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INTENSIVO I

Disciplina: Direito Penal


Prof. Luiz Flávio Gomes
Aula 07

MATERIAL DE APOIO - PROFESSOR

TCD-TIPICIDADE-AULA DE DIREITO PENAL


MARÇO DE 2011
PROF. LUIZ FLÁVIO GOMES

As principais teses (hipóteses de trabalho) sustentadas pela TCD (há livro no prelo sobre o assunto, RT)
são as seguintes:

(a) que não existe crime sem lei (CF, art. 5º, inc. XXXIX) e que a lei diz que não existe crime sem
resultado (CP, art. 13);

(b) que o resultado, “de que depende a existência do crime” (CP, art. 13), só pode ser o resultado
jurídico, que significa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico; não existe crime sem ofensa ao
bem jurídico protegido pelo Direito penal (essa é a primeira tese da teoria constitucionalista do delito);
esse resultado jurídico tem que ocupar seu espaço dentro da tipicidade (e, por conseguinte, dentro do
delito);

(c) que o conceito de crime, do ponto de vista analítico, exige dois requisitos: fato típico e antijurídico;

(d) que crime não é a mesma coisa que fato punível (este exige três requisitos: fato típico +
antijuridicidade + ameaça abstrata de pena-punibilidade);

(e) que crime não é a mesma coisa que fato culpável (este exige três requisitos: fato típico +
antijuridicidade + culpabilidade);

(f) que crime não é a mesma coisa que fato punível e culpável (este exige quatro requisitos: fato típico +
antijuridicidade + punibilidade (ameaça de pena) + culpabilidade);

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(g) que não existe crime sem tipicidade, que se biparte em objetiva e subjetiva (nos crimes dolosos);

(h) que a tipicidade penal objetiva (agora) se biparte em formal e material;

(i) que, nos crimes dolosos, a tipicidade penal conta então com as seguintes dimensões: tipicidade
objetiva formal, tipicidade objetiva material mais tipicidade subjetiva;

(j) que a partir da visão constitucionalista do delito a tipicidade penal objetiva passou a contar com um
novo requisitivo, de natureza normativa (estamos nos referindo à sua dimensão material);

(k) que essa dimensão material da tipicidade objetiva, depois da reelaboração e sistematização das
teorias da imputação objetiva de Roxin (1970) e da tipicidade conglobante de Zaffaroni (década de
1980), é composta de dois juízos valorativos: (1º) juízo de valoração da conduta e (2º) juízo de
valoração do resultado jurídico;

(l) que o método adequado de compreensão do delito é o deontológico;

(m) que o direito penal brasileiro é predominantemente objetivista.

Sintetizando: para a teoria constitucionalista não existe crime sem ofensa ao bem jurídico (porque não
existe crime sem resultado, como diz o art. 13 do CP). O crime possui dois requisitos: fato típico e
antijurídico (adotamos o conceito bipartido de crime). O fato típico, nos crimes dolosos, biparte-se em
parte objetiva e parte subjetiva. A parte objetiva biparte-se em dimensão formal e material. A dimensão
material biparte-se em dois juízos valorativos: (a) da conduta e (b) do resultado jurídico.

Contribuição de Roxin

O ponto de partida da grande revolução funcionalista (pós-finalista) no Direito penal deu-se em 1970 com
a teoria da imputação objetiva de Roxin. Aliás, o que estamos chamando de teoria constitucionalista do
delito é fruto inequívoco dessa reviravolta na dogmática penal que, a partir de Roxin (especialmente com
sua obra de 1970: Kriminalpolitik und Strafrechtssystem - Política criminal e Sistema do Direito penal,
trad. de Muñoz Conde, Barcelona, 1972), passou a possibilitar a inclusão, na tipicidade objetiva, de uma
nova dimensão (material ou normativa), fundada em dois juízos valorativos novos (ou seja: dois filtros
novos que passaram a compor a tipicidade objetiva): (1) valoração da conduta e (2) valoração do
resultado (jurídico ou normativo). São dois requisitos novos da tipicidade objetiva, sem os quais não há
que se falar em tipicidade penal (em sua configuração conglobada).

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Antes de Roxin a tipicidade penal era dividida em tipicidade objetiva e subjetiva (de acordo com a
doutrina finalista de Welzel). A tipicidade objetiva era puramente formal. A partir de Roxin (e da sua
teoria da imputação objetiva) a tipicidade objetiva tornou-se bipartida: lado formal e lado material. O
novo aspecto material da tipicidade é o que lhe caracteriza na era da pós-modernidade. O fato, para ser
típico, não basta ser (só) formalmente típico. O fato (penalmente relevante) também deve ser
materialmente típico.

Nunca ficou fora de discussão se o resultado, no Direito penal, seria (só) o naturalístico ou se seria
também o jurídico (normativo). Também nunca se tornou indiscutível se a imputação objetiva é (só) da
conduta ou (também) do resultado (ou de ambas). Tudo isso, na obra de Roxin, ainda continua pendente
de um juízo final (ou seja: ainda não existe consenso absoluto em torno das sutilezas dogmáticas
desenvolvidas por Roxin). Aliás, no princípio, imagina-se que Roxin tivesse desenvolvido a teoria da
imputação objetiva pensando exclusivamente nos crimes culposos (negligentes). Hoje tornou-se
consendo de que essa teoria vale para todos os crimes (dolosos ou culposos, consumados ou tentado,
comissivos ou omissivos etc.).

A TCD é uma visão (e tentativa de sistematização) sobretudo da teoria de Roxin (sem prejuízo da análise
também da teoria da tipicidade conglobante de Zaffaroni). Existem muitas outras formas distintas de ver
essas teorias. Nós procuramos sistematizá-las da nossa maneira (enquadrando-as no que estamos
chamando de tipicidade material). De acordo com nossa sistematização, a tipicidade objetiva passou a
contar com dois aspectos: o formal e o material. O conteúdo deste último (material) foi fornecido
sobretudo pelas doutrinas de Roxin e de Zaffaroni, sem prejuízo do acréscimo de uma ou outra
contribuição minha (como notará o estiminado leitor).

De qualquer modo, parece certo que o penalista (e o Direito penal) do terceiro milênio já não pode
ignorar as inovações trazidas pelo funcionalismo (teleológico) de Roxin assim como outras sínteses
funcionalistas (como a de Zaffaroni ou a nossa), que concebe uma nova dimensão na teoria da tipicidade
objetiva, a material, já reiteradamente citada, aceita e (praticamente) consolidificada inclusive na mais
avançada jurisprudência nacional (como leading case, confira o HC 84.412, do STF, rel. Min. Celso de
Mello):

“PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECO-


NHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA
TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM
DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVA-
LENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM
TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFI-
CA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio

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da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da in-
tervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicida-
de penal, examinada na perspectiva de seu caráter material.”

Neste HC, como pode observar o estimado leitor, há expressa menção ao aspecto material da tipicidade
objetiva (“Princípio da insignificância. Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento
desse postulado de política criminal. Consequente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto
material...).

No que diz respeito ao acolhimento da teoria da imputação objetiva, louvável foi a decisão do STJ (STJ,
HC 46.525-MT, Quinta Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves, j. 20.03.06), que sublinhou:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO. MORTE POR AFOGAMENTO NA PISCINA.
COMISSÃO DE FORMATURA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE PREVISIBI-
LIDADE, DE NEXO DE CAUSALIDADE E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO DA CON-
FIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.
1. Afirmar na denúncia que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos
outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito" não atende satisfatoriamente aos requisitos do
art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denúncia ou
queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusa-
do ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o
rol das testemunhas".
2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das condutas, quan-
do se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica,
que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, conside-
rando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pes-
soa que jogou a vítima na piscina.
3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias
psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal,
ausente o nexo causal.
4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da
vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de
uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Co-
missão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de
uma festa.
5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as
pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a
afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, compor-

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tando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos
pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta.
6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de pre-
visibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os de-
nunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal

A tipicidade penal objetiva, a partir dessa nossa visão constitucionalista (e pós-moderna) do delito (que
constitui uma nova síntese posterior e ao mesmo tempo coligada com as teorias de Roxin e de Zaffaroni),
passa a contar com duas dimensões: 1ª) formal; 2ª) material ou normativa. A segunda delas (a dimen-
são material ou normativa), de acordo com nossa visão constitucionalista, é composta de dois juízos va-
lorativos sumamente relevantes (e bem demarcados) que são:

1º) juízo de valoração (de desaprovação) da conduta: cabe ao juiz verificar o desvalor da conduta, ou
seja, se o agente, com sua conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante; essa criação ou
incremento de risco proibido relevante era enfocada por ROXIN como parte integrante da teoria da impu-
tação objetiva. Frisch, entretanto, muito acertadamente, entende que a criação ou incremento de risco
proibido não é uma questão de imputação objetiva, sim, de desaprovação da conduta; nós reputamos
como correto o posicionamento de Frisch, mas não negamos o valor da construção de Roxin, fundada na
teoria do risco proibido, daí o seu aparecimento como base do juízo de valoração da conduta;

2º) juízo de valoração (de desaprovação) do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado jurídico que
é a ofensa ao bem jurídico fundada nas seguintes exigências: ofensa concreta, transcendental, não insig-
nificante, intolerável, objetivamente imputável ao risco criado e que esteja no âmbito de proteção da
norma).

Há muita polêmica sobre qual seria a correta localização do juízo de desaprovação da conduta, que nada
mais significa que a constatação do “desvalor dessa mesma conduta”. Para ROXIN ele faz parte da teoria
da imputação objetiva do resultado. Para FRISCH esse juízo é autônomo e não se confunde com a imputa-
ção objetiva do resultado. Cremos que a razão está com o último autor. Nossa sistematização (nova sín-
tese) acolhe o pensamento crítico de Frisch (mas jamais vai negar o valor insuperável da contribuição de
Roxin).

Antes dessa nossa visão sintetizadora e constitucionalista do delito (que está agregando ao fato típico
objetivo com toda clareza a necessidade de ofensa concreta ao bem jurídico, imputável ao risco criado
pela conduta, ou seja, um novo aspecto material), o fato típico objetivo era puramente formal. Agora o
fato típico objetivo passou a contar, também, com uma dimensão material.

Com a nossa síntese constitucionalista do delito (defendida desde 2001 em nossa tese de dou-

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toramento em Madrid) o fato típico doloso continua com duas dimensões (a objetiva e a subjetiva), po-
rém, a primeira se desdobra em dimensão formal e material. Esta segunda dimensão (material ou nor-
mativa) passou a ser composta de dois juízos valorativos distintos, que são: juízo de valoração (de desa-
provação) da conduta (desvalor da conduta) + juízo de valoração (de desaprovação) do resultado jurídico
(desvalor do resultado).

Sintetizando: o que mudou na teoria da tipicidade objetiva, depois dos funcionalismos de Roxin, Zaffaroni
e da nossa contribuição sistematizadora, foi a inserção, dentro dela, de um novo aspecto (de uma nova
dimensão): dimensão material. A tipicidade objetiva passou a ser formal e material (ao mesmo tempo),
sendo certo que cada uma delas conta com exigências próprias.

Há quase duas décadas estamos investigando as bases (e perspectivas) da teoria constitucionalista do


delito. Não paramos um dia sequer de buscar aprimoramentos. Nenhuma ideia nasce pronta. Nós, aliás,
como seres humanos imperfeitos, não nascemos prontos. Quem leu meus primeiros trabalhos sobre o
tema vai veririficar algumas diferenças (evolutivas) com o que estamos apresentando agora (“Não há
nada permanente, exceto a mudança” – Heráclito). É que o trabalho construtivo (científico) exige uma
contínua evolução (e aprimoramento). As interconexões, as relações, as sintetizações e sinapses de todas
as ideias (que se cruzam, que se mesclam, que se excluem, que se complementam) muitas vezes
demandam certo tempo para o total e absoluto entrelaçamento. Ninguém sabe a idade certa para a
maturação das ideias, só se sabe que isso não acontece da noite para o dia.

Estou feliz, de qualquer modo, por saber que em setembro de 2010, na pesquisa do google, a locução
teoria constitucionalista do delito aparece com milhares (e milhares) de resultados. Muitos concursos
começam a formular perguntas relacionadas com o tema. Vários acórdãos já enfrentaram o assunto (HC
84.412, do STF, por exemplo). Que avanço extraordinário e surpreendente! Sempre acreditei que
também a teoria constitucionalista do delito seria uma obra póstuma (no sentido de Nietzche). Que
surpresa agradável ver que sua compreensão (e aplicação) está acontecendo com mais velocidade que a
imaginada.

O detalhamento (e aprofundamento) dessas ideias matrizes foi feito nos volumes 1 e 2 da nossa Coleção
Ciências Criminais (São Paulo: RT). Tomamos a liberdade de remeter o caro leitor para esses dois livros.

Há juiz que ainda não aceita o princípio da insignificância

Caso concreto: A 8.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro1 reformou uma sentença
do juiz de primeira instância da comarca de Cachoeiras de Macacu, Doutor José Eduardo Hablitschek, que

1
Cf. Gazeta Mercantil, p. A-11, 07 dez. 2000.

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absolveu o acusado de um furto de um repelente, de um supermercado, que custava R$ 11,00. Deu-se a
absolvição com base no princípio da insignificância (ou da “bagatela”).

Comentários: O Desembargador (relator) entendeu que o juiz “agiu mal” [com a devida venia, devemos
discordar dessa valoração crítica equivocada]. Salientou em seguida que “o princípio da bagatela é uma
aberração do direito pátrio” [como sabemos, não é; não é aberração nem aqui nem no direito estrangei-
ro, particularmente depois do famoso artigo de ROXIN, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, p. 24, em
JUS, 1964]. A Justiça, consoante sua perspectiva, “deve ser punitiva e exemplar” [a Justiça penal é puni-
tiva por excelência, mas todas as vezes que procurou kantinianamente ser exemplar, tropeçou no princí-
pio da proporcionalidade e da culpabilidade, tornando absolutamente irracional o poder punitivo; cada um
deve ser punido na medida da sua culpabilidade; quando o juiz toma um réu como “bode expiatório”,
este acaba pagando mais do que devia, só para servir de exemplo para os demais; tudo isso conflita com
o princípio da proporcionalidade e revela desequilíbrio, falta de ponderação, falta de razoabilidade na de-
cisão; é o exercício absurdamente irracional do poder punitivo, típico do Estado de Polícia].

Segundo o que se noticiou, “o Desembargador afastou a absolvição, condenou o réu e aumentou a pena
normal prevista para o crime de furto”, porque considerou o réu “reincidente”, pois “já ostenta uma con-
denação por furto qualificado”. A notícia complementa: “mas do processo consta que M. foi absolvido pela
13.ª Vara Criminal” [em suma: pelo que foi noticiado, o Desembargador levou em conta para efeito da
reincidência um processo em que o acusado tinha sido absolvido; logo, o acusado, a ser verdade o que o
jornal noticiou, não era reincidente].

De qualquer modo, ainda que fosse, recorde-se que, hoje, mesmo o reincidente em crime doloso pode
eventualmente ser beneficiado com penas substitutivas (CP, art. 44, § 3.º). De outro lado, a reincidência
tampouco impede o reconhecimento do princípio da irrelevância penal do fato.

Acompanharam o relator dois outros Desembargadores. Cuidou-se de um caso em que o réu não contava
com advogado no julgamento e, nessas ocasiões, “o julgamento das apelações nas câmaras criminais não
costumam demorar mais que três minutos”. Os Desembargadores por último citados “acompanharam o
voto do relator, como usualmente acontece nos julgamentos das apelações” (que pena que nem sequer
tenha havido um voto vencido, que iria permitir os embargos infringentes).

O Juiz de primeiro grau, mesmo “reservando-se o direito de discordar”, expediu o mandado de prisão.
Salientou, ademais “que uma pessoa com recursos para contratar um bom advogado recorreria dessa
decisão do Tribunal”, porque se trata de um objeto de valor ínfimo e, de outro lado, não houve prejuízo
para o supermercado. Esse argumento, salientou-se, “tem amplo amparo do Superior Tribunal de Justiça
(STJ), que tem se manifestado reiteradamente contra o excesso de recursos envolvendo matérias de es-
cassa importância, atravancando o funcionamento dos tribunais superiores”.

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O Promotor que oficiou no caso, discordando do reconhecimento da insignificância, recorreu da decisão e
argumentou: “a ausência de reprimenda estatal (...) configura afronta à lei penal em vigor” (nessa visão
napoleônica e puramente formalista embarcou o Desembargador relator que acrescentou: “se essa moda
pega, os supermercados iriam à falência”).

O dono do supermercado, C. de S. L., ficou estarrecido e surpreso quando soube da condenação de M.:
“Meu Deus! eu só queria dar “uma dura” nele; ele devolveu o repelente e até se ofereceu para pagar,
mas só tinha R$ 3,50 no bolso” [como se vê, muitos seres humanos, ainda que leigos, são dotados de
bom senso; a declaração do dono do supermercado, que evidentemente não é juiz, foi indiscutivelmente
sensata; Le bon sens est la chose du monde la mieux partagée].

O Desembargador que atuou no processo não achou exagerada a pena (de mais de um ano, pelo furto de
um repelente que custava R$ 11,00): “É o que estabelece a lei”, diz ele. Quanto às penas alternativas
afirmou: “É uma balela”; “construção de cadeias é um problema do Executivo”. É favorável à pena de
morte e cita Santo Agostinho para lembrar que a sociedade tem o direito de extirpar o membro compro-
metido, “como o médico amputa um membro necrosado”.

Sempre com a devida venia, na nossa concepção é estarrecedora e chocante a decisão ora sob análise.
Não menor foi a perplexidade que nos causaram as declarações posteriores do Desembargador. Com a-
guda visão repressiva (kantiana, hegeliana), continua distribuindo “justiça” desde uma perspectiva de
vida que encara o mundo constituído e dividido entre seres humanos perfeitos e membros “necrosados”.
Que equívoco estrondoso! Quantos anos necessitamos viver para descobrir que somos (todos) seres hu-
manos imperfeitos?

Justamente porque não somos perfeitos temos que ter (dentro dos limites do justo e do razoável) com-
paixão. Aliás, compaixão (consigo mesmo e com o próximo) só a tem quem já descobriu que é muito
pouco (ou quase nada). O juiz que ainda nada sabe sobre a essência humana e, ademais, conta com o
deficit de não conseguir distinguir entre “lei” e “Direito”, sempre terá grandes dificuldades em vislumbrar
qualquer coisa que esteja além do âmbito da literalidade normativa (como é o caso do princípio da insig-
nificância). Um juiz desse tipo jamais atenderá a máxima kantiana que diz: “Obre de modo que tua ação
possa servir de norma a todos os homens”.

Se todos os juízes fossem conscientes da ninharia que é a “condição humana”, certamente não praticari-
am absurdos inominados como o que acaba de ser descrito. Recordemos, por oportuna, uma das mais
brilhantes advertências de UNAMUNO:

“Según te adentras en ti mismo y en ti mismo ahondas, vas descubriendo tu propia inanidad,

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que no eres todo lo que eres, que no eres lo que quisieras ser, que no eres, en fin, más que nonada. Y al
tocar tu propia nadería, al no sentir tu fondo permanente, al no llegar ni a tu propia infinitud ni menos a
tu propia eternidad, te compadeces y te enciendes en doloroso amor a ti mismo, matando lo que se llama
amor propio, y no es sino una especie de delectación sensual de ti mismo, algo como un gozarse a sí
misma la carne de tu alma. El amor espiritual a sí mismo, la compasión que uno cobra para consigo,
podrá acaso llamarse egoísmo; pero es lo más opuesto que hay al egoísmo vulgar. Porque de este amor
o compasión a ti mismo, de esta intensa desesperación, porque así como antes de nacer no fuiste, así
tampoco después de morir serás, pasas a compadecer, esto es, a amar a todos tus semejantes y herma-
nos en aparencialidad, miserables sombras que desfilan de su nada a su nada, chispas de conciencia que
brillan un momento en las infinitas y eternas tinieblas. Y de los demás hombres, tus semejantes, pasando
por los que más semejantes te son, por tus convivientes, vas a compadecer a todos los que viven y hasta
a lo que acaso vive pero existe” (UNAMUNO, Miguel, Obras selectas, Madrid: Espasa, 1998. p. 137).

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