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27/04/2022 19:38 A economia e a política do conflito distributivo - JOTA

CEPESP

A economia e a política do conflito distributivo


A emenda do teto de gastos públicos no âmbito federal

MARCOS FERNANDES G. DA SILVA


CLÁUDIO GONÇALVES COUTO

20/12/2017 07:46
Atualizado em 20/12/2017 às 08:56

Crédito: Pixabay

“Low budgets force you to be more creative. Sometimes, with too much money, time
and equipment, you can over-think. My way, you can use your gut instinct.”

Robert Rodriguez
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“Toda sociedade tem a inflação que merece.”

Mario Henrique Simonsen

Em 15 de dezembro de 2016 foi aprovada a Emenda Constitucional 95, que limita o


gasto público ao estabelecer um teto de gastos públicos no âmbito federal. A
emenda tem como meta mudar a trajetória de crescimento dos gastos
governamentais e equilibrar, ao longo do tempo, as contas públicas, evitando, por
conseguinte, a volta da inflação elevada. Mas sua real função é outra, não está
escrita na proposta, escapou de vários analistas. Esmiuçá-la, este é o objetivo deste
artigo.

O teto funciona da seguinte forma: fixou-se por até 20 anos, com a possibilidade de
revisão passada a primeira década de vigência, um limite máximo (daí o termo teto)
para as despesas federais. Tal restrição será medida pelo gasto realizado no ano
anterior, corrigido pela inflação; a restrição vale para os três Poderes.

O estabelecimento do teto implica restrições para elevar despesas obrigatórias e


conceder reajustes aos servidores, abrir concursos públicos, criar ou expandir
programas e conceder incentivos fiscais.

Entendemos que o teto de gastos explicita, torna transparentes, alguns tipos de


disputa distributiva, pois tende a colocar em debate a natureza conflitiva inerente à
alocação de recursos para políticas públicas. Para justificar tal posição, o artigo tem
duas partes: a primeira, sobre a economia e economia política do gasto público,
dando especial atenção ao papel da ilusão de conflito causada pela inflação e
vinculação automática de gastos; a segunda, sobre política, políticas públicas e
embates distributivos. Vamos à primeira.

Quando falamos de conflito distributivo, implicitamente há uma noção de


transferência de renda. Na literatura marxista, por exemplo, o principal conflito
distributivo no capitalismo estabelecer-se-ia entre capitalistas e trabalhadores, dado
que a propriedade privada dos meios de produção implicaria apropriação privada de
algo extraído do uso da força de trabalho, a mais-valia. Haveria uma transferência de
um grupo para o outro. O abandono da teoria marxista por suas deficiências
analíticas não colocou de lado, contudo, na economia (e na economia política em
particular), um aspecto importante de sua visão, qual seja: na economia há conflitos
distributivos, algo, aliás, compartilhado por economistas de outras vertentes
ideológicas e normativas.

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Numa visão ampla, tais conflitos podem se dar, por exemplo, entre trabalhadores e
empresas, acionistas e gestores, diferentes setores empresariais e – algo
importante no caso brasileiro – entre determinados segmentos do funcionalismo e o
setor privado (trabalhadores e empresas).

O jogo do conflito distributivo, contudo, não pode ser sempre um ganha-ganha, isto
é, uma situação onde vários grupos disputam – e são bem sucedidos – uma
mesma quantidade de riqueza (estoque) e renda (fluxo). Evidentemente, o
crescimento econômico pode amenizar o conflito distributivo, mas o mesmo pode,
sob determinadas circunstâncias, obliterar o próprio crescimento. Portanto, ao fim
do dia, conflitos distributivos geram ganhadores e perdedores.

Contudo, quando escamoteados pelo que definiremos abaixo como a ilusão de não
conflito (um efeito de se sancioná-los via receita de senhoriagem e inflação), os
conflitos distributivos causam uma dissonância cognitiva coletiva danosa não
somente para o funcionamento da economia, mas para a própria política.

Mas é preciso aprofundar o conceito de conflito distributivo, ainda que em um nível


elevado de abstração. Imaginemos um mundo ideal, uma economia anarquista (sem
Estado), na qual há competição perfeita em todos os mercados; isto é, por exemplo,
vários padeiros e açougueiros competem entre si, cada quais em seus setores: o
preço do pão e da carne apenas refletiria a escassez dos mesmos. Contudo, se
surge um monopólio num mercado qualquer, o preço do produto não reflete apenas
sua escassez, mas também o poder do monopolista em determinar o preço para
consumidoras e consumidores. Quando isto ocorre, transfere-se renda de
consumidores para o monopolista: eles pagam mais do que deveriam se
prevalecesse uma competição perfeita. Portanto, há vários perdedores e um único
ganhador.

Suponha-se, ainda, mercados de competição perfeita, mas na presença do Estado:


ele tributa a sociedade para ter recursos orçamentários e, logo, haveria uma
transferência de renda das pessoas para ele. Contudo, os recursos seriam utilizados
para a produção de bens públicos e, supondo uma discussão democrática e
transparente sobre o orçamento e os beneficiários do gasto, haveria uma
transferência de renda para determinados grupos e, eventualmente, para todos, na
forma de segurança nacional, por exemplo.

Diminuindo, um pouco ainda, o patamar de abstração do raciocínio, suponhamos


agora monopólios conquistados artificialmente, por ação coletiva (na acepção de
Mancur Olson, não jurídica) de determinados grupos de interesse. Os preços de
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determinados bens refletem não somente escassez, mas também um poder de


transferência de renda na direção das empresas monopolistas.

Caminhando para uma análise mais realista de economia política, no mundo das
pessoas de carne e osso, vários grupos podem se organizar para obter subsídios,
isenções tributárias, sistemas previdenciários diferenciados e determinados
privilégios (por exemplo, isenções tributárias setoriais ou para empresas específicas,
os chamados penduricalhos desfrutados por alguns segmentos do funcionalismo,
políticas e políticos, etc.). Como o orçamento público é limitado, haverá ganhadores
e perdedores.

Note-se que o orçamento público implica em diversas apropriações privadas da


coisa pública dentro da lei. Por exemplo, privilégios para grupos de indivíduos e
empresas, ou sistemas tributários especiais para a indústria automotiva, não são
ilegais. Podem ser insustentáveis e, até para a maior parte dos não beneficiados,
imorais, mas são diferentes da pura e simples corrupção, um tipo de transferência
de renda que ocorre pela apropriação ilegal da coisa (res) pública.

Esta atividade, em economia política, é denominada de caçadora-de-renda. Ela não


apenas impõe uma perda a determinados grupos ou setores, mas há um custo
econômico dela, um custo de oportunidade, associado à ação coletiva, que mobiliza
recursos econômicos escassos para uma atividade estritamente não produtiva, qual
seja, capturar renda dos outros.

Mas numa democracia, o orçamento é peça de debate e de discussão transparente,


em que os conflitos de interesse – e distributivos – deveriam ser explicitados.
Algumas regras do jogo (instituições) no Brasil, contudo, criaram um cenário um
tanto distinto, após a Constituição de 1988, no contexto do pré-Real e até a Emenda
Constitucional 95. Esta nova regra deve mudar consideravelmente a estrutura de
incentivos e o resultado, por assim dizer, dos jogos de conflito distributivo. Para
compreender suas potenciais implicações, precisamos dar um passo atrás.

Do ponto de vista macroeconômico, há três formas do governo financiar seus


gastos: tributação, dívida pública e inflação. Contudo, há limites para elas.

Em primeiro lugar, se um governo nada tributa, nada arrecada; se tributa, por


absurdo, 100% dos ganhos das pessoas (lembrando que pessoas jurídicas são
ficções jurídicas – são compostas por pessoas físicas) provavelmente não
arrecadará nada também, pois não haverá incentivo para a atividade econômica e
ocorrerão elisão e sonegação sistemáticas. Logo, é razoável supor que exista um
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nível de taxação (vamos chamar de carga tributária) ótimo; ou, fugindo ao

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economês, uma carga que gera a maior arrecadação possível: aquém ou além dela,
a arrecadação seria menor. Logo, há um limite para se tributar.

Em segundo lugar, governos podem se endividar, mas há um limite para tal, qual
seja, a disposição das pessoas em financiá-lo. Caso a dívida aumente para um nível
de risco elevado (no caso do Brasil, algo em torno dos 90% do PIB), os agentes
econômicos, famílias em última instância, somente aceitariam comprar títulos da
dívida a juros cada vez maiores, o que pode colocar a dívida numa trajetória
explosiva, ou como as economistas chamariam, Ponzi. Logo, há um limite para se
endividar.

Em terceiro lugar, governos podem emitir dinheiro, já que possuem o monopólio para
tal, definido como poder de senhoriagem. Como o custo unitário de produção,
digamos, de centenas de milhares de notas ou moedas de um Real é pequeno (com
moeda totalmente digital vai ser, de fato, quase zero), para cada um Real fabricado
gera-se uma receita de quase um Real.

Mas tudo na vida tem um, por que não dizer, preço: há um limite para a emissão de
moeda a uma taxa sempre superior à do crescimento do PIB real. Imagine uma
economia em que a arrecadação e a dívida estão no seu teto máximo e o governo
ainda incorre num déficit primário crescente (suponha que os gastos
previdenciários, com funcionalismo, com educação, saúde – essenciais, por sinal –
não param de crescer). A emissão de dinheiro gera uma receita, que será máxima
até uma determinada taxa de inflação (taxa ótima de inflação). Mas se o governo
insiste em emitir ou se os agentes percebem que ele não parará de fazê-lo, a
inflação se acelera e as pessoas se livram de moeda nacional. Moeda é demandada
como meio de transação e reserva de valor: numa super ou hiperinflação ela perde
estas duas funções e de nada adianta o governo insistir em imprimir mais e mais
dinheiro – é como produzir carne de vaca na Índia, não é bom negócio, pois não há
demanda. Logo, há um limite até mesmo para a receita de senhoriagem, dado, neste
caso, pela inflação elevada e/ou acelerada.

No Brasil pré-Real, contudo, algumas características institucionais bem peculiares


prolongavam o financiamento do governo, principalmente, via inflação. Do ponto de
vista do déficit público, ela não produzia o efeito esperado pela teoria e pelos dados
empíricos à época. O chamado Efeito Tanzi previa que inflação depreciaria o valor da
arrecadação e ampliaria o valor do gasto público, piorando desta forma o déficit
público e, no futuro, a própria arrecadação. Aqui ocorreu o contrário: como a
arrecadação tributária era indexada e o gasto, contingenciado sistematicamente,
com inflação elevada e eventualmente com sua aceleração, o déficit público era
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ajustado ex post. O chamado Efeito Bacha-Guardia (referência aos economistas que

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abordaram o tema, Eduardo Guardia e Edmar Bacha) aqui prevaleceu: a inflação


diminuía o déficit! Contorna-se, mesmo que temporariamente, uma restrição ao
financiamento do governo. O governo aprendeu a conviver – e se acostumou – com
a inflação, desfrutando dela.

Por outro lado, quando a inflação estava nos níveis mais elevados, o sistema
bancário criou uma inovação institucional: contas bancárias nas quais os depósitos
à vista eram indexados à inflação do dia anterior. Instrumento genial, pelo menos
para as pouquíssimas famílias das classes A e B bancarizadas, mas sem beneficiar
os quase 65% da população que ficavam entre pobre e miserável, no período do final
dos anos 80 até a primeira metade dos 90 do século passado. Esta jabuticaba (o
Efeito Tanzi invertido não deixa de ser outra) manteve um pouco mais a capacidade
de obtenção de receita de senhoriagem. Muito provavelmente devido a estas regras
do jogo, bem peculiares por sinal, não tenhamos vivido uma hiperinflação aberta no
Brasil, mas uma superinflação, até o Plano Real. As famílias ricas aprenderam – e se
acostumaram – a conviver com a inflação e o governo obteve graus de liberdade a
mais para usar a receita de senhoriagem.

No Brasil pós-Real observamos um aumento significativo da carga tributária e da


dívida pública, já que aparentemente o imposto inflacionário foi substituído por
tributo e dívida. Não há espaço aqui maiores detalhes, mas em última instância o
juro ancorou o Real, pois não ocorreu um ajuste fiscal de facto até o governo Lula.
Por outro lado, reformas institucionais importantes para a disciplina e controle dos
gastos foram aprovadas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Era, talvez, o
possível a ser realizado à época, mas o Plano Real precisava de uma sequência
lógica e prática, um “Plano Real 2”, por assim dizer. Essa possibilidade talvez agora
se coloque com a emenda constitucional do teto de gastos.

A Constituição de 1988 impõe aumento do gasto social e vinculação de parte do


mesmo, apesar de repetidos ajustes que por meio de emendas constitucionais
mitigaram parcialmente essa determinação inicial, mediante o Fundo Social de
Emergência (FSE), depois repetido na forma de Fundo de Estabilização Fiscal (FEF)
e, finalmente, Desvinculação das Receitas da União (DRU).

O gasto social aumenta desde os governos FHC, na verdade, pelo simples fato de
que o que foi acordado na Carta está desde então a ser implementado.
Notadamente, o gasto previdenciário, que é gasto social relevante. O problema é que
há outros também, inclusive aqueles que tiram do penhor o futuro do país, como o
Bolsa Família e educação.

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Tendo em vista esse comprometimento constitucional do gasto público, que torna a


trajetória fiscal insustentável, não seria honesto nem do ponto de vista analítico, nem
dos fatos e dados, imputar todo o descontrole fiscal ao Governo Dilma. Essa gestão
pode ter contribuído, com sua política econômica, para o agravamento do quadro.
Contudo, o mais importante é o elemento estrutural.

O problema é que o arranjo constitucional anterior à emenda do teto congela parte


do conflito distributivo, produzindo a ilusão de não conflito distributivo ou da sanção
do mesmo via imposto inflacionário.

Há também ilusão tributária no Brasil: criar novas alíquotas do IRPF, imposto sobre
fortunas, herança e até dividendos, são medidas que podem ter implicações sobre
justiça tributária, mas não destravam o algoritmo do gasto insustentável. O mesmo
vale para a cobrança de dívidas previdenciárias ou ativas da Receita.

Sem considerar a justiça distributiva, poder-se-ia até mesmo sugerir o aumento de


impostos indiretos, apesar de já serem eles bastante elevados, mas isso também
não resolveria o problema. De fato, mesmo com a implementação lenta e gradual da
Lei nº 12.741/2012, de transparência tributária, as pessoas não estão acostumadas
a ver o quanto de carga indireta de impostos pagam quando compram uma roupa,
por exemplo. No Canadá, quando houve a implementação de um IVA, demorou um
certo tempo para a população, na média, educar-se tributariamente (saber quanto
custa o Estado e políticas públicas, fora o IRPF). Observe-se uma nota fiscal típica: lá
aparece a carga tributária estimada, pois a legislação de ICMS varia de estado para
estado, encerrando contradições e problemas de mensuração que dificultam a
transparência completa nesta questão. Por isso, não sabemos na prática, com
exatidão, a carga tributária indireta incidente sobre, digamos, o preço de uma
aspirina. Apesar disso, sua regressividade é um tanto consensual entre analistas,
bem como o entendimento de que ela é elevada – e as pessoas, mais cedo ou mais
tarde, vão se educar tributariamente, elevando o risco de intolerância tributária.

Num contexto de ausência de teto restaria o imposto inflacionário: a hiperinflação,


com seus efeitos regressivos, dissonância cognitiva coletiva e ilusão de não conflito.
A emenda do teto desarma temporariamente este mecanismo e, no jargão coloquial,
coloca o bode do conflito distributivo na sala. Esta não é sua única finalidade, mas é
a mais sutil. Contudo, para entender suas implicações, precisamos decifrar o
mecanismo naturalmente conflitivo que subjaz às políticas públicas.

Em 1964, o cientista político norte-americano Theodore Lowi publicou uma resenha


bibliográfica que rapidamente ganhou o status de artigo e tornou-se uma referência
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fundamental para o estudo das políticas públicas (“American Business, Public Policy,

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Case-Studies, and Political Theory”, World Politics, Vol. 16, No. 4, Jul.). Nela, Lowi
distingue quatro tipos básicos de políticas públicas: constitutivas, regulatórias,
distributivas e redistributivas.

Constitutivas são políticas que detalham procedimentos e regras decisórias e de


conduta – tal como se esperaria das normas fundamentais de uma constituição (e
daí seu nome). Assim, os regulamentos eleitorais, os procedimentos judiciais e os
critérios de ingresso no serviço público podem ser pensados como políticas
constitutivas. Espera-se que sejam em boa medida neutros, pois deverão configurar
as condições de disputa partidária, de litigância judicial e de competição por
empregos públicos para diferentes atores, sem favorecer de antemão quem quer
que seja. Tendo isso em vista, ainda que possa haver discordâncias quanto a quais
políticas são as melhores, uma vez fixadas, tendem a se manter sem contínuas
disputas sobre sua manutenção ou alteração.

Já políticas regulatórias são aquelas que estabelecem regras gerais para setores da
sociedade, especialmente ramos de atividade econômica. Devido a essa provável
generalidade (ao menos em princípio), podem opor claramente diferentes
segmentos interessados – ou não. Imaginemos uma regulamentação do setor de
combustíveis que determine a quantidade álcool a ser adicionada à gasolina. Se a
regulação determinar uma quantidade maior, ganharão os produtores de etanol,
perdendo os de gasolina; se for menor, inverte-se o ganho. Nesse exemplo, portanto,
a regulação pode produzir ganhadores e perdedores claros, impactando suas
estratégias políticas e tornando-os adversários. Noutros casos talvez não haja esse
mesmo efeito, o que tende a mudar as alianças e os conflitos em torno da política.
Suponha-se, por exemplo, que em vez de regular a quantidade de cada produto, haja
uma regulação que determine as especificações dos veículos do transporte de
combustível. É provável que neste caso tanto produtores de etanol como de gasolina
tenham interesses comuns e, consequentemente, em vez de competir, aliem-se.

Tanto as políticas constitutivas como as regulatórias, contudo, dizem pouco respeito


(ao menos de forma direta) ao orçamento e ao gasto públicos. Com relação a esses,
o que realmente importa são os outros dois tipos de políticas – as distributivas e as
redistributivas.

Distributivas são as políticas que não produzem claros ganhadores e perdedores;


consequentemente, produzem menos conflito político imediato, pois têm um caráter
segmentado e baseiam-se na distribuição pulverizada de recursos relativamente
abundantes: emendas parlamentares ao orçamento, visando atender bases
eleitorais mediante a realização de obras públicas numa localidade, são típicas
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políticas distributivas. Ilustrativamente, não há porque o deputado X incomodar-se

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com a emenda orçamentária aprovada por seu colega Y, que destinou alguns
milhares de reais para a construção de um ginásio de esportes no município em que
obtém a maior parte de seus votos. Mesmo porque, o deputado X provavelmente
também pôde destinar outros milhares de reais à construção de uma unidade de
saúde no bairro da grande cidade onde amealha a maior parte de seus sufrágios.
Como se nota, na política distributiva, havendo recursos, todos ganham e, por isso,
não têm porque brigar; em vez disso, tendem a se apoiar mutuamente, sobretudo se
não estiverem numa disputa direta noutros âmbitos. É um jogo de soma positiva.

Por outro lado, as políticas redistributivas são aquelas que opõem mais fortemente
distintos grupos sociais, pois lhes impõem ganhos e perdas claros, transferindo
recursos de uns para outros. Assim, uma mudança da tabela do imposto de renda,
aumentando as alíquotas dos mais ricos e reduzindo as dos mais pobres, é uma
típica política redistributiva. Seu caráter de perde-ganha (possivelmente de um jogo
de soma-zero) faz com que a possibilidade do conflito político aumente, opondo
claramente eventuais ganhadores e perdedores. O mesmo vale se tratamos de
políticas voltadas à determinar os ganhos do capital e do trabalho, ou da disputa por
recursos orçamentários escassos em que a destinação do dinheiro para uns
necessariamente requer a não destinação para outros – ou, o que pode ser ainda
mais importante, a retirada dos outros.

Mais do que classificar os tipos de políticas, o grande feito de Lowi foi perceber que
cada um deles enseja diferentes tipos de disputa política – ou, na formulação que se
tornou célebre entre os cientistas políticos, “policy determines politics” (a política
pública determina o jogo político, em tradução livre).

Pois então, o principal efeito político gerado pela emenda constitucional do teto de
gastos é a transformação do conflito orçamentário no Brasil, já que este deixa de se
dar nos marcos da política distributiva e passa a ocorrer segundo a política
redistributiva. Mesmo os temores de prejuízo às áreas sociais ocorrem justamente
por causa desta transformação e das expectativas que ela produz – Lowi, aliás,
notava que são as expectativas quanto ao resultado da redistribuição (não o
resultado propriamente) que direcionam o conflito político nessa arena.

Considere-se o caso da saúde. Durante ao menos os últimos 25 anos, o debate


sobre o financiamento da saúde pública priorizou a obtenção de receitas adicionais
– daí a criação do IPMF, depois transformado em CPMF e os repetidos clamores
pela sua volta. Ou seja, o financiamento da saúde era um problema puramente
distributivo: obtinham-se os recursos de uma forma qualquer e, uma vez com o
dinheiro à disposição, atendia-se à demanda.
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A saúde fazia isto, mas não estava sozinha, pois outros setores do governo
tentavam fazer o mesmo, com maior ou menor sucesso. Em particular no que diz
respeito aos gastos com pessoal, como se tratava de uma despesa irredutível, que
deveria na realidade aumentar cada vez mais em função dos reajustes salariais, da
progressão nas carreiras, da contratação de novos servidores e das melhorias de
remuneração, sempre era necessário buscar novos recursos para assegurar a
alocação distributiva dos gastos.

Com a limitação total do gasto público, a obtenção de recursos adicionais e


exclusivos perde sentido; o problema passa a ser de onde tirar (e de quem tirar) para
que se possa alocar onde quer que seja – na saúde ou na remuneração das
carreiras mais abastadas do funcionalismo público. Ou seja, o financiamento desses
gastos passa a ter que ser resolvido na arena redistributiva, ensejando assim
conflitos políticos muito mais agudos e, consequentemente, a explicitação dos
interesses em disputa.

Um risco inegável dessa transformação é o de fazer com que os segmentos


tradicionalmente mais organizados e com maior poder de lobby – em especial as
corporações mais privilegiadas do setor público – pressionem para que a
redistribuição se dê em seu favor, sacrificando as áreas sociais, cujos beneficiários
são dispersos e desorganizados. Por outro lado, a transposição do conflito
orçamentário para a arena redistributiva tende a dar maior transparência à
repartição do bolo, permitindo uma percepção mais clara de sua natureza pelo
público e atraindo mais a atenção dos meios de comunicação. Consequentemente,
as corporações e demais setores privilegiados, se insistirem em abocanhar fatias
maiores dos recursos públicos em detrimento dos gastos sociais e outros
dispêndios de maior apelo social, terão de lidar com a pressão social, tendo que
justificar seu favorecimento à luz do dia – e não mais na penumbra propiciada pela
política orçamentária distributiva. Numa democracia, não é tão fácil assim enfrentar
esse tipo de pressão, como fica cada vez mais claro no debate acerca da reforma
previdenciária e na discussão sobre os elevados salários (acima do teto
constitucional) das carreiras judiciárias.

A emenda do teto de gastos está longe de ser uma medida perfeita. Ela tem
problemas e, como já apontado por muitos, um deles é o prazo dilatado para a sua
vigência (20 anos), com a primeira revisão prevista apenas uma década após sua
promulgação, mediante lei complementar proposta pela Presidência da República.
Quanto a isto, porém, vale notar que num país que aprovou 104 emendas
constitucionais em 29 anos de vigência da Carta (98 pelo rito ordinário e 6 de
revisão), não seria de surpreender alguma medida corretiva – mediante
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emendamento constitucional – antes que seja transcorrido esse decênio previsto na

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norma. Até lá, contudo, o conflito redistributivo que estará posto nessa e noutras
questões relacionadas tenderá a explicitar quem são os verdadeiros ganhadores e
perdedores da disputa pelo orçamento público no Brasil. Eles não apenas terão de
explicar ao público, mas se tornarão seus alvos.

MARCOS FERNANDES G. DA SILVA – Brasília

CLÁUDIO GONÇALVES COUTO – Possui graduação em Ciências Sociais (1991), mestrado em Ciência
Política (1994) e doutorado em Ciência Política, todos pela Universidade de São Paulo (2000). Realizou
estágio de pós-doutorado na Universidade de Columbia (EUA) com apoio da CAPES (2005-6). Atualmente é
professor adjunto do Departamento de Gestão Pública e Coordenador do Mestrado Profissional em Gestão
e Políticas Públicas.

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