos e técnicos a saberes práticos, tradicionais e po-
pulares no sentido de construir coletivamente, com o protagonismo da
comunidade envolvida, uma intervenção social que ajude a solucionar
um problema local e a contribuir para o desenvolvimento sustentável
O livro Tecnologia social:
da comunidade. ferramenta para construir
outra sociedade, de
Um conceito de tecnologias sociais expresso em documentos ofi- Renato Dagnino, traz uma
ciais ligados ao fomento e ao financiamento desse tipo de projeto, por visão bastante ampla
do que as tecnologias
exemplo, afirma que elas são técnicas ou metodologias reaplicáveis, sociais no cenário da
desenvolvidas em interação com a comunidade, que buscam soluções ciência e da tecnologia no
Brasil representam, sob
para problemas sociais. a perspectiva da constru-
ção de uma plataforma
De acordo com essa concepção, essas tecnologias unem saber po-
cognitiva para outra ló-
pular e organização social a conhecimentos científicos e tecnológicos, gica de desenvolvimento
da sociedade, baseada na
buscando a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida para gerar
economia solidária.
a efetiva transformação social, devendo ainda atender a requisitos de
Campinas: Unicamp, 2009.
simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e reprodução, bem como
impacto social comprovado. Com esses aspectos, a tecnologia social
geraria autonomia da comunidade, apropriação dos conhecimentos
construídos e sustentabilidade da tecnologia criada.

3.4 Ciência, tecnologia e educação


Vídeo Quando surgiram novas tecnologias, como o rádio e mais tarde a
televisão, muitos estudiosos alertaram para os impactos negativos que
elas teriam sobre a sociedade, principalmente para as novas gerações.
Temia-se que a formação das crianças e dos adolescentes fosse pre-
judicada e que as descobertas ameaçassem o conhecimento escolar,
substituindo-o por informações errôneas ou superficiais e por explica-
ções fantasiosas ou coleções de “curiosidades”.

Vários teóricos da Escola de Frankfurt afirmavam que a comuni-


cação de massas, veiculada, sobretudo, pela televisão, atrelada à in-
dústria cultural, atuava sob a lógica capitalista do lucro e, portanto,
reproduzia as desigualdades na sociedade, propagava a ideologia

Educação científica e inclusão digital 89


dominante e visava, em última instância, induzir ao máximo o con-
sumo, não tendo compromisso nenhum com a formação do senso
crítico dos telespectadores.

Com o passar do tempo, percebeu-se que, se por um lado a tele-


visão tinha efeitos prejudiciais sob aspecto educacional, como o estí-
mulo à passividade e a uma postura pouco crítica diante do que era
veiculado, e que muitas vezes não correspondia à realidade, sob outros
aspectos, essa nova ferramenta podia levar informação e mesmo al-
guns ensinamentos a crianças e jovens distantes dos grandes centros
ou com pouco acesso à informação em suas comunidades.

Do mesmo modo, as novas tecnologias digitais de informação e co-


municação (TDICs) também suscitam debates e o temor de que, com a
intensificação de seu uso por crianças e jovens, tenhamos perdas edu-
cacionais significativas e prejuízos à capacidade de análise autônoma,
crítica e ética dos fenômenos da realidade por parte dos estudantes.

Estudos dos impactos sociais, culturais e educacionais das TDICs


mostram que, se por um lado, com o tipo de comunicação superficial
e fragmentada realizado nas redes sociais, estamos assistindo a um
empobrecimento da linguagem e da capacidade de pensamento com-
plexo, por outro, temos um impulso nunca visto na democratização do
acesso à informação e na formação de redes virtuais de aprendizagem.

É essencial, no entanto, que as tecnologias digitais sejam aplicadas à


educação sob a perspectiva das aprendizagens ativas, favorecendo o pro-
tagonismo dos estudantes e a aprendizagem colaborativa e evitando a
reprodução de processos tecnicistas característicos do ensino tradicional,
ou seja, sem efetivamente explorar as possibilidades abertas pelas TIDCs.

Para reforçar os impactos positivos das novas tecnologias e ame-


nizar os negativos, a escola precisa dedicar-se a educar para o bom
uso das mídias e das tecnologias digitais de informação e comunica-
ção. Não basta construir a inclusão digital, promovendo seu acesso
a dispositivos e à internet de boa qualidade, é preciso promover o
letramento digital e a educação para as mídias e para a tecnologia, ga-
rantindo que seu uso propicie a construção de pensamento complexo
e de aprendizagem coletiva.

Ao longo dos anos 1960, a mídia-educação enfocou a dimensão


da interpretação crítica das mensagens midiáticas, orientada pela
corrente da linguística, da semiologia e da pragmática. Como di-

90 Temas sociais e educacionais contemporâneos


mensão de ferramenta de planejamento pedagógico, inspirada na
corrente tecnológica, tornou-se foco dos estudos de outra área, a
tecnologia educacional, cujo desenvolvimento se deu na década de
1970, principalmente nos Estados Unidos e, em seguida, na América
Latina, passando a representar a grande aposta para a melhoria dos
sistemas educacionais, tanto em termos de qualidade quanto de
quantidade (BELLONI; SUBTIL, 2002).

Ao contrário das mídias, que se baseavam na comunicação “de


um para todos”, o advento do computador e da internet trouxe a co-
municação de todos para todos, caracterizada por Lévy (1999) como
capaz de criar um espaço virtual de vivência entre humanos e infor-
mação e de permanente estado de mudança dessas informações em
virtude da atualização e da intervenção dos usuários/aprendizes.

De todo modo, como não podemos viver em um mundo sem a


tecnologia, precisamos educar as novas gerações para seu uso adequa-
do, ético e proveitoso, e lutar para que a inclusão digital seja uma reali-
dade, promovendo a ampliação dos processos educativos e do acesso
democrático à informação e à produção de conhecimento.

Nesse contexto, ganha força a ideia de que a simples oferta de dispo-


sitivos técnicos e de acesso à rede mundial de computadores nas escolas
daria grande impulso aos processos de ensino e aprendizagem. É es-
sencial para a inclusão digital promover o letramento digital, ensinando
a acessar, selecionar e interpretar adequadamente as informações na
internet e, mais ainda, a usar as informações de modo a produzir novos
conhecimentos coletivamente e solucionar problemas reais.

3.4.1 Novas tecnologias aplicadas ao ensino e à


aprendizagem
As novas tecnologias aplicadas à educação deveriam estar a serviço
dos processos de ensino e aprendizagem, mas o que vemos, muitas
vezes, são as imensas dificuldades de integrar de modo interessante e
produtivo os recursos tecnológicos à sala de aula.

Se por um lado, nos últimos anos, consolida-se a ideia de que as


mídias em geral e a internet em particular abrem as portas para novas
percepções da realidade e novas maneiras de aprender, de produzir e
de divulgar conhecimentos e informações (BÉVORT; BELLONI, 2009),

Educação científica e inclusão digital 91


por outro, ampliou-se a relevância dos estudos que abordam as ló-
gicas próprias ao ciberespaço, à comunicação via internet e às pu-
blicações nas redes sociais, sob a perspectiva dos novos modos de
aprendizagem, mais autônomos e colaborativos. Tais ideias e estu-
dos, entretanto, são em grande parte ignorados pelos educadores
em geral (PERRIAULT, 2002).

Monkey Business Images/Shutterstock


Livro

Nesse cenário, Levy (1999, p. 157) defende que “qualquer re-


flexão sobre o futuro dos sistemas de educação e de formação na
cibercultura deve ser fundada em uma análise prévia da mutação
contemporânea da relação com o saber”. O autor aponta que está
Para aprofundar seus co-
nhecimentos dos impactos ocorrendo uma transformação qualitativa dos processos de apren-
da era digital na educação, dizagem, pois “o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que
o livro Tecnologia, sociedade
e educação na era digital amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas
traz, ao longo dos capí- humanas”. Ele ainda defende três princípios para guiar a formação
tulos, múltiplos olhares
sobre as tecnologias voltada à atuação no ciberespaço: a interconexão, a criação de co-
digitais, abordando temas munidades virtuais e a inteligência coletiva.
como inclusão digital ou
infoinclusão, sociedade da Ao mesmo tempo, o estudioso lança um desafio aos sistemas
informação, políticas públi-
cas e letramento digital. educacionais, levantando que os percursos e perfis de competências
VILAÇA, M. L. C.; ARAUJO, E. V. são todos singulares e podem cada vez menos ser canalizados em
F. de. (org.). Duque de Caxias: programas ou cursos válidos para todos, o que leva à proposta de
Unigranrio, 2016.
construção de novos modelos do espaço dos conhecimentos emer-
gentes, abertos, contínuos, em fluxo e não lineares, reorganizando-se
de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa
uma posição singular e evolutiva.

92 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Nessa proposta, o professor é levado a se tornar um incentivador,
um mobilizador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos em
vez de um fornecedor direto de conhecimentos (LEVY, 1999).

3.4.2 Estratégias para a educação científica e


tecnológica
Muitos educadores ficam espantados ao perceber que seus alunos
– e até alguns colegas de docência – propagam ideias e interpretações
de fenômenos ligados a várias áreas da ciência e da tecnologia equivo-
cadas, que chegam a contrariar a lógica básica e os dados disponíveis
para toda a sociedade.

McLittle Stock/Shutterstock

Mas por que isso acontece com cada vez mais frequência? Por que
as chamadas fake news têm cada vez mais distorcido ou desconside-
rado os elementos básicos do conhecimento científico e por que tan-
tas pessoas acreditam nessas informações mentirosas? O que legitima
uma opinião sobre um fenômeno, fato ou processo?

Devemos usar o espaço escolar para debater essas questões e es-


clarecer aos estudantes os seguintes pontos:
• Para defender um posicionamento diante de um assunto, é
necessário ter argumentos embasados de modo consistente,
com dados e/ou teorias de autores reconhecidos. A afirmação “é
a minha opinião” não é um argumento válido em uma discussão.

Educação científica e inclusão digital 93


• Informações soltas, descontextualizadas, não comprovadas e
acessíveis em fontes não confiáveis não são conhecimento. Opi-
niões pessoais, julgamentos de valor e crenças infundadas também
não, e só atrapalham a interpretação do mundo.
• Pessoas leigas em determinada área do conhecimento podem
dar sua opinião, mas não podem exigir que ela seja considerada
tão legítima quanto os pareceres de especialistas no assunto.
• Casos individuais não podem ser generalizados. Não é porque co-
nhecemos alguns casos em que determinado fato teve uma con-
sequência que podemos dizer que sempre será assim em todos os
casos. Ou seja, referir-se a algo que aconteceu a um parente, amigo
ou conhecido como se fosse uma regra geral é anticientífico.
• O pensamento científico não pode se guiar por ideias como “sem-
pre foi assim”, “sempre deu certo dessa forma”, “conheço vários
casos”, “comigo aconteceu assim”, “todo mundo sabe que é ver-
dade”, “eu vi vários relatos na internet” etc.

A educação científica e a tecnológica básicas devem permear todas


as disciplinas, e há orientações que precisam ser dadas frequentemen-
te aos alunos, auxiliando a construção de uma postura mais racional e
crítica diante das informações a que eles têm acesso.

As orientações podem ser transmitidas pelo educador por meio


da mediação em debates e rodas de conversa com base em temas
geradores relacionados ao letramento digital, por exemplo, sobre
como utilizar adequadamente ferramentas tecnológicas, como pes-
quisar, verificar e interpretar informações, como acessar, interagir e
se proteger nas redes etc.

Alguns dos temas sugeridos são:


• O que é fato e o que é opinião?
• Como verificar informações obtidas na internet ou como desco-
brir se é notícia ou fake news?
• Como acessar e compreender informações científicas?
• Como se manter seguro na internet?
• Como se concentrar na internet?

Como subsídio para mediar as discussões, abordaremos os temas


sugeridos de modo a destacar as orientações principais a serem com-
partilhadas com os estudantes.

94 Temas sociais e educacionais contemporâneos


O que é fato e o que é opinião?
Não é porque não gostamos de determinados dados ou fatos
que podemos dizer que “não concordamos” com eles e pronto. Por
exemplo: o Brasil possuir atualmente uma população de cerca de 210
milhões de pessoas é um fato com base em dados coletados e com-
provados, publicados por órgãos oficiais como o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Não faz sentido nenhum que alguém
discorde desse fato, dizendo que a população é menor ou maior e que
essa é sua opinião.

Opiniões que não se baseiam em evidências nem possuem emba-


samento concreto não podem ser consideradas legítimas, mesmo que
um grupo grande de pessoas compartilhem.

Em quase todo o mundo existem grupos numerosos compostos de


pessoas que querem equiparar suas opiniões, sem nenhum fundamen-
to científico, às teorias científicas reconhecidas ou a fatos comprovados.

Esse é o caso dos grupos antivacina e dos que defendem que a Ter-
ra é plana, por exemplo. Tanto a importância das vacinas quanto o for-
mato do planeta já foram amplamente comprovados cientificamente
por meio de evidências e não podem ser confrontados por opiniões
que se baseiam em fantasias e interpretações errôneas da realidade e
que podem, inclusive, ser prejudiciais à população.

Uma estratégia interessante para desenvolver esse tema gera-


dor é promover um júri simulado em torno de questões que não
deveriam gerar polêmicas, já que foram amplamente comprovadas
cientificamente.
Glossário
Nessa estratégia didática, dois grupos de alunos são organizados:
geoide: é um modelo físico
um fará a defesa e outro a promotoria. Por exemplo: o grupo que de- da forma da Terra, elaborado por
fenderá o formato geoide da Terra fará pesquisas e construirá sua Gauss, que acompanha as varia-
ções do campo de gravidade do
argumentação fundamentada teoricamente na ciência; já o grupo que
nosso planeta. É considerado o
tentará provar que a Terra é plana, contradizendo a defesa, também “verdadeiro” formato do planeta
fará suas pesquisas e construirá seus argumentos embasados no que Terra, que não é perfeitamente
esférico, pois é “achatado” nos
encontrarem de informações. polos.
No júri simulado os grupos têm, cada um, seu tempo para expor sua
argumentação e pequenos tempos para réplicas e tréplicas. A media-
ção é feita pelo educador, podendo ser auxiliado por alguns alunos que
estejam registrando as argumentações.

Educação científica e inclusão digital 95


Ao final, é preciso retomar os argumentos, mostrar suas falhas e
esclarecer didaticamente o embasamento científico, os experimentos
e as teorias que comprovam que a Terra não é plana, e sim geoide,
ou seja, que isso é um fato, não uma opinião, e mostrar objetivamen-
te, pela análise dos argumentos da promotoria, que considerar que a
Terra é plana é uma opinião, não um fato. É de grande valia a participa-
ção do professor de Ciências ou Biologia nessa estratégia.

Como verificar informações obtidas na internet?


Se não há fonte confiável para uma informação, é melhor não com-
partilhar. Fonte confiável não é vídeo ou matéria sem assinatura em
sites que não sejam efetivamente veículos profissionais de notícias.

Fontes confiáveis são artigos científicos, falas comprovadas de


estudiosos respeitados na área abordada, dados oficiais do assunto,
compilações feitas por veículo de imprensa idôneo etc.

Se alguém está veiculando informações na internet, em um vídeo,


site, blog etc., e não tem formação na área relacionada ao que está
abordando, a probabilidade de serem dados equivocados é muito
grande.

Uma estratégia a ser ensinada aos estudantes é a de se pergun-


tar sempre qual poderia ser o interesse de quem está veiculando a
suposta informação. Qual seria a intenção de divulgar aquilo? Essa
postura crítica ao receber uma mensagem é a chave para não ser en-
ganado ou manipulado.

Uma forma fácil de verificar se uma notícia é verdadeira ou apenas


um boato, uma fake news, é buscar informações sobre ela em uma
agência de checagem de notícias, como Agência Lupa, Boato.org, Fato
ou Fake, Comprova e Aos Fatos.

É importante conscientizar os estudantes a se habituarem a verifi-


car as supostas notícias ou informações antes de compartilhar, pois
divulgar dados falsos é antiético e pode prejudicar outras pessoas,
além da sua própria reputação.

Como acessar e compreender informações científicas?


A divulgação científica é um meio excelente de acessar e
compreender melhor informações científicas, novas descobertas e

96 Temas sociais e educacionais contemporâneos


tecnologias. É realizada tanto por cientistas quanto por jornalistas
Podcast
especializados na abordagem de temas da ciência, no intuito de dar
Os podcasts têm se
maior acesso às informações científicas, transpondo-as para uma lin- tornado uma fórmula de
guagem mais simples e de fácil compreensão pelo público em geral, sucesso para a divulga-
ção científica. Conheça
por meio de exemplos e analogias e de explicação de termos de ma- alguns dos mais ouvidos:
neira acessível. • Naruhodo!: podcast de
divulgação científica criado por
Trata-se de um meio importantíssimo para democratizar o acesso
um jornalista e um cientista que
ao conhecimento científico e estimular o diálogo entre os pesquisado- traz de modo claro e divertido
informações científicas de várias
res e a sociedade, representando um espaço de educação não formal
áreas. Disponível em: https://
que pode ser usado como ferramenta de ensino pelos educadores. www.b9.com.br/shows/
naruhodo/. Acesso em: 2 fev.
Os textos e as matérias de divulgação científica são veiculados 2021.
• Dragões de garagem: programa
por jornais e revistas comuns ou nos veículos especializados nessa
em formato de mesas-redondas
abordagem. Atualmente, há canais no YouTube e podcasts especia- com cientistas convidados para
a discussão de temas de todas as
lizados em divulgação científica, mas é preciso saber escolher bem,
áreas científicas. Disponível em:
certificando-se de que os responsáveis pelo conteúdo realmente têm http://dragoesdegaragem.com/.
Acesso em: 2 fev. 2021.
conhecimento e legitimidade para esse tipo de divulgação.
• Fronteiras da ciência: podcast
A divulgação científica também tem níveis diferentes e pode ser que usa mesas-redondas
descontraídas para explicar
voltada para públicos gerais ou específicos. Revistas pioneiras no como a ciência funciona e
Brasil são, por exemplo, Ciência Hoje, criada em 1982 pela Sociedade democratizar os conhecimentos
científicos. Disponível em:
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e publicada até a atua- http://www.ufrgs.br/
lidade (existe também a revista Ciência Hoje para Crianças, publicada frontdaciencia/. Acesso em: 2
fev. 2021.
desde 2003), e Superinteressante, publicada desde 1987 e voltada ao
público em geral.

Outras publicações têm públicos-alvo mais específicos, pessoas in- Dica


teressadas em determinada área da ciência, ou mesmo publicações As revistas de divulgação
científicas que divulgam a ciência para os próprios cientistas. científica são uma ótima
fonte para compreender
Os canais de vídeo e os podcasts de divulgação científica têm an- melhor informações cien-
tíficas e podem subsidiar
gariado cada vez mais ouvintes, e muitos deles contam com a par- pesquisas mediadas pelo
ticipação de cientistas reconhecidos em suas áreas. São uma boa professor ou mesmo
estratégias didáticas
ferramenta para levar a divulgação científica para a sala de aula. aplicadas em sala de aula.
Seguem dois exemplos:
Uma estratégia interessante é criar um projeto contínuo de di-
• Ciência Hoje. Disponível em: https://
vulgação científica na escola, determinando, por exemplo, um com- cienciahoje.org.br/. Acesso em: 2
partilhamento regular desse tipo de recurso por parte dos alunos de fev. 2021.
• Ciência Hoje para Crianças.
maneira mediada. Disponível em: http://chc.org.br/.
Acesso em: 2 fev. 2021.
Depois de uma explanação e do contato com exemplos de bons
veículos de divulgação científica, os alunos podem pesquisar novas
fontes desse tipo de conhecimento. Após a análise do professor para

Educação científica e inclusão digital 97


avaliar se a fonte é legítima e fornece conhecimento confiável, po-
dem apresentar aos colegas o que encontraram e quais foram suas
percepções sobre o que pesquisaram.

Como se manter seguro na internet?


O letramento digital envolve, além de aprendizados relativos à
pesquisa em fontes confiáveis, analisar as informações textuais e
imagéticas obtidas e comunicar-se adequadamente no meio virtual.
Também são considerados os conhecimentos e as habilidades ligados
à segurança na internet.

É essencial alertar os alunos para o fato de que a internet é um


local público, ou seja, navegar em sites e, principalmente, em redes
sociais é o mesmo que estar sozinho andando nas ruas. Assim como é
perigoso conversar com qualquer desconhecido, também é arriscado
entrar em contato virtual com desconhecidos nas redes sociais. Na
verdade, pode ser até mais perigoso, pois no meio virtual não temos
nenhuma pista da identidade real de nossos interlocutores.

Presencialmente podemos observar, por exemplo, a faixa etária


de alguém que está tentando entrar em contato conosco. Na inter-
net só temos acesso à idade, às características e às informações que
a pessoa nos forneceu virtualmente, e nada nos garante que sejam
verdadeiras.

Por isso, é importante selecionar muito bem com quem conversa-


mos em redes sociais e nunca fornecer nossas informações pessoais,
como telefone, endereço, locais em que estudamos, trabalhamos ou
Dica
fazemos outras atividades. Além disso, tomar muito cuidado com o
A Cartilha de Segurança
tipo de fotos e vídeos que postamos para que essas informações não
para Internet, publicada
pelo Centro de Estudos, sejam utilizadas para nos prejudicar de algum modo, até mesmo fi-
Resposta e Tratamento
nanceiramente, pois dados pessoais dão acesso à prática de todo tipo
de Incidentes de
Segurança no Brasil, pode de estelionato.
ser muito útil como subsí-
dio às orientações sobre Esses cuidados básicos devem ser ensinados às crianças e aos jo-
segurança na internet a vens que, muitas vezes, não imaginam que do outro lado da tela pode
serem trabalhadas com
os estudantes. estar alguém com más intenções e que não é quem diz ser.
Disponível em: https://cartilha.cert. As fraudes na internet são frequentes e é preciso ensinar os estu-
br/. Acesso em: 2 fev. 2021.
dantes a desconfiar de ofertas virtuais de qualquer tipo.

98 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Como se concentrar na internet?
Por mais que estudantes já estejam familiarizados desde cedo com
as ferramentas tecnológicas digitais e com a internet, não significa
que já têm todas as habilidades para as usar de modo produtivo.

Os conteúdos fragmentados, a grande quantidade de links e hiper-


textos, a profusão de conteúdos de entretenimento e de interpreta-
ções superficiais, equivocadas e mentirosas e a imensa quantidade de
informação ofertada na internet podem causar uma grande dificulda-
de de selecionar conteúdos textuais ou midiáticos e, principalmente,
se concentrar, a fim de aprofundar a compreensão e estimular o pen-
samento complexo.

Para auxiliar os estudantes a navegarem de modo adequado


quando estão utilizando conteúdo da internet para estudo e a se con-
centrarem no que estão fazendo, é essencial que o educador crie e
proponha roteiros de navegação, de pesquisa e de compreensão dos
conteúdos pesquisados.

Indicar sites, plataformas e repositórios de conteúdo digital con-


fiáveis, propor uma sequência de navegação e pesquisa na internet,
orientar o uso de ferramentas digitais ou não para a compilação e a
análise do que foi pesquisado e propor uma sequência para a com-
preensão, o compartilhamento e a aplicação dos conhecimentos ad-
quiridos, produzindo novos conhecimentos, é essencial para que os
estudantes tirem o melhor proveito do mundo digital e não se percam
ou se distraiam em seus caminhos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos neste capítulo que a educação científica e tecnológica depende
do estudo de conceitos e métodos próprios à área científica em geral e a
cada área do conhecimento em específico, mas que essas aprendizagens
devem ser complementadas com uma “postura científica” diante do mundo.
Observar com rigor e analisar criticamente fatos e argumentos é a base
de uma atitude científica, a qual não se conforma em não compreender
a fundo os fenômenos naturais e sociais e que não repete opiniões sem
julgar sua validade.

Educação científica e inclusão digital 99


A racionalidade, a análise e a verificação de dados e informações e a
busca da compreensão clara de todas as coisas, suas causas e consequên-
cias são fundamentais para todo conhecimento científico e devem ser um
pilar do conhecimento escolar e de toda a comunicação entre as pessoas.
A ciência e a tecnologia devem ser meios de melhoria na vida das
pessoas e de desenvolvimento social e econômico para todos, funcio-
nando como ferramentas de inclusão. Para isso, o primeiro passo é de-
mocratizar o acesso ao conhecimento e integrar a educação científica e
tecnológica ao contexto escolar.

ATIVIDADES
1. Se perguntassem a você o que diferencia conhecimento científico e
Vídeo
senso comum, como explicaria e que exemplos daria?

2. Suponha que você acabou de ler uma postagem de um amigo ou


parente afirmando que as vacinas causam transtornos do espectro
autista, pois foi apenas após cerca de 25 anos – o período de uma
geração – de campanhas de vacinação no Brasil que o número de
casos desse tipo de distúrbio no neurodesenvolvimento aumentou.
Como você usaria os conceitos científicos de correlação e causalidade
para explicar que a postagem está equivocada?

3. Por que, sob alguns aspectos, o método científico tradicional,


estabelecido no contexto dos estudos das ciências naturais, pode ser
inadequado para pesquisas na área de ciências humanas?

4. A Teoria Crítica da Tecnologia, proposta por Feenberg (2004), defende


que a tecnologia poderia promover um desenvolvimento que
atendesse às necessidades da sociedade, mas impõe uma condição
para que isso ocorra. Qual é essa condição?

5. Quais impactos positivos a aplicação das novas tecnologias na


educação pode trazer para os processos de ensino e aprendizagem?
E os negativos?

6. Considere a seguinte fala do médico virologista, pesquisador e


cientista-chefe do laboratório de virologia e professor da Faculdade
de Medicina de São José do Rio Preto, Maurício Lacerda Nogueira, feita
recentemente com relação a uma postagem de alguém que punha
em dúvida a efetividade da vacinação para a prevenção da Covid-19 e
que citava uma informação falsa sobre mortes relacionadas à vacina:

100 Temas sociais e educacionais contemporâneos


“Acabou a paciência que nós temos em relação à negação da
ciência, à negação da pandemia e à pandemia de fake news [...]. Eu
vou em um lugar e a minha opinião vale tanto quanto a de outra
pessoa completamente sem formação. Eu posso ficar o resto do dia
conversando com essa pessoa, usando embasamento técnico, mas
minha qualificação não vale mais nada. Opinião agora é o que vale. O
‘tiozão do zap’ é que manda”. (BERMÚDEZ, 2021)

Com base na análise do contexto e da fala do cientista, responda aos


seguintes itens:

a) Que tipo de conhecimento embasa a fala do médico virologista?


b) Que tipo de conhecimento embasa a postagem sobre a
ineficácia da vacinação à qual o médico se referiu?
c) O que significa a expressão “pandemia de fake news” usada
pelo pesquisador?

REFERÊNCIAS
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dimensões do uso dos audiovisuais na escola. In: BELLONI, M. L. (org.). A formação na
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paciência”. UOL Notícias, 26 jan. 2021. Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/
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Educação científica e inclusão digital 101


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102 Temas sociais e educacionais contemporâneos


4
Promoção da saúde na escola
O conceito de saúde integral, atualmente, tem sido central nos de-
bates e na fundamentação das políticas públicas para a área de saúde
no Brasil e em diversas partes do mundo. Esse conceito baseia-se no
entendimento da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que saúde
é uma condição ampla, que abrange as dimensões não só da saúde fí-
sica, mas também da mental e da social, sendo esta ligada à qualidade
de vida, cuja base é social e econômica.
A OMS, subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU),
fundada em 1948, logo após o término da Segunda Guerra
Mundial, definiu na época que saúde seria um estado de completo
bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doen-
ça ou enfermidade. Ao longo dos anos, a entidade tem se dedica-
do principalmente à prevenção de doenças, lançando campanhas
mundiais de vacinação com o objetivo de erradicar doenças, como
é o caso da campanha de vacinação contra poliomielite entre 1980
e 2005, e também tem financiado estudos científicos no sentido de
avançar nos conhecimentos sobre a promoção da saúde integral
dos indivíduos e das comunidades.
Com base em tais estudos, a OMS busca promover a adoção de
bons hábitos que contribuam para reduzir o risco de desenvolvi-
mento de doenças – físicas ou mentais –, como hábitos alimentares
saudáveis, atividade física regular, sono de qualidade, interação social
saudável, gerenciamento do estresse, redução de riscos e doenças,
eliminação do tabagismo, bons hábitos posturais, entre vários outros,
que devem fazer parte das orientações voltadas para a formação in-
tegral dos alunos no contexto escolar.
As diretrizes da OMS, a legislação nacional ligada às ações do
Ministério da Saúde e as regulamentações estaduais e municipais
sobre o tema fundamentam as ações de instituições públicas e
privadas e os programas e práticas educacionais nas escolas brasi-
leiras, sobretudo as da rede pública de ensino.

Promoção da saúde na escola 103


4.1 Saúde integral e qualidade de vida
Vídeo A saúde no sentido mais amplo, que envolve o conceito de qualida-
de de vida, refere-se às condições de vida adequadas, como o pleno
acesso ao saneamento básico e à água potável, à habitação adequada
em ambiente que não seja insalubre ou perigoso, às boas condições
de trabalho, com remuneração suficiente para custear as necessidades
básicas da família e permitir alimentação adequada, lazer e cuidados
pessoais, acesso ao estudo, à assistência médica quando necessário,
entre outras condições que tornam possível a manutenção de boa saú-
de física, mental e social e contribuem para o bem-estar, a realização
pessoal e a manutenção dos laços afetivos e familiares. A qualidade de
vida, portanto, depende de bases materiais para se estabelecer, como
reforçam Minayo, Hartz e Buss (2000):
O patamar material mínimo e universal para se falar em qua-
lidade de vida diz respeito à satisfação das necessidades mais
elementares da vida humana: alimentação, acesso a água po-
tável, habitação, trabalho, educação, saúde e lazer; elementos
materiais que têm como referência noções relativas de conforto,
bem-estar e realização individual e coletiva. No mundo ocidental
atual, por exemplo, é possível dizer também que desemprego,
exclusão social e violência são, de forma objetiva, reconhecidos
como a negação da qualidade de vida.

Donatas Dabravolskas/Shutterstock

Locais de moradia como favelas do Rio de Janeiro – que oferecem condições insalubres de vida,
como lixo pelas ruas, esgoto a céu aberto e habitações precárias – não atendem às condições
mínimas de saúde e qualidade de vida a seus moradores, mas são a única opção para uma grande
parcela da população dos grandes centros brasileiros.

104 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Os elementos que compõem os padrões de conforto e bem-estar
se transformam histórica, social e culturalmente, o que significa que o
conceito de qualidade de vida pode se transformar ao longo do tempo,
de sociedade para sociedade e mesmo de acordo com diferentes gru-
pos sociais dentro de uma mesma sociedade.

Por exemplo, no mundo contemporâneo, sobretudo ocidental, a


qualidade de vida engloba uma série de confortos proporcionados pelo
desenvolvimento tecnológico e pelo consumo. Possuir um automóvel,
computadores e celulares, utilidades domésticas, ter acesso a sho-
ppings, viagens, à moda, à diversão em locais pagos etc. são elementos
que fazem parte do conceito de qualidade de vida.

Por outro lado, há sociedades, bem como grupos sociais específicos


dentro das sociedades, que consideram qualidade de vida a perspectiva
da ecologia humana, das relações saudáveis entre os seres humanos e
destes com a natureza, questionando os padrões de bem-estar ligados
ao consumismo e à exploração da natureza, degradando o meio am-
biente e pondo em rico a qualidade de vida das gerações futuras, que
poderão perder o acesso a bens essenciais à vida, como a água potável.

Segundo o relatório de Marc Lalonde, intitulado Uma nova perspec-


tiva da saúde de canadenses (1974) – um pilar no debate sobre a quali-
dade de vida –, o conceito foi definido com base no que se consideram
os determinantes da saúde: o estilo de vida; os avanços da biologia
humana; o ambiente físico e social; e os serviços de saúde.

Porém, faz-se necessário lembrar que qualidade de vida é também


uma representação social e cultural, e que conceitos como sensação de
pertencimento, felicidade, realização pessoal, entre outros valores não
materiais, podem integrar as noções do que é “viver bem”.

A promoção da saúde integral e da qualidade de vida depende, por-


tanto, de vários fatores, desde os ligados a estilos de vida, hábitos, com-
portamentos e condições materiais, passando por aspectos ambientais
e de consumo sustentável, até os amplos aspectos ligados ao desen-
volvimento econômico e social, à democracia, aos direitos humanos e
à justiça social.

Se, por um lado, as políticas de moradia e saneamento básico estão


muito aquém do que seria o ideal para proporcionar boas condições de
vida para a maior parte da população (50,8% dos domicílios do país não
possuem coleta de esgoto e cerca 30% da população vive em moradias

Promoção da saúde na escola 105


precárias) e precisam ser ampliadas e melhoradas, as políticas públicas
de saúde vêm se aperfeiçoando ao longo dos anos e, na maior parte
do tempo, contribuem de modo positivo para a promoção da saúde da
população brasileira.

De modo mais aplicado, podemos iniciar o tema da promoção da


saúde integral e da qualidade de vida abordando os aspectos dos esti-
los de vida e do cultivo de hábitos saudáveis na escola, na família e na
comunidade.

4.1.1 Hábitos saudáveis e qualidade de vida


Manter hábitos saudáveis e prevenir doenças e riscos não
­impactam apenas a vida das pessoas de modo individual, pois os be-
nefícios têm grandes consequências na vida da população em geral e
até no desenvolvimento de um país. É por isso que a promoção de tais
hábitos e a prevenção de doenças e riscos fazem parte das políticas
de saúde pública.

Saiba mais No Brasil, o Ministério da Saúde teve importante papel para pro-
mover a erradicação de diversas doenças por meio de campanhas na-
O SUS foi criado para viabilizar
na prática o dever do Estado de cionais de vacinação e mantendo programas de assistência à saúde,
garantir, de modo universal e sobretudo após a implantação do Sistema Único de Saúde, o SUS, por
gratuito, o direito à saúde para
meio da Constituição de 1988.
a população. Seu Programa
Nacional de Imunização (PNI) é Sob o ponto de vista da promoção de hábitos saudáveis e da pre-
reconhecido internacionalmente
e dá acesso gratuito a todas venção de doenças, outras políticas públicas têm sido implementa-
as vacinas recomendadas pela das, tais como campanhas antitabagismo e de combate ao consumo
OMS. O órgão possui também abusivo de drogas e álcool, campanhas de conscientização sobre pri-
o maior sistema público de
transplantes de órgãos do meiros sinais, sintomas e medidas de prevenção de diversas doenças
mundo, ofertando assistên- potencialmente graves e, na esteira das ações de promoção da saúde,
cia integral e gratuita para
os programas de alimentação saudável implantados em escolas de
portadores de HIV e doentes de
Aids, assim como para pacientes educação básica.
renais crônicos, com câncer,
Adotar hábitos saudáveis, evitar os nocivos e melhorar a qualidade
tuberculose e hanseníase, ges-
tantes e recém-nascidos, entre de vida são atitudes que podem, ao longo da vida, prevenir uma série
outros. Infelizmente, durante a de doenças e promover a manutenção e a restauração da saúde do
pandemia de COVID-19, a falta
de planejamento estratégico organismo, assim como evitar o estresse, a ansiedade e outros males
do Governo Federal prejudicou ligados à saúde emocional e mental.
o desempenho do PNI na
prevenção das infecções por Pode ser difícil mudar alguns costumes, e a adoção de hábitos
coronavírus no país. saudáveis pode acarretar um investimento maior de tempo e/ou

106 Temas sociais e educacionais contemporâneos


dinheiro. Entretanto, adotá-los pode fazer uma enorme diferen-
ça na saúde, na qualidade de vida e na longevidade das pessoas
e contribuir para a melhoria da vida em sociedade. Por isso, está
entre as responsabilidades da escola ensinar, orientar e promover
hábitos saudáveis, contribuindo para que os alunos os adotem e
mantenham.

A OMS elaborou e propôs o conceito de Escola Promotora da Saúde


como uma estratégia para promover a saúde e a qualidade de vida
nas comunidades. Seu objetivo, essencialmente, é que as escolas pro-
porcionem a educação para a saúde e o ensino de habilidades para a
vida, com foco na aquisição de conhecimento sobre adoção e manu-
tenção de comportamentos e estilos de vida saudáveis; invistam na
estruturação de ambientes escolares saudáveis, no sentido de contri-
buir para a melhoria da qualidade de vida na escola e no seu entorno;
e fortaleçam as dinâmicas de colaboração entre os serviços de saúde
e de educação, com o objetivo de promover ações integradas em saú-
de, alimentação, nutrição, lazer, atividade física e formação profissio-
nal (OPAS, 2006).

Com base na perspectiva da escola como centro promotor da saú-


de integral e da qualidade de vida na comunidade escolar e em seu
entorno, podemos levantar uma série de conteúdos e habilidades a
serem desenvolvidos de modo teórico e prático nas instituições de
ensino e que possam contribuir para a adoção de hábitos saudáveis,
promovendo a saúde física, mental e social, além de colaborar para a
melhoria da qualidade de vida.

4.1.2 Alimentação saudável na promoção da


saúde
Muita coisa mudou ao longo do tempo com relação ao tema
­alimentação saudável. Com o crescimento da indústria alimentícia,
vem ocorrendo um aumento do consumo de alimentos processados
e dos chamados ultraprocessados.

Estudos científicos mais recentes têm demonstrado a ameaça que


o consumo desse tipo de alimento representa para a saúde das popu-
lações, por contribuir para um aumento de doenças como diabetes,
hipertensão, doenças cardíacas e várias outras.

Promoção da saúde na escola 107


beats1/Shutterstock
Os alimentos ultraprocessados são riquíssimos em gordura, sal e açúcar.

O recente relatório Alimentos e bebidas na América Latina: vendas,


fontes, perfis de nutrientes e implicações, publicado pela Organização
Pan-Americana da Saúde (OPAS), revelou que as vendas de alimentos e
bebidas ultraprocessados aumentaram 8,3% entre 2009 e 2014, e che-
gou à estimativa de que cresceram 9,2% de 2014 a 2019 (OPAS, 2019).

Você sabe o que são alimentos processados, ultraprocessados, mi-


nimamente processados e in natura? Observe o quadro a seguir.

Quadro 1
Tipos de alimentos

Tipo de Origem e Processamento Locais de


Exemplos Consumo
alimento características industrial venda
Consumidos em
Obtidos direta- Nenhuma altera- Feiras livres, sa-
Folhas, frutos, seu estado natural,
In natura mente de plantas ção ou processa- colões, varejões
leite e ovos. por vezes sem
ou animais. mento industrial. e quitandas.
embalagem.
Mínimas alte-
Obtidos de plan-
rações, como elimi- Geralmente
tas e animais, Arroz e feijão, Supermercados,
nação de partes embalados para
Não preservam as café torrado mercadinhos,
não comestíveis, consumo, sofreram
processados ou vitaminas e nu- e moído, leite armazéns,
secagem, tritura- mínimo processa-
minimamente trientes originais pasteurizado mercearias, pa-
ção, torrefação, mento apenas para
processados (integrais) e sem e vegetais darias, lojas de
ebulição, congela- armazenamento e
adição de ingre- congelados. conveniência.
mento, pasteuri- consumo seguro.
dientes.
zação.
(Continua)

108 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Tipo de Origem e Processamento Locais de
Exemplos Consumo
alimento características industrial venda
Têm origem Quase sempre em-
em plantas e Passam por etapas balados, os rótulos
Supermerca-
animais, mas não industriais que Enlatados, desses produtos
dos, mer-
preservam suas alteram seu estado pães, queijos, costumam indicar
cadinhos,
características natural, como conservas, apenas dois ou três
armazéns,
Processados originais. Rece- adição de sal, óleo, frutas em ingredientes. Se
mercearias,
bem ingredien- açúcar ou vinagre, calda, carnes fossem proces-
padarias, lojas
tes e passam por fermentação, defu- salgadas e sados de modo
de conveniên-
processos que mação, cozimento defumadas. caseiro, demanda-
cia, açougues.
os tornam mais etc. riam mais tempo e
duráveis. durariam menos.
Refeições
congeladas,
refrigerantes,
Preservam pou-
sucos indus-
co ou nada de
Passam por vários trializados, sal-
elementos natu-
processos indus- gadinhos de Sempre embala-
rais. Cor, sabor,
triais, recebendo pacote, doces dos. Os rótulos
aroma e textura Supermerca-
grandes quanti- industrializa- costumam indicar
são produzidos dos, mer-
dades de ingre- dos, bolachas muitos ingredien-
artificialmente e cadinhos,
dientes como sal, recheadas, tes, vários deles
possuem prazo armazéns,
Ultraprocessados açúcar, gordura, embutidos, artificiais. São con-
de validade mercearias,
amidos, além de fast-food, sumidos, em geral,
maior devido à lojas de
produtos químicos macarrão do modo como
adição de ingre- conveniência e
como corantes, instantâneo, são vendidos.
dientes. Pobres lanchonetes.
conservantes e/ achocolata- Favorecem o alto
em nutrientes
ou estabilizantes dos, margari- consumo calórico.
e em fibras e
artificiais. na, salsichas,
ricos em calorias
hambúrgue-
vazias.
res, batatas
fritas, doces
confeitados.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 2014.

Os ultraprocessados, por meio dos aditivos acrescentados nos


processos industriais, adquirem um sabor acentuado e “irresistível”,
chamado de hipersabor, que induz ao consumo exagerado e facilita a
dependência. Esses alimentos são apresentados em formatos e emba-
lagens que facilitam sua ingestão a qualquer hora e em qualquer lugar,
dispensando o uso de pratos ou talheres e promovendo o consumo
alimentar desatento, em frente à televisão, por exemplo, o que favore-
ce maior consumo calórico e dificulta as interações familiares e sociais
durante as refeições.

Além disso, muitas vezes os ultraprocessados são vendidos na op-


ção “tamanho gigante” e quase sempre são mais baratos que outros

Promoção da saúde na escola 109


Documentário tipos de alimento, favorecendo o alto consumo de calorias vazias, ou
O documentário Super seja, são muito pobres em nutrientes para o organismo e causam mui-
Size Me: a dieta do palhaço
registra os impactos to ganho de peso.
físicos e psicológicos
de uma dieta compos-
Como mostra um estudo publicado em 2018 pelo periódico cientí-
ta exclusivamente de fico britânico The British Medical Journal, que examinou registros sobre
ultraprocessados a que o
diretor e protagonista do
as dietas de cerca de 105 mil adultos franceses durante um período de
filme se submeteu a título cinco anos, os indivíduos que consumiam mais alimentos ultraproces-
de experimento. Morgan
Spurlock fez, durante um
sados ​​tinham maiores riscos de doenças cardiovasculares, coronárias
mês, três refeições por e cerebrovasculares. O aumento verificado foi de 6% a 18% no risco de
dia em restaurantes fast
food, ingerindo todos
câncer em geral e de até 22% na incidência de câncer de mama.
os itens do cardápio
ao menos uma vez e
Os alimentos ultraprocessados possuem etapas de produção, dis-
consumindo o tamanho tribuição e comercialização que podem ser nocivas ao meio ambiente,
gigante (super size, em
inglês) sempre que ofe-
pois são produzidos em larga escala. Além disso, estimulam também
recido. A dieta resultou monoculturas dependentes de agrotóxicos, fertilizantes químicos, con-
no consumo de 5.000
kcal diárias em média, o
somem grandes quantidades de água e energia, geram alta emissão
dobro do recomendado de poluentes, demandam longos percursos em transporte, produzem
para um homem adulto.
Ao final do experimento,
grande quantidade de resíduos e causam grande descarte de emba-
ele ganhou 11,1 kg, um lagens no meio ambiente. Em outras palavras, até nossos hábitos ali-
aumento de 13% na
massa corporal, aumento
mentares podem, além de promover nossa própria saúde, contribuir
substancial de colesterol, para uma alimentação social e ambientalmente mais sustentável.
alterações de humor, dis-
função sexual e acúmulo Mas como ter uma alimentação saudável? Isso se baseia predomi-
de gordura no fígado.
nantemente no consumo de alimentos in natura, não processados e
Direção: Morgan Spurlock. EUA: The
minimamente processados, a chamada “comida de verdade”. Já os ali-
Con, 2004.
mentos processados industrialmente precisam ser consumidos com
muita moderação, enquanto os ultraprocessados devem ser evitados
ao máximo, pois são os mais prejudiciais à saúde. Açúcar, sal e gordu-
ras devem ser usados em pequenas quantidades na alimentação.

E com relação à quantidade de alimentos e à proporção de cada tipo


em cada refeição? Há algumas décadas, essa proporção era recomen-
dada por meio da pirâmide alimentar, que representava a proporção
de cada tipo de alimento a ser ingerido em uma refeição.

No entanto, ao longo do tempo, com o avanço dos estudos ligados


à nutrição, os carboidratos complexos, feitos de grãos integrais (não
refinados) passaram a ser considerados mais saudáveis; o consumo de
frutas e hortaliças ganhou mais destaque, e o consumo de carnes bran-
cas passou a ser privilegiado em detrimento das carnes vermelhas. As
gorduras saturadas e as gorduras trans passaram a ser evitadas, pois

110 Temas sociais e educacionais contemporâneos


podem obstruir as artérias e aumentar o colesterol ruim – elas deram
lugar aos óleos considerados mais saudáveis, como o azeite.

Atualmente, a pirâmide alimentar, como referência mundial de


nutrição saudável, foi substituída por um prato alimentar que indica
quanto de cada tipo de alimento deve ser consumido em cada refeição.

O modelo foi criado por especialistas da Universidade de Harvard,


nos EUA, e lançado em 2010, no âmbito das políticas públicas de saúde,
integrando um guia nutricional chamado My plate (Meu prato). Ele re-
comenda que a refeição seja composta conforme a figura a seguir, que
ilustra o programa nutricional.

Figura 1
Prato: alimentação saudável

Grãos
integrais
Vegetais

Proteínas Para refletir


saudáveis
Visite o site em que é
Frutas apresentada a composi-
ção do prato recomen-
dada pelo modelo Meu
prato da Harvard School
of ­Public Health. Em
seguida, reflita: você cos-
tuma se alimentar desse
modo? Será que adotar
esse modelo de alimen-
Fonte: Elaborada pela autora tação acarreta um maior
gasto com alimentação?
Por quê?

É claro que existem particularidades na composição e nos tipos Disponível em: https://www.
hsph.harvard.edu/nutritionsource/
de alimentos das dietas de cada lugar, uma vez que os hábitos ali-
healthy-eating-plate/translations/
mentares são também construções culturais, baseadas em tradições portuguese/. Acesso em: 22 mar.
2021.
culinárias locais. Há, ainda, tanto nas famílias quanto em instituições

Promoção da saúde na escola 111


públicas como as escolas, impactos econômicos gerados pelas esco-
lhas alimentares.

Curiosidade Vários alimentos ultraprocessados, como biscoitos recheados, sal-


gadinhos de pacote e macarrão instantâneo, costumam ser baratos,
Os gastos com alimentação, se-
gundo a Pesquisa de Orçamentos o que contribui para seu alto consumo. Por outro lado, vários tipos de
Familiares (FOP) 2017/2018, do verduras e frutas da estação também têm preços baixos e poderiam
Instituto Brasileiro de Pesquisa e
substituir os ultraprocessados com custo semelhante, mas com enor-
Estatística (IBGE), representam
22% do orçamento das famílias me ganho nutricional e, ao mesmo tempo, evitando o consumo exage-
que ganham até dois salários rado de açúcar, sal e gordura.
mínimos (IBGE, 2019).
No geral, o aumento do consumo de vegetais em relação ao de car-
boidratos, como cereais e massas, a preferência por grãos integrais aos
refinados, a redução na participação das proteínas (principalmente a
carne vermelha) na dieta diária, a diminuição do consumo de gorduras
(em especial as chamadas saturadas, que são produzidas artificialmen-
te), o aumento do consumo de água e a prática regular de atividades
físicas são atitudes comprovadamente benéficas à saúde, podem pre-
venir várias doenças e não necessariamente custam muito mais do que
a dieta baseada em alimentos processados e ultraprocessados.

Não podemos nos esquecer, ainda, das dimensões sociais da ali-


mentação. O compartilhamento das refeições e as interações sociais
com familiares, amigos e colegas durante o ato de comer são essenciais
para a manutenção da saúde socioemocional, afinal:
Seres humanos são seres sociais e o hábito de comer em com-
panhia está impregnado em nossa história, assim como a divisão
da responsabilidade por encontrar ou adquirir, preparar e cozi-
nhar alimentos. Compartilhar o comer e as atividades envolvidas
nesse ato é um modo simples e profundo de criar e desenvolver
relações entre pessoas. Dessa forma, comer é parte natural da
vida social. (BRASIL, 2014)

Compartilhar as refeições contribui também para o senso de per-


tencimento ao grupo, promove a boa convivência na escola e nos locais
de trabalho e favorece que se coma de modo mais lento, atento e co-
medido, aproveitando todo o sabor dos alimentos sem exageros.

No sentido de adaptar os avanços científicos mundiais na área


nutricional ao cardápio dos brasileiros, a pesquisadora Sônia
­Tucunduva ­Philippi propôs, em 2013, a Pirâmide Alimentar Brasileira:

112 Temas sociais e educacionais contemporâneos


PIRÂMIDE DOS ALIMENTOS

Guia para escolha dos alimentos


Dieta de 2.000 kcal

Açúcares e doces
Óleos gordurosos
1 porção
1 porção

Carnes e ovos
Leite, queijo, iogurte 1 porção
3 porções
Feijões e oleaginosas
1 porção

Legumes e verduras
3 porções
Frutas
3 porções

Arroz, pão,
massa, batata,
mandioca
6 porções

Pratique atividade física, no mínimo 30 minutos diários


Faça 6 refeições no dia (café da manhã, almoço e jantar, com lanches intermediários)

Fonte: Philippi, 2013.

A pirâmide é baseada nos princípios da variedade de alimentos, do


equilíbrio entre os grupos de alimentos e da moderação no consumo
deles. Os cereais e massas estão na base da pirâmide e, vários deles,
como pão, arroz e bolacha, são integrais, devendo ter preferência no
consumo por possuírem mais fibras. No entanto, pão branco, arroz
branco, batatas, massas comuns e farinhas refinadas podem ser con-
sumidos com moderação.

A proposta é fracionar a alimentação diária em seis refeições e que


se reduza bastante o consumo de carnes, gorduras e açúcar. A prática
de atividades físicas regulares também é recomendada.

Promoção da saúde na escola 113


Após analisar os dois modelos de alimentação apresentados, per-
cebe-se que, no contexto escolar das instituições privadas – nas quais
os lanches são enviados, em geral, pelas próprias famílias –, talvez seja
viável cumprir as recomendações dos modelos. Mas será que é essa a
realidade das merendas oferecidas nas escolas públicas de educação
básica?

Foi publicada, em 2009, a Lei n. 11.947, que trata do atendimento da


alimentação escolar, assegurando “alimentação saudável e adequada”
por meio do uso de “alimentos variados, seguros” e que “respeitem a
cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis” (BRASIL, 2009).
Saiba mais Porém, as políticas de alimentação escolar são bem mais antigas.
Para conhecer melhor
as diretrizes do PNAE,
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi criado
acesse o site a seguir. em 1955 e estabeleceu as diretrizes da alimentação escolar forneci-
Disponível em: https://www.fnde. da pelo Estado aos alunos de educação básica, baseada em valores
gov.br/programas/pnae. Acesso em:
22 mar. 2021.
de referência da Organização das Nações Unidas para Alimentação
e Agricultura (FAO), atualizadas regularmente e que recomendam,
por exemplo, que crianças de 6 a 10 anos consumam 1.500 kcal diá-
rias; de 11 a 15 anos, 2.175 kcal; e de 16 a 18 anos, 2.500 kcal diárias
(FNDE, 2021).

Site As necessidades nutricionais diárias referem-se à quantidade


Para conhecer a quanti- de energia de que precisamos para as funções do organismo fun-
dade de calorias contidas cionarem, possibilitando que desempenhemos as atividades coti-
em centenas de alimen-
tos, acesse a página a dianas. Se ingerirmos um excesso de calorias e não as gastarmos
seguir. por meio de exercícios físicos e outras atividades, provavelmente
Disponível em: https://www. ganharemos peso.
tabeladecalorias.net/. Acesso em:
22 mar. 2021. Segundo Oliveira e Fisberg (2003), “a prevalência mundial da obe-
sidade infantil vem apresentando um rápido aumento nas últimas dé-
cadas, sendo caracterizada como uma verdadeira epidemia mundial”,
o que tem ocasionado o crescimento de doenças como diabetes, pres-
são alta e doenças cardiovasculares que, no passado, restringiam-se a
adultos.

No Brasil, levantamentos do IBGE (2019) apontam que uma em cada


três crianças entre 5 e 9 anos está acima do peso, e os registros do Sis-
tema de Vigilância Alimentar e Nutricional de 2019 revelam que 16,33%

114 Temas sociais e educacionais contemporâneos


das crianças brasileiras entre 5 e 10 anos estão com sobrepeso; 9,38%,
com obesidade; e 5,22%, com obesidade grave. Quanto aos adolescen-
tes, 18% apresentam sobrepeso; 9,53% são obesos; e 3,98% têm obe-
sidade grave.

Essa situação, segundo especialistas, deve-se às escolhas alimen-


tares equivocadas, como o alto consumo de alimentos processados e
ultraprocessados, e o sedentarismo, influenciado pela falta de exercí-
cios regulares e pela substituição de brincadeiras que envolvem mo-
vimentos corporais por jogos eletrônicos e outras atividades de lazer
passivas.

Atualmente, outra referência oficial importante é o Guia Alimentar


para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde. Ele
­recomenda que as unidades escolares com período integral ofereçam
alimentação que atenda, no mínimo, a 70% das necessidades nutri-
cionais diárias das crianças e dos adolescentes, distribuídas em pelo
­menos três refeições.

Segundo o mesmo documento (que destaca que as recomendações


feitas por esse tipo de publicação precisam sempre considerar o ce-
nário das transformações nos padrões alimentares das condições de Leitura
saúde da população), uma alimentação saudável deve ser composta Acesse o Guia Alimentar
para a População Brasi-
essencialmente de alimentos in natura – como frutas, hortaliças – ou leira, desenvolvido pelo
minimamente processados – como arroz, feijão, carnes já cortadas e Ministério da Saúde.

leite pasteurizado. Disponível em: https://bvsms.


saude.gov.br/bvs/publicacoes/
Os alimentos processados devem ser consumidos em, no máximo, guia_alimentar_populacao_
brasileira_2ed.pdf. Acesso em: 22
duas porções semanais e de até 110 calorias por porção. O guia traz ain-
mar. 2021.
da diretrizes sobre a redução do consumo de açúcar, sódio e gordura.

4.1.3 Atividades físicas na promoção da saúde


integral
Vimos que os dois modelos de alimentação saudável apresentados
recomendam atividades físicas regulares; um deles, o da Pirâmide Ali-
mentar, até indica especificamente um mínimo de 30 minutos diários
de exercícios físicos. E quais são os benefícios desses hábitos para a
saúde física e mental? Quais são as contribuições das atividades físicas
regulares para o desenvolvimento de crianças e adolescentes?

Promoção da saúde na escola 115


Rawpixel.com/Shutterstock
As atividades físicas são essenciais para a promoção da saúde integral de crianças e
adolescentes.

As atividades físicas são um componente essencial para a promo-


ção da saúde integral, pois contribuem não só para a manutenção da
boa saúde física como também para o equilíbrio mental e emocional e
para um convívio social saudável, promovendo melhoria da qualidade
de vida tanto dos adultos como das crianças e jovens.

Curiosidade Quase todos têm uma ideia geral sobre os benefícios trazidos pelas
atividades físicas à saúde do organismo, tais como controle do peso,
Quando jogamos futebol,
handebol, corremos ou aumento da força e da resistência muscular, fortalecimento de ossos e
dançamos rapidamente por articulações e, menos conhecidos por todos, o controle da glicemia, a
15 minutos, gastamos cerca
redução da pressão arterial e o fortalecimento do sistema imunológico.
de 160 calorias. Essa é mais ou
menos a quantidade de calorias Outros benefícios das atividades físicas, mais especificamente aque-
fornecidas por duas bananas.
Para gastar essa quantidade les voltados às dimensões psicológicas e emocionais, muitas vezes não
de calorias apenas com esforço são lembrados. Podemos citar a redução da ansiedade e do estresse,
mental, precisaríamos estudar o aumento da disposição para as atividades cotidianas, a melhoria do
de modo concentrado por 1 hora
e 20 minutos (ATALLA, 2021). sono, o aumento da agilidade mental e da capacidade de memorização,
o aumento do bem-estar geral, promovido pela liberação do hormônio
endorfina durante os exercícios, e a redução dos riscos de depressão.

Uma pesquisa da Escola de Saúde Pública de Harvard descobriu


que apenas 15 minutos de caminhada por dia reduzem os riscos de
depressão em 26% (HARVARD HEALTH PUBLISHING, 2019). Ou seja,
mesmo um período curto de atividade física é melhor do que nenhuma
atividade.

116 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Há ainda os benefícios sociais pela promoção de interação, sensa-
ção de pertencimento e amizades, impactando também a saúde men-
tal. Essas se dão não apenas por meio de atividades físicas coletivas,
com a prática de esportes coletivos, mas também nas atividades indivi-
duais praticadas em grupo, como é o caso das aulas de educação física
na escola e das aulas de ginástica, dança etc., realizadas em academias
e clubes.

As atividades físicas na escola podem ser um excelente meio de pro-


mover a saúde física, mental e social dos alunos. A disciplina de Educa-
ção Física costuma ser pouco valorizada no currículo escolar, mas tem
grande importância na formação integral dos alunos e na promoção e
manutenção da sua boa saúde física, mental e social.

Segundo a Resolução 218 do Conselho Nacional de Saúde, homolo-


gada em 6 de março de 1997, o professor de Educação Física é conside-
rado um profissional de saúde, devendo atuar na promoção da saúde
e da qualidade de vida dos indivíduos com outros profissionais da área,
como nutricionistas, fisioterapeutas, médicos e farmacêuticos, e contri-
buir para o bem-estar, a autoestima e a integração das crianças e dos
adolescentes ao meio em que vivem. Para refletir

Aulas de Educação Física bem planejadas e aplicadas podem favore- Na instituição em que você
atua existe um planejamento,
cer o desenvolvimento motor das crianças; facilitar a integração social programa, projeto ou incentivo
de criança e adolescentes à comunidade escolar; ajudar na constru- à prática de atividades físicas?
ção da autoconfiança e da autoestima dos alunos e auxiliar em sua Qual?

­autoexpressão; contribuir para que eles compreendam suas mudanças


corporais e os limites dos próprios corpos; reduzir a ansiedade e auxi- Leitura
liar para que adotem um estilo de vida mais saudável e que proporcio- Amplie seus conhecimen-
ne maior qualidade de vida. tos sobre como a prática
de atividades físicas é
Muitas vezes, é nas aulas de Educação Física que surgem as melho- benéfica para a saúde de
crianças e adolescentes
res oportunidades de lidar com as diferenças e aprender a conhecer e com a leitura do artigo
respeitar características e limitações físicas e mentais. Além disso, es- Efeitos da atividade física
para a saúde de crianças
portes coletivos e atividades lúdicas corporais são um meio privilegiado e adolescentes, de Paulo
para construir dinâmicas colaborativas entre os alunos e estimular a Vinícius Carvalho Silva e
Áderson Luiz Costa Jr.
organização e as estratégias para alcançar objetivos comuns, a boa ges-
Disponível em: http://www.unirio.
tão de conflitos e as aprendizagens relacionadas ao enfrentamento das br/cecane/arquivos/ARTIGO_
frustrações que ocorrem quando se perde um jogo ou não se alcança a EfeitosAtividadeFisica.pdf. Acesso
em: 22 mar. 2021.
performance física desejada.

Promoção da saúde na escola 117


Não é apenas o professor de Educação Física, no entanto, o respon-
sável pela promoção da saúde e da qualidade de vida na escola. Todos
os profissionais da escola devem exercer esse papel por meio de ações
como oferta e orientação de escolha de alimentos saudáveis, práticas
regulares de exercícios físicos na escola, orientação sobre estilos de
vida saudáveis, ensino da prevenção de doenças e riscos, até apoio so-
cioemocional aos alunos e em sua integração à comunidade escolar.

4.2 Prevenção de doenças e de riscos


Vídeo Todos nós somos suscetíveis a doenças e estamos expostos a riscos
de acidentes e outras situações que podem prejudicar a saúde física e
mental. Como já vimos, manter um estilo de vida saudável, com alimenta-
ção balanceada e nutritiva e praticar exercícios físicos regularmente, são
medidas que previnem uma série de doenças e melhoram nossa atua-
ção cotidiana. Entretanto, é preciso adotar outros hábitos para ampliar a
proteção.
Para refletir
Apesar do tempo recorde em 4.2.1 Medidas de higiene na prevenção de doenças
que os esforços científicos
mundiais conseguiram produzir Com o surgimento da pandemia de Covid-19, ficaram conhecidas as
vacinas contra a Covid-19, a medidas de higiene para evitar a contaminação pelo coronavírus, como
velocidade de produção dos
lavar as mãos com frequência, sobretudo antes das refeições e após usar
imunizantes mostrou-se insufi-
ciente para que todos os grupos o banheiro, desinfetar as mãos e as superfícies, não compartilhar objetos
prioritários, entre os quais os de uso pessoal, toalhas, copos, talheres etc., usar máscara e se manter
professores e funcionários das
afastado a pelo menos dois metros das outras pessoas.
escolas se encontram, fossem
rapidamente vacinados, e os Essas medidas somadas a outras, como lavar bem os alimentos e só
estudos sobre efeitos das vacinas
em crianças e adolescentes consumir água tratada, são efetivas também para evitar outras doenças
foram deixados para uma se- causadas por vírus, além daquelas causadas por bactérias ou parasitas.
gunda fase. Como enfrentar, no
89stocker/Shutterstock

contexto escolar, os desafios que


essa situação nos coloca?

Lavar frequentemente as mãos, esfregando entre os dedos, limpando unhas, dorso e palma e
esfregando também os pulsos, evita a contaminação por doenças.
118 Temas sociais e educacionais contemporâneos
É preciso estar atento também aos perigos de contaminação dos
alimentos; além de bem lavados, eles devem ser bem cozidos e nunca
deixados à temperatura ambiente por mais de duas horas. Utensílios
usados para lidar com carne, frango e peixe devem ser bem lavados an-
tes de tocarem outros alimentos, e utensílios que foram levados à boca
não devem tocar na comida servida na mesa. Essas são regras simples
de higiene que evitam a contaminação dos alimentos e a consequente
intoxicação alimentar. Manter a higiene corporal e da moradia comple-
mentam os cuidados contra doenças.
Música
As regras de higiene para prevenção de doenças devem ser aplica-
Conheça a canção Lavar
das também em outros espaços, como a escola. Salas de aulas, banhei-
as mãos, de Arnaldo An-
ros e outros espaços escolares precisam estar sempre bem limpos, e tunes, interpretada pelo
grupo Palavra Cantada.
as crianças e os adolescentes devem ser orientados e incentivados a
Ela é uma ótima música
lavarem as mãos com frequência. Para as crianças menores, tanto em para utilizar com crianças
no aprendizado de higie-
casa como na escola, podem-se usar estratégias lúdicas como músicas
nização das mãos.
que ensinam a lavar as mãos.
Disponível em: https://youtu.be/
Nos protocolos a serem seguidos na eventual retomada das aulas CaTXgmHyMSk. Acesso em: 22
mar. 2021.
presenciais, a desinfecção de objetos e ambientes escolares é essencial
para reduzir o risco de contaminação. É necessário considerar, porém,
que nem todas as escolas têm estrutura, verbas e número de funcio-
nários adequados para cumprir tais protocolos, e que as crianças me-
nores têm dificuldade em respeitar regras como o uso de máscara e o
distanciamento social.

4.2.2 Vacinação para prevenção de doenças


Quando começam a frequentar a escola, as crianças ficam mais
expostas a todo tipo de agentes patogênicos, isto é, microrganismos
como vírus e bactérias que causam doenças. A principal medida para
evitar as doenças que mais acometem as crianças, imunizando-as ou
prevenindo sintomas graves, é vaciná-las adequadamente. O Estado,
por meio do PNI, criado 1973, é responsável por ofertar vacinas nos
postos de saúde e em campanhas de vacinação. Conheça as 18 vacinas
ofertadas a crianças e adolescentes no Brasil no quadro a seguir.

Promoção da saúde na escola 119


Quadro 2
Vacinas do Calendário Nacional de Vacinação

Vacina Doença(s) que previne Número de doses Idade(s) de vacinação


BCG Tuberculose, meníngea e miliar Dose única Ao nascer
Ao nascer (até 12 ou 24 horas
Hepatite B Hepatite do tipo B Dose única
de vida)
Difteria, tétano, coqueluche,
DTP+Hib+HB (pentava-
Haemophilus influenzae B, Três doses Aos 2, 4 e 6 meses
lente)
hepatite B
Poliomielite 1, 2, 3 Poliomielite ou paralisia infantil Três doses Aos 2, 4 e 6 meses
Pneumocócica 10-va- Pneumonias, meningites, otites Duas doses e um
Aos 2, 4 e 12 meses
lente e sinusites reforço
Rotavírus humano G1P1 Diarreia causada pelo rotavírus Duas doses Aos 2 e 4 meses
Duas doses e um
Meningocócica C Meningite tipo C Aos 3, 5 e 12 meses
reforço
Uma dose e um
Febre amarela Febre amarela Aos 9 meses e aos 4 anos
reforço
Administrada como
Poliomielite 1 e 3 Polivírus tipo 1 e 3 reforço em duas Aos 15 meses e aos 4 anos
doses
Administrada como
Difteria, tétano,
Difteria, tétano e a coqueluche reforço em duas Aos 15 meses e aos 4 anos
­pertussis
doses
Sarampo, caxumba,
Sarampo, caxumba e rubéola Uma dose Aos 12 meses
rubéola (tríplice viral)
Sarampo, caxumba, Uma dose (reforço
Sarampo, caxumba, rubéola e
rubéola e varicela da tríplice viral e 1ª Aos 15 meses
varicela (ou catapora)
(tetraviral) de varicela)
Hepatite A Hepatite tipo A Uma dose Aos 15 meses

Varicela Varicela Uma dose (2ª dose) Aos 4 anos


A partir de 7 anos e, depois,
Difteria, tétano Difteria e tétano Uma dose
de 10 em 10 anos
Duas doses com 6
Papilomavírus humano Doenças causadas por papilo- Meninas entre 9 a 14 anos e
meses de diferença
(HPV) mavírus humano 6, 11, 16 e 18 meninos entre 11 e 14 anos
entre as doses
Apenas em indígenas a partir
Pneumocócica 23-va- Meningites bacterianas, pneu-
Uma dose de 5 anos sem comprovação
lente monias, sinusite
vacinal
Grupos prioritários defini-
Uma ou duas doses
Influenza Influenza ou gripe comum dos na campanha anual de
anuais
vacinação
Fonte: Elaborado pela autora com base em Castro, 2020.

120 Temas sociais e educacionais contemporâneos


As famílias precisam garantir que crianças e adolescentes sejam va-
cinados com todas as vacinas obrigatórias nas idades corretas. A escola
tem o papel de ajudar a conscientizar as famílias sobre a importância
da vacinação das crianças e dos adolescentes.

Apesar de o Ministério da Educação destacar que apoia as ações de


verificação da situação vacinal e a ação das escolas na orientação das Curiosidade

famílias sobre a importância da vacinação e dos cuidados com a saúde, Você sabia que há regulamen-
tações municipais e estaduais
não há legislação federal específica que obrigue a exigência da carteiri-
sobre ministrar medicamentos
nha de vacinação para a matrícula escolar de crianças e adolescentes. a alunos em escolas? Em geral,
No entanto, muitas escolas adotam tal procedimento, e no estado de é obrigatória a receita médica;
em alguns casos, é necessário
São Paulo, desde 2020, a Lei 17.252 obriga a apresentação da carteira autorização dos responsáveis
de vacinação no ato da matrícula escolar. e envio da medicação com
identificação. Seja qual for o

4.2.3 Prevenção de riscos


procedimento adotado, o ideal
é evitar medicar os alunos na
escola, já que a instituição
Além da prevenção de doenças, a prevenção de riscos é componen- pode ser responsabilizada por
te importante da promoção da saúde integral. qualquer efeito adverso. Quan-
do o caso não é de medicação
Todos nós estamos sujeitos ao risco, por exemplo, de sofrer aciden- contínua, mas de acidente
ou mal-estar, o melhor é
tes, tanto domésticos, como quedas, cortes e queimaduras, quanto aci-
pedir à família que busque
dentes de trabalho envolvendo equipamentos e, ainda, os que podem o aluno. Em emergências,
ocorrer durante deslocamentos, como atropelamentos e acidentes de pode-se acompanhar a criança
ao hospital mais próximo,
carro.
comunicando o procedimento
Se nós adultos temos de estar atentos à prevenção de acidentes, à família.

seja em casa ou na rua e no trabalho, o cuidado deve ser redobrado


quando se trata de crianças. Orientar e monitorar as crianças e ado-
lescentes no sentido de evitar os acidentes é tarefa nossa, porque eles
estão ainda aprendendo sobre os perigos que os cercam e, sobretudo
na primeira infância, ainda não possuem habilidades motoras globais
plenamente desenvolvidas.

A ONG brasileira Criança Segura, integrante da organização inter-


nacional Safe Kids, afirma que mais de 3 mil crianças são vítimas de
acidentes fatais no país todos os anos, e que, em 2018, o total chegou
a 3.318, das quais metade tinham de 0 a 4 anos, o que indica que é
muito importante um engajamento de toda a sociedade na prevenção
de acidentes na primeira infância. Segundo a organização, os tipos de
acidente que mais provocam mortes na infância são sufocamentos,
afogamentos e acidentes de trânsito, seguidos de queimaduras, que-

Promoção da saúde na escola 121


das, intoxicações e acidentes com armas de fogo. (CRIANÇA SEGURA
BRASIL, 2021).

As crianças passam a maior parte ou a totalidade de seu tempo em


casa, com familiares, e na escola. Esses são, portanto, os dois espa-
ços em que os adultos precisam estar atentos para minimizar os riscos
de acidentes. É preciso evitar que as condições que propiciam risco de
acidentes estejam presentes tanto em casa quanto na escola, isto é,
as crianças pequenas não podem ter acesso livre a sacos plásticos ou
outros materiais que podem provocar sufocamento; a recipientes com
água, piscinas etc.; a produtos de limpeza, higiene ou outros produtos
químicos que possam causar intoxicação; a substâncias abrasivas, que
produzam chamas; ou a qualquer dispositivo elétrico que possa aque-
cer, produzir fogo ou mesmo causar choques elétricos, como tomadas.

Tanto em casa como na escola, é preciso manter a limpeza e evitar


ter superfícies ou pisos escorregadios ou usar produtos que possam fa-
cilitar as quedas, sendo essencial manter as crianças longe de escadas,
rampas, janelas ou outros locais altos. Por fim, armas de fogo devem
ser sempre guardadas em local trancado e inacessível às crianças e aos
Saiba mais adolescentes.

Você sabia que crianças Segundo a Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático (SZPILMAN,
pequenas podem se afogar em 2019), a cada 92 minutos morre um brasileiro por afogamento, sendo
apenas 2,5 cm de profundi-
dade? O risco de afogamento que adolescentes são os que têm maior risco de morte. No Brasil, o
não existe apenas em piscinas, afogamento é a segunda causa de mortes de crianças de 1 a 4 anos e a
lagos, rios etc., mas também terceira na faixa dos 5 aos 14 anos; 52% dos afogamentos de crianças
em piscinas infantis, banheiras,
bacias, baldes, vasos sanitários de 1 a 9 anos acontecem em piscinas residenciais.
abertos e outros recipientes ra-
O afogamento de uma criança pode ocorrer durante poucos segun-
sos. Bebês e crianças pequenas
têm a cabeça e os membros dos de desatenção, por isso a supervisão atenta é a melhor prevenção.
superiores mais pesados que o Conforme Szpilman (2019), os maiores fatores de risco para afogamen-
restante do corpo, o que facilita
o afogamento. Em apenas
to – além da faixa etária de 1 a 14 anos, a falta de supervisão e o com-
2 segundos, uma criança portamento de risco – são a baixa renda e o baixo nível educacional, ou
pode ficar submersa em uma seja, a escola tem papel determinante na orientação para a prevenção
banheira, e 2 minutos são
suficientes para que crianças de afogamentos.
de até 2 anos, quando submer-
Segundo Gomes et al. (2010), no ambiente escolar o tipo de aciden-
sas, percam a consciência; a
permanência de 4 a 6 minutos te com maior incidência é o trauma provocado por quedas, que pode
nessa situação pode causar gerar fraturas e lesões graves. O risco desse tipo de acidente durante
danos cerebrais irreversíveis
atividades esportivas é maior, mas isso não exclui as ações de preven-
(BRASIL, 2003).
ção relacionadas a outros momentos e espaços escolares, sobretudo

122 Temas sociais e educacionais contemporâneos


na hora do recreio, e à promoção da orientação dos alunos quanto aos
riscos de acidentes.
Leitura
Para conhecer as princi-
Prevenção de riscos na adolescência pais dicas de primeiros
socorros na escola, leia o
A prevenção de riscos não se relaciona apenas a acidentes. Há ou- texto Primeiros socorros
nas escolas: como prepa-
tros que atingem sobretudo adolescentes e jovens, mas, em alguns ca- rar professores para lidar
sos, também as crianças, e que são igualmente perigosos. Esses riscos com emergências.

perpassam todas as classes sociais, mas costumam atingir principal- Disponível em: https://
cmosdrake.com.br/blog/
mente os que se encontram em maior vulnerabilidade social. Sem pre- primeiros-socorros-nas-escolas-
venção, há o risco de jovens prejudicarem seriamente sua saúde física como-preparar-professores-para-
lidar-com-emergencias/. Acesso
e mental, seu rendimento nos estudos, seus relacionamentos familia- em: 22 mar. 2021.
res e sociais, bem como seu futuro pessoal e profissional.

Alguns desses riscos são relacionados às atividades sexuais sem


proteção e, muitas vezes, iniciadas precocemente e sem a devida orien-
tação, tais como as doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e a gra-
videz na adolescência. Outros riscos estão ligados ao fumo, ao abuso
de drogas e álcool, bem como à vulnerabilidade à violência familiar
e social, que põe em risco a integridade física e mental de crianças e
adolescentes.

Monkey Business Images/Shutterstock

Curiosidade
O primeiro livro dedicado ao
tema da adolescência surgiu
em 1904, escrito pelo médico
estadunidense G. Stanley Hall. O
autor propôs uma analogia entre
o desenvolvimento do ser huma-
no ao longo da vida e a evolução
da espécie humana, como se
cada indivíduo vivesse desde
o primitivismo animal – na
infância – até a vida civilizada –
na maturidade – e descreveu a
Na adolescência, a prevenção de riscos se amplia e se torna mais complexa. Surge a possibilidade adolescência como um período
de fatores como o abuso de drogas e álcool, DSTs e gravidez precoce. turbulento, de extrema tensão,
em que as pessoas oscilam entre
A OMS define adolescência como o período da vida que se inicia aos
a extrema energia e a apatia.
10 anos e acaba aos 19 anos completos, sendo dividida em duas fases: Para o autor, essa era uma fase
a pré-adolescência, entre os 10 e os 14 anos e a adolescência, entre da vida perigosa e trabalhosa e
que demandava proteção.
15 e 19 anos completos; já a juventude vai dos 15 aos 24 anos. A faixa

Promoção da saúde na escola 123


etária considerada no Brasil como correspondente à adolescência é,
segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/1990,
a faixa de 12 a 18 anos de idade. Em casos excepcionais e quando dis-
posto na lei, o estatuto é aplicável até os 21 anos de idade.

Pesquisadores australianos, porém, defenderam recentemente,


em artigo científico publicado na Lancet Child & Adolescent Health, que
a adolescência, diferentemente do que propõe a OMS, vá dos 10 aos
24 anos.

Adiantar o início do período reconhecido como adolescência se


deve, sobretudo, a aspectos físicos, como o fato de que a puberdade –
fase de desenvolvimento do organismo humano que começa quando
o hipotálamo (parte do cérebro) ativa a glândula hipófise e as gônadas,
que, entre outras funções, liberam hormônios sexuais, e que se inicia-
va, até há algumas décadas, aos 14 anos, em média – tem se iniciado
cada vez mais cedo, por volta dos 10 anos.

Já a postergação do término da adolescência é relacionada a as-


pectos ligados mais a fatores sociais e psicológicos. Conforme Susan
­Sawyer, diretora do Centro para a Saúde do Adolescente do Hospital
Royal Children’s em Melbourne, na Austrália, atualmente a fase de
­“semidependência” dos adolescentes se estende até pelo menos os
24 anos, pois os jovens têm adiado o prazo para assumirem respon-
sabilidades da vida adulta, como atuação no mercado de trabalho,
independência financeira, saída da casa da família e, eventualmente,
casamento e maternidade/paternidade.

É preciso destacar, entretanto, que outros cientistas – como Jan


­Macvarish, socióloga da Universidade de Kent – apontam o perigo de
se estender demais a adolescência e acabar promovendo uma infanti-
lização dos jovens com base nas expectativas sociais mais baixas em
relação a eles (SILVER, 2018).

No Brasil, o documento Síntese de Indicadores Sociais: uma análise


das condições de vida da população brasileira, o qual traz resultados de
pesquisa do IBGE realizada entre 2002 e 2012 (IBGE, 2013), revela que
os jovens têm permanecido por cada vez mais tempo na casa dos pais.
O fenômeno diz respeito aos indivíduos entre 25 e 34 anos, que foram
nomeados como geração canguru pelo instituto em alusão à proximida-
de que o filhote desse marsupial tem com a mãe, permanecendo quase
dois anos em sua bolsa depois de nascido.

124 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Ao mesmo tempo, boa parte dos adolescentes brasileiros sofre pres-
sões socioeconômicas e é impelida a contribuir com a renda familiar,
afastando-se dos estudos e de outras atividades próprias da sua idade
para se dedicar ao trabalho, muitas vezes precário e mal remunerado.

É preciso considerar que a adolescência, no sentido de período com Para refletir


características próprias, é uma construção histórica e cultural e nem Considerando o que você
sempre existiu de maneira definida como temos atualmente, nem era estudou até aqui e a sua própria
contemplada com um estatuto social e legal específico. É relativamen- vivência, propomos a seguinte
reflexão: por que será que a
te recente a demarcação de um período caracterizado pela transição adolescência é um período tão
entre a infância e a vida adulta e que requer determinados cuidados. sujeito a riscos?

Sob o ponto de vista da vida sexual e reprodutiva, a puberdade e o


início do interesse pelo tema da sexualidade inicia-se naturalmente na
adolescência. Os riscos aparecem porque, com pouco conhecimento
sobre o próprio organismo e o sistema reprodutivo e sem orientação
adequada, muitas vezes os adolescentes iniciam a vida sexual precoce-
mente e de modo irresponsável, sem saberem se prevenir de doenças
sexualmente transmissíveis e da gravidez precoce.

Por outro lado, a adolescência é, sob a perspectiva psicológica e


até mesmo da estrutura e das dinâmicas cerebrais, caracterizada pela Saiba mais

impulsividade, pela busca de prazeres imediatos sem medir as conse- Comportamento de risco é a
tendência a participar de ativida-
quências e por comportamentos de risco. Nesse contexto, os riscos
des que podem comprometer
psicossociais, como abuso de álcool e drogas e a dependência química, a saúde e a integridade física e
bem como o envolvimento com violência, são mais altos nessa faixa mental do adolescente. Abusar
de álcool ou drogas, dirigir
etária. em alta velocidade, manter
Pode ser bastante difícil, para um adolescente, resistir à ­curiosidade relações sexuais sem proteção,
fazer dietas “malucas”, tomar
e ao impulso de “experimentar coisas novas” ou mesmo recusar com- medicação forte sem prescrição
portamentos de grupo, uma vez que nesse período a necessidade de médica, manter-se por opção
em locais públicos perigosos etc.
pertencimento, de se sentir aceito pelo grupo, é muito forte e leva ao
são exemplos de comportamen-
comportamento de risco, o que pode colocar o adolescente ­também tos de risco.
em estados de vulnerabilidade a acidentes e à violência, como brigas e
abuso sexual, e à contaminação por DSTs.

Os adolescentes e jovens – ainda no processo de construção de suas


identidades e de seu lugar no mundo – estão muito sujeitos aos apelos
da propaganda e do consumismo, aos modismos e aos modelos veicu-
lados pela mídia e pelas redes sociais. O risco de seguir determinados
modelos e papéis e perder o controle sobre a própria vida é bastante
alto. Segundo Feijó e Oliveira (2001, p. 2):

Promoção da saúde na escola 125


Diferentemente dos adultos, as crianças e os adolescentes estão
mais suscetíveis à influência de modelos apresentados pela
mídia, na razão direta de sua faixa etária e desenvolvimento.
Crianças de 2 a 8 anos de idade estão em maior risco da influên-
cia de modelos de violência, enquanto na pré-adolescência a in-
fluência sobre comportamento sexual e uso de drogas é mais
significativa. Durante o processo da adolescência, os jovens es-
tarão mais vulneráveis às influências externas, tornando-se um
alvo mais direto da mídia, principalmente quando modelos de
funcionamento adulto estão ausentes na família.

As consequências do comportamento de risco por imitação de pa-


drões e modelos podem levar, também, a outros transtornos preju-
diciais à saúde física e mental dos adolescentes, como é o caso dos
transtornos alimentares e dos comportamentos compulsivos.

Sam Wordley/Shutterstock
Transtornos alimentares, como anorexia e bulimia (ligados a distorções da imagem corporal),
e compulsões alimentares têm, segundo a OMS, prevalência de 10% na faixa etária dos
adolescentes. Meninas têm três vezes mais riscos de adquirir tais doenças.

Os autores destacam que:


O pensamento mágico do adolescente facilita sua identificação
com personagens e, frequentemente, existe uma simplificação
e “garantia” de que os problemas adversos serão resolvidos,
culminando em mais um “final feliz”. Outro aspecto importante
nesse padrão de influência refere-se aos modelos nutricionais,
de beleza e de saúde que, muitas vezes, são incompatíveis com
as condições socioeconômicas do jovem ou com sua fase de

126 Temas sociais e educacionais contemporâneos


crescimento, ocasionando transtornos alimentares, deficiências
nutricionais, sentimento de frustração e alterações na imagem
corporal. (FEIJÓ; OLIVEIRA, 2001, p. 2)

É nesse cenário que a orientação esclarecida e adequada, exercida


de maneira responsável pelos profissionais da escola, pode ser fun-
damental para evitar ou reduzir riscos nessa faixa etária. A criação e a
manutenção de vínculos de respeito, honestidade e confiança mútua
entre a equipe pedagógica e os adolescentes são essenciais para aju-
dar os alunos a superarem as dificuldades dessa fase de amadureci-
mento físico, emocional, mental e social.

4.3 Promoção da saúde integral na escola


Vídeo A saúde integral pode ser promovida transversalmente por meio
de vários tipos de estratégias e envolver toda a comunidade escolar,
partir dos eixos orientadores ou temas presentes nos currículos de dis-
ciplinas como Biologia, Química, Educação Física e várias outras, como
História, Geografia, Sociologia e Filosofia, podendo integrar:
• Ações de orientação pedagógica, tanto individuais quanto cole-
tivas, em sala de aula – para esclarecimento geral sobre temas
ligados à promoção da saúde física, mental/emocional e social –
ou em atendimentos ao aluno, nos casos em que se perceba que
ele apresenta sinais de que pode estar desenvolvendo sintomas
de doenças e/ou transtornos, sinais de comportamento de risco
ou de estar vivendo em contexto de violência etc.
• Ações de formação docente nos temas ligados à promoção da
saúde e prevenção de riscos, incluindo a orientação sobre a iden-
tificação de sintomas e principais sinais que revelam doenças,
transtornos ou situações de risco pelos quais os alunos possam
estar passando, bem como de orientações sobre gerenciamento
do estresse laboral dos próprios docentes e maneiras de reduzi-
-lo, além de esclarecimentos sobre as principais doenças decor-
rentes do trabalho docente.
• Projetos interdisciplinares e campanhas escolares envolvendo os
alunos, os docentes de várias disciplinas e/ou a comunidade es-
colar e as famílias dos alunos, como projetos de pesquisa sobre:
sintomas e tratamentos de determinadas doenças; causas e con-
sequências de problemas como obesidade, drogadição, gravidez
na adolescência; afogamento e outros acidentes; funcionamento

Promoção da saúde na escola 127


do SUS e dos postos de saúde do município; funcionamento das
campanhas de vacinação; causas e consequências de transtornos
alimentares, entre outros. Os projetos interdisciplinares podem
ainda ter origem em assuntos atuais que estejam sendo explo-
rados pela mídia, como é o caso da pandemia de Covid-19, ou
ainda de personalidades históricas ou da atualidade que enfren-
taram algum tipo de doença ou transtorno. As campanhas na es-
cola e na comunidade podem abordar o esclarecimento sobre:
alimentação saudável; prevenção de riscos de doenças ligadas à
obesidade; prevenção do risco de suicídio na adolescência; con-
sequências para a saúde do consumo de cigarros e de bebidas
alcoólicas; prevenção do abuso de drogas; benefícios das ativida-
des físicas regulares para a boa saúde física e mental; prevenção
de riscos de acidentes; gerenciamento dos comportamentos de
risco e prevenção da violência na escola; entre outros temas im-
portantes no contexto da promoção da saúde integral.
• Estudos voltados à observação em postos de saúde, hospitais,
centros de assistência e de prevenção a acidentes e riscos e ou-
tros locais dedicados à promoção da saúde, no sentido de colocar
os alunos em contato com a realidade do atendimento à saúde
no município e ouvir o que os profissionais envolvidos têm a rela-
tar, bem como suas orientações sobre prevenção ou tratamento
de doenças, acidentes e outros aspectos.
• Palestras de especialistas – médicos, enfermeiros, nutricionistas,
psicólogos, psicoterapeutas, funcionários municipais de departa-
mentos ligados ao atendimento de saúde, voluntários em grupos
de apoio a dependentes químicos e casas de acolhimento etc.
– com o objetivo de esclarecer alunos, docentes, funcionários e,
por vezes, as famílias dos alunos sobre questões relevantes da
área da saúde física, mental e social, esclarecer sintomas e sinais
a serem identificados e conhecer os tratamentos e as medidas de
mitigação de doenças e transtornos mais comuns, sobretudo os
que afetam crianças e adolescentes.
• Desenvolvimento multidisciplinar de conteúdos curriculares das
disciplinas de modo a articular temas de Ciências e Biologia, Edu-
cação Física etc., diretamente ligados aos temas da saúde, a con-
teúdos de História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Arte etc., que
contextualizam histórica, social e culturalmente os temas e con-

128 Temas sociais e educacionais contemporâneos


tribuem para perpassar o debate com aspectos éticos, das desi-
gualdades sociais, econômicas e regionais, entre outros.

Para subsidiar, sob o ponto de vista do conteúdo e das diretrizes de


aplicação, as diversas ações de promoção da saúde integral na escola
indicadas anteriormente, trazemos, a seguir, uma ampliação dos co-
nhecimentos sobre dois dos subtemas mais relevantes no cenário das
temáticas transversais da saúde em ambiente escolar: a alimentação
escolar e a prevenção de doenças e riscos na adolescência.

4.3.1 Alimentação escolar


O PNAE atende os alunos da educação básica, de educação infantil
ao ensino médio, incluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA), matri-
culados em escolas públicas, filantrópicas e comunitárias conveniadas
com o Estado. O programa atinge mais de 97% das escolas públicas
urbanas e 98% das rurais do país e objetiva atender às necessidades
nutricionais dos alunos e incentivar a prática de hábitos alimentares
saudáveis durante sua permanência na escola.

Monkey Business Images/Shutterstock

Por meio do PNAE, o governo federal repassa a estados, municípios


e escolas federais valores financeiros suplementares para a cobertura
da alimentação escolar de 200 dias letivos, conforme o número de ma-
triculados em cada rede de ensino apurado no censo escolar do ano
anterior. Os repasses do programa são monitorados e fiscalizados pela
sociedade por meio de Conselhos de Alimentação Escolar, pelo Fun-

Promoção da saúde na escola 129


Saiba mais do Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), pelo Tribunal de
O valor repassado pelo governo Contas da União (TCU), pela Controladoria-Geral da União (CGU) e pelo
federal a estados e municí- Ministério Público.
pios por dia letivo para cada
aluno é estabelecido conforme Com o objetivo de estimular o desenvolvimento econômico susten-
a modalidade de ensino e cor- tável das comunidades, a Lei 11.947/2009 determina que 30% do valor
responde atualmente à seguinte
distribuição: repassado pelo PNAE às escolas deve ser obrigatoriamente investido
• Creches: R$ 1,07. na compra direta de produtos da agricultura familiar (BRASIL, 2009).
• Pré-escola: R$ 0,53. Entretanto, apesar das diretrizes do PNAE indicarem a distribuição de
• Escolas indígenas e quilombo- uma alimentação saudável e balanceada na merenda escolar, nem
las: R$ 0,64. sempre é isso que ocorre na prática.
• Ensino fundamental e médio:
R$ 0,36. Na rede privada cada escola tem autonomia para planejar e ofe-
• EJA: R$ 0,32. recer a alimentação. Grande parte das escolas possui cantinas com
• Ensino integral: R$ 1,07. alimentos à venda e facultam às famílias a decisão de enviar ou não
• Programa de Fomento às lanches de casa. Em geral, as escolas particulares seguem as diretrizes
Escolas de Ensino Médio em
para a alimentação saudável, limitando a oferta de doces, refrigeran-
Tempo Integral: R$ 2,00.
• Alunos que frequentam o tes e frituras nas cantinas, disponibilizando cardápios mais saudáveis
Atendimento Educacional e orientando as famílias sobre o envio de frutas, pães integrais e sucos
Especializado no contraturno: naturais no lugar de biscoitos, salgadinhos e refrigerantes.
R$ 0,53 (FNDE, 2021).
A alimentação escolar, tanto na rede pública quanto na privada,
deve fazer parte da proposta pedagógica das escolas e ser pautada
pela formação dos hábitos alimentares saudáveis, sem esquecer as di-
mensões sociais e culturais das práticas alimentares e os valores cultu-
rais, sociais e afetivos dos alunos e das suas famílias, tão importantes
para seu desenvolvimento integral. A merenda escolar pode ser o eixo
de estratégias de promoção da alimentação saudável na escola. Para
isso é preciso, porém, que a merenda também siga as diretrizes da ali-
mentação saudável, sendo um exemplo para os alunos.
Curiosidade
Para conhecer a ação dos Em uma iniciativa recente de alunos de ensino médio de vários es-
alunos na página Diário tados do país, intitulada Diário da Merenda, utilizando-se as redes so-
da Merenda, acesse o link
a seguir. ciais Facebook e Instagram, foi realizada uma série de denúncias em
Disponível em: https://www. que os próprios alunos postavam fotos mostrando a má qualidade nu-
facebook.com/diariodamerenda/. tricional das refeições oferecidas nas escolas públicas brasileiras, com
Acesso em: 23 mar. 2021.
vários exemplos de ofertas de alimentos prontos, comida enlatada, bis-
coitos, achocolatados, barrinhas de cereais e sucos artificiais.

Por outro lado, há escolas que planejam minuciosamente o cardá-


pio, as compras de alimentos, sua conservação e preparo, ofertando

130 Temas sociais e educacionais contemporâneos


merendas de excelente qualidade nutricional, atraentes aos olhos e ao
paladar.

Essas escolas integram a merenda escolar ao projeto pedagógico,


com a preocupação em orientar os alunos quanto à manutenção de
hábitos alimentares saudáveis, e dão treinamento e apoio aos profis-
sionais que são os principais responsáveis pela alimentação escolar: as
merendeiras. Várias dessas escolas compram boa parte dos ­alimentos
de produtores locais e algumas delas usam vegetais plantados em
­hortas escolares.

Para reconhecer os esforços dessas escolas, o Ministério da Saúde


lançou em 2016 um concurso nacional – Melhores Receitas da Alimen-
tação Escolar – para premiar as escolas que se saem melhor na tarefa
de ofertar alimentação adequada aos alunos e no sentido de reconhe-
cer a importância da escola como local privilegiado de formação de há-
bitos alimentares saudáveis.

Ainda em 2016, a receita vencedora da região Norte foi arroz de


cuxá com charque, da merendeira Maria Arlete da Silva, funcionária
da Escola Municipal de Ensino Fundamental Novo Horizonte, em Pa-
rauapebas, no Pará. Boa parte dos ingredientes do prato são plantados
na horta da escola. Já na região Sul a receita vencedora foi criada du-
rante a prova prática do concurso para merendeira da Escola Municipal
Dom Pedro II – Educação Infantil e Ensino Fundamental, de Matelân-
dia, no Paraná, submetida por Maria de Lurdes Fidelis. O prato é muito
criativo: torta de arroz nutritiva, incluindo ingredientes como brócolis,
salsinha e cebolinha, que não costumam ser muito apetitosos para as
crianças, mas que na torta fazem o maior sucesso.
Saiba mais
No Centro-Oeste a receita escolhida foi torta saborosa de batata
Conheça o projeto
doce com peixe; no Sudeste, bolo salgado de arroz; e no Nordeste, aba- interdisciplinar de horta
rá de carne moída com aipim. escolar desenvolvido em
uma escola estadual de
Note que, na maioria das receitas, podemos perceber nitidamente a Aracaju, em Sergipe, em
parceria com a Embrapa
inspiração das culturas culinárias regionais e a presença de ingredien-
Tabuleiros Costeiros,
tes locais, que fazem parte da dieta das comunidades nas quais as es- por meio do Programa
Embrapa & Escola.
colas estão inseridas, sem deixar de se atentar para o valor nutritivo e
para os ingredientes in natura e minimamente processados, conforme Disponível em: https://www.
embrapa.br/busca-de-noticias/-/
as diretrizes do PNAE. noticia/43557016/horta-escolar-
estimula-o-protagonismo-e-a-
A estratégia da horta escolar é uma excelente opção para ensinar alimentacao-saudavel. Acesso em:
aos alunos conhecimentos teóricos e práticos sobre o cultivo e o uso 12 abr. 2021.

Promoção da saúde na escola 131


dos alimentos, assim como as práticas culinárias podem ser ótimas es-
tratégias para incentivar a inserção dos alimentos advindos da horta,
ou mesmo comprados de produtores locais, na alimentação, o que
incentiva hábitos saudáveis.

É preciso considerar ainda que, sob o ponto de vista da segurança


alimentar e dos direitos das crianças e adolescentes à alimentação
adequada, a merenda escolar é, para muitas crianças matriculadas
na rede pública de ensino, a principal e, por vezes, a única fonte
de nutrientes para seu desenvolvimento, pois suas famílias não têm
condições materiais de prover a quantidade e a qualidade de refei-
ções adequadas. Um estudo conduzido pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) revelou que a alimentação escolar é con-
siderada a principal refeição do dia para 56% dos alunos da região
Norte e para 50% daqueles da região Nordeste. No estudo chegou-
-se à estimativa de que 15% a 20% dos alunos omitem pelo menos
uma refeição diária (STURION et al., 2005).

4.3.2 Prevenção de doenças e riscos na


adolescência
Com relação aos adolescentes, a prevenção de doenças e riscos
na escola deve estar pautada pela orientação, pela atenção às mu-
danças de comportamento e outros sinais que eles possam apre-
sentar e pela boa comunicação com as famílias, contribuindo para
a melhor compreensão das necessidades dos jovens e seu encami-
nhamento ao atendimento especializado quando necessário.

Os educadores (e também as famílias) devem estar muito aten-


tos a sinais que apontem para problemas pelos quais o adolescente
possa estar passando, como violência na escola ou em casa, trans-
tornos do humor, depressão e outras doenças que possuem o poder
de ampliar os riscos de suicídio, assim como revelam que ele está
com dificuldades muito grandes de relacionamento ou autoacei-
tação, está abusando de remédios, álcool ou drogas, entre outros
problemas sérios para os quais ele precisará de muito apoio para
superar.

132 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Monkey Business Images/Shutterstock
São sinais aos quais se deve prestar atenção: mudanças bruscas
de comportamento e/ou desempenho escolar; alterações de humor
e/ou aumento da ansiedade e irritabilidade; tendência ao isolamento
na escola e/ou em relação à família; passar a praticar ou ser vítima de
bullying na escola ou por meios virtuais; demonstrações de agressivi-
dade; crises de choro repentinas; perda de autoestima, como mostrar
mudanças nos padrões de higiene (ir sujo para a escola, por exemplo);
perda de interesse em atividades que gostava de fazer; apresentar
sintomas de transtornos de sono, como dormir sistematicamente du-
rante as aulas e/ou passar a ter olheiras acentuadas, ou alimentares,
com emagrecimento excessivo em pouco tempo, mudanças drásticas
alimentares ou recusa de muitos alimentos e preocupação excessiva
com a aparência do corpo; mostrar sinais de que está passando por
violência na escola ou em casa, ou que está se automutilando, como
ter manchas ou cortes no corpo ou passar a usar muita maquiagem ou
roupas compridas para esconder marcas no rosto ou no corpo, falar
constantemente em morte ou suicídio; demonstrações frequentes que
sugerem abuso de álcool ou drogas, como olhos vermelhos, dores de
cabeça de “ressaca”, fala arrastada; marcas de agulhas em partes do
corpo como braços e pescoço; demonstração de comportamentos de
risco, como os que podem causar acidentes consigo mesmo ou com os
outros; ou ligados às relações sexuais sem proteção.

Promoção da saúde na escola 133


Tais sinais, principalmente quando vários deles se manifestam ao
mesmo tempo, são um alerta de que é preciso redobrar a atenção,
o acolhimento e a orientação ao aluno, procurando descobrir o que
está acontecendo com ele e, se necessário, entrar em contato com
a família. O objetivo deve ser o de construir uma rede de atenção
e proteção ao adolescente, evitando que problemas que ele possa
estar vivendo tornem-se cada vez maiores.

É fundamental ter em mente que a segunda maior causa de mor-


te de jovens entre 15 e 19 anos no mundo é o suicídio. Segundo a
OMS, a primeira causa entre as meninas está relacionada às com-
plicações decorrentes da gravidez, e entre os meninos, à violência
interpessoal. No Brasil o suicídio passa para a terceira maior causa
de mortes de jovens, pois o segundo lugar é tomado pelos acidentes
de trânsito (­RODRIGUES, 2019; WENTZEL, 2017). Vemos que a pre-
venção de doenças e de riscos na adolescência é muito importante e
pode até contribuir para evitar fatalidades.

Muitas vezes o desconhecimento, os preconceitos e os tabus


são barreiras ao diálogo franco e aberto – que é essencial – com
os adolescentes e ao estabelecimento da relação de confiança ne-
cessária para compreender, apoiar e proteger os jovens. Alguns
fatores, citados a seguir, são muito importantes para que o edu-
cador, orientador pedagógico, psicopedagógico ou gestor escolar
consiga estabelecer com o aluno adolescente o diálogo honesto e
a confiança mútua:
• Estabelecer um clima de confiança e aceitação, dispondo-se a
ouvir mais do que falar. Primeiro é preciso acolher e se interes-
sar genuinamente pelos relatos e sentimentos do adolescente.
• Manter a tranquilidade e o juízo crítico, mesmo que a situação
relatada seja perturbadora. Mostrar-se chocado não ajuda o
aluno a expor a situação pela qual está passando, nem a con-
fiar no educador.
• Tornar-se um facilitador para explorar as convicções, as deci-
sões e os comportamentos do jovem, levando-o a analisar e
questionar suas ideias e ações, sem induzi-lo imediatamente a
determinadas condutas consideradas corretas pelo educador.

134 Temas sociais e educacionais contemporâneos


• Discutir os modelos de comportamento de adultos e familia-
res próximos ao aluno, procurando perceber e, aos poucos,
ajudando-o a também identificar quem ele está imitando ou
recusando com seus comportamentos.
• Mostrar de modo honesto e esclarecido as consequências de
comportamentos de risco mais extremos, se for o caso do alu-
no, e sinalizando os limites saudáveis.
• Mostrar que as interações sociais podem ser guiadas por uma
comunicação não violenta e que não é preciso aceitar as práti-
cas de bullying ou outros tipos de violência, dispondo-se a aju-
dar de modo prático.
• Auxiliar o aluno a perceber a importância de procurar apoio
familiar e, se for o caso, ajuda médica ou psicológica específica,
e a consentir a quebra de sigilo do que vem sendo conversado
com o educador, permitindo que um familiar seja incluído nos
diálogos (FEIJÓ; OLIVEIRA, 2001).

Não estamos aqui afirmando, de maneira nenhuma, que a equipe Site


docente, de orientação, coordenação ou gestão escolar seja respon-
Conheça os princípios e
sável por diagnosticar definitivamente, prescrever ou aplicar trata- a prática da comunicação
não violenta por meio
mentos médicos ou psicoterapêuticos aos discentes, a não ser nos
do artigo Comunicação
casos em que se tenha formação específica na área de saúde e seja Não Violenta (CNV): o que
é, como funciona e como
autorizado pela família do aluno a participar de alguma forma do
aplicar o conceito, escrito
seu protocolo de tratamento ou outro processo necessário. por Tatyane Mendes.
Para isso acesse o site da
O que propomos é que a equipe escolar seja um ponto de ob- ONG Na Prática.

servação atenta aos alunos, de apoio, de escuta e acolhimento, de Disponível em: https://www.
orientação geral e, sobretudo, de comunicação com a família e de en- napratica.org.br/comunicacao-nao-
violenta/. Acesso em: 23 mar. 2021.
caminhamento adequado a profissionais especializados ou órgãos
públicos específicos que possam auxiliar o adolescente no enfren-
tamento de suas dificuldades e problemas, ou mesmo em situações
perigosas ou de vulnerabilidade pelas quais esteja passando em seu Site
ambiente familiar, escolar ou comunitário. Outra dica é o audioli-
vro Comunicação Não
Desse modo, a escola pode se tornar o porto seguro de que os Violenta, de Marshall
Rosenberg, disponível no
jovens precisam, como ponto de partida para superação da situação link a seguir.
que estão vivendo, alguém que se preocupe genuinamente com eles Disponível em: https://youtu.be/
e com o seu bem-estar, que os escute e incentive a admitir que estão K29eLcpvsc8. Acesso em: 23 mar.
2021.
com problemas e a buscar ajuda.

Promoção da saúde na escola 135


CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola é, das instituições sociais, a mais privilegiada para desem-
penhar o papel de protagonista na educação para a promoção da saú-
de integral. Os princípios fundamentais a serem levados em conta na
prevenção das doenças e riscos são a educação, a divulgação do conhe-
cimento, a valorização de elementos éticos e afetivos, o apoio da famí-
lia, o acolhimento e a orientação das escolas e de outras instituições.

Os conhecimentos teóricos e práticos sobre hábitos saudáveis, qua-


lidade de vida e prevenção de doenças e de riscos podem ser desenvol-
vidos de variadas formas na escola, desde que articulados a conteúdos
disciplinares e até em forma de projetos interdisciplinares e de campa-
nhas na escola e na comunidade.

A orientação aos alunos no sentido de manterem hábitos saudá-


veis e se prevenirem de enfermidades e riscos é responsabilidade da
escola e pode ser conduzida com o auxílio dos educadores e gesto-
res escolares, bem como com a ajuda de especialistas e membros da
comunidade.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Observe as sugestões propostas na Pirâmide Alimentar proposta por
Philippi (2013) e compare-as com as do modelo Meu Prato. Quais são
as diferenças e semelhanças entre os dois modelos? Qual deles seria
mais adequado para ser aplicado às refeições ofertadas nas escolas?

2. De que modo as ações de promoção da saúde e da qualidade de vida


na escola podem ser implementadas por docentes e profissionais da
coordenação pedagógica e da direção escolar?

3. A escola tem o papel de ajudar a conscientizar as famílias sobre a


importância da vacinação das crianças e dos adolescentes. Uma das
formas de desempenhar esse papel, é exigir a carteirinha de vacinação
no ato da matrícula dos alunos, o que está em tramitação no Senado
Federal por meio do Projeto de Lei n. 1.716, de 2019, e já é garantido
em alguns estados brasileiros. Cite um desses estados.

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marcioatalla.com.br/atividade-fisica/tabela-de-calorias-de-atividade-fisica/#:~:text=O%20

136 Temas sociais e educacionais contemporâneos


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Promoção da saúde na escola 137


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138 Temas sociais e educacionais contemporâneos


5
Respeito à diversidade
na sociedade
Conceitos como diversidade, igualdade, desigualdade, equida-
de, alteridade, multiculturalismo, cidadania e direitos humanos são
centrais para os debates nas sociedades contemporâneas, sendo
cruciais para a construção de sociedades democráticas, mais igua-
litárias e inclusivas. Além disso, seu estudo no contexto escolar
pode contribuir para construir práticas inclusivas de tolerância e
de respeito à diversidade, e mobilizar a comunidade escolar a lutar
pela promoção da igualdade de acesso aos direitos básicos, à cida-
dania e à democracia na sociedade.
A educação em direitos humanos, a formação para a cidadania
e a promoção do respeito à diversidade devem fazer parte dos
processos educativos, tanto de modo teórico quanto de maneira
integrada às práticas pedagógicas que perpassam as diversas dis-
ciplinas curriculares.

5.1 Direitos humanos, igualdade e diversidade


Vídeo O conceito de direitos humanos tem sua gênese na modernidade
ocidental e se assenta sobre a noção de igualdade. No contexto con-
temporâneo, passou a incorporar também o conceito de diversidade,
que conjuga as noções de igualdade e de diferença, envolvendo os cam-
pos do amplo direito à educação e da educação em direitos humanos.

O conceito de igualdade é, portanto, multidimensional, pois abar-


ca vários aspectos da vida social e se constitui em um pilar da busca por
uma sociedade mais justa, ou seja, mais igualitária.

Sob o aspecto da equidade, a noção de igualdade é representada


fundamentalmente pela igualdade de direitos perante as leis. A noção

Respeito à diversidade na sociedade 139


busca reduzir o impacto das desigualdades na sociedade, atendendo
a todos com justiça, e, ao mesmo tempo, olhando para cada grupo da
sociedade em suas necessidades específicas.

CG_dmitriy/Shutterstock
Mesmo diferentes sobre diversos aspectos, todos os cidadãos são iguais em direitos políticos,
sociais e econômicos e devem ser tratados de modo justo e equânime.

Conforme a perspectiva da igualdade material, da distribuição


equânime do acesso aos recursos materiais, a noção de igualdade
remete ao conceito de cidadania, de acesso universal a condições dig-
nas de vida, à alimentação, à saúde, à educação, à moradia etc., e en-
volve o conceito de justiça social. Já sob a dimensão da diversidade,
a noção de igualdade se refere essencialmente ao reconhecimento
igualitário e ao respeito às diversas identidades étnicas, culturais, de
gênero, entre outras.

É preciso destacar que a noção de diversidade diz respeito não só


às múltiplas culturas, etnias e orientações sexuais, mas passa também
pelos conceitos de pluralidade, de multiplicidade, de diferentes pers-
pectivas e visões de mundo, de heterogeneidade e de variedade, que
perpassam os diferentes grupos na sociedade, pela convivência entre
contrários, pela intersecção de diferenças e pela tolerância mútua.

No entanto, apesar de se mostrarem tão correlacionadas, não é fácil


reunir harmonicamente as várias noções de igualdade e de diversida-
Para refletir de em um mesmo conceito amplo de direitos humanos. Uma das vias
Reflita sobre seus compor- para reunir tais conceitos e aplicá-los na prática, no contexto educativo,
tamentos cotidianos: você se explorando em sala de aula as origens históricas das desigualdades
considera uma pessoa que
e da luta por direitos humanos e por cidadania no mundo e, principal-
respeita as diferenças?
mente, no Brasil.

140 Temas sociais e educacionais contemporâneos


5.1.1 Direitos humanos nas sociedades
contemporâneas

Leo Cardelli/Shutterstock
A luta por direitos humanos, ao menos nas sociedades democráticas, tem longa história marcada
por avanços e retrocessos e continua viva nos movimentos sociais contemporâneos.

Vejamos uma célebre frase da filósofa, socióloga, economista, teóri-


ca e ativista política polonesa Rosa Luxemburgo: “por um mundo onde
sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente li-
vres”. Ela ajuda a compreender como igualdade e diversidade podem
caminhar juntas, ao menos no que concerne ao desejo e à luta por uma
sociedade mais justa.

Essa frase expressa a visão de mundo da pensadora e delineia o de-


sejo de um futuro melhor para todos os cidadãos, no qual todos sejam
iguais em direitos, porém tenham a liberdade de expressar suas dife-
renças. A ideia central é a de que deve haver garantias de igualdade de
direitos e de tratamento equânime perante as leis para todos os seres
humanos (equidade), e respeito às diferenças, às identidades especí-
ficas e à livre expressão de tais identidades. Ainda que desiguais sob
quaisquer perspectivas, todos os seres humanos devem ter seus direi-
tos básicos garantidos pela sociedade, sendo essa a base da noção de
cidadania. Toda pessoa deve ter liberdade de manter sua identidade,
cultura, crença, orientação e opinião, de expressar tudo o que a torna
diferente, única, ou pertencente a um grupo específico, e, ao mesmo
tempo, ter garantidos os seus direitos como cidadã.

Respeito à diversidade na sociedade 141


Perspectiva histórica
Apesar da longa história de lutas e conquistas, o campo dos direitos
humanos é constantemente ameaçado por retrocessos, revelando que
a máxima “o preço da liberdade é a eterna vigilância” – atribuída a Tho-
mas Jefferson, um dos autores da Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América e o terceiro presidente daquele país (1801-
1809) – não perdeu sua atualidade, podendo muito bem ser adaptada
Livro para “o preço da igualdade é a eterna vigilância”, pois a todo o mo-
mento assistimos a tentativas de retirada de direitos da população e
ações para conservar privilégios dos grupos dominantes da sociedade,
minando toda a história de luta por direitos humanos e por cidadania.

No Brasil, apesar de sermos uma democracia jovem, que passou


por vários períodos de regimes autoritários, havíamos conquistado re-
centemente, por meio da Constituição de 1988 e de políticas públicas
nela apoiadas, grandes avanços no campo dos direitos humanos e da
garantia legal de cidadania a todos os brasileiros, mesmo que faltasse,
na prática, um longo caminho para que as desigualdades de acesso
Para aprofundar os
universal às condições dignas de vida fossem alcançadas, e ainda ti-
conhecimentos sobre os
direitos humanos na so- véssemos inúmeras violações de direitos. Nos últimos anos, entretan-
ciedade contemporânea,
to, temos assistido a frequentes retrocessos em tais áreas.
leia o capítulo “Concep-
ção contemporânea de
Diversas tendências teóricas debatem há um longo tempo as dife-
direitos humanos” do
livro A educação entre os rentes noções ou ideais ligadas aos direitos humanos; entretanto, foi
direitos humanos.
apenas a partir do período pós-Segunda Guerra Mundial que a busca
HADDAD, S.; GRACIANO, M. por formulações mais específicas na esfera jurídica tornou-se mais re-
Campinas: Autores Associados; São
Paulo: Ação Educativa, 2006. levante no sentido de orientar o comprometimento das nações com o
que se considerou consensualmente à época como sendo “direitos uni-
versais dos seres humanos”, a serem garantidos por todos os países.
Vídeo
Vimos que a igualdade sob o ponto de vista legal é representada
Acesse a animação
pela garantia de direitos iguais a todos os cidadãos, noção que tem
Direitos Humanos em dois
minutos e compreenda sua origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desde
em linhas gerais o que
a promulgação desse documento pela ONU, em 1948, consolidou-se
é apresentado pelo
documento. globalmente um consenso sobre os direitos a que todos os cidadãos
Disponível em: https://youtu. deveriam ter acesso. Isso ocorreu por meio de vários tratados, pactos,
be/ZcouRGcu6y0. Acesso em: 13
resoluções e declarações, tanto de natureza ética quanto de caráter
abr. 2021.
político e normativo.

142 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem 30 artigos, dos
quais selecionamos alguns para discussão. Para começar, vamos anali-
sar os sete primeiros:
Artigo 1 – Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem
agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo 2 – 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os
direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem dis-
tinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, reli-
gião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condi-
ção política, jurídica ou internacional do país ou território a que
pertença uma pessoa, quer se trate de um território indepen-
dente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer
outra limitação de soberania.
Artigo 3 – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal.
Artigo 4 – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a
escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as
suas formas.
Artigo 5 – Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento
ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Artigo 6 – Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os
lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.
Artigo 7 – Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qual-
quer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual
proteção contra qualquer discriminação que viole a presente
Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
(ONU, 1948, grifos do original)

Esses artigos referem-se aos direitos básicos de todo ser humano,


sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição. Tais direitos passam por igualdade, liberdade,
dignidade, direito à vida e à segurança pessoal, o que exclui qualquer
Para refletir
tipo de escravidão, servidão ou tratamento desumano, pelos direitos à
Pense sobre os direitos destaca-
proteção da lei e contra qualquer tipo de discriminação.
dos nos sete primeiros artigos
Os demais artigos da Declaração abordam, entre outros aspectos: da Declaração dos Direitos
Humanos. Eles são plenamente
• O direito à liberdade de pensamento, de consciência, de crenças respeitados no Brasil?
e religião; liberdade de opinião e de expressão.

Respeito à diversidade na sociedade 143


• Os direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dig-
nidade humana.
• O direito ao trabalho com remuneração e condições justas, que
assegure a si, assim como à sua família, uma existência compatí-
vel com a dignidade humana.
• O direito a se organizar em defesa de seus direitos em sindicatos
e associações.
• O direito ao repouso e ao lazer.
• O direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua
família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, ha-
bitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.
• O direito à instrução gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus
elementares e fundamentais, no sentido do pleno desenvolvi-
mento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito
pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais.
• O direito a participar livremente da vida cultural da comunida-
de, fruir as artes e participar do progresso científico e de seus
benefícios.

Saiba mais Os países que aderiram formalmente a tal documento comprome-


Consulte a Declaração Universal teram-se a incorporar em suas legislações e políticas públicas a prote-
dos Direitos Humanos na íntegra ção e a promoção dos direitos humanos. No ano de 1993, em Viena,
acessando https://www.unicef.
realizou-se a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, na qual
org/brazil/declaracao-universal-
-dos-direitos-humanos. foram propostas a universalidade, a indivisibilidade, a interdependên-
cia e a inter-relação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais,
culturais e ambientais, assim como a relação obrigatória entre demo-
cracia, desenvolvimento e direitos humanos.

Para Bobbio (2004), a busca pelo reconhecimento dos direitos hu-


manos é  um sinal positivo  no processo de construção de sociedades
humanas e democráticas. Entretanto, o autor afirma que “a linguagem
dos direitos tem uma grande função prática, [...] mas ela se torna enga-
nadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindica-
do e o direito reconhecido e protegido” (BOBBIO, 2004, p. 11). Ou seja,
proclamar os direitos dos indivíduos não significa automaticamente
garantir que eles usufruam deles na prática.

Tanto na sociedade brasileira quanto em outras sociedades con-


temporâneas, a exclusão ainda é uma constante e os princípios de
igualdade defendidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos

144 Temas sociais e educacionais contemporâneos


são diariamente desrespeitados. Assistimos cotidianamente a viola-
ções dos direitos humanos e a exemplos de discriminação e de vio-
lência contra grupos étnicos, sociais, religiosos etc., o que revela que a
garantia de proteção equânime da lei, sem discriminação de qualquer
espécie, nem sempre é posta em prática.

Direitos Humanos na atualidade


Recentemente, o movimento ativista Black Lives Matter – iniciado nos
EUA, por volta de 2013, no seio da comunidade afro-americana, para lu-
tar contra a violência, sobretudo policial, direcionada às pessoas negras
– tem aparecido em noticiários de todo o mundo e influenciado movi-
mentos semelhantes em outras partes do planeta, incluindo o Brasil.

Em 2020, após o assassinato do cidadão estadunidense negro Geor-


ge Floyd por um policial branco, que em uma abordagem violenta sufo-
cou o homem até a morte, um imenso movimento de protesto tomou
as ruas dos EUA e, em seguida, de boa parte do mundo, reivindicando
tratamento igualitário para pessoas negras e o fim da violência policial.

Jacob Lund/Shutterstock

Nas manifestação Black Lives Matter em junho de 2020 nos EUA, centenas de manifestantes
marcharam juntos pelas ruas de várias cidades entoando palavras de ordem como “mãos ao alto,
não atire” e “sem justiça não há paz”.

Tal manifestação, assim como outras que reivindicam igualdade de


tratamento por parte do Estado e da sociedade, tem sua origem nos

Respeito à diversidade na sociedade 145


movimentos por direitos civis, ligados historicamente à reivindicação
de que os direitos civis, políticos e sociais não se mantivessem como
um privilégio de poucos, mas sim fossem garantidos a todos igualmen-
te por meio das leis.

Entretanto, apesar de atualmente garantidos por lei, esses direitos


muitas vezes não são de fato acessíveis a todos os cidadãos no cotidia-
no da vida social, e o tratamento dado pelo Estado e pela sociedade em
geral costuma ser diferente de acordo com grupos sociais e étnicos.

Nos EUA, durante o século XX, os movimentos por direitos civis, dos
quais Martin Luther King foi uma grande liderança, conquistaram, por
meio de muita luta e resistência à repressão do Estado, a garantia de
que os direitos civis das populações negras e de outras minorias fossem
garantidos por lei. Tais direitos se traduziam, por exemplo, na garantia
legal de liberdade de expressão, de liberdade religiosa, de propriedade
privada, de ir e vir em qualquer espaço social, de escolha do trabalho,
de participação política, entre outros (MARSHALL, 1967).

Ao final do século XX, tanto nos EUA quanto no Brasil – neste por
meio da Constituição Cidadã de 1988 – a cidadania de fato passou a in-
tegrar não só os direitos já citados, mas também os direitos sociais mais
amplos, inclusive o acesso à saúde, à educação, à habitação, ao lazer,
ao atendimento judiciário e previdenciário, entre vários outros, os quais
passaram a ser garantidos não só por lei, mas de modo prático, por
meio de políticas públicas específicas. No Brasil, esse longo processo de
busca de inclusão, que ainda ocorre em meio a avanços e retrocessos, é
o cerne da promoção efetiva da cidadania plena nas sociedades.

O relatório Direitos humanos nas Américas: retrospectiva 2019, divul-


gado pela Anistia Internacional, considera que, atualmente, nosso país
parece ter retrocedido à situação anterior à Constituição Federal de
1988, e aponta que há um discurso abertamente contrário aos direitos
humanos promovido por várias autoridades brasileiras.

Esse relatório revela que, no estado do Rio de Janeiro, a violência po-


licial contra jovens moradores da periferia das cidades aumentou enor-
memente; apenas entre janeiro e julho de 2019, 1.249 pessoas foram
mortas pela Polícia Militar desse estado, grande parte eram crianças e
adolescentes negros, pobres, moradores dos bairros periféricos, vários
deles atingidos pelas chamadas balas perdidas.

146 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Os direitos dos povos indígenas, de acordo com o mesmo relató-
rio, também sofreram inúmeras violações no mesmo período. O texto
apresenta que foram registradas 160 invasões em terras indígenas nos
primeiros nove meses de 2019.

Outro relatório, o do Alto Comissariado da ONU, publicado em


2019, que investigou o tema da violação de direitos humanos entre
2017 e 2019, apontou sérias violações aos direitos humanos em diver-
sas áreas, e destaca pontos críticos em 13 temas, tais como a liberdade
de expressão, o direito das mulheres, dos refugiados e da comunidade
LGBTQI+. Outra questão considerada preocupante é a segurança públi-
ca: houve aumento das agressões policiais, sobretudo a jovens negros
(75,5% das vítimas de assassinato em 2017 eram indivíduos negros);
existe precariedade do sistema carcerário e crimes não resolvidos (mais
de 1,2 milhão de casos de violência doméstica estavam pendentes nos
tribunais); não existem políticas públicas de combate ao recrutamento
de jovens pelas facções criminosas.

O relatório da ONU aponta ainda que mulheres, gays e refugiados


– principalmente venezuelanos – sofreram ataques graves, e que a au-
sência de instrumentos públicos de proteção às vítimas e as falhas nas
investigações e na punição de criminosos aprofunda a violação de di-
reitos no Brasil. O documento destaca ainda que o endosso por parte
de altas autoridades políticas da prática de tortura e outros abusos,
e declarações abertamente racistas, homofóbicas e misóginas colabo-
ram enormemente para a escalada de desrespeito aos direitos huma-
nos. Os resultados ressaltam também violações aos direitos básicos de
acesso à educação, sobretudo à educação básica, com cortes de verbas
que chegam a R$ 914 milhões, prejudicando ou inviabilizando áreas
como a construção e a manutenção de escolas e creches, a capacitação
de profissionais da educação, a merenda escolar e o transporte escolar.

Por fim, o documento enfatiza retrocessos nos direitos à memória,


à verdade e à justiça, com intervenções nos trabalhos da Comissão da
Verdade, que investiga os crimes cometidos durante a ditadura militar
iniciada em 1964; denuncia a gravíssima extinção de mecanismos de
participação social, com a eliminação de cerca de 700 colegiados, que
visavam fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democrá-
ticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública
federal e a sociedade civil; expõe o crescimento de 49,5% no desmata-
mento da Amazônia; aponta a discriminação contra pessoas LGBTQI+,

Respeito à diversidade na sociedade 147


evidenciando que o Brasil é o país em que mais se mata transexuais no
mundo – os brasileiros transgêneros têm apenas 35 anos de expecta-
tiva de vida; e destaca o assassinato da ativista pelos direitos humanos
e vereadora eleita pelo Rio de Janeiro Marielle Franco – e seu moto-
rista Anderson Santos – cujo crime, ocorrido em 2018, ainda não foi
solucionado.

Sob a perspectiva simplificadora do senso comum, a luta pela cida-


dania pode ser tomada como uma “garantia de privilégios” aos grupos
que supostamente não teriam conquistado tais “privilégios” por mérito
próprio. Mas isso é um equívoco, já que todas as conquistas civis des-
critas até aqui não são privilégios, mas direitos de todo e qualquer in-
divíduo, independentemente de sua etnia, cor, crença, classe social etc.

O privilégio surge justamente quando somente alguns têm acesso


a tais direitos, ou seja, quando apenas alguns são considerados cida-
dãos, enquanto outros não têm acesso a esses direitos básicos, em vir-
tude das desigualdades sociais, econômicas e culturais históricas que
estruturam, infelizmente, a sociedade.

As políticas públicas de neutralização ou de compensação dos efei-


tos das desigualdades históricas na sociedade brasileira que geram
discriminação racial, de gênero, de idade, de origem etc. são chama-
das de ações afirmativas. Elas buscam viabilizar concretamente o prin-
cípio constitucional da igualdade e promover a inclusão, possibilitando
igualdade de acesso e de oportunidades aos grupos historicamente ex-
cluídos, favorecendo a participação na sociedade dos grupos que tradi-
cionalmente sofrem discriminação.

Na dimensão socioeconômica, as ações afirmativas se traduzem


em oferta de bolsas, cotas em diversos níveis de ensino e em concursos
públicos, auxílios, reserva de vagas prioritárias em programas de habi-
tação, empréstimos a juros reduzidos, fundos de estímulo, preferência
em contratos públicos, incentivo à contratação de integrantes de gru-
pos discriminados, redistribuição de terras etc.

Na dimensão simbólica e cultural, as ações afirmativas se dão por


meio de políticas de proteção a estilos de vida de povos tradicionais
(como indígenas, quilombolas, ciganos e ribeirinhos) e por meio de me-
tas mínimas de participação de grupos socialmente excluídos na mídia,
no sentido de ampliar sua visibilidade e representatividade.

148 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Na dimensão política, as ações afirmativas se referem ao aumento
de representação dos grupos tradicionalmente pouco ou nada repre-
sentados nas esferas de poder, cujas demandas não são valorizadas ou
atendidas pelo poder público. Essas ações se refletem em leis e progra- Saiba mais
mas de ampliação de representação de tais grupos, verbas específicas Para saber mais sobre
ações afirmativas no
destinadas às suas candidaturas ou reserva de vagas no Legislativo. É o Brasil, acesse os links a
caso, por exemplo, do Projeto de Lei n. 763/2021, que, se aprovado, ga- seguir:

rantirá às mulheres a reserva de vagas de, no mínimo, 30% das cadeiras http://gemaa.iesp.uerj.br/o-que-
sao-acoes-afirmativas/. Acesso em:
na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Munici- 13 abr. 2021.
pais. Será um grande avanço, mas ainda longe de representar a compo- http://etnicoracial.mec.gov.br/
acoes-afirmativas. Acesso em: 13
sição da população brasileira, que conta com mais de 50% de mulheres. abr. 2021.

5.1.2 Educação em direitos humanos


No Brasil, a educação em direitos humanos foi ampliando suas
ações a partir do final dos anos de 1980 (CANDAU; SACAVINO, 2000). Podcast
Para aprofundar seus
No período de 1995 a 1998, o Ministério da Educação e Desportos ela-
conhecimentos sobre
borou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino básico direitos humanos, acesse
o podcast Episódio 29 –
(1998) incluindo o tema transversal Pluralidade cultural e, em 2003, foi
Declaração Universal dos
lançado o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, Direitos Humanos, publica-
do no canal Fronteiras no
2003), marcando a consolidação do tema nas leis brasileiras.
Tempo.
Segundo o artigo 3º das Diretrizes Nacionais, a educação em direitos Disponível em: https://youtu.
humanos deve promover: be/KX1hgFE4oFI. Acesso em:
13 abr. 2021.
a educação para a mudança e a transformação social fundamen-
tando-se nos princípios da dignidade humana; de igualdade de
direitos; do reconhecimento e valorização das diferenças
e das diversidades; da laicidade do Estado; da democracia na
A educação em direitos humanos
educação; da transversalidade, vivência e globalidade; e da sus- é, antes de tudo, um processo
tentabilidade socioambiental. (BRASIL, 2012, grifos nossos). reflexivo que depende da
construção de conhecimentos
sócio-históricos e de consciência
crítica, fundamentais para a
construção da cidadania e de
uma sociedade mais justa.
Sergey Nivens/Shutterstock

Respeito à diversidade na sociedade 149


A opção pela articulação entre direitos advindos da igualdade e da
diferença nos processos de educação em direitos humanos vem sendo
gradativamente substituída pela busca da construção de uma educa-
ção comprometida com a formação de sujeitos de direito e a afirmação
da democracia, da justiça e do reconhecimento da diversidade na so-
ciedade brasileira.

Sob a perspectiva curricular, os Temas Contemporâneos Transver-


sais, propostos pela BNCC, trazem os temas Multiculturalismo e Ci-
dadania e Civismo, que podem ser desenvolvidos transversalmente,
perpassando todas as disciplinas, ao longo do ensino fundamental e
do ensino médio (BRASIL, 2018).

Especificamente no ensino médio, tais temas aparecem também


em categorias, competências e habilidades da área de Ciências Huma-
nas. As categorias conceituais são: representações sociais e culturais;
produção de identidades sociais, políticas e culturais; diferentes formas
de preconceito, discriminação, intolerância e estigma; diferentes for-
mas de participação da cidadania na esfera política; potencialidades e
as tensões entre direitos e deveres da cidadania. Já nas competências
a serem desenvolvidas pela área, que reúne as disciplinas de História,
Geografia, Sociologia e Filosofia, estão: reconhecer e combater as diver-
sas formas de desigualdade e violência, adotando princípios éticos, de-
mocráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os direitos humanos.

Mas, se sob a perspectiva teórica tal busca vem sendo fortalecida,


no plano das políticas públicas, da formação de educadores e das prá-
ticas pedagógicas, a construção de uma cultura dos direitos humanos
necessita cada vez mais de apoio metodológico e didático, de supor-
tes materiais e de ferramentas que possam viabilizar sua aplicação nas
práticas de ensino e nas dinâmicas do cotidiano escolar, assim como
nos processos de educação não formais nos demais espaços sociais.

As reflexões sobre tais conceitos e sua aplicação ao contexto escolar


podem subsidiar processos educativos de formação integral dos sujei-
tos e de construção de ações cidadãs na escola, na comunidade e na
sociedade. Do mesmo modo, podem fundamentar as práticas ligadas à
gestão democrática na escola, ajudando a conformá-la como um espa-
ço de transformação social, de inclusão e de respeito às diversidades, e
não apenas um espaço de reprodução das desigualdades sociais.

150 Temas sociais e educacionais contemporâneos


Para iniciar aprendizagens sobre os direitos humanos e suas rela-
ções com a igualdade, a desigualdade, a diversidade e a cidadania, é
preciso primeiro: partir dos conhecimentos e vivências prévias dos
alunos. Além disso, levantar as noções do senso comum, as opiniões
que podem apresentar preconceitos e julgamentos de valor, as hipóte-
ses equivocadas sobre direitos humanos e sobre como eles surgiram,
as opiniões sobre quem “merece” tê-los e por quê, as noções sobre a
realidade social brasileira, as diferenças e as discriminações entre os
grupos culturais e sociais etc.

Em uma segunda etapa, é necessário mediar o debate sobre as no-


ções levantadas à luz dos referenciais teóricos que tratam de tais ques-
tões, promovendo a reelaboração das noções prévias, aprofundando
o conhecimento conceitual dos alunos e promovendo a aplicação dos
conhecimentos adquiridos a problemas e a situações reais, bem como
às práticas cotidianas. Desse modo, os alunos são incentivados a elabo-
rar, de modo fundamentado e autônomo, suas próprias concepções
e práticas.

No contexto educacional, é fundamental refletir sobre: as tensões


entre igualdade e diferença, tanto sob o prisma teórico quanto práti-
co; as articulações entre os campos do amplo direito à educação e da
educação em direitos humanos; e as violações desses direitos perpe-
tradas nas práticas cotidianas. Tais reflexões subsidiam os processos
educativos – formais e informais – capazes de formar sujeitos cientes
de seus direitos e de consolidar processos democráticos de acesso à
plena cidadania.

Artigo

https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640553/8112

Para ampliar os saberes sobre a formação de professores para a educação


em direitos humanos, leia o artigo A formação de professores para a educação
em direitos humanos analisada sob a ótica da organização do trabalho didático:
tecendo algumas considerações, do autor Cristaldo, publicado na Revista
HISTEDBR On-line, em 2014.

Acesso em: 13 abr. 2021.

Os direitos de outros grupos na sociedade, como o das crianças e


adolescentes, o de idosos e o das pessoas com deficiências também
são garantidos por lei. Estatutos legais específicos regulamentam so-
cialmente esses direitos, tais como o ECA, o Estatuto do Idoso e o Es-

Respeito à diversidade na sociedade 151


Para refletir tatuto da Pessoa com Deficiência, os quais garantem, ao menos na lei,
Quais violações aos direitos que esses grupos sejam tratados com igualdade e dignidade, e tenham
humanos você observa em seu
acesso à proteção específica de que necessitam.
cotidiano?
O ECA, em seu preâmbulo da versão atualizada em 2019, afirma que
garante a:
proteção integral, na qual crianças e adolescentes são vistos
como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvol-
vimento e com prioridade absoluta. Também reafirmou a res-
ponsabilidade da família, sociedade e Estado de garantir as
condições para o pleno desenvolvimento dessa população, além
de colocá-la a salvo de toda forma de discriminação, exploração
e violência. (BRASIL, 2019, p. 9)

Apesar de garantidos por lei, muitos dos direitos das crianças são
cotidianamente desrespeitados, muitas vezes em virtude da extrema
desigualdade socioeconômica, a qual lança milhões de famílias na ex-
trema pobreza, o que deixa as crianças em situação de vulnerabilidade.

No Estatuto do Idoso estão as garantias legais de que este deve usu-


fruir de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
sem prejuízo da proteção integral, e de todas as oportunidades e facili-
dades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoa-
mento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade
e dignidade. O estatuto afirma ainda que é obrigação da família, da
comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte,
ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito
e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2003), o que por vezes
é desrespeitado.

Igualmente, o Estatuto da Pessoa com Deficiência assegura o exer-


cício pleno e em condições de igualdade de todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, visando à
sua inclusão social e à cidadania participativa plena e efetiva (BRASIL,
2015). Sabemos, no entanto, que tais garantias estão longe de ser con-
cretizadas na prática, e a educação tem papel essencial na formação de
cidadãos que apliquem tais preceitos no cotidiano social.

152 Temas sociais e educacionais contemporâneos


5.2 Desigualdade e exclusão
Vídeo As diferenças, a desigualdade e a exclusão são temas a serem deba-
tidos na escola, pois ela é o espaço do conhecimento sobre a riqueza
representada pela diversidade étnico-cultural que integra o patrimô-
nio sociocultural brasileiro, é um espaço para o diálogo, a convivência
e o respeito às diferentes formas de expressão e modos de estar no
mundo.

As desigualdades e a exclusão podem se apresentar em várias di-


mensões da vida em sociedade, como nas ligadas a aspectos socioeco-
nômicos, étnico-raciais, de gênero, de origem etc., e é preciso promover
o olhar crítico sobre a construção sócio-histórica de tais desigualdades
na estrutura social brasileira e no imaginário da população.

Joa Souza/Shutterstock

Mulheres em situação de pobreza revolvendo um depósito de lixo em busca de materiais


recicláveis para venda em Teixeira de Freitas, Bahia.

O mito da “democracia racial” ainda persiste em muitos discursos e,


segundo Fernandes (2008), tem origem na necessidade de reafirmação
de uma visão idealizada de relação harmoniosa entre brancos e não
brancos no país. É esse mito que estimula a crença na meritocracia no
contexto das relações étnico-raciais, como se fosse efetivamente viável
que as pessoas negras superem completamente, apenas com seu es-
forço pessoal, as contradições e desigualdades estruturais da socieda-
de, eliminando a falta de acesso aos direitos básicos, à educação e às
condições dignas de vida com “dedicação” e “trabalho duro”.

Respeito à diversidade na sociedade 153


Para desmistificar o tema, é preciso explicar aos alunos sobre a he-
rança escravocrata na formação histórica da sociedade brasileira, mos-
trando que o modelo de desenvolvimento econômico adotado durante
o período colonial, o qual contava com a escravização de indígenas e
africanos, configurou um modelo de exclusão social das pessoas ne-
gras, perpetuado até a atualidade e reproduzido de modo tão natu-
ralizado a ponto de haver quem reproduza o racismo e não perceba
suas atitudes como racistas. É o que chamamos de racismo estrutural,
ou seja, que faz parte da estrutura da sociedade e das relações sociais
nela mantidas.

Como sabemos, a falta de acesso à plena cidadania, à saúde, à edu-


cação, à moradia digna, à alimentação adequada e à remuneração justa,
à participação social e política etc. dificulta muito e, em grande parte das
vezes, elimina a chance desses indivíduos alcançarem os mesmos pata-
mares de quem teve pleno acesso a todos esses direitos sociais. Nesse
sentido, as políticas afirmativas têm sido importantes para reduzir em al-
guns aspectos os efeitos das desigualdades, permitindo que mais jovens
negros possam frequentar as universidades e tenham acesso a melho-
res oportunidades no mercado de trabalho, por exemplo.

No que concerne às desigualdades de gênero, é também essencial a


abordagem histórica e social do fenômeno, para que se possa debatê-lo
com base em conceitos e dados adequados, e não no senso comum.

A noção de gênero é uma construção social que atribui papéis di-


ferentes a homens e a mulheres na sociedade. Como toda construção
social, essa noção é histórica e muda de sociedade para sociedade.

Longe de serem neutros, os padrões de relações de gênero nas


sociedades expressam relações de poder e formas de estratificação
social. Apesar dos muitos avanços nas últimas décadas, resultantes
das lutas em prol da igualdade de gêneros, a desigualdade de gêne-
ro ainda se mantém como uma das bases das desigualdades sociais
(GIDDENS, 2005).

Os debates sobre a inclusão dos temas de gênero e de sexualidade


na educação passam pelas discussões sobre o termo gênero, o qual
muitas vezes é associado, de modo equivocado, à expressão ideologia
de gênero, ao invés de se referir aos estudos de gênero, que funda-
mentam verdadeiramente várias das noções relacionadas a gênero e
sexualidade.

154 Temas sociais e educacionais contemporâneos


O sexismo, ou preconceito de gênero, está bastante presente na Saiba mais
sociedade brasileira, a qual é marcada historicamente pelo modelo pa- Para compreender
melhor os equívocos em
triarcal, no qual o poder do homem sobre a mulher se expressou em
torno das questões de
todos os aspectos, instituições e relações sociais. gênero, leia a matéria
Existe ideologia de gênero?,
Na atualidade, mesmo após tantas conquistas das mulheres no que traz uma entrevista
campo dos direitos civis – como o direito ao voto, à propriedade, a via- com Jimena Furlani, pro-
fessora do departamento
jar sem autorização de pai ou marido – e os avanços no mercado de de Ciências Humanas e
trabalho – como o acesso a profissões consideradas no passado como Educação da Universi-
dade Estadual de Santa
exclusivamente masculinas –, ainda assistimos diariamente a expres- Catarina (UDESC).
sões de uma cultura que considera os homens superiores às mulheres, Disponível em: https://apublica.
como se tivessem direitos sobre elas, como se elas fossem suas pro- org/2016/08/existe-ideologia-de-
genero/. Acesso em: 13 abr. 2021.
priedades etc., ou seja, expressões da cultura machista ainda arraiga-
da na população. Sinal disso é a quantidade enorme de feminicídios
praticados no país, quase sempre relacionados à recusa da mulher em
permanecer em situações de violência.
Saiba mais
A luta por essa igualdade de fato na sociedade ainda precisa avan-
çar muito e conquistar, além de ganhos legais, a transformação real A Lei n. 11.340, conhecida como
Lei Maria da Penha, foi criada
das relações entre homens e mulheres, que passa pela formação para em 2006 para coibir a violência
a igualdade e para o respeito entre gêneros, na qual a escola tem gran- doméstica e familiar contra
de papel e responsabilidade. mulheres e determina que todo
caso de violência doméstica ou
É preciso destacar que a noção de gênero abarca também a dimen- intrafamiliar é crime e deve ser
julgado pelos Juizados Especia-
são da sexualidade. A sociedade influencia fortemente os padrões so-
lizados de Violência Doméstica
ciais, reproduzindo a heterossexualidade como modelo único, o que contra a Mulher. Recentemente
chamamos de heteronormatividade. O termo é usado para se referir à entrou em vigor a Lei n.
13.984/2020, a qual estabelece
imposição dos relacionamentos heterossexuais como padrão único, como medidas protetivas de
ignorando as orientações sexuais diferentes e marginalizando-as, tor- urgência a frequência do agres-
nando-as alvo de discriminação. Segundo Giddens (2005), no entanto, a sor a centro de educação e de
reabilitação e acompanhamento
homossexualidade faz parte das relações afetivas em todas as culturas. psicossocial.
Há muito, a comunidade médica internacional deixou de conside-
rar a homossexualidade como doença, mas persistem os preconceitos
relativos às questões de gênero e de sexualidade. Apesar dos avanços
nas lutas pelo direito de expressar livremente a orientação sexual sem
ser alvo de algum tipo de preconceito, é bastante comum em vários es-
paços da sociedade, incluindo a escola, nos depararmos com cenas de
intolerância, desrespeito e mesmo discriminação e violência, como é o
caso dos crimes motivados pela homofobia. A luta atualmente em tor-
no da união homoafetiva é no sentido de conquistar o reconhecimento

Respeito à diversidade na sociedade 155


Leitura social do status de normalidade, ou seja, o direito de essas pessoas se-
Termos como cisgênero, rem reconhecidas e respeitadas como cidadãos.
transgênero, cultura do
estupro, estereótipos de gê- Em vários países, tais temas são abordados na escola como parte da
nero, feminismo, identida-
de de gênero, misoginia e
formação integral dos alunos. Holanda, Bélgica, Nova Zelândia, Ingla-
tantos outros costumam terra e Escócia adotam a Educação Sexual, permeada pelas noções de
ser ouvidos de passagem,
mas é raro serem clara-
respeito à diversidade de gênero e orientação sexual, como disciplina
mente compreendidos. ou eixo obrigatório. Nos EUA, é prevalente entre as famílias a aprova-
Saber o que tais termos
significam é essencial
ção da Educação Sexual nas escolas, mas a disciplina não é obrigatória.
para mediar com proprie-
dade os debates sobre
No Brasil, infelizmente, apesar de os PCN incluírem a orientação ou
gênero e sexualidade, educação sexual em seus temas transversais, indicando os processos
sobretudo no contexto
do ensino médio. Para
educativos tanto ligados aos conteúdos de Ciências relativos ao funcio-
isso, acesse o Glossário namento dos sistemas reprodutores feminino e masculino, ao proces-
da diversidade, publicado
pela Universidade Federal
so de gestação e contracepção, à prevenção da violência sexual, assim
de Santa Catarina (UFSC), como aspectos ligados à orientação sexual, a BNCC eliminou tais ele-
em parceria com a Secre-
taria de Ações Afirmativas
mentos do tema transversal da saúde. Isso desconsidera que a saúde
e Diversidades de Santa sexual, tanto do ponto de vista físico quanto do afetivo e do social, é
Catarina.
também parte da promoção da saúde integral e da cidadania plena.
Disponível em: https://
noticias.ufsc.br/files/2017/10/
Gloss%C3%A1rio_
vers%C3%A3ointerativa.pdf. Acesso
5.2.1 Exclusão social, econômica e política
em: 13 abr. 2021.
Vimos que a noção de igualdade passa, também, pela igualdade ma-
terial, isto é, pela distribuição equânime do acesso aos recursos mate-
riais, remetendo ao conceito de cidadania ou, em outras palavras, do
acesso universal a direitos sociais que garantem condições dignas de
vida, como segurança alimentar, acesso à saúde, à educação, à moradia
etc., envolvendo o conceito de justiça social. Entretanto, as desigualda-
des socioeconômicas no país são enormes e, em período recente, vêm
se aprofundando, o que ocasiona a falta de acesso aos direitos sociais
básicos, ou seja, as desigualdades geram exclusão, a
Prazis Images/Shutterstock
qual pode ser de vários tipos: econômica, so-
cial, política etc.

A imensa concentração de renda no Brasil


resulta em desigualdades econômicas difíceis de
superar, as quais dificultam a construção de uma
sociedade verdadeiramente democrática.

156 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A exclusão econômica ocorre quando pessoas e comunidades são
excluídas das esferas de produção e de consumo, isto é, não participam
do mercado de trabalho e não têm acesso a consumir uma série de
bens no cotidiano, pois não possuem dinheiro para adquiri-los. Parte
significativa da população não tem acesso a bens de consumo essen-
ciais para a sobrevivência, como a alimentação, e essa exclusão é carac-
terizada pela miséria e pela fome.

Dados de um levantamento do IBGE (2019) comprovam que, em


2018, o Brasil retornou ao Mapa da Fome (lista de países com mais de
5% da população ingerindo menos calorias do que o recomendável);
o país havia saído da lista desde 2014. O avanço da insegurança ali-
mentar já atinge 10,28% de brasileiros, segundo o levantamento, o que
representa grande retrocesso na garantia de um direito básico de todo
cidadão: alimentar-se adequadamente todos os dias.

Segundo análise de Francisco Menezes, pesquisador do Instituto Bra-


sileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e ex-presidente do Con-
selho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), dois
fatores levaram a tal situação: o avanço da extrema pobreza e o corte de
políticas públicas em segurança alimentar, como o programa de aquisi-
ção de alimentos de agricultura familiar, com compra institucional, a par-
tir de 2014 (MENEZES, 2019 apud VILLAS BOAS; SARAIVA, 2020). O avanço
da pobreza e da fome, que já vinha ocorrendo desde 2017, foi aprofun-
dado pelos impactos econômicos da pandemia de COVID-19 que têm
levado cada vez mais famílias ao estado de insegurança alimentar.

Com o desemprego atingindo a marca de 13,1 milhões de brasilei-


ros (IBGE, 2020), a perda dos espaços de alimentação escolar em vir-
tude do fechamento das escolas durante a pandemia, e o insuficiente
auxílio financeiro emergencial prestado pelo Governo Federal às famí- Nelson Antoine/Shutterstock

lias mais pobres e em situação de vulnerabilidade


social, enfrentamos uma situação em que par-
te significativa da população tem seus direitos
básicos e sua cidadania plena negadas.

Movimento Panelas Vazias, realizado em março de 2021, em São


Paulo, por integrantes do grupo G10 Favelas. Eles alertam sobre
a fome que atinge milhões de brasileiros no contexto da pandemia
de COVID-19, buscando arrecadar alimentos e convocar o Poder
Público a apoiar as famílias de baixa renda no país.

Respeito à diversidade na sociedade 157


A pesquisa A favela e a fome, realizada pelo Instituto Data Favela,
em parceria com o Instituto Locomotiva e a Central Única de Favelas
(CUFA), mediu os impactos da pandemia de COVID-19 entre os mora-
dores de favelas por meio de entrevistas, com uma amostra de 2.087
pessoas maiores de 16 anos, em 76 favelas localizadas em todos os
estados do país, durante o período de 9 a 11 de fevereiro de 2021.
Os resultados do levantamento mostram que 68% das pessoas não ti-
veram dinheiro para comprar comida em ao menos um dia nas duas
semanas anteriores à pesquisa; além disso, apurou-se que o número
de refeições diárias dos moradores dessas comunidades vem caindo:
de uma média de 2,4 refeições diárias em agosto de 2020, para 1,9 em
fevereiro de 2021 (BOCCHINI, 2021).
A exclusão pode ser também social, quando o indivíduo, grupo ou co-
munidade está excluída da vida social, cultural ou comunitária, sem aces-
so, ou com acesso muito limitado a espaços como parques, quadras de
esportes, centros culturais, teatros, cinemas, bibliotecas, museus, e tem
pouca ou nenhuma oportunidade de lazer, entretenimento, viagens etc.
Podemos perceber que há estreita relação entre a exclusão econô-
mica e a social, já que a falta de dinheiro e a moradia em lugares afas-
tados e sem estrutura mínima levam à falta de acesso aos espaços de
convívio social, cultura e lazer. Nesse sentido, as políticas públicas, não
só de assistência social, mas também as que envolvem programas cul-
turais e esportivos, por exemplo, podem desempenhar papel relevante
– com a ajuda de fundações e de ONGs – na redução da exclusão social.

Há ainda a exclusão política, a qual diz respeito à falta de acesso


aos meios de participação política, tão importantes para a base das
sociedades democráticas. Canais de reivindicação e de protesto, orga-
nização social e política na defesa de seus interesses como parte de
uma categoria profissional ou de uma comunidade, escolha esclarecida
dos representantes políticos nos processos eleitorais e monitoramento
posterior de seus mandatos são recursos dos processos políticos que,
muitas vezes, estão inacessíveis à grande parte da população, por falta
de informação, de oportunidade ou de recursos materiais.

Um dos meios de superação da exclusão, seja ela econômica, social


ou política, é a educação. Segundo o ex-presidente do Instituto Nacio-
nal de Pesquisas Educacionais (INEP):
a luta por uma educação pública e igualitária deve estar na pauta
das lutas políticas nos mesmos níveis das demais lutas sociais e

158 Temas sociais e educacionais contemporâneos


econômicas, como a reforma agrária, a luta por moradia, a defe-
sa do setor público e a luta por salários dignos. Se não romper-
mos com a atual situação educacional – e esse rompimento só
será possível por meio de uma ampla luta social – jamais cons-
truiremos bases realmente sólidas para superarmos nossa desi-
gualdade (HELENE, 2011).

A escola, para ser democrática e inclusiva, deve ser, mais do que um


espaço de reprodução social, um local de transformação social, de for-
mação de cidadãos críticos que sejam capazes de encarar o desafio de
superar, em suas práticas cotidianas, o preconceito e a discriminação,
contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Uma das vias para alcançar tal objetivo é a gestão democrática, fun-
damental para aplicar na prática escolar os princípios previstos pela
Site
legislação, como a educação gratuita e de qualidade para todos, a parti-
Para conhecer melhor
cipação ativa da comunidade escolar nas decisões do cotidiano escolar
os Conselhos Escolares,
e na elaboração do Projeto Político Pedagógico, no sentido de construir acesse o site Todos pela
educação.
uma escola cada vez mais inclusiva. Um instrumento importante para
Disponível em: https://
a construção de uma gestão escolar democrática são os Conselhos Es-
todospelaeducacao.org.br/
colares, órgãos colegiados compostos de representantes da comunida- noticias/perguntas-e-respostas-
como-funcionam-os-conselhos-
de escolar e local que debatem, monitoram e decidem sobre aspectos
escolares/. Acesso em: 13 abr. 2021.
político-pedagógicos, administrativos e financeiros das escolas.

5.3 Diversidade cultural: multiculturalismo


e interculturalismo
Vídeo
A diversidade está presente nas relações sociais que envolvem es-
tratificação social, cultura, identidade, gênero etc. A diversidade cultu-
ral, em específico, abrange as variações das práticas e dos pixelheadphoto
digitalskillet/Shutterstock
comportamentos humanos, ultrapassando os simples elementos inte-
grantes da cultura de determinado grupo
social.

A diversidade está presente nas relações sociais que envolvem


estratificação social, cultura, identidade, gênero etc.

Respeito à diversidade na sociedade 159


As variações culturais, por sua vez, relacionam-se à construção das
diferentes características que compõem as identidades sociais. Se-
gundo Giddens (2005, p. 44, grifo do original), identidade social:
refere-se às características que são atribuídas a um indivíduo
pelos outros. Elas podem ser vistas como marcadores que in-
dicam quem, em um sentido básico, essa pessoa é. Ao mesmo
tempo, esses marcadores posicionam essa pessoa em relação a
outros indivíduos que compartilham dos mesmos atributos.

A identidade social pode ser identificada por características do sujei-


to, e refletir as multiplicidades e as pluralidades sociais:
são exemplos de identidade social o estudante, a mãe, o advo-
gado, o católico, o sem-teto, o asiático, o disléxico, o casado, e
assim por diante. Muitos indivíduos têm identidades sociais que
compreendem mais do que um atributo. Uma pessoa poderia
ser simultaneamente uma mãe, uma engenheira, muçulmana
e uma vereadora [...]. Múltiplas identidades sociais refletem as
múltiplas dimensões das vidas das pessoas [...] portanto, envol-
vem uma dimensão coletiva. Elas marcam as formas pelas quais
os indivíduos são “o mesmo” que os outros. As identidades com-
partilhadas – baseadas em um conjunto de objetivos comuns, de
valores ou de experiências – podem formar uma base importan-
te para os movimentos sociais (GIDDENS, 2005, p. 44).

Reconhecer a diversidade cultural e as diferentes identidades so-


ciais não torna as relações sociais automaticamente harmônicas. Todo
dia podemos identificar na sociedade diversos conflitos que perpas-
sam as relações sociais, várias situações de desigualdade, preconcei-
to, discriminação e violência contra o “diferente”, demonstrando que
Saiba mais
ainda há um longo caminho a ser percorrido para que nos aproprie-
Você sabe o que é etnocentris-
mos verdadeiramente do significado social do respeito à diversidade e
mo? Trata-se de uma visão de
mundo segundo a qual nosso superemos a perspectiva etnocêntrica. Segundo Rocha (1988, p. 124),
próprio grupo é considerado De um lado conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo,
o centro de todas as coisas, e
que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece
nossos valores, características
culturais, identidade social, problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa
nossas definições de certo e igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma,
errado etc. são tomados como a empresta à vida significados em comum e procede, por muitas
única referência, filtrando toda maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos depara-
a nossa visão sobre os outros.
mos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem
É uma dificuldade extrema em
pensar com base na diferença sequer faz coisas como as nossas, ou quando as faz é de forma
e a conviver com o que não é tal que não reconhecemos como possíveis. E, [...] este “outro”
idêntico a nós. também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no
mundo e, ainda que diferente, também existe.

160 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A compreensão do conceito de etnocentrismo é fundamental para a
construção de uma postura tolerante em relação às diferenças, e pode ser
a base para os debates sobre diversidade étnica e de gênero na escola.

É importante ressaltar que tais debates, assim como os que abran-


gem as diversidades de orientações sexuais, de crenças e de religião,
político-ideológica etc., devem ser feitos com base em uma sólida fun-
damentação teórica, evitando preconceitos ou opiniões pessoais do
professor, sob pena de, ao invés de formar para a tolerância e o respei-
to às diferenças, formar para o preconceito e a discriminação.

Para que isso ocorra, é essencial reconhecer o outro, em sua dife-


rença, como sujeito. Esse reconhecimento passa por uma relação que
pode ser compreendida por meio do conceito de alteridade.

A alteridade é o processo no qual construímos nossa própria identi-


dade em relação a um outro diferente de nós. Ou seja, o “eu” só existe
em contato com o “outro”, e nesse diálogo, a diversidade e as caracte-
rísticas do outro são valorizadas e reconhecidas como tão válidas quan-
tos as minhas. Para compreender o outro, é preciso fazer o movimento
de me colocar no lugar dele, de ver o mundo com os seus olhos, de
pensar a vida com a sua lógica.

No campo da filosofia, alteridade é o oposto de identidade, já na


antropologia esse conceito assume o papel de pilar central dessa
ciência, que se debruça justamente no estudo do “outro”, de outras
culturas. A alteridade, portanto, é a relação ideal a ser estabelecida
quando a proposta é conhecer e respeitar o que é diverso de nós.
Não significa que nos transformaremos no outro, não é esse o objeti-
vo. Manteremos nossa identidade e nossas características, mas com-
preenderemos o diferente e seus atributos. Desse modo, não teremos
mais medo ou estranheza em relação ao outro, podendo tratá-lo com
tolerância, respeito e dignidade, como tratamos a nós mesmos e gos-
taríamos de ser tratados pelo outro.

Educar na diversidade, e para a diversidade, é dar novos significa-


dos ao outro, aprendendo a nos relacionar com ele harmoniosamen-
te, sem julgamentos prévios, sem discriminação, sem violência. Para
tanto, o educador deve assumir uma postura democrática, com visão
transitiva, para não se fechar em si. Na prática pedagógica, deve haver
um projeto que priorize as especificidades e os interesses individuais
e coletivos dos discentes. Nessa perspectiva, estabelece-se um novo

Respeito à diversidade na sociedade 161


contato pedagógico, o qual pode direcionar o investimento ao aluno,
valorizando o que ele sabe, as suas potencialidades e o que ele ainda
não domina, para, dessa forma, poder incluí-lo efetivamente no proces-
so de ensino-aprendizagem.

No contexto dos debates sobre diversidade, há um conjunto de


ideias que tem servido como referência, chamado de multiculturalismo,
cuja ideia principal é a da necessidade de se garantir o reconhecimen-
to das diferenças que existem entre as pessoas e entre os grupos so-
ciais, bem como assegurar a representação das culturas minoritárias
e suas especificidades.

A concepção de multiculturalismo, apesar de se basear, em princí-


pio, na noção de que nenhuma forma cultural é inferior ou superior
em relação às outras, mas apenas diferente, não constitui uma teoria
homogênea, e conta com diferentes linhas teóricas. Hall (2003) descre-
ve as principais tendências do multiculturalismo e suas características
principais, que são apresentadas no quadro a seguir.

Quadro 1
Tendências do multiculturalismo

Tendência Propostas
Conservadora Assimilação da diferença às tradições e aos costumes da maioria.
Integração dos diferentes grupos culturais à sociedade majori-
Liberal
tária.
Reconhecimento público da diversidade dos indivíduos determi-
Comercial nando a resolução das diferenças na esfera privada, sem redis-
tribuição de poder ou de recursos.
Administração das diferenças culturais das minorias visando aos
Corporativa
interesses do centro.
Revelação dos mecanismos de poder, do privilégio e da hierar-
Crítica
quia das opressões visando construir movimentos de resistência.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Hall, 2003, p. 53.

Podemos perceber, por meio dos elementos apresentados nesse


quadro, que várias das tendências buscam impor os padrões culturais
da maioria às minorias, mesmo que por meio de processos ditos “har-
mônicos”, como é o caso das tendências conservadora e liberal; ou ad-
ministrar as diferenças de modo a defender interesses corporativos,
ou, ainda, dar publicidade ao reconhecimento das diferenças, mas não
mover um dedo para amenizá-las de algum modo, redistribuindo re-
cursos ou poder de maneira mais justa e equânime. A única tendência

162 Temas sociais e educacionais contemporâneos


que pretende desconstruir as bases que reproduzem as diferenças e os
privilégios é a linha crítica.

A visão do multiculturalismo crítico tem inspirado, nas últimas dé-


cadas, a defesa de que os currículos escolares devem privilegiar um
ensino mais equilibrado e plural dos elementos da história, da cultura
e da sociedade, sob uma perspectiva que apresente claramente a di-
versidade étnico-racial do passado e do presente (BALL; MZAMANE;
BERKOVITZ, 1998), e destaque as ações de grupos minoritários, ex-
pondo os processos de dominação dos grupos majoritários sobre eles
nas sociedades e suas consequências para as estruturas sociais atuais
(BRYM, 2006).

Tal visão já estava expressa nos PCN (BRASIL, 1998), sobretudo no


tema da Pluralidade Cultural, integrante dos eixos transversais pro-
postos pelo documento, e está presente também no contexto dos
Temas Contemporâneos Transversais, propostos pela BNCC, no tema
Multiculturalismo.

Outra corrente teórica bastante debatida no cenário contemporâ-


neo é o interculturalismo, conceito ainda em construção que busca
promover a interação de culturas diversas e, mais que isso, reconhe-
cer e compreender a própria cultura, no sentido de enriquecer-se com
as contribuições que o diálogo com outras culturas pode fornecer. Se-
gundo Vieira (2001, p. 118):
um contato superficial com o tema pode sugerir que intercul-
tura busca harmonizar a convivência entre diferentes culturas,
excluindo ou minimizando conflitos, na medida em que uma
cultura tolere a outra. Mas não se pretende [na realidade] de-
senvolver tolerância. Tolerar significa suportar, aguentar, e essa
não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de uma
cultura sobre a outra. O que se pretende [com a intercultura] é
desenvolver relacionamentos cooperativos entre as diferentes
culturas, em que sejam mantidas – e respeitadas – as identidades
culturais. A intercultura não busca a hegemonia, mas o reconhe-
cimento da diversidade. Os conflitos permanecem, inclusive em
nome da democracia, mas devem existir em condição de igual-
dade, em que as diferenças não se reflitam em preconceitos e
discriminações.

Sob a perspectiva intercultural, a escola deve formar não só para o


reconhecimento do outro e de suas diferenças, mas também para uma
verdadeira comunicação com o outro na condição de sujeito, de igual

Respeito à diversidade na sociedade 163


para igual, respeitando a legitimidade e a riqueza de todas as culturas.
Nesse sentido, podemos ver algumas semelhanças mais gerais entre a
tendência intercultural e o multiculturalismo. Alguns autores, porém,
diferenciam bastante as duas perspectivas, e tais diferenças podem in-
fluenciar as propostas educativas.

A primeira diferença estaria na intencionalidade ou na não inten-


cionalidade que impulsiona as relações entre diferentes grupos. Na
perspectiva multicultural, há o reconhecimento das diferenças étnicas,
culturais, religiosas, de gênero etc. entre os indivíduos e os grupos que
convivem em um mesmo contexto, como o escolar, e o educador pre-
cisa adaptar sua proposta educativa e suas práticas pedagógicas com
base nesse fato, procurando reduzir os conflitos. Já na perspectiva in-
tercultural, o docente formula intencionalmente um projeto educativo
para construir relações entre os indivíduos e os grupos diferentes no
contexto escolar, ou seja, a proposta é de transformação e de diálogo,
e não apenas de coexistência entre diferentes.

Uma outra diferença entre as duas perspectivas está na compreen-


são das relações entre culturas sob o aspecto das práticas educativas
no cotidiano escolar. Na concepção multicultural, as diferentes culturas
são objetos de ensino, ou seja, conteúdos a serem estudados. Na con-
cepção intercultural, por outro lado, as culturas são consideradas como
as visões de mundo, os modos de interagir com a realidade próprios a
cada grupo, e que, ao se relacionarem, resultam em diálogos e trocas
produtivas e transformadoras, ampliando os horizontes de todos, alar-
gando a interpretação da realidade para além da visão específica de
cada grupo, proporcionando a compreensão de outros pontos de vista,
de outros nexos lógicos por meio do olhar do outro.

Por fim, podemos identificar ainda uma terceira diferença importan-


te entre as perspectivas multicultural e intercultural no plano educativo,
relacionada à questão dos sujeitos. Uma proposta educativa intercul-
tural compreende, ao contrário da proposta multicultural, os sujeitos
concretos das relações; ou seja, a ênfase está nas pessoas provenientes
de diferentes culturas que se relacionam, e não nas diferentes culturas,
de modo abstrato, já que as culturas só existem nas ações dos sujeitos.

Uma educação intercultural é, portanto, uma pedagogia do encon-


tro, expressa em experiências complexas e transformadoras entre os
sujeitos, os quais transitam entre o conflito e o acolhimento, e repre-

164 Temas sociais e educacionais contemporâneos


sentam a oportunidade de crescimento da cultura pessoal de cada um
e da construção de relações sociais mais livres e solidárias.

Para construir uma proposta educativa intercultural, é preciso, de


acordo com Antonio Nanni (1998), proceder algumas transformações
no sistema escolar, como viabilizar, na prática, o princípio da igual-
dade de oportunidades, deixando de tratar quaisquer grupos como
inferiores, e oportunizando o protagonismo de todos na elaboração,
na escolha e na aplicação das estratégias educativas, superando a na-
tureza monocultural de conteúdos disciplinares e de metodologias.

O autor cita também a necessidade de reelaborar os livros didáti-


cos, de adotar recursos, técnicas e instrumentos midiáticos e digitais,
e de estabelecer a perspectiva interdisciplinar no ensino. Para ele, os
materiais didáticos costumam centrar-se na cultura hegemônica, dan-
do pouco espaço à diversidade de interpretações da realidade e dife-
rentes modelos de comportamento e valores, acabando por estimular Livro
o preconceito e a discriminação às culturas não hegemônicas. Para aprofundar os
conhecimentos sobre
Nanni (1998) cita, ainda, a formação de professores como pilar os Direitos Humanos na
sociedade contempo-
essencial da educação intercultural, sob a perspectiva de mudança rânea, leia a obra Uma
de mentalidade e de desconstrução do caráter monocultural das concepção multicultural
dos Direitos Humanos.
propostas de ensino tradicionais e da superação da perspectiva et-
SANTOS, B. S. São Paulo: Lua
nocêntrica que, muitas vezes, é inadvertidamente adotada pelos
Nova, 1997.
educadores simplesmente pelo hábito de reproduzir posturas con-
solidadas no meio escolar.

5.3.1 Formação para a cidadania e para a inclusão


Quando falamos em cidadania, podemos pensar em direitos e
deveres em determinada sociedade, ou no direito ao voto. Mas ela
não se restringe ao direito de eleger os representantes políticos,
nem mesmo se limita aos direitos políticos. A cidadania é estreita- Lightspring/Shutterstock

mente ligada aos direitos humanos, que pressupõem


a garantia de igualdade e de liberdade, e o reco-
nhecimento e o respeito pelas diversidades so-
cial, cultural e econômica.

São direitos do cidadão o acesso às condições


básicas de uma vida digna, à diversidade, à saúde,

Respeito à diversidade na sociedade 165


à educação, à livre expressão, à moradia digna, ao trabalho, ao voto,
entre outros. E para o exercício da cidadania plena, tais direitos de-
vem ser traduzidos por políticas públicas que lhes atribuam viabilidade
prática. De nada adianta prever tais direitos e não os viabilizar na vida
cotidiana das pessoas.

Os chamados deveres do cidadão, estabelecidos por lei, também fa-


zem parte do que se define como cidadania. Entram nessa lista o dever
de pagar impostos, de vacinar os filhos e de matriculá-los na escola, de
obedecer às leis, aos decretos e a outras regras instituídas no território
nacional, no estado ou no município etc.

É preciso levar em conta, ainda, que o direito coletivo, social ou


comunitário se impõe ao direito individual, quando o exercício deste
pode prejudicar a coletividade. Um exemplo disso é o contexto de uma
pandemia: nessa situação, os direitos coletivos relativos à saúde sani-
tária e à proteção da vida de todos estão acima de eventuais direitos
individuais, cujo exercício possa, por exemplo, contaminar outras pes-
soas, ou prejudicar a imunidade coletiva da população.

Em situações de epidemias, catástrofes naturais, guerras etc., a le-


gislação prevê restrições aos direitos individuais em nome dos direitos
coletivos, mas é preciso tomar cuidado quando tais recursos legais são
usados de modo equivocado, por motivações políticas, interesses ideo-
lógicos, econômicos, ou ligados a ações autoritárias ou discriminatórias.

No Brasil, foi a partir da Constituição Federal de 1988, denomina-


da Constituição Cidadã, que se passou a afirmar fortemente no país a
necessidade de garantia dos direitos humanos. Desde então, até re-
centemente, o Estado brasileiro vinha realizando um esforço sistemáti-
co de defesa e de proteção dos direitos fundamentais e, respondendo
em muitas ocasiões às demandas de diferentes movimentos sociais,
ampliando progressivamente a inclusão de novos temas em suas preo-
cupações, o que resultou em um significativo conjunto de normas e
de políticas públicas calcadas na proteção e na promoção dos direitos
humanos, o qual, por sua vez, impactou positivamente a construção da
noção de cidadania no país.

Por outro lado, apesar de muitos setores da sociedade demonstra-


rem novas sensibilidades social, ética, política e cultural em relação aos
direitos humanos, são comuns as violações sistemáticas de tais direitos.

166 Temas sociais e educacionais contemporâneos


A impunidade, as várias formas de violência, a desigualdade social,
o preconceito e as discriminações, além da fragilidade da aplicação prá-
tica dos direitos juridicamente garantidos, estão presentes na vida de
grande parte da população. Somado a tal contexto estrutural, assis-
timos desde 2016, sobretudo a partir de 2019, a uma conjuntura de
desmantelamento sistemático dos dispositivos de defesa dos direitos
humanos no país, com constantes ataques às conquistas relativas e às
políticas públicas de Estado voltadas para sua promoção.

Parece claro, portanto, que o arcabouço jurídico relacionado aos di-


reitos humanos é insuficiente se não contar com uma internalização
desses direitos no imaginário social, nas mentalidades individuais e co-
letivas, de modo sistemático e consistente, a fim de que, a despeito de
ataques e de perdas conjunturais, seja mantida uma cultura sólida dos
direitos humanos e do respeito à diversidade em nossa sociedade. Sob
essa perspectiva, os processos educacionais são essenciais.

Uma educação inclusiva passa por práticas inclusivas na escola que


vão além de apenas inserir os alunos no contexto escolar, integrando-
-os ao grupo, elas consideram suas diferenças e necessidades específi-
cas, garantindo acesso, permanência e participação de todos nas salas
de aula regulares.

Sob a perspectiva inclusiva, a escola não precisa apenas ser um espa-


ço adaptado às necessidades específicas dos alunos, como no caso das
adaptações que facilitam o acesso de deficientes físicos, ou os recursos
didáticos que favorecem a aprendizagem de alunos com limitações cog-
nitivas ou deficiências intelectuais, como as tecnologias assistivas.

A escola deve, também, ofertar educação de qualidade e promover


o sucesso e a permanência de todos os alunos, independentemente de
suas especificidades, reconhecendo-os como sujeitos de direito igual,
capazes de protagonizar seu próprio caminho na construção dos co-
nhecimentos, dos valores e de sua trajetória.

Para isso, os educadores precisam desenvolver cotidianamente em


seus alunos: o senso de pertencimento à comunidade escolar; a co-
laboração e a cooperação, com o desenvolvimento de estratégias de
apoio mútuo, como a aprendizagem por pares, a monitoria e a apren-
dizagem em equipe; a flexibilidade de aprendizagem, de acordo com
o estilo e o ritmo individual; a aprendizagem autônoma, por meio de
pesquisas; e a aprendizagem a partir de problemas, com estratégias

Respeito à diversidade na sociedade 167


baseadas na mediação dos percursos autônomos de aprendizagem e
na aprendizagem motivada por interesse.

Além disso, os professores precisam desenvolver flexibilidade e


variedade de métodos, de recursos e de instrumentos de avaliação,
escapando dos processos de avaliação padronizados e construindo no-
vas formas de avaliar o desenvolvimento dos alunos, respeitando suas
especificidades, limitações e progressos próprios, criando verdadeiras
oportunidades de crescimento para todos e promovendo uma verda-
deira inclusão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto de profundas desigualdades socioeconômicas presentes
na sociedade brasileira, a garantia de igualdade perante as leis não as-
segura, por si só, a cidadania plena. É preciso, também, que se garanta a
todos, sem distinção de nenhuma espécie, o acesso aos direitos básicos
que proporcionam uma vida digna. Além disso, é necessário reconhecer e
respeitar a diversidade dos indivíduos e dos grupos que compõem a po-
pulação, valorizando suas especificidades e legitimando a expressão das
identidades sociais e culturais diversas.
Nesse sentido, o papel da escola é crucial, pois é nela que se pode
desenvolver e aplicar um projeto educativo o qual considere os pilares
dos direitos humanos, da formação para a cidadania e do respeito à
diversidade.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Escolha um dos aspectos abordados na Declaração Universal dos
Direitos Humanos e formule exemplos práticos de sua aplicação (ou
não) na sociedade brasileira.

2. De que modo é possível explicar o grande aumento da violência


policial contra jovens moradores da periferia das cidades brasileiras,
apontado pelo relatório Direitos Humanos nas Américas: retrospectiva
2019, da Anistia Internacional?

3. Como você explicaria aos seus alunos o mito da democracia racial?

4. O que é etnocentrismo?

168 Temas sociais e educacionais contemporâneos


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fome-em-2018-diz-pesquisador.ghtml. Acesso: 12 abr. 2021.

170 Temas sociais e educacionais contemporâneos


GABARITO
1 Educação ambiental e consumo responsável
1. Tanto o preservacionismo quanto o conservacionismo propõem a não
destruição ou degradação do meio ambiente; entretanto, o primeiro
defende a preservação ambiental integral por meio, por exemplo, de
áreas ambientais protegidas; já o segundo foca a exploração racional
do meio ambiente voltada ao desenvolvimento sustentável.

2. O termo é “desenvolvimento sustentável”.

3. Na conferência de 2019, o Brasil negou-se a se comprometer com


a não emissão de carbono, contrariando seu posicionamento em
conferências anteriores, em que sempre foi signatário de documentos
que firmavam o comprometimento com a redução da emissão de
carbono e outros compromissos no sentido de evitar a degradação
ambiental.

4. Lowsumerism é uma tendência de consumo voltada para a conservação


do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, a qual envolve
escolhas de consumo mais equilibradas e defende o menor consumo,
mas com mais qualidade, bem como que o consumo seja realizado
apenas quando não há alternativas à compra. Exemplos são o
transporte compartilhado e as feiras de trocas de objetos e roupas.

2 Educação financeira: um aprendizado para a vida


1. Cada sistema econômico tem sua racionalidade própria, que
corresponde às características e ao tempo histórico no qual está
inserido, portanto não é viável aplicar a racionalidade econômica de
nossa sociedade às outras.

2. As relações de trabalho no sistema capitalista se dão entre os


proprietários dos meios de produção, ou seja, terras, fábricas,
máquinas etc., e os trabalhadores que vendem sua força de trabalho
em troca de salário.

3. A afirmação de Stiglitz refere-se à estrutura extremamente desigual


que o sistema capitalista vem imprimindo às sociedades que o adotam
como base econômica e sintetiza a crítica que esse autor propõe a
tal aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas na

Gabarito 171
contemporaneidade que, para ele, constitui-se na destruição das
condições de existência do próprio capitalismo enquanto sistema.
A frase revela a perspectiva de que a meritocracia não faz sentido como
valor a ser cultivado, não é um conceito legítimo, pois a ideia de que a
sociedade valoriza o mérito da inteligência, ou do “trabalho duro”, da
dedicação, e o recompensa com ganhos financeiros, com mobilidade
social e com acesso a bens de consumo e boas condições de vida não
é verdadeira à luz de pesquisas sobre a realidade econômica e social
dos indivíduos em relação a suas origens. Tais pesquisas mostram que,
na verdade, a maioria absoluta dos indivíduos que se originam de lares
pobres, por mais inteligentes, capacitados ou esforçados que sejam,
têm uma vida de pobreza, com condições precárias de vida e posição
social baixa, e, por outro lado, os indivíduos advindos de famílias
ricas, por menos mérito que tenham, por menores que sejam suas
capacidades, inteligência, esforço ou dedicação durante a vida, viverão
de todo modo na riqueza, sem enfrentar dificuldades financeiras, e
manterão boas condições de vida e status social alto.

4. O empreendedorismo social pode ser um caminho para o futuro dos


estudantes e pode ser abordado, sobretudo, por meio de exemplos
bem-sucedidos que possam inspirar os alunos.

5. A escola tem um papel essencial na formação de hábitos financeiros


positivos, tanto sob o ponto de vista do consumo quanto da boa gestão
financeira, no sentido de tornar os estudantes capazes de, mais tarde,
controlar seus gastos e poupar para atingir suas metas desejadas.
A escola é muito relevante também na dimensão ética da educação
financeira e fiscal.

3 Educação científica e inclusão digital


1. Para explicar as diferenças entre senso comum e conhecimento
científico você deverá apontar o conhecimento exclusivamente
empírico que embasa o senso comum, sua característica de observação
individual não generalizável e suas conclusões não comprovadas
experimentalmente. Por outro lado, deverá explicar o rigor presente
na observação científica, as hipóteses levantadas com base em
evidências, os experimentos repetidos e controlados e as conclusões
científicas guiadas racionalmente pela análise dos resultados obtidos.

2. Você deverá relatar que é preciso demonstrar que a postagem se


baseia na identificação de uma suposta correlação e a transforma em
causalidade, ou seja, não é porque ambas as variáveis aumentaram

172 Temas sociais e educacionais contemporâneos


em um mesmo período de tempo – aumento da vacinação de crianças
vacinadas e aumento de casos de transtorno do espectro autista – que
a primeira é necessariamente causa da segunda. Mesmo a correlação
pode ser questionada. Você poderá argumentar que infinitas outras
variáveis podem também ter aumentado no mesmo período, como
o consumo de determinados alimentos, a quantidade de horas
em frente à TV, ou quaisquer outras, e isso também não significaria
necessariamente uma relação de causalidade.

3. Em ciências humanas podemos dizer que, apesar de poderem ser


usadas observações sistemáticas, análises estatísticas e experimentos,
ao pesquisador não basta descrever seu objeto de estudo ou relacioná-
lo a outros objetos, é necessário interpretá-lo, compreendê-lo e
analisar seu sentido nos contextos social, histórico, político, cultural,
econômico, entre outros. É preciso considerar que, nos experimentos
das ciências naturais, na maior parte das vezes é possível controlar
as variáveis que interferem no fenômeno estudado. Já no estudo de
fenômenos sociais, suscetíveis a inúmeras variáveis, é inviável controlar
todas elas, e algumas vezes seria antiético controlá-las, pois interviria
na vida das pessoas.

4. A condição é que haja um controle social que oriente o desenvolvimento


sob uma racionalidade democrática, considerando que a tecnologia
está a serviço da humanidade e não o contrário.

5. Você pode assinalar, por exemplo, os impactos positivos do maior


acesso à informação e da possibilidade do compartilhamento de
conhecimentos e de sua produção coletiva. Como impactos negativos,
pode apontar a dificuldade de verificar e julgar o que são informações e
conhecimentos confiáveis e a tendência de substituir o conhecimento
científico pelo senso comum.

6.
a) O tipo de conhecimento que embasa a fala do médico virologista
é o científico.
b) O tipo de conhecimento que embasa a postagem sobre a
ineficácia da vacinação à qual o médico se referiu é o do senso
comum.
c) O termo “pandemia de fake news“ usado pelo médico faz uma
analogia com a pandemia da Covid-19. Ele afirma que, da mesma
forma que o vírus que causa a doença está se espalhando
rapidamente e contaminando muita gente, causando, muitas

Gabarito 173
vezes, sintomas graves e até a morte, também as notícias falsas
estão se espalhando com velocidade e provocando muitos
prejuízos às pessoas e à sociedade como um todo.

4 Promoção da saúde na escola


1. O modelo Meu prato parece mais fácil de ser seguido, pois mostra a
proporção de cada tipo de alimento diretamente no prato que usamos
para as refeições, enquanto a Pirâmide Alimentar dispõe os alimentos
de modo mais descritivo e distante da prática. O Meu prato indica uma
porção maior de vegetais por refeição do que a Pirâmide, que mantém
a indicação da pirâmide alimentar tradicional e indica que o maior
consumo deve ser de carboidratos, isto é, pães, massas, tubérculos
etc. No entanto, ambos os modelos propõem uma dieta balanceada,
variada, rica em nutrientes e saudável. Para a alimentação escolar, as
duas têm sua serventia; a Pirâmide pode ser usada no planejamento
mais amplo do cardápio escolar, e o Meu prato pode ser usado para
guiar as porções servidas pelas merendeiras.

2. As ações, tanto de docentes quanto da equipe gestora, podem ser


de oferta e orientação de escolha de alimentos saudáveis, passando
pelas práticas regulares de exercícios físicos na escola, pela orientação
sobre estilos de vida saudáveis, pelo ensino da prevenção de doenças
e riscos, até o apoio socioemocional aos alunos e em sua integração à
comunidade escolar.

3. Um desses estados é São Paulo, por meio da Lei 17.252 de 2020.

5 Respeito à diversidade na sociedade


1. Espera-se que o estudante consiga demonstrar como cada direito é
respeitado ou não de modo concreto na sociedade, por meio da análise
das relações sociais, de trabalho, de dados oficiais etc. Se o direito
escolhido for, por exemplo, “O direito ao trabalho com remuneração
e condições justas, que lhe assegure, assim como à sua família, uma
existência compatível com a dignidade humana”, a resposta precisa
indicar que muitas vezes esse direito não é respeitado, pois o salário
mínimo não é suficiente para sustentar dignamente uma família
média, com todas as necessidades básicas de alimentação, moradia,
vestimenta, lazer etc.

2. O relatório considera que o país retrocedeu à situação anterior à


Constituição Federal de 1988 e aponta o discurso abertamente contrário

174 Temas sociais e educacionais contemporâneos


aos direitos humanos promovido por várias autoridades brasileiras,
que estimula sua violação cotidiana pelos mais diversos grupos sociais.
Especialistas em segurança pública indicam os mecanismos para
prevenir a violência policial: implementar, como prioridade das polícias,
a prevenção e a investigação dos crimes contra a vida; controlar as
armas de fogo de maneira duradoura, diminuindo sua disponibilidade;
desenvolver amplos programas de prevenção social da violência
voltados para os mais vulneráveis à violência; reduzir drasticamente o
encarceramento e humanizar as prisões; adotar políticas de drogas que
protejam os que são atingidos pela violência sistêmica desse tipo de
mercado. Estas são estratégias racionais e plausíveis.

3. O estudante precisa demonstrar de que modo e com quais exemplos


concretos de exclusão e discriminação ele pode mostrar aos alunos
que, devido à estrutura desigual e ao histórico de exclusão social,
econômica e de representatividade política e cultural, as pessoas
negras estão predominantemente impedidas de ter acesso a posições
sociais e profissionais mais altas na sociedade e integram a parcela
da população mais pobre e marginalizada, sem poder usufruir dos
direitos a uma vida digna e sem acesso à plena cidadania.

4. Etnocentrismo é considerar as próprias crenças, valores e práticas


como as únicas corretas, considerando “estranhas” ou “erradas” as
crenças, valores e práticas de outros grupos.

Gabarito 175
Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-65-5821-019-1

59844 9 786558 210191

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