Você está na página 1de 12

A lenta construção

idos direitos daa


criança brasileira.i
Século XX.
M A R I A L U I Z A M A R C Í L I O

MARIA LUIZA
MARCÍLIO é
professora do
Departamento de
História da FFLCH-
USP e presidente da
Comissão de Direitos
Humanos-USP.

46 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8
TESE: INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E NACIONAIS DE
DEFESA E PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA

O
século XX é o século da descoberta, valorização, defesa e pro-

teção da criança. No século XX formulam-se os seus direitos

básicos, reconhecendo-se, com eles, que a criança é um ser

humano especial, com características específicas, e que tem direi-

tos próprios.

A origem e o desenvolvimento do processo de criação dos

Direitos da Criança integram o movimento de emancipação pro-

gressiva do homem e em seguida da mulher. A doutrina que embasa

esse longo e dinâmico processo surge nos séculos XVII e XVIII,

com a formulação dos Direitos Naturais do Homem e do Cidadão.

Ela foi evoluindo mediante a incorporação de novos direitos, antes

não considerados, originando-se as chamadas gerações de Direi-

tos Humanos, que têm a ver com a evolução das sociedades hu-

manas. Houve, assim, uma primeira geração denominada “direitos

da liberdade” ou “direitos civis e políticos” ou “direitos individu-

ais”, que nasceram no contexto histórico da opressão das monar-

quias absolutistas da Europa e da emancipação das 13 colônias

inglesas da América do Norte.

Uma segunda geração de direitos é determinada pela Re-

volução Industrial e a urbanização do século XIX na Europa, em

um meio de opressão e exploração das classes operárias ou nas

áreas que relutavam em manter o ignóbil sistema da escravidão.

São os chamados “direitos da igualdade”, hoje ampliados consi-

deravelmente e conhecidos como “direitos econômicos, sociais e

culturais”.

No presente século, ante novas realidades de opressão,

surgem os direitos de terceira geração, ou seja, os direitos ao

desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e, recentemente, os

direitos dos consumidores.

Já se fala em uma quarta geração de Direitos Humanos para

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8 47
este final de milênio: o “direito à democra- requeridos para assegurar que, dentro dos
cia”, condição essencial para a concretiza- padrões de uma sociedade dada, cada indi-
ção dos Direitos Humanos. “Mais do que víduo possa desfrutar da segurança ofere-
um sistema de governo, uma modalidade cida pelo bem-estar econômico, comparti-
de Estado, um regime político e uma forma lhar a herança sociocultural e viver digna e
de vida, a democracia, nesse final de sécu- civilizadamente (2).
lo, tende a se tornar, ou já se tornou, o mais Com os avanços da medicina, das ciên-
recente direito dos povos e dos cidadãos. É cias jurídicas, das ciências pedagógicas e
um direito de qualidade distinta, de quarta psicológicas, o século XX descobre a
geração” (1). especificidade da criança e a necessidade
Após os horrores da Segunda Guerra de formular seus direitos, que passam a ser
Mundial, surge a convicção de que as atro- tidos como especiais.
cidades perpetradas pelo nazi-facismo não Já em 1923, formulados por uma orga-
poderiam mais se repetir. Para impedi-las nização não-governamental, a International
seria necessário a adoção de normas co- Union for Child Welfare, foram estabele-
muns, fundamentadas em uma ética uni- cidos os princípios dos Direitos da Crian-
versal, normas estas que deveriam ser res- ça. A recém-criada Liga das Nações, reuni-
peitadas pelos Estados nacionais. da em Genebra no ano seguinte, incorpora-
Em 10 de dezembro de 1948, a Assem- os e expressa-os na primeira Declaração
bléia Geral da recém-criada Organização dos Direitos da Criança. São apenas qua-
das Nações Unidas aprova a Declaração tro os itens estabelecidos:
Universal dos Direitos Humanos. Funda-
da em fatos históricos e em doutrina prece- “1. a criança tem o direito de se desenvolver
dente, a Declaração visa atingir o Homem de maneira normal, material e espiritualmen-
todo e todos os homens e propugna por sua te; 2. a criança que tem fome deve ser ali-
felicidade e seu bem-estar; buscando su- mentada; a criança doente deve ser tratada;
bordinar o privado ao público. Valoriza a a criança retardada deve ser encorajada; o
família, a comunidade, os interesses, as ne- órfão e o abandonado devem ser abrigados
cessidades e aspirações sociais do povo. e protegidos; 3. a criança deve ser preparada
Expressa uma ética que garante a condição para ganhar sua vida e deve ser protegida
de verdadeiro cidadão a todos os homens, contra todo tipo de exploração; 4. a criança
conforme se lê já no primeiro parágrafo do deve ser educada dentro do sentimento de
preâmbulo do documento: “Considerando que suas melhores qualidades devem ser
que o reconhecimento da dignidade ine- postas a serviço de seus irmãos”.
rente a todos os membros da família huma-
na e de seus direitos iguais e inalienáveis é Depois da Segunda Guerra Mundial,
o fundamento da liberdade, da justiça e da ante a existência de milhares de crianças
paz no mundo […]”. órfãs ou deslocadas de seus pais e família,
Simultaneamente ao desenvolvimento a ONU resolveu criar um Fundo Internaci-
da doutrina dos Direitos Humanos, onal de Ajuda Emergencial à Infância Ne-
aprofunda-se o significado do conceito de cessitada. Surge assim o Unicef – United
cidadania, cuja ênfase está centrada no con- Nations International Child Emergency
junto de direitos e responsabilidades ne- Fund – em 11 de outubro de 1946, com o
1 Etienne-Richard Mbaya, “Gê- cessárias para garantir a cada indivíduo sua objetivo de socorrer as crianças dos países
nese, Evolução e Univer-
salidade dos Direitos Huma- participação plena na sociedade. Na clássi- devastados pela guerra. Em seus primeiros
nos Frente à Diversidade de ca conceituação de Marshall, cidadania três anos, os recursos do Fundo foram en-
Cultura”, in Revista Estudos
Avançados, USP. II, 30-mai.- compreende direitos civis, necessários para caminhados para o auxílio emergencial (so-
ago./1997, p. 20.
garantir as liberdades individuais, direitos bretudo em alimentos) a crianças dos 14
2 T. H. Marshall, Citizenship and políticos, indispensáveis para permitir a par- países arrasados pela guerra da Europa e da
Social Class and Other Essays, ticipação no exercício do poder, e os direi- China, como também às crianças refugia-
Cambridge, Cambridge
University Press, 1950. tos sociais, que cobrem a gama de direitos das da Palestina (1948 a 1952) vítimas da

48 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8
criação do Estado de Israel. Pela primeira Fundada nos princípios da Declaração
vez tinha-se o reconhecimento internacio- Universal dos Direitos Humanos (1948) e
nal de que as crianças necessitavam de aten- neste instrumento dos Direitos da Criança
ção especial. (1959) a Conferência Mundial sobre os
Uma vez recuperada a Europa, a As- Direitos Humanos promoveu em 1989 a
sembléia Geral da ONU de 1950 recomen- Convenção das Nações Unidas sobre os
dou que o Unicef transferisse suas aten- Direitos da Criança. Até fins de 1996, os
ções da ajuda de emergência para progra- termos da Convenção já haviam sido rati-
mas de longo alcance visando a melhoria ficados por 96% dos países (com exceção
da saúde e da nutrição das crianças dos dos Emirados Árabes Unidos, dos Estados
países pobres. Em 1953, a Assembléia Geral Unidos, das Ilhas Cook, de Omã, da Somália
decidiu que o Unicef seria um órgão per- e da Suíça) (4). Ao ratificá-los, esses países
manente das Nações Unidas. Em 1958, a tornaram-se obrigados, por lei, a tomar
assistência do Unicef estendeu-se a um novo todas as medidas adequadas (determinadas
campo – o dos serviços sociais para a cri- pela Convenção) para dar assistência aos
ança e suas famílias. Com isso, teve seu pais ou responsáveis no cumprimento das
raio de ação enormente ampliado, incluin- obrigações para com suas crianças.
do a educação. Os direitos consagrados pela Conven-
O Unicef é dirigido por uma junta exe- ção de 1989 são abrangentes.
cutiva de 30 membros de nações diferen-
tes, que se reúne duas vezes por ano para “A Convenção define como criança qual-
estabelecer normas políticas e programas quer pessoa com menos de 18 anos de ida-
de prioridades, para considerar requisições, de (artigo 1), cujos ‘melhores interesses’
distribuir recursos, avaliar resultados e devem ser considerados em todas as situa-
determinar o orçamento administrativo do ções (artigo 3). Protege os direitos da crian-
Fundo. Possui um diretor executivo, indi- ça à sobrevivência e ao pleno desenvolvi-
cado pelo secretário-geral da ONU e com mento (artigo 6), e suas determinações en-
sede em Nova York, e cerca de 30 escritó- volvem o direito da criança ao melhor pa-
rios regionais e nacionais em todo o mun- drão de saúde possível (artigo 24), de ex-
do. Um deles está instalado em Brasília (3). pressar seus pontos de vista (artigo 12) e de
O ano de 1959 representa um dos mo- receber informações (artigo 13). A criança
mentos emblemáticos para o avanço das tem o direito de ser registrada imediatamen-
conquistas da infância. Nesse ano, as Na- te após o nascimento, e de ter um nome e
ções Unidas proclamaram sua Declaração uma nacionalidade (artigo 7), tem o direito
Universal dos Direitos da Criança, de sig- de brincar (artigo 31) e de receber proteção
nificativo e profundo impacto nas atitudes contra todas as formas de exploração sexual
de cada nação diante da infância. Nela, a e de abuso sexual (artigo 34) […]” (5).
ONU reafirmava a importância de se ga-
rantir a universalidade, objetividade e igual- O acompanhamento da implementação
dade na consideração de questões relativas dos artigos da Convenção em cada país é
aos direitos da criança. A criança passa a feito pelo Comitê sobre os Direitos da Cri-
ser considerada, pela primeira vez na his- ança, órgão oficial da ONU composto por
tória, prioridade absoluta e sujeito de Di- dez especialistas que buscam promover a
reito, o que por si só é uma profunda revo- conscientização internacional sobre as vio- 3 Unicef, A Infância dos Países
lução. A Declaração enfatiza a importân- lações graves aos direitos da criança. em Desenvolvimento. Um Re-
latório do Unicef, Rio de Janei-
cia de se intensificar esforços nacionais para A Declaração dos Direitos da Criança e ro, Edições GRD, 1964, p.
a promoção do respeito dos direitos da cri- a Convenção das Nações Unidas sobre es- 155.

ança à sobrevivência, proteção, desenvol- ses Direitos tiveram forte impacto interna- 4 Idem, Situação Mundial da In-
vimento e participação. A exploração e o cional e junto aos governos nacionais. De- fância, 1997, Brasília, Unicef,
1997, p. 9.
abuso de crianças deveriam ser ativamente pois delas foram convocadas outras reu-
combatidos, atacando-se suas causas. niões internacionais para cuidar de graves 5 Idem, ibidem, pp. 10-1.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8 49
problemas contemporâneos que afetam a maneira sustentável, participativa e não
vida e o desenvolvimento de milhões de discriminatória. Em termos práticos, isto
crianças no mundo todo, como o Congres- significa que as crianças mais pobres, mais
so Mundial contra a Exploração Sexual Co- vulneráveis, e geralmente mais negligen-
mercial de Crianças (Estocolmo, 1996), a ciadas em todas as sociedades, ricas e po-
Conferência de Cúpula sobre o Trabalho bres, devem ter prioridade absoluta na
Infantil (Oslo, 1997), o Encontro de Cúpu- destinação de recursos e esforços” (6).
la Asiático sobre os Direitos da Criança e
os Meios de Comunicação (Manila, 1996). O Brasil ratificou a Convenção logo em
Durante o Encontro Mundial de Cúpula 1989, momento em que o país tratava de
pela Criança, realizado em 1990, o Unicef, remover o entulho autoritário de anos de
que então completava 50 anos, estabeleceu ditadura militar, acolhendo-a com grande
suas metas para o ano 2000, iluminando as entusiasmo. O cumprimento integral das
ações necessárias em favor do bem-estar disposições da Convenção exigiria uma ação
da criança. Dentre elas inscreve-se a prote- integrada e integradora por parte do Estado
ção à criança e ao jovem em conflito com e da sociedade civil, tanto no âmbito das
a lei, a garantia do desenvolvimento inte- políticas sociais universais, como no dos pro-
gral da criança, o apoio à família e o esfor- gramas dirigidos aos grupos vulneráveis;
ço contínuo no sentido de introduzir em tanto no campo de uma ação codificadora
cada nação uma distribuição de recursos destinada à adequação das leis nacionais aos
mais eqüitativa. preceitos da Convenção, quanto no de uma
ação concreta de políticas sociais.
“A Convenção exige que famílias, socie- A ação codificadora do Brasil antecede
dades, governos e a comunidade internacio- a própria Convenção das Nações Unidas.
nal empreendam ações visando o cumpri- Ela está positivada em nossa Carta Consti-
mento dos direitos de todas as crianças de tucional de 1988, principalmente em seus

6 Idem, ibidem, p. 13.

50 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8
artigos 227, 228 e 229, que seguiram a proteção integral, que reconhece a criança
doutrina da Declaração dos Direitos da e o adolescente como cidadãos e sujeitos
Criança, de 1959. Vale a pena relembrar de Direito.
aqui os termos do artigo 227: A Lei no 8.242, de 12 de outubro de
1991, criou o Conselho Nacional dos Di-
“É dever da família, da sociedade e do reitos da Criança e do Adolescente (o
Estado assegurar à Criança e ao Adoles- Conanda) cuja primeira reunião de traba-
cente, com absoluta prioridade, o direito à lho foi realizada apenas em 18 de março de
vida, à saúde, à alimentação, à educação, 1993. O Conselho tem como objetivo
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à precípuo impulsionar a implantação do
dignidade, ao respeito, à liberdade e à con- ECA no país.
vivência familiar e comunitária, além de Em 1993, a Lei no 8.642 criou o Progra-
colocá-la a salvo de toda forma de negli- ma Nacional de Atenção Integral à Criança
gência, discriminação, exploração, violên- e Adolescente (Pronaica), para articular e
cia, crueldade e opressão” (grifo meu). integrar ações de apoio à criança e adoles-
cente, sob a coordenação do Ministério da
Esta ação coordenada iniciou-se sob Educação. Em janeiro de 1995, o presiden-
influência dos documentos internacionais te Fernando Henrique Cardoso extinguiu a
e da Frente Parlamentar pela Constituinte. CBIA (criada em 1990 para substituir a
Em 1987 constituiu-se a Comissão Nacio- antiga Funabem), o Ministério do Bem-
nal da Criança e Constituinte, instituída por Estar Social e da Integração Regional e,
portaria interministerial e por representan- ainda, a clientelista e assistencialista LBA,
tes da sociedade civil organizada. Criou-se em seu lugar implantando o Conselho da
a Frente Parlamentar Suprapartidária pelos Comunidade Solidária, para coordenar
Direitos da Criança e multiplicaram-se por ações no campo social a partir de iniciati-
todo o todo o país os Fóruns de Defesa da vas locais.
Criança e do Adolescente. Foram estes O país dispõe, pois, de normas para-
esforços conjugados do governo e da soci- digmáticas e de organismos integrativos
edade civil que garantiram a redação dos para uma ação exemplar em defesa da cri-
três artigos da Constituição de 1988 que ança brasileira. A democracia, restaurada
defendem os direitos da criança. em 1985, cria as condições ideais para essa
A homologação dos dispositivos da Car- ação plena.
ta Magna em favor da infância, fundados na
Declaração dos Direitos Humanos e na De-
claração dos Direitos da Criança, foi estabe-
ANTÍTESE: A REALIDADE
lecida primorosamente no Estatuto da Cri-
ança e do Adolescente – o ECA –, assinado DOS INDICADORES SOCIAIS
em 1990. Este documento legal representa
uma verdadeira revolução em termos de Não se pode dizer que a situação da
doutrina, idéias, práxis, atitudes nacionais infância brasileira não tenha melhorado ao
ante a criança. Em sua formulação contou, longo do século XX. Muito pelo contrário,
igualmente, com intensa e ampla participa- quase todos os indicadores sociais mostram
ção do governo e, sobretudo, da sociedade, os consideráveis avanços alcançados. Mas
expressa em organizações como a Pastoral a situação da criança, neste final de século,
do Menor, o Unicef, a OAB, o Movimento apresenta tristes índices e uma constrange-
Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, dora e evidente situação de violação dos
movimentos de igrejas e universidades, den- seus direitos. Procuraremos arrolar aqui al-
tre tantos outros organismos. guns dos dados mais gritantes e sombrios
O ECA revogou o Código de Menores dessa situação.
de 1979, discriminátorio, bem como a lei Um dos avanços sociais mais evidentes
que criou a Funabem. Adotou a doutrina de neste século XX foram, sem dúvida, as

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8 51
mudanças estruturais na demografia brasi- ciedade, em particular da medicina higie-
leira. Em 1900, nossa demografia tinha no nista, apresentava índices elevados: 158
perfil das áreas agrícolas atrasadas, que não mortes de menores de um ano para cada mil
haviam passado pela Revolução Industri- nascidos vivos. Desde então, os níveis ca-
al, altíssimos índices de natalidade, aliados íram substantivamente e, em 1996, já era
a igualmente altíssimos índices de mortali- de 47 mortes para cada mil nascidos vivos,
dade. A partir de então, iniciaram-se as segundo dados da ONU (7).
mudanças estruturais marcantes. Contudo, este nível é ainda muito eleva-
A mortalidade foi a primeira taxa a cair do para os padrões internacionais de hoje e
de forma contínua e sustentada, graças aos espelha um triste desempenho do país em
avanços científicos e tecnológicos impor- termos de serviços sociais e de qualidade de
tados das áreas mais desenvolvidas. Mas vida. O Brasil é o segundo pior país da
como a fecundidade mantinha-se nos pa- América do Sul no ranking da mortalidade
drões arcaicos anteriores, a população na- infantil, ganhando apenas da Bolívia. Den-
cional começou uma fase longa de altos tre 175 países, o Brasil situa-se em 63o lugar
índices de crescimento demográfico, que em termos de mortalidade infantil de meno-
desafiavam qualquer política social em res de 5 anos, conforme dados do Unicef.
favor da infância. Os progressos alcançados no campo da
Em 1872, em seu primeiro censo saúde da infância devem-se, em parte, aos
populacional, o país tinha cerca de 10 mi- esforços para vacinação em massa contra
lhões de habitantes. Em cerca de cem anos doenças infecto-contagiosas imunizáveis.
essa população cresceu mais do que 15 Em 1997, praticamente todas as crianças
vezes. Em meados do século XX, como a estavam imunizadas contra a tuberculose
fecundidade relutava em cair, a população, (BCG); 83% delas contra DPT (difteria,
tal como em 1872, apresentava uma pirâ- coqueluche e tétano) e a pólio, e 88% con-
mide etária altamente concentrada em suas tra o sarampo, segundo dados do Unicef.
bases. Cerca de 35% dos brasileiros eram No que diz respeito à escolaridade dos
menores de 14 anos no final do século XIX brasileiros, assiste-se a uma melhora con-
e essa situação permaneceria com insigni- siderável se levarmos em conta os padrões
ficante alteração em 1970 (31%). do início do século XX. A mobilização geral
A partir da década de 1970, começou a nos últimos anos em favor da universalida-
segunda e vital fase da transição demo- de do ensino fundamental mostra seus re-
gráfica: a fecundidade brasileira iniciava sultados. Tomando-se apenas as últimas
seu movimento decrescente continuado. décadas, a escolarização de jovens entre 15
Com isso, o crescimento demográfico, que e 17 anos de idade passou de 48,8% em
estava entre os mais altos do mundo antes 1980 para 55,3% em 1991, e para 66,8%
de 1970 (mais de 3% ao ano), caiu drasti- em 1996. Houve, pois, uma elevação de 11
camente. Hoje, não passa de 1,3% ao ano! pontos percentuais em apenas cinco anos.
Com o controle das taxas de mortalida- Porém, com todos esses avanços, so-
de geral e da fecundidade, ficou mais viá- mente 25,8% dos jovens entre 18 e 24 anos
vel desenvolver políticas públicas e ações estudam e, mesmo assim, boa parte deles
em favor da infância no Brasil. Por outro está fora das universidades. Se cerca de 91%
lado, a mortalidade infantil, cujos indica- das crianças entre 7 e 14 anos de idade fre-
dores eram os mais altos dentre as nações qüentam escola no país todo (com as
do mundo no início do século, pôde ser em disparidades regionais de sempre), há, no
grande parte controlada graças à ação entanto, 2,7 milhões ainda fora dela. No
conjugada de governos, da sociedade orga- estado de Alagoas, a taxa de escolarização
7 ONU, Basic Social Services for nizada e dos progressos médicos, científi- é a mais baixa do país, de apenas 72%; a ele
all Sheet. 1997. Ver, para da-
dos do IBGE, Estatísticas His- cos e sanitários. seguem-se os estados do Ceará, Maranhão
tóricas do Brasil 1550-1985, Em 1950, a mortalidade infantil, apesar e Pernambuco. Em geral, a proporção de
Rio de Janeiro, IBGE, 1987,
vol.3. de esforços do governo e sobretudo da so- crianças fora da escola nos estados do

52 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8
R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8 53
Nordeste é três vezes maior do que nas As diferenças regionais são igualmen-
unidades da Federação com maior escola- te gritantes. No Nordeste, em 1988, 74,8%
ridade (Distrito Federal, São Paulo e Rio das crianças viviam em situação de pobre-
de Janeiro). za, ao passo que no Sudeste a proporção era
No país todo, somente 65% da população de 35,9% (o que também não é uma situa-
escolarizada completou o primeiro grau; no ção risonha). Em termos de miséria abso-
Uruguai esta proporção é de 93% e na Dina- luta (menos de um quarto de salário míni-
marca de 99%. A porcentagem de analfabe- mo per capita), a proporção no Nordeste
tos de 60 anos e mais é de 41% e, entre 10 e chega a 49,4%, ou seja, metade de suas
14 anos de idade, de 10%. Se as taxas de crianças está nessa situação, contra 15,5%
analfabetismo vêm caindo de forma mais ou no Sudeste. Como pensar em direitos da
menos rápida (era de 22,3% em 1980, de criança ante tamanha calamidade?
17,8% em 1990 e de 13,8% em 1996), a qua- Em 1990, ainda segundo o IBGE, mais
lidade do ensino no Brasil apresenta um dos da metade da população infanto-juvenil bra-
piores desempenhos do mundo. A evasão e a sileira (58,2%) era pobre, o que leva a pen-
alta taxa de repetência são fenômenos cons- sar que a situação piorou em relação a 1988.
tantes na vida escolar do país. No Nordeste, “Os resultados nocivos desta situação de
segundo o IBGE, de cada cem alunos matri- pobreza têm efeito direto sobre a vida das
culados na primeira série do primeiro grau crianças nos seus aspectos mais fundamen-
em 1988, apenas dez chegaram à oitava série. tais: saúde, nutrição e educação” (9).
Para resolver o problema da repetência, o Houve avanços em alguns indicadores.
governo decidiu passar os alunos por decre- Em 1996, 73% das crianças brasileiras ti-
to, sem avaliações, nas primeiras séries do nham acesso a água limpa e 44% a esgoto
ensino fundamental. Resolve-se, ou melhor, sanitário em suas residências, o que, apesar
camufla-se um problema, mas não se melho- de tudo, é um grande progresso comparan-
ra a qualidade do ensino. do-se com taxas do início e mesmo de
Na base dos problemas sociais, obvia- meados do século (10). Quanto à coleta de
mente, está a questão grave da pobreza. lixo, apenas metade das pessoas entre 0 e
Segundo o Unicef, 9% da população urba- 17 anos de idade reside em domicílios onde
na e 34% da população rural brasileira es- ela é efetuada. Logo, o restante do lixo é
tão abaixo do nível da pobreza absoluta lançado no solo, nas ruas, nos rios, aumen-
(menos de meio salário mínimo por pes- tando as moscas, ratos e doenças, os ambi-
soa). O Brasil é o campeão mundial em entes poluídos e nocivos para o desenvol-
pior distribuição de renda dentre as 150 vimento da criança.
nações analisadas. Em 1988, mais da meta- Em 1990, 7,5 milhões de crianças e ado-
de das crianças e adolescentes brasileiros lescentes entre 10 e 17 anos trabalhavam no
vivia em famílias com rendimentos de até país, ou seja, 11,6% da população ativa era
meio salário mínimo (8). composta por crianças. Quase 40% desse
Na análise da distribuição de renda, o contingente era constituído por crianças de
IBGE constatou que as crianças e adolescen- 10 a 14 anos, apesar de a atual Constituição
tes pretos e pardos residem em domicílios proibir o trabalho antes dos 14 anos.
nitidamente mais pobres que os brancos. Em No grupo de 10 a 14 anos, 47,6% das
1988, 62,3% dos primeiros pertenciam a crianças estavam na condição de trabalha-
famílias com rendimentos mensais de até dor não-remunerado, geralmente ajudan-
8 IBGE, Crianças e Adolescentes. meio salário mínimo per capita: no caso do familiares em suas atividades econômi-
Indicadores Sociais, Rio de Ja-
neiro, IBGE, 1988, vol. 2, p. 19. das crianças brancas esta proporção cai para cas. Na faixa de 15 a 17 anos de idade,
34,4%. Por outro lado, apenas 4,7% dos apenas 32% tinham carteira de trabalho
9 Idem, Crianças e Adolescentes.
Indicadores Sociais, Rio de Ja- jovens pretos e pardos pertencem a famí- assinada. A jornada de trabalho é longa para
neiro, IBGE, 1992, vol. 4, p. 11. lias com nível de renda per capita superior muitas dessas crianças: 46,4% das crianças
a dois salários mínimos, porcentagem que da faixa de 10 a 14 anos e 77,3% daquelas
10 Unicef, Situação Mundial da In-
fância, 1997, p. 84. chega a 19,6% entre as crianças brancas. com 15 a 17 anos trabalham oito ou mais

54 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8
horas diárias. Difícil, nessas condições, riedade, igualdade, à dignidade, ao respei-
conciliar trabalho e escola (11). to, à paz. Seu caráter de universalidade é
Finalmente a PNAD de 1988 mostra que sua condição basilar de existência.
mais de 200 mil crianças brasileiras foram É óbvio que o desenvolvimento de um
vítimas de violência, principalmente per- país possibilita o exercício mais completo
petrada por pessoas conhecidas. dos direitos humanos. A miséria e a pobre-
za são, por si só, atentados e barreiras para
a concretização dos direitos humanos. É o
SÍNTESE que ficou evidente na Conferência Mundi-
al da ONU reunida em Viena em 1993 para
Os desafios são tremendos para se apro- discutir o tema da pobreza. O desenvolvi-
ximar os direitos da criança positivados mento, ficou demonstrado, é condição para
internacional e nacionalmente e a dura re- a realização mais completa do homem. Daí
alidade de violação desses direitos no Bra- por que o direito dos povos ao desenvolvi-
sil de 1998. Como diz Mbaya: “Os direitos mento passou a constituir-se na terceira
humanos correspondem a certo estado da geração dos direitos humanos.
sociedade. Antes de serem inscritos numa No Brasil, a violação dos direitos hu-
constituição ou num texto jurídico, manos e dos direitos da criança é um fato
anunciam-se sob a forma de movimentos diário. Embora o país tenha sido capaz de
sociais, de tensões históricas, de tendência elaborar um dos códigos mais paradig-
irreversível das mentalidades evoluindo máticos sobre os direitos da criança – o
para outra maneira de sentir e pensar” (12). ECA –, na realidade, a infância brasileira
Do século XVIII ao XX, todas as decla- longe está de ser a prioridade absoluta que a
rações de direitos humanos proclamam os Constituição proclama. Mais de 80% dos
direitos imprescritíveis à liberdade, solida- municípios brasileiros nem sequer criaram

11 IBGE, Crianças e Adolescen-


tes…, op. cit., vol. 4, 1992, p.
25.

12 E. R. Mbaya, op. cit., p. 20.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8 55
seus conselhos tutelares, responsáveis pela lhões destinados a programas de apoio à
defesa dos direitos da infância, como deter- criança e ao adolescente. Estes dados estão
mina o Estatuto. Nas cidades onde tais Con- no artigo “Orçamento da Criança, um Estu-
selhos foram implantados, muitas vezes eles do do IRE” (pertencente ao Ministério do
não conseguem se reunir por falta de quorum, Planejamento de 1995).
como é o caso da cidade de São Paulo. Programas de todos os ministérios tive-
As verbas votadas para a criança vêm ram seus orçamentos reduzidos para 1998,
sendo limitadas. Os poucos recursos destina- inclusive o programa do Ministério da Jus-
dos à infância são, muitas vezes, mal aplica- tiça de promoção dos direitos da criança e
dos, dispersos, desviados, perdidos em gran- adolescente, que teve repasse zero (13).
de parte nos meandros da burocracia, antes Uma das formas encontradas para o
de chegarem ao seu verdadeiro destino: a enfrentamento do problema da miséria das
criança. Falta competência, responsabilida- crianças menores de 14 anos e que não fre-
de e vontade política, em grande parte. qüentavam escola é o programa da “renda
No Estado de São Paulo, as verbas des- mínima” ou as bolsas-escola. Apesar de
tinadas à Secretaria da Criança, Família e proclamado por praticamente todas as ten-
Bem-Estar Social não chegam a 1% (preci- dências partidárias como a solução desse
samente é de 0,7%) do orçamento estadual. angustiante problema, em 1997 apenas sete
O governo federal destina apenas 12,4% dos cidades brasileiras efetivamente haviam im-
investimentos sociais às crianças e adoles- plantado esse programa.
centes, investindo o dobro com os adultos. O senador Eduardo Suplicy foi um dos
Não satisfeito com essa situação de penúria, pioneiros na tentativa de implantação do
reteve, em 1995, 56% das verbas destinadas programa da renda mínima para apoio às
à infância. Os ministérios da área social in- famílias mais carentes e ajuda à infância,
13 Ver jornal Folha de S. Paulo,
de 5/2/1996, caderno I, p. 5. vestiram apenas R$ 1,6 bilhão, dos 3,8 bi- de modo a garantir sua freqüência à escola.

56 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8
Seu projeto-lei foi aprovado no Senado em do trabalho e encaminhá-las à escola e ao
16 de dezembro de 1991. Bastava a sanção lazer, através da oferta de uma bolsa paga
da Câmara para virar lei. Mas o assunto por criança carente na escola. O PAI prevê,
ficou emperrado na câmara baixa, em sua além da ajuda financeira, melhoria das re-
Comisssão de Finanças e Tributação, de des de ensino e de saúde e implantação de
1992 a 1996! Acabou sendo substituído por programas de geração de emprego e renda
outro texto, do relator Germano Rigotto. para a população. Seus resultados, porém,
Enquanto isso, em outra comissão da Câ- ainda não são visíveis.
mara, a de Educação, Cultura e Esporte, No universo das estatísticas sociais bra-
outro projeto semelhante, do deputado sileiras, os números relacionados às crian-
Nelson Marchezan, incorporava sugestões ças mostram-nas vítimas das piores iniqüi-
de quatro outras propostas. A Câmara aca- dades nacionais. Vejamos alguns desses
bou por fundir os textos e o projeto foi dados. Em garimpos de Rondônia, meninos
aprovado em plenário: seriam R$ 15 da de até cinco anos de idade trabalham, debai-
União por criança apoiada – uma esmola! xo da água e da lama, a jornada inteira; o
Quando há empenho e vontade política, tráfico de drogas alista até três mil crianças
há avanços notáveis. O mutirão da socie- só nas favelas do Rio de Janeiro; São Paulo
dade organizada brasileira em defesa da emprega meninos pequenos no entreposto
infância maltratada pela pobreza teve como da Ceagesp; a indústria calçadista de Franca
resultado, em 16 anos, a queda pela metade (SP) emprega meninos e meninas menores
da mortalidade infantil. Houve ganhos na de 14 anos; a cultura do fumo na zona rural
nutrição e avanços consideráveis na área do Rio Grande do Sul emprega até 58% de
de saneamento básico, sobretudo no cam- meninos de 10 a 14 anos (14).
po da vacinação em massa contra doenças O Brasil continua utilizando 16% de sua
imunopreveníveis. A causa-mortis por população entre 10 e 14 anos no trabalho
doenças imunopreveníveis despencou em diário (segundo dados da OIT, para 1995),
três décadas, do primeiro para o sexto lu- o que nos deixa abaixo do Haiti e
gar, no conjunto das mortes brasileiras. Guatemala, na América Latina.
Foi a pressão e a mobilização do Unicef, O país detém ainda outros tristes recor-
do Fórum Nacional para Erradicação do des e indicadores. O pornoturismo infantil
Trabalho Infantil e da Comissão Perma- vem sendo sistematicamente explorado e
nente de Investigações das Condições de ampliado em vários estados do Nordeste.
Trabalho que acabaram com o trabalho O Pará é o estado que tem a maior varieda-
infantil nas carvoarias do Mato Grosso do de de casos de exploração sexual de crian-
Sul. Lá, os garotos trabalhavam em fornos ças e adolescentes: leilões de meninas vir-
cuja temperatura chegava a 60oC e agora gens, prostituição de adolescentes de 10-
estudam com bolsas-escola. 15 anos, estupro, incesto, abuso sexual de
As iniqüidades do aparelho educacional menores, sedução. Somos ainda um país de
são alvo de pesados ataques desde a década crianças desnutridas: cerca de 10% do to-
de 70. A desigualdade começa pela base: as tal, chegando a 18% no Nordeste.
deficiências educacionais determinam es- O desafio é enorme. É preciso a
cassez de mão-de-obra qualificada e salá- mobilização da sociedade para a promoção
rios aviltados ou escassez de emprego para e garantia dos direitos da infância brasilei-
os despreparados. O trabalho infantil tira das ra. Se, conforme declara o presidente da
escolas 3,8 milhões de menores de 14 anos República, o Brasil é hoje o maior país do
em todo o país (PNAD, 1995). mundo em privatizações, ao menos que
O Ministério do Trabalho coordena, parte do dinheiro arrecadado com a venda
desde 1994, o Programa de Ações Integra- das estatais seja encaminhada para a
das (PAI), com o apoio da Organização melhoria da distribuição da renda e da situ- 14 Ver Relatório do Unicef, 1997,
Internacional do Trabalho (OIT), no intui- ação da criança, se quisermos aspirar a ser- e Folha de S. Paulo, Suplemen-
to “Infância Roubada”, 1/5/
to de retirar as crianças, menores de 14 anos, mos uma nação civilizada, justa e digna. 1997.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 4 6 - 5 7 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8 57

Você também pode gostar