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Prefácio

Da Malícia de Heródoto é um texto intrigante. Nele Plutarco toma como objeto de


reflexão e análise as Histórias de Heródoto, a quem acusa de kakoétheia, termo grego
geralmente traduzido em português por “malignidade” ou por “malícia”, sendo esta a opção
adotada por Maria Aparecida de Oliveira Silva em sua tradução. A intenção de Plutarco é provar
que Heródoto é um historiador kakoethés, “maligno”, “malicioso”. Dada a polissemia desses
adjetivos em português, vale demarcar os sentidos que estão em jogo: Heródoto é “maligno”
porque é maldoso, é “malicioso” porque age com maldade e também com esperteza; em suma,
Heródoto, segundo Plutarco, age de má-fé.
Quando Plutarco nasceu na cidade grega de Queroneia, na região da Beócia, por volta dos
anos 40-45 d.C., já fazia um século que Heródoto era conhecido como o “pai da história”, epíteto
cunhado por Cícero no texto Sobre as Leis (1.1.5), na passagem em que discorre a respeito das
diferenças entre o texto do historiador e o do poeta, o primeiro devendo ter compromisso com a
verdade, o segundo com o deleite. Contudo, Cícero observa que mesmo Heródoto não se furta de
acolher em seus relatos inúmeras fábulas, inúmeras ficções.
A verdade dos fatos sempre inquietou os historiadores antigos. Heródoto, entretanto,
nunca se apresentou como o dono da verdade. Em vez disso, preferiu documentar diferentes
versões dos fatos, não deixando, porém, de fazer ressalvas e de, sempre que possível, posicionar-
se a favor de uma delas. Já os historiadores que o sucederam assumem o compromisso de dizer a
verdade e, ao mesmo tempo, põem-se a revisar os relatos uns dos outros. Um bom panorama
dessa prática nos dá Flávio Josefo, que no século I d.C. escreveu em Contra Ápion (1.3):
Seria supérfluo eu tentar ensinar, aos que sabem mais que eu, o quanto Helânico está
em desacordo com Acusilau acerca das genealogias, o tanto de correções que Acusilau
faz a Hesíodo, ou de que modo Éforo demonstra que Helânico diz mentiras na maior
parte de sua obra, e o mesmo faz Timeu em relação a Éforo, e os sucessores de Timeu
em relação a ele, e todos eles em relação a Heródoto.
De todos esses escritos que esquadrinhavam defeitos nas Histórias de Heródoto, só
sobreviveu o de Plutarco, apresentado neste volume em tradução acompanhada de notas e de
minucioso estudo.
Mas os antigos eram unânimes em louvar as excelências do estilo de Heródoto. Segundo
Luciano de Samósata (Heródoto ou Étion, 1), já na primeira apresentação pública que Heródoto
teria feito de sua obra durante os jogos Olímpicos, os ouvintes foram tomados de encantamento
como se tivessem ouvido um poema inspirado pelas Musas. Heródoto teria buscado a
notoriedade, apresentando-se em Olímpia “não como espectador, mas como competidor,
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cantando (ᾄδων) as histórias e encantando os presentes, a ponto de os livros dele receberem os


nomes das Musas, sendo elas também nove”.
Note-se um detalhe importante: Luciano diz que Heródoto cantava as histórias. Tal
performance pressupõe para o texto de Heródoto uma qualidade poética que remete aos poemas
épicos. Essa aproximação entre Homero e Heródoto já tinha sido feita, no século I a.C., por
Dionísio de Halicarnasso, historiador e também professor de retórica. No capítulo 3 do tratado
Sobre o Arranjo das Palavras, Dionísio considera o estilo de Heródoto modelar, como o de
Homero. Para ele, o fascínio de um texto, em versos ou em prosa, dependia não da seleção das
palavras mas da bela harmonia resultante do arranjo agradável e magnífico das palavras. Ele
discorda de que o prazer do texto de Heródoto fosse devido ao uso do dialeto jônico. Para provar
sua teoria, reescreve em ático o episódio de Candaules, mostrando que “o fascínio do estilo
estava não na beleza das palavras, mas na combinação delas”.
Luciano também enaltece o estilo de Heródoto e lamenta não conseguir imitar nem ao
menos uma só de suas inúmeras qualidades, dentre as quais destaca “a beleza ou a harmonia dos
enunciados, a desenvoltura própria do dialeto jônico, e a magnificência das ideias”. Mas nem por
isso deixa de condenar Heródoto, nas Histórias Verdadeiras (2, 31), a viver na ilha dos
criminosos, sofrendo os piores castigos em companhia de todos os que ao longo da vida tinham
proferido alguma mentira ou que não tinham escrito a verdade. Homero, ao contrário, estava
instalado na ilha dos Venturosos (2.15), pois no entender de Luciano (Como se Deve Escrever a
História, 8) a mentira era inerente à poesia, e o poeta, ao contrário do historiador, dispunha da
mais pura liberdade para compor qualquer ficção.
Em Da Malícia de Heródoto, Plutarco dispara ataques contra Heródoto, acusando-o de
relatar mentiras. Mas esses ataques, que à primeira vista alvejam o conteúdo das Histórias,
acabam por atingir também suas tão louvadas qualidades estilísticas.
Vejamos como se dá essa ampliação do ataque.
Plutarco reconhece a Heródoto o mérito de compor em estilo agradável. Mas em suas
palavras há sempre ironia, como quando se refere a ele como “o gracioso historiador” (869D), ou
então os elogios se fazem acompanhar de alguma censura, como se vê no último parágrafo do
texto:
Esse homem é um escritor de mão cheia e seu texto é agradável e há graça, força e
frescor em suas narrativas. Mas o que ele narrou foi uma fábula, como se fosse um aedo

(ἀοιδός), respaldado não no conhecimento rigoroso, mas na melodia e na habilidade.


Incontestavelmente, esses recursos também fascinam e conquistam a aprovação de todo
mundo. (874B)
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O problema é que, aos olhos de Plutarco, esse estilo gracioso não visava tão-somente a
proporcionar prazer e, sim, a ludibriar, pois era usado por Heródoto como disfarce para
escamotear um propósito de difamação e calúnia. Portanto, esse estilo tão admirado seria, de
fato, um recurso desonesto.
Pois é justamente esse o alvo do texto de Plutarco: mostrar que a prestigiada beleza da
expressão de Heródoto é um expediente usado com segundas intenções e está a serviço da
maledicência. Essa denúncia está formulada logo na abertura do proêmio:
A muita gente, Alexandre, também o estilo de Heródoto — simples, fácil e que discorre

sobre os fatos de maneira superficial e ligeira —, ludibria (ἐξηπάτηκε). E a maioria

vivencia isso devido ao caráter (τὸ ἦθος) dele. (854E)

Segundo Plutarco, Heródoto compõe o estilo com vistas a promover a apáte, o ludíbrio, e
o público não se dá conta de que está sendo ludibriado porque se deixa envolver pelo ethos, pelo
caráter do escritor, configurado pela linguagem. Por meio de um estilo simples e fluente,
Heródoto passaria ao leitor/ouvinte a imagem de um historiador franco e sincero quando, na
verdade, suas palavras e torneios de frases são “dolosos” e “tortuosos” (863E). Esse ethos
bonachão que transparece no texto de Heródoto é falso; o verdadeiro é um ethos perverso, mau,
kakón.
Tendo em mente um leitor desavisado, Plutarco aproxima a experiência de leitura do
texto de Heródoto à apanha de rosas: estas ocultam, sob a aparência delicada e suave, espinhos
que ferem os distraídos; do mesmo modo as frases doces e polidas de Heródoto exigem cuidado,
pois são roupagens de calúnia e maledicência.
Em sua avaliação, Heródoto seria “mau-caráter” porque é disfarçadamente maldoso na
elaboração de suas Histórias, posando de bom-moço. O problema está no disfarce, no
fingimento, no pretender aparentar ser o que não se é de fato. O objetivo de Plutarco, então, é
desmascarar Heródoto, revelando as marcas textuais de sua kakoétheia, de sua “malícia”, de sua
“malignidade”, ou — por que não dizer?— de seu mau-caratismo, termo muito bem usado por
Maria Aparecida de Oliveira Silva em seu estudo.
E como o verdadeiro ethos de Heródoto estaria oculto sob essa encantadora roupagem
estilística, a tarefa de Plutarco — apontar as pegadas (ikhne) de um relato mau-caráter (855B)
—se apresenta como um trabalho árduo, comparável ao do caçador que, para agarrar a presa,
segue as pegadas deixadas por ela. Plutarco tem consciência de que a linguagem também é um
campo que se deixa impregnar de pegadas, de marcas de intencionalidade. Por isso acredita que
poderá rastrear o verdadeiro ethos de Heródoto em meio a tantos ocultamentos.
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Já dissemos que a malignidade de Heródoto se concretiza em forma de calúnia. A calúnia


é uma espécie de mentira. Plutarco entende que as narrativas de Heródoto são um amontoado de
mentiras, de diferentes espécies, sobretudo no que tange à atuação dos gregos, em especial
beócios e coríntios, nas guerras contra os persas. Sendo as mentiras tantas e tão diversas,
denunciar todas elas é projeto inviável, pois demandaria a composição de inúmeros livros
(854F). É imprescindível, portanto, restringir a matéria a ser examinada.
Plutarco classifica as mentiras em dois grupos: um é o dos pseúsmata, as mentiras ditas
por engano, por ignorância, resultantes de pseúdesthai, mentir por equivocar-se, enganar-se; o
outro é o grupo dos katapseúsmata, as mentiras acintosas, a falsa acusação, a calúnia,
decorrentes de katapseúdesthai, mentir de propósito, mentir com segundas intenções, caluniar.
Em seu recorte, põe de lado as primeiras e investe contra as outras. Diz ele: “Mas o que ele

mentiu (ἔψευσται), não é nossa matéria. Já as calúnias que ele proferiu (κατέψευσται), apenas
essas estamos examinando.” (870A-B)
O desenvolvimento da obra segue um plano definido: primeiro listar quais são as marcas
que identificam um historiador mau-caráter e, depois, aplicar essa lista ao texto de Heródoto,
identificando nele as marcas correspondentes a cada tipo (855A-B). Segundo o estudo de Maria
Aparecida, essas marcas somam nove e, em linhas gerais, são as seguintes: (i) opção pelo uso de
palavras e expressões constrangedoras; (ii) uso de rodeios visando à inclusão de relato
desnecessário de um infortúnio ou de uma ação descabida; (iii) omissão de falas e ações honestas
e relevantes; (iv) opção pela versão mais desfavorável de um fato; (v) depreciação de ações
louváveis por meio da atribuição de causa insignificante; (vi) redução da grandeza dos feitos
atribuindo-os ao acaso; (vii) dissimulação de calúnias em meio a elogios; (viii) dissimulação de
censuras em meio a elogios, e (ix) anteposição de elogio à censura para conferir credibilidade
aos dois.
Maria Aparecida de Oliveira Silva chama a atenção para o fato de serem nove as marcas,
o que, a seu ver, nada tem de fortuito:
Embora sustente a existência de mais elementos que constituam uma narrativa
maliciosa, Plutarco, curiosamente, encerra sua argumentação na nona marca, fato que
nos remete aos nove livros de Heródoto de Halicarnasso e demonstra o cuidado de
nosso autor na construção de seu discurso, ainda que não utilize argumentos
irrefutáveis e manipule as citações.
Essas nove marcas e as aplicações que Plutarco faz de cada uma ao texto de Heródoto são
exaustivamente examinadas por Maria Aparecida. Seu estudo mostra que Plutarco, no intuito de
encontrar exemplos dessas marcas em Heródoto, também é tendencioso e, muitas vezes, ostenta
a mesma má-intenção, kakoétheia, que ele inflige a Heródoto. Pois Plutarco distorce fatos,
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manipula citações, descontextualizando-as, e com muita frequência deturpa os relatos de


Heródoto.
Essa manipulação das Histórias de Heródoto incomoda, sem dúvida, o leitor moderno,
que inevitavelmente se pergunta: o que teria levado Plutarco a produzir esse texto? A tradição
dos estudos plutarquianos acumula várias tentativas de respostas para essa pergunta e o estudo de
Maria Aparecida traz nova luz para se entender as condições de sua produção. Especialista em
Plutarco, Maria Aparecida cruza dados de Da Malícia de Heródoto com os de outros escritos do
autor e identifica nesse texto um “cunho histórico-identitário”, pois o compreende como um
projeto de defesa da identidade grega e ao mesmo tempo de resistência, por parte de Plutarco, ao
processo de dominação romana. Essa é a tese defendida pela autora em seu trabalho. Ela observa
que a vasta obra literária atribuída a Plutarco foi composta entre os anos 70 e 120 d.C. —
período coincidente com o auge da dominação romana —, e se destinava a públicos diferentes,
um grego e um romano: a este eram destinadas as palestras, proferidas sobretudo em Roma e
registradas em forma de tratados; àquele, as biografias. É de se considerar, segundo a autora, que
boa parte desse público romano não tivesse bom domínio das obras dos antigos gregos, o que
teria possibilitado a Plutarco manipular textos como as Histórias de Heródoto “com o intuito de
apresentar sua idealização do povo grego”. Essa idealização visava a contestar a imagem que, na
época de Plutarco, os romanos cultivavam dos gregos, vistos como um povo sem destreza nos
combates, a quem recomendavam menos frequentação de ginásios e mais dedicação às artes
militares.
Segundo tal linha de raciocínio, Da Malícia de Heródoto seria um texto motivado, sem
dúvida, pelo sentimento patriótico de um grego que vive desconfortos sob a dominação romana,
os quais nem mesmo um título de cidadania romana podia suavizar. Como diz Maria Aparecida
na Apresentação de seu estudo, esse texto de Plutarco é importante para avaliarmos com mais
propriedade as relações culturais e identitárias entre gregos e romanos na época do Império. Vale
acrescentar que ele constitui um precioso documento da história da leitura do texto de Heródoto
na Antiguidade, com significativos desdobramentos para a recepção desse historiador na cultura
ocidental.

Maria Celeste Consolin Dezotti

Professora de Língua e Literatura Grega


Faculdade de Ciências e Letras
UNESP-Araraquara

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