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setembro

dezembro REVISTA PORTUGUESA


2018
DE

CIÊNCIA CRIMINAL
ANO 28 ● N.º 3 ● setembro-dezembro 2018 ● DIRETOR: JORGE DE FIGUEIREDO DIAS

REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA CRIMINAL


Periodicidade quadrimestral • Preço desta edição: Euros 20,00 (IVA incluído)

SEPARATA

I.D.P.E.E ANO 28

3
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
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RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS...
DE CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO (1)

Heloisa Estellita
Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas
Pós-doutora pelas Universidades de Munique e Augsburg, na Alemanha
Doutora em Direito Penal pela Universidade de São Paulo

A. Introdução

Em novembro de 2015, um desastre ambiental colocou o Bra-


sil nas capas dos noticiários mundiais. A queda de uma barragem

(1)
Este artigo é um resumo de parte da pesquisa de pós-doutorado reali-
zada nas Universidades de Munique e de Augsburg, Alemanha, de 2014 a 2017,
financiada pela Fundação Alexander von Humboldt e CAPES. A íntegra da
pesquisa foi publicada no Brasil em 2017 (Heloisa Estellita, Responsabilidade
de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva
imprópria de dirigentes de sociedades por ações, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa, Madri; Barcelo-
na; Buenos Aires; São Paulo: Marcial Pons, 2017). O estudo abrange também os
efeitos da departamentalização e da delegação de tarefas na cúpula das empresas,
a posição de garante dos encarregados de vigilância (compliance officers) e o
estudo da posição de garantidores nas sociedades limitadas, além de observações
quanto aos demais pressupostos da punibilidade omissiva imprópria. Em razão
dos limites de espaço, não pude reproduzir a integralidade da discussão e da fun-
damentação feitas naquela sede, à qual, portanto, remeto o leitor.

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de contenção de rejeitos de mineração causou uma enxurrada de


lama que destruiu um vilarejo, causou a morte de mais de uma de-
zena de pessoas, lesões corporais em tantas outras, além de danos
patrimoniais e um impacto ambiental gravíssimo (2). A barragem
pertencia a uma sociedade por ações (ou, sociedade anônima) con-
trolada por duas grandes empresas do ramo de mineração. Apesar
de não negociada em bolsa, essa sociedade anônima tinha sua ad-
ministração estruturada de forma dual, ou seja, com dois gran-
des órgãos na cúpula: o conselho de administração e a diretoria.
Apesar de a gestão da barragem ser incumbência dos membros
da diretoria, a acusação apresentada voltou-se também contra os
membros do conselho de administração, imputando-lhes crimes de
homicídio e ambientais na forma omissiva imprópria (3). Também
as práticas criminosas investigadas no âmbito da Operação Lava
Jato colocaram o Brasil no noticiário internacional (4). Uma parte
dos fatos ali apurados revela práticas criminosas como corrupção
e fraude a licitações envolvendo funcionários públicos de uma
empresa de economia mista aberta, práticas criminosas levadas a
cabo por membros da diretoria e estratos gerenciais a ela subor-
dinados, ainda sem acusações contra os membros do conselho de
administração, é verdade, mas cuja responsabilidade omissiva não
estaria, em princípio, descartada.

Esses dois exemplos retratam um dentre os temas caros à dog-

(2)
Em várias línguas e com links para noticiários locais, cf. https://pt.wiki-
pedia.org/wiki/Rompimento_de_barragem_em_Mariana; https://en.wikipedia.org/
wiki/Bento_Rodrigues_dam_disaster; https://es.wikipedia.org/wiki/Cat%C3%A1s-
trofe_de_las_represas_de_Bento_Rodrigues; https://de.wikipedia.org/wiki/Damm-
bruch_von_Bento_Rodrigues. (Acesso em 18/07/2018).
(3)
Referências ao teor das acusações nos links da Wikipédia da nota anterior.
(4)
Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Opera%C3%A7%C3%A3o_Lava_Jato
(acesso em 18/07/2018), disponível em vários idiomas e com ulteriores referências.

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mática da criminalidade econômica que é o das formas de atri-


buição de responsabilidade penal àqueles que ocupam a cúpula
da empresa e, dentre elas, da imputação omissiva imprópria por
crimes praticados por integrantes da empresa contra terceiros (5),
cujo pressuposto central é a existência da posição de garante dos
dirigentes de empresa (6). Se essa afirmação já é, por si, objeto de
polêmica, ela se torna ainda mais delicada quando aos dirigen-
tes (7) da empresa são atribuídas competências desiguais. É o que
comumente ocorre em empresas com administração dual, como é
o caso da sociedade por ações, no direito brasileiro (8) ou a Aktien-

(5)
A responsabilidade penal de dirigentes por não impedirem a prática de
crimes por outros membros da empresa pode se referir a bens jurídicos da própria
pessoa jurídica, ou a bens jurídicos de terceiros, a ela externos. O foco deste arti-
go é justamente esta segunda hipótese, na qual são bens jurídicos de terceiros os
atingidos, como retratado nos dois exemplos que inauguram o texto.
(6)
Cf. emblemática a pioneira obra de Bernd Schünemann, Unterneh-
menskriminalität und Strafrecht, München: Carl Heymanns Verlag, 1979, passim,
escrita já em 1979. Para ilustrar a atualidade e a importância do tema, apenas
neste ano de 2018, já foram publicadas na Alemanha (pelo menos) duas mono-
grafias de particular relevância: Mathias Noll, Grenzen der Delegation von
Strafbarkeitsrisiken durch Compliance: Zugleich ein Beitrag zur strafrechtlichen
Geschäftsherrenhaftung, Tübingen: Mohr Siebeck, 2018; Tobias Dössinger,
Strafrechtliche Haftungsrisiken von Mitgliedern des Aufsichtsrats in Aktienge-
sellschaften bei Compliance-Pflichtverletzungen des Vorstands, Berlin: Duncker
& Humblot, 2018. Embora central à imputação omissiva imprópria, a posição de
garante é apenas um dos pressupostos do tipo objetivo, sendo os demais, segundo
a opinião majoritária, a situação típica (resultado), a omissão de conduta determi-
nada e exigida de evitação do resultado apesar da capacidade físico-real de fazê-
-lo, o nexo de causalidade e a imputação objetiva do resultado. Discuti algumas
particularidades desses pressupostos em Heloisa Estellita, op. cit., p. 235 ss.
(7)
O termo dirigente é empregado neste texto para abranger tanto os ad-
ministradores de fato, como os de direito, designando todos aqueles que têm uma
relação juridicamente fundada com a empresa caracterizadora de um poder sobre
sua organização, total ou parcial (cf. Ibid., p. 35-36).
(8)
Nada impede que empresas estruturadas sob outras formas societárias,
como as sociedades empresárias limitadas, também optem pela constituição de

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gesellschaft, no direito alemão: nessas sociedades as competên-


cias de administração são divididas entre um órgão de represen-
tação e gestão (no Brasil, a diretoria; na Alemanha, a Vorstand)
e outro órgão de supervisão e de tomada de decisões estratégicas
(respectivamente, conselho de administração e Aufsichtsrat). Mui-
to embora a forma societária prevalente na economia brasileira
seja a da sociedade limitada (9), a análise das sociedades anônimas,
com estrutura de gestão tendencialmente mais complexa, é capaz
de oferecer subsídios para a solução de dificuldades similares no
contexto (tendencialmente) menos complexo da gestão das socie-
dades limitadas (10).
Neste artigo, pretendemos examinar justamente se e quando
é possível afirmar que os membros do conselho de administração
(adiante, apenas CA ou conselho), nessas sociedades com admi-
nistração dual, poderão ser considerados garantidores para fins de
uma potencial responsabilidade omissiva imprópria por crimes
cometidos por diretores ou empregados da companhia. Para tan-
to, será necessário traçar um brevíssimo panorama acerca da dis-
cussão sobre a posição de garantidor dos dirigentes de empresas
(adiante, B), para então discutir quem são os recipientes originá-
rios dos deveres de garantidores nessas estruturas de uma forma
geral (adiante, C), e em especial nas sociedades anônimas com
sistema dual de administração (adiante, D). Nestas, a grande polê-
mica se estabelece justamente quanto aos membros do conselho de

um conselho de administração, todavia a estrutura dual é facultativa para as so-


ciedades por ações fechadas e obrigatória para as que negociem seus papéis em
bolsas de valores, as sociedades de economia mista e as empresas públicas.
(9)
Cf. Mariana Pargendler, “Direito societário em ação: análise
empírica e proposições de reforma”, Revista de direito bancário e do mercado de
capitais, v. 16, n. 59, 2013, p. 215–256, passim.
(10)
A discussão completa sobre as sociedades limitadas encontra-se em
Heloisa Estellita, op. cit., p. 200-206.

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administração, dada sua limitada atuação na condução dos negó-


cios da companhia, razão pela qual é necessária uma análise mais
próxima do significado penal de suas competências e atribuições
(adiante, D, 2) para uma tomada de posição (adiante, D, 3).

B. O fundamento da posição de garantidor dos dirigentes


de empresas

Na disputada discussão acerca da posição de garantidor de di-


rigentes de empresas, há, essencialmente, três entendimentos: um
que se assenta no seu poder diretivo sobre os empregados, outro
que se assenta na ingerência e um terceiro que se funda no controle
dos dirigentes sobre a fonte de perigo representada pela empresa.
O primeiro entendimento baseia-se na ideia de domínio, como
fundamento comum aos crimes comissivos e omissivos. O domí-
nio do dirigente sobre o resultado típico decorreria de seu poder de
comando juridicamente fundado sobre os empregados e sobre seu
conhecimento superior acerca dos processos produtivos dentro da
empresa (11). O segundo, funda-se na pré-existência de uma organi-
zação perigosa na empresa, a qual, gerando um risco não permitido,
implica no dever de agir para evitar resultados danosos atribuído a
seus dirigentes (12). O terceiro apoia-se na ideia de correlação entre

(11)
Este entendimento foi desenvolvido por Schünemann, podendo-se
conferi-lo já em seu Bernd Schünemann, op. cit., p. 62 ss.; ou em seu texto mais
recente, traduzido para o português Bernd Schünemann, “Sobre a posição de
garantidor nos delitos de omissão imprópria - possibilidades histórico-dogmáti-
cas, materiais e de direito comparado para escapar de um caos”, in: Luís Greco
(Org.), Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito,
São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 169 ss.
(12)
Na Alemanha, cf. Werner Beulke, “Der „Compliance Officer” als Auf-
sichtsgarant? Überlegungen zu einer neuen Erscheinungsform der Geschäftsherren-
haftung”, in: Claudis Geisler et al. (Ed.), FS Klaus Geppert, Berlin: Gruyter, 2011,
p. 23–42; no Brasil, Pierpaolo Cruz Bottini, Do tratamento penal da ingerência,
2015, Tese (Livre Docência) - Universidade de São Paulo, 2015, p. 158 ss.

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liberdade e responsabilidade: o reverso da liberdade de criar e gerir


o foco de perigo empresa seria o dever (a responsabilidade) de cui-
dar para que desse foco não advenham ofensas a bens jurídicos de
terceiros ou da coletividade (13).
Ao primeiro entendimento, pode-se objetar, essencialmente,
que não corresponde à realidade atual das organizações empresa-
riais, nas quais nem sempre há um poder diretivo direto dos superio-
res sobre os subordinados. Exemplo dessa falta de correspondência
é justamente o da relação de membros do conselho de administração
em uma sociedade por ações com os empregados ou mesmo com
membros da diretoria. Ao segundo entendimento objeta-se, também
essencialmente, que faltaria frequentemente a relação de proximi-
dade exigida entre aquele que cria o risco desaprovado (ingerente) e
o resultado, proximidade essa eliminada ou seriamente reduzida em
empresas com várias camadas de gestão entre a cúpula e os encarre-
gados dos atos de execução (14). O entendimento remanescente, que

(13)
Este é o entendimento prevalente na doutrina alemã. Cf. Maxilimilian
Utz, Die personale Reichweite der strafrechtlichen Geschäftsherrenhaftung,
Berlin: Duncker & Humblot, 2016, p. 124 ss., com fartas referências bibliográ-
ficas especialmente na nota 591. Cf. também a última manifestação de Roxin
sobre o tema, Claus Roxin, “Geschäftsherrenhaftung für Personalgefahren”,
in: Cristian Fahl et al. (Ed.), FS Werner Beulke, Heidelberg: C. F. Müller, 2015,
p. 239–256. No Brasil, ilustrativamente, Renato de Mello Jorge Silveira, Di-
reito penal empresarial: a omissão do empresário como crime, Belo Horizonte:
D’Plácido, 2016, p. 205 ss.
(14)
Ademais, casos claros de responsabilidade omissiva imprópria, como
o famoso caso do spray de couro (Lederspray-Fall, Urteil des BGH v. 6.7.1990 —
2 StR 549/89, BGHSt. 37, 107), ficariam sem resposta satisfatória, posto que não
era possível afirmar uma conduta precedente ilícita, já que o produto foi comer-
cializado atendendo a todas as regras de segurança previstas na época. Cf. essa
discussão em Luís Greco; Augusto Assis, “O que significa a teoria do domínio
do fato para a criminalidade de empresa”, in: Luís Greco (Org.) et. al., Autoria
como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no
direito penal brasileiro, São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 111 ss.; e em Ronan
Rocha, A relação de causalidade no direito penal, Belo Horizonte: D’Plácido,

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se assenta no binômio liberdade-responsabilidade, é o que parece


melhor fundamentar a responsabilidade dos dirigentes: à liberdade
de gerir pessoas e coisas na consecução dos objetivos econômicos
da empresa corresponde o dever de agir para evitar que dela adve-
nham danos a terceiros ou à coletividade (15). Resta saber como isso
se dá no âmbito das empresas.

C. Dirigentes como garantidores de vigilância originários

Os perigos oriundos da gestão de pessoas e coisas na empresa


são primeiramente assumidos pela pessoa jurídica. Como, toda-
via, ela atua por meio de pessoas naturais que exercem os atos de
gestão e de representação na vida econômica, seus dirigentes são,
assim, os receptores originários dos deveres de garantidor (16), pois

2016, p. 140 ss., encontrará o leitor uma descrição detalhada do caso e da discus-
são sob o viés do nexo de causalidade.
(15)
Posição à qual me alinho em Heloisa Estellita, op. cit., p. 122-125;
discussão mais ampla e com ulteriores referências nas p. 108-125. Argumenta-se
que a autorresponsabilidade do subordinado seria um óbice geral à imputação
omissiva imprópria à cúpula por crimes por ele praticados. O argumento pode
ser superado como procuro demonstrar no trabalho apenas referido (p. 125-127)
e como também demonstram, ilustrativamente, Luís Greco, “Domínio da orga-
nização e o chamado princípio da autorresponsabilidade”, in: Luís Greco (Org.)
et. al., Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de
pessoas no direito penal brasileiro, São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 203–214,
passim; Ricardo Robles Planas, Garantes y cómplices: la intervención por
omisión y en los delitos especiales, Barcelona: Atelier, 2007, p. 18, e, mais recen-
temente, Mathias Noll, op. cit., p. 34-47.
(16)
No mesmo sentido, Gerhard Dannecker, Ҥ 5 - Strafrechtliche
Verantwortung nach Delegation”, in: Thomas Rotsch (Org.), Criminal Compli-
ance, Baden-Baden: Nomos, 2015, p. 188; Harro Otto, “Die strafrechtliche
Verantwortung für die Verletzung von Sicherungspflichten in Unternehmen”,
in: Andreas Hoyer et. al. (Ed.), FS Schroeder, Heidelberg: C.F. Müller, 2006,
p. 344; Jens Bülte, Vorgesetztenverantwortlichkeit im Strafrecht, Baden-Baden:
Nomos, 2015, p. 232; Pierpaolo Cruz Bottini, op. cit., p. 253; Raquel Mon-

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são eles que têm uma relação juridicamente fundada de controle


sobre a fonte de perigo empresa, que deve, ademais, ser confirmada
pela assunção fática dessa função.
São dois, essencialmente, os pressupostos legais da posição de
garantidor: a relação de controle sobre a empresa fundada juridi-
camente, de um lado, e a assunção fática dessa função, de outro (17).
Não basta, assim, a mera designação formal nos documentos socie-
tários, é necessária a assunção de fato de tal posição de controle,
ainda que parcial, como ocorre, por exemplo, na assunção de chefia
de diretorias com âmbitos de competência pré-determinados. Com
isso, afasta-se já de saída a possibilidade de que a responsabiliza-
ção de dirigentes possa ser fundada na mera ocupação formal de
uma posição na administração da empresa (18), ou seja, “ser sócio”

taner Fernández, Gestión empresarial y atribución de responsabilidad penal:


a propósito de la gestión medioambiental, Barcelona: Atelier, 2008, p. 166-167;
Jacobo Dopico Gómez-Aller, “Posición de garante del compliance officer por
infracción del ‘deber de control’: una aproximación tópica”, in: Luis Arroyo
Zapatero; Adán Nieto Martín (Orgs.), El derecho penal económico en la era
compliance, Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 169; Gabriele Neudecker, Die
strafrechtliche Verantwortlichkeit der Mitglieder von Kollegialorganen. Darg-
estellt am Beispiel der Geschäftsleitungsgremien von Wirtschaftsunternehmen,
Frankfurt am Main: Peter Lang, 1995, p. 171; Andreas Ransiek, “Strafrecht
im Unternehmen und Konzern”, ZGR - Zeitschrift für Unternehmens- und Ges-
selschaftsrecht, v. 28, 1999, p. 619.
(17)
Cf. Heloisa Estellita, op. cit., p. 130-134.
(18)
Que nada mais é do que a ilegal negação de que a responsabilida-
de penal tem como premissa a prática de uma conduta, como aponta Augusto
Assis, “A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa”, in: José
Danilo Tavares Lobato; João Paulo Arsini Martinelli; Humberto Souza Santos
(Orgs.), Comentários ao Direito Penal Econômico brasileiro, Belo Horizonte:
D’Plácido, 2017, p. 52, nota 24. Como afirmou recentemente Schünemann, a im-
putação direta à cúpula da empresa é resquício de um modelo de direito penal
das sociedades primitivas e arcaicas, que estabeleciam a responsabilidade penal
com base na mera causalidade ou no pertencimento da pessoa a uma casta (Ber-
nd Schünemann, “Über Strafrecht im demokratischen Rechtsstaat, das unver-

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ou “ser diretor” jamais fundamentará uma posição de garantidor.


A relação de controle sobre a empresa fundada juridicamente
pressupõe sujeitos com capacidade para atuar em seu nome perante
terceiros e exercer os atos de gestão necessários à perseguição de seu
objeto social. Sobre estas pessoas, habilitadas a exercer a liberdade
de organização da gestão e do exercício das atividades necessárias
ao atendimento do objeto social da empresa, é que poderão recair
originariamente os deveres de vigilância (19). As pessoas naturais a
tanto habilitadas são, inicialmente, os administradores da socieda-
de, tanto em razão da criação do risco na estruturação da gestão da
empresa (divisão de funções e tarefas e delegação), como em função
da atribuição por lei, diretamente, de deveres de vigilância para ati-
vidades intrinsecamente perigosas. Só eles podem, assim, em uma
etapa ulterior, constituir garantidores secundários ou derivados por
meio de atos de delegação, do que decorre a importância da deter-
minação inicial de quem sejam os administradores, indiciária que é
daqueles que ocuparão posição de garantidores originários.

D. Sociedades anônimas

Nas sociedades anônimas, a administração compete à direto-

zichtbare Rationalitätsniveau seiner Dogmatik und die vorgeblich progressive


Rückschrittspropaganda”, ZIS - Zeitschrift für Internationale Strafrechtdogmatik,
v. 10, 2016, p. 655-656).
(19)
Entendimento diverso tem Utz, para quem o garantidor originário
é o titular da empresa, ou seja, em regra a sociedade com personalidade jurídi-
ca, a qual, não podendo atuar por si, atuaria por meio de seus representantes ou
mediante delegação de suas funções. Para tanto é necessário reconhecer, com
ele, que a pessoa jurídica é destinatária de normas penais e, pois, dos deveres
de garantidor (Maxilimilian Utz, op. cit., p. 269-270, principalmente). Parece
estranho atribuir deveres de agir a quem está impossibilitado de os atender, mas a
construção é interessante e, ao fim e ao cabo, acolhidas as formas propostas pelo
autor de assunção ou transferência dos deveres de garantidor para os dirigentes,
os resultados são semelhantes aos aqui obtidos.

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ria e também ao conselho de administração, se assim dispuser o


estatuto (20). Sob o ponto de vista relevante para este texto, a incum-
bência da administração a dois órgãos societários formados por
diversos membros, que não trabalham em uma relação hierárquica
de subordinação, mas em uma lógica horizontal, de complementa-
riedade, apresenta desafios mais complexos do que os surgidos no
âmbito de sociedades nas quais a administração incumbe apenas
e tão somente a um órgão societário, como costuma ser o caso
das sociedades limitadas. Isso porque é preciso decidir se todos os
membros desses dois órgãos ou apenas os de um deles poderão ser
os recipientes originários dos deveres de garantidor.
A LSA dispõe expressamente sobre atribuições e poderes con-
feridos a esses dois órgãos societários, mas deixa também bom
espaço para a autorregulação, tanto é assim que o estatuto pode
atribuir a administração da companhia exclusivamente à diretoria

(20)
Matéria regulada, no Brasil, pelo art. 138 da Lei n. 6.404/1976, tam-
bém conhecida como Lei das Sociedades Anônimas (adiante, LSA): “Art. 138.
A administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao con-
selho de administração e à diretoria, ou somente à diretoria. § 1º O conselho de
administração é órgão de deliberação colegiada, sendo a representação da com-
panhia privativa dos diretores. § 2º As companhias abertas e as de capital auto-
rizado terão, obrigatoriamente, conselho de administração”. Para não cansar o
leitor, somente serão transcritos os artigos de lei essenciais à compreensão do
trabalho, uma vez que é fácil o acesso ao texto integral da lei neste sítio ele-
trônico oficial: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/L6404compilada.htm
(acesso em 18/07/2018). Embora o estatuto possa criar outros órgãos técnicos
e consultivos, seus membros não são considerados administradores pela LSA,
como acontece, inclusive, com os membros do Conselho Fiscal (cf. Marcelo
Vieira von Adamek, Responsabilidade Civil dos Administradores de S.A e as
ações correlatas, São Paulo: Saraiva, 2010., p. 25-26). Por esta razão e porque
a regulamentação será feita nos documentos societários de cada sociedade, não
seria possível extrair elementos gerais que permitissem um exame tal qual o que
será feito adiante para a diretoria e o conselho de administração. A eventual po-
sição de garantidor de seus membros deverá, pois, ser deduzida dos pressupostos
gerais.

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(art. 138, caput). A análise das competências atribuídas aos órgãos


é, pois, determinante para avaliar se seus membros podem ocupar,
em tese, a função de garantidores originários, bem como, se afir-
mativa a resposta, indicar o âmbito de sua possibilidade jurídica
de agir. Como a diretoria é o órgão central da administração das
sociedades anônimas, o único exigido para a própria constituição
de uma sociedade anônima, iniciaremos a análise por ela.

I. Diretoria

A diretoria é o órgão de representação e gestão das sociedades


por ações, competindo a seus membros dirigir a empresa, geri-la
internamente e representá-la, privativamente, em todos os atos e
negócios praticados com terceiros a ela externos (art. 138, caput e
§ 1.º). Não é órgão colegiado, tendo cada diretor funções próprias,
que são exercidas individualmente (arts. 143, IV, e 144 (21)) (22).
Nada impede, porém, que o estatuto determine que todas ou certas
decisões sejam tomadas de forma colegiada pela diretoria, ou mesmo
que essa seja uma prática efetiva dentro da sociedade. Como cumpre
aos diretores, primordialmente, estruturar e executar a gestão da com-

(21)
LSA: “Art. 143. A Diretoria será composta por 2 (dois) ou mais dire-
tores, eleitos e destituíveis a qualquer tempo pelo conselho de administração, ou,
se inexistente, pela assembléia-geral, devendo o estatuto estabelecer: I - o número
de diretores, ou o máximo e o mínimo permitidos; II - o modo de sua substituição;
III - o prazo de gestão, que não será superior a 3 (três) anos, permitida a reeleição;
IV - as atribuições e poderes de cada diretor”; “Art. 144. No silêncio do estatuto
e inexistindo deliberação do conselho de administração (artigo 142, n. II e pa-
rágrafo único), competirão a qualquer diretor a representação da companhia e a
prática dos atos necessários ao seu funcionamento regular. Parágrafo único. Nos
limites de suas atribuições e poderes, é lícito aos diretores constituir mandatários
da companhia, devendo ser especificados no instrumento os atos ou operações
que poderão praticar e a duração do mandato, que, no caso de mandato judicial,
poderá ser por prazo indeterminado”.
(22)
Marcelo Vieira von Adamek, op. cit., p. 23.

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panhia, tendo liberdade de conformação nos limites estabelecidos


pela lei e pelos documentos societários, seus poderes de gestão e de
representação da companhia os tornam os garantidores originários de
vigilância por excelência no âmbito das sociedades anônimas.

II. Conselho de Administração

O outro órgão de administração das sociedades por ações é o


conselho de administração (adiante, tão somente CA). E se há pra-
ticamente consenso na literatura quanto à posição de garantidor de
vigilância dos membros da diretoria com relação a seus subordi-
nados, esse consenso termina quando se discute acerca da posição
de garantidor dos membros do CA. As dificuldades aqui decorrem
de uma característica intrínseca aos sistemas duais de estruturação
do poder social nas sociedades por ações: a divisão de atribuições
e poderes entre esses dois órgãos, segregando atividades de gestão
e representação perante terceiros (administração da companhia em
sentido estrito), atribuídas à diretoria, das atividades de supervi-
são e tomada de decisões estratégicas, atribuídas ao conselho de
administração (23). Essa administração dual não se dá sob a lógica
da delegação no âmbito de uma estrutura vertical, mas da comple-
mentação. Há uma demarcação tendencialmente rígida entre as atri-
buições e poderes desses órgãos de administração das sociedades
por ações, tanto que vedada delegação orgânica entre eles (art. 139,

(23)
Marcelo Vieira von Adamek, op. cit., p. 18. Em língua inglesa, o sis-
tema é denominado “two-tier boards”, no qual há separação entre as funções de
“managing” e de “monitoring” entre os órgãos societários, como acontece no
Brasil e na Alemanha, em contraposição ao sistema de “one-tier” board no qual
essas funções estão concentradas nas mãos dos membros de uma só “board”,
como acontece nos Estados Unidos, Reino Unido e Japão, por exemplo (Reinier
Kraakman et al. (Org.), The Anatomy of Corporate Law: A Comparative and
Functional Approach, Third edit. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 2).

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LSA (24)), obedecendo, assim, uma lógica de equilíbrio de poderes,


não existindo relação de subordinação, mas de cooperação (25). Em
vez de concentrar a administração da sociedade em um só órgão, a
diretoria, o legislador autoriza ou exige — em certos casos, como
visto — que se instale um órgão a mais, o CA, que tem uma função
primordial de instância de controle. Essa divisão de atribuições e
poderes na cúspide da administração das sociedades por ações re-
presenta, por si, uma possível fonte de perigo para bens jurídicos
de terceiros, a qual, sob o ponto de vista político-criminal, aponta-
ria para a necessidade de estabelecimento de uma responsabilidade
penal dos membros do conselho por omissão (26). Isto porque não
podem os bens jurídicos de terceiros, externos à companhia, rece-
berem menor proteção contra fontes de perigo advindas da empresa
porque o legislador ou os acionistas da sociedade decidiram que as
tarefas de administração seriam divididas e balanceadas entre dois
órgãos (ou três ou quatro etc.). Frente aos terceiros, aos administra-
dores da empresa incumbem os deveres de garantidores como se se
tratasse de um empresário individual (27).
São estas particularidades da administração dual das com-
panhias que acabam gerando a controvérsia, adiante examinada,
quanto à possibilidade de que membros do CA possam ocupar po-
sições de garantidores. Central para essa discussão é desvendar as
atribuições e poderes que incumbem a esse órgão para revelar se

(24)
LSA: “Art. 139. As atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos
de administração não podem ser outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo
estatuto”.
(25)
A relação é horizontal, sem hierarquia, cf. Andreas Ransiek, op.
cit., p. 625.
(26)
Ralph Schilha, Die Aufsichtsratstätigkeit in der Aktiengesellschaft im
Spiegel strafrechtlicher Verantwortung, Berlin: Duncker & Humblot, 2008, p. 153.
(27)
Gabriele Neudecker, op. cit., p. 87-88; e também Ralph Schil-
ha, loc. cit.

RPCC 28 (2018)
416 Heloisa Estellita

também seus membros têm uma relação de controle sobre a em-


presa fundada juridicamente.

1. Atribuições e poderes do CA

O CA é um órgão colegiado que desempenhará, ao lado da di-


retoria, a administração da companhia (art. 138, § 2º, LSA). Seus
membros são eleitos e destituídos pela assembleia-geral de acio-
nistas. Suas deliberações são feitas por maioria de votos, a não
ser que haja expressa determinação de quórum qualificado pelo
estatuto (art. 140, LSA (28)). Suas atribuições e poderes envolvem
as seguintes atividades: a) fixar a orientação geral dos negócios da
companhia; b) eleger e destituir diretores e fixar suas atribuições,
observado o que dispuser o estatuto; c) fiscalizar a gestão dos dire-
tores, podendo examinar, a qualquer tempo, livros e papeis da com-
panhia, solicitar informações sobre contratos celebrados ou em vias
de serem celebrados e quaisquer outros atos; d) convocar a assem-
bleia-geral; e) manifestar-se sobre o relatório da administração e as
contas da diretoria; f) manifestar-se previamente sobre atos e con-
tratos nos termos estabelecidos pelo estatuto; g) autorizar a venda
de bens do ativo permanente, constituição de ônus reais e prestação
de garantias, se o estatuto não dispuser de forma diversa; h) escolher
e destituir os auditores independentes, se houver (art. 142, LSA) (29).

(28)
LSA: “Art. 140. O conselho de administração será composto por, no
mínimo, 3 (três) membros, eleitos pela assembléia-geral e por ela destituíveis a
qualquer tempo, devendo o estatuto estabelecer: (...) IV - as normas sobre convoca-
ção, instalação e funcionamento do conselho, que deliberará por maioria de votos,
podendo o estatuto estabelecer quorum qualificado para certas deliberações, desde
que especifique as matérias”.
(29)
Naquelas sociedades nas quais não tenha sido constituído o CA, essas
competências incumbirão à diretoria, a qual deverá deliberar de forma colegiada
sobre elas, cf. Modesto Carvalhosa, Comentários à Lei de Sociedades Anôni-
mas, 5. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 107.

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 417

Diferentemente do que sucede com os diretores, os membros


do CA não têm atribuição ou poder para tomar decisões individu-
ais (30), pois suas decisões são necessariamente colegiadas (art. 138,
§ 1º, LSA). A vontade do órgão social é resultante, portanto, da con-
jugação da vontade dos conselheiros (31), o que tem caráter decisi-
vo no que diz respeito ao dever concreto de agir dos conselheiros,
como se verá adiante (32). Administradores que são, estão sujeitos
aos mesmos deveres de diligência previstos para os diretores (33), não
sendo responsáveis por atos ilícitos de outros administradores, salvo
se com eles forem coniventes, se negligenciarem em descobri-los
ou se, deles tendo conhecimento, deixarem de agir para impedir a
sua prática (art. 158, § 1º, LSA (34)), responsabilidade esta que é de

(30)
Ibid, p. 56; também Marcelo Vieira von Adamek, op. cit., p. 22.
(31)
Ibid., p. 12.
(32)
A exigência de decisões colegiadas tem também impacto relevante
quanto ao estabelecimento do nexo de causalidade, discussão que não pode ser
captada no limite deste texto, razão pela qual remeto o leitor ao que escrevi em
Heloisa Estellita, op. cit., p. 254 ss., com ulteriores referências bibliográficas.
(33)
Especificamente sobre o dever de diligência dos membros do conselho
de administração na jurisprudência do Conselho de Recursos do Sistema Financei-
ro Nacional (CRSFN), cf. Bruno Mayerhof Salama; Vicente Piccoli Braga,
“Dever de Diligência do Conselheiro de Administração: lições da jurisprudência
administrativa nas companhias abertas”, FGV Direito SP Research Paper Series,
v. 146, 2016, p. 1–17, passim.
(34)
LSA: “Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável
pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regu-
lar de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando
proceder: I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com
violação da lei ou do estatuto. § 1º O administrador não é responsável por atos
ilícitos de outros administradores, salvo se com eles for conivente, se negligenciar
em descobri-los ou se, deles tendo conhecimento, deixar de agir para impedir a
sua prática. Exime-se de responsabilidade o administrador dissidente que faça
consignar sua divergência em ata de reunião do órgão de administração ou, não
sendo possível, dela dê ciência imediata e por escrito ao órgão da administração,
no conselho fiscal, se em funcionamento, ou à assembléia-geral”.

RPCC 28 (2018)
418 Heloisa Estellita

natureza civil e não penal (35). Exime-se dessa responsabilidade o


conselheiro dissidente que faça consignar sua divergência em ata de
reunião do órgão de administração ou, não sendo possível, dela dê
ciência imediata ao conselho fiscal, se existente, ou à assembleia-
-geral (art. 158, § 1º, LSA).
O CA tem, na formatação que lhe deu a LSA, uma função de
atuação orientada para a estratégia geral da companhia, não se en-
volvendo na administração diária, nem tendo poderes de gestão di-
reta sobre seus negócios, exceção feita a dispositivos estatutários
que exijam sua prévia autorização para determinadas operações e
atividades, ou, então, no caso de disposição estatutária expressa que
lhe atribua maiores poderes de gestão. Em regra, porém, trata-se de
uma atividade mais geral sem envolvimento no dia a dia da com-
panhia (36). Esta é mais uma razão pela qual não se pode falar em

(35)
Quer porque ele se refere genericamente a “ilícitos”, não havendo
qualquer qualificação acerca de sua natureza; quer porque a omissão de impedir o
ilícito ali estabelecida prescinde da posição de garantidor, elemento este essencial
para a imputação omissiva imprópria; quer, ainda, porque o princípio da subsidia-
riedade do primeiro impede planificar a responsabilidade penal à civil. Assim, a
imputação do resultado típico não se faz porque o agente omitiu o cumprimento
de um dever extrapenal (societário, por exemplo), mas porque descumpriu um
dever penal especial atrelado à sua posição de garantidor, estabelecida exclusi-
vamente pelo direito penal. Neste sentido é que se pode falar que o art. 13, § 2.º,
CP brasileiro (“§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia
e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha
por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu
a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior,
criou o risco da ocorrência do resultado”), estabelece uma limitação para a aces-
soriedade ao vedar que o mero descumprimento de um dever de agir extrapenal
constitua uma posição de garantidor (cf. Heloisa Estellita, op. cit., p. 141-142).
Seu papel é residual: indiciário da posição de garante e delimitador do alcance e
do conteúdo do dever de agir para evitar o resultado (Ibid., p. 142-144).
(36)
Luiz Antonio Campos, “Deveres e Responsabilidades”, in: Alfredo
Lamy Filho; José Luiz Bulhões Pedreira (Orgs.), Direito das companhias - v. I,
Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1212-1213.

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 419

relação de delegação entre CA e diretoria quanto à gestão da compa-


nhia, já que o CA não poderia delegar uma competência que não lhe
incumbe originariamente (37). É justamente em virtude desse caráter
geral de orientação dos negócios da companhia, de fiscalização dos
atos da diretoria, sem, contudo, ter o poder de substituí-la em suas
funções, que há controvérsia sobre se seus membros seriam garan-
tidores originários relativamente à prática de atos criminosos por
diretores ou outros membros da companhia.
Para apreender a discussão, nos serviremos da literatura alemã
em virtude da escassez da discussão no Brasil e da similitude da
conformação legal dada a este órgão nas legislações destes dois paí-
ses. De uma forma geral, os poderes e atribuições do Aufsichtsrat da
sociedade por ações alemã são similares aos previstos na legislação
nacional para o CA (38), o que nos permite aproveitar a riqueza do
debate doutrinário travado naquele país. Na lei de sociedades por

(37)
Em sentido similar, embora tratando em geral dos pressupostos da
delegação de competências, cf. Jesús-María Silva Sánchez; Raquel Montaner
Fernández; Nuria Pastor Muñoz, “La responsabilidad penal de los administra-
dores”, in: Guillermo Guerra Martín (Coord.), La responsabilidad de los adminis-
tradores de sociedades de capital, Madrid: La Ley Digital, 2011, p. 21.
(38)
Cf. Fábio Konder Comparato, O poder de controle na sociedade
anônima, 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 80 ss. Em Reinier Kraakman
et. al. (Org.), The anatomy of corporate law: a comparative and functional ap-
proach, 3rd. ed. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 80 ss., encontra-se
estudo comparativo que coloca lado a lado as regulações brasileira e a alemã e que
dá suporte às afirmações aqui feitas quanto às semelhanças entre os dois ordena-
mentos jurídicos nos pontos que entendemos relevantes para a responsabilidade
penal. Outro estudo comparativo envolvendo a legislação alemã em Marco Ven-
toruzzo et al, Comparative corporate Law, St. Paul: West Academic, 2015, p.
249 ss. Sobre sua composição, especialmente marcada pela presença de membros
indicados pelos empregados, e sobre as razões históricas desta opção legislativa,
uma reação a práticas estabelecidas durante a Segunda Guerra Mundial, cf. Mar-
tin Gelter, “Taming or Protecting the Modern Corporation? Shareholder-Stake-
holder Debates in a Comparative Light”, Social Science Research Network Work-
ing Paper Series, 2010, p. 40 ss.

RPCC 28 (2018)
420 Heloisa Estellita

ações alemã (Aktiengesetz ou AktG (39)), é o § 111 que cuida das atri-
buições do Aufsichtsrat, órgão que se assemelha ao nosso conselho
de administração (40). Sua função principal é a de supervisionar a ad-
ministração da companhia exercida pela diretoria (Vorstand). Tem
ele o poder de examinar os livros e documentos da companhia, bem
como relatórios relativos a seus bens, seu caixa etc. Também decide
por maioria e tem o poder de convocar a assembleia-geral (Haup-
versammlung). Ao Aufsichtsrat não podem ser delegadas ou transfe-
ridas as atividades de gestão da companhia (Geschäftsführung), mas
o estatuto pode determinar que certos negócios dependam de sua
autorização prévia. Se o órgão recusar seu consentimento, a direto-
ria pode recorrer à assembleia-geral para obter autorização. As atri-
buições do conselho não podem ser desempenhadas por outras pes-
soas ou órgãos. Segundo o § 84, ao Aufsichtsrat compete a eleição
e a destituição dos membros da diretoria, neste último caso, quando
houver fundamento relevante, assim considerada, por exemplo, uma
violação grave de seus deveres (41). A competência para a destituição

(39)
Também com relação à AktG, somente transcreveremos e traduzi-
remos livremente os dispositivos essenciais. O texto legal pode ser consultado
nestes sítios eletrônicos: em alemão, https://www.gesetze-im-internet.de/aktg/; e
em inglês, http://www.nortonrosefulbright.com/knowledge/publications/147034/
german-stock-corporation-act-aktiengesetz (acesso em 18/07/2018).
(40)
Adamek traduz Aufsichtsrat como “conselho de supervisão” (Marcelo
Vieira von Adamek, op. cit., p. 84). O sistema alemão também é dual e, por isso,
parece equivocado afirmar que a administração efetiva da sociedade seja incum-
bência do Aufsichtsrat como faz Raquel Montaner Fernández, op. cit., p. 175.
(41)
As normas do Deutscher Corporate Governance Kodex complemen-
tam a regulação legal das relações entre a assembleia-geral, o conselho de ad-
ministração (Aufsichtsrat) e a diretoria. Há versão na língua inglesa em https://
www.dcgk.de/en/code//foreword.html (acesso em 18/07/2018). Sobre a impor-
tância dessa regulamentação no direito penal econômico, cf. Markus Wagner,
Die Akzessorietät des Wirtschaftsstrafrechts Zugleich ein Beitrag zu Begriff und
Wesen des Wirtschaftsstrafrechts, Heidelberg: C. F. Müller, 2016, p. 303 ss. A
BM&FBovespa brasileira também estabeleceu seu próprio sistema de níveis ou

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 421

é, portanto, mais restrita na legislação alemã, que exige um funda-


mento dentre os apontados no dispositivo para o ato; no Brasil, ao
contrário, a LSA não aponta a necessidade de um fundamento para
a destituição de um diretor pelo CA (42).
Deve-se ter em mente, porém, que essas competências, pode-
res e atribuições dependerão, em grande medida, das disposições
concretas do estatuto. Não é incomum que existam companhias
cujos acionistas sejam membros da mesma família, todos instituídos
como conselheiros, e cujas atribuições alcancem tal amplitude que
se pode até afirmar uma relação de hierarquia e subordinação entre
diretoria e conselho (43). Nesses casos, a análise da responsabilida-
de penal deve levar em conta a estrutura concreta estabelecida nos
limites da autorregulação da companhia. Feita esta ressalva e para

segmentos de governança para classificação das companhias abertas que nela ope-
ram. São cinco segmentos com exigências crescentes nos níveis de transparência
e de garantias aos acionistas. Cf. em <http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/lis-
tagem/acoes/segmentos-de-listagem/sobre-segmentos-de-listagem/> (acesso em
18/07/2018). Finalmente, a reforma de 2001 na LSA deu poderes à Comissão de
Valores Mobiliários para classificar as companhias abertas em categorias e espe-
cificar as respectivas normas (cf. Marcelo Vieira von Adamek, op. cit., p. 117).
(42)
No mesmo sentido da disciplina brasileira, os ordenamentos britânico,
francês, italiano e japonês, cf. Reinier Kraakman et. al. (Org.), op. cit., p. 55.
(43)
Em pesquisa empírica realizada com empresas listadas na bolsa bra-
sileira em 2005, constatou-se que a independência do conselho de administração
é debilitada em empresas abertas controladas por famílias ou grupos, Bernard
S. Black; Antonio Gledson de Carvalho; Érica Gorga, The Corporate Gov-
ernance of Privately Controlled Brazilian Firms (December 1, 2009). U of Texas
Law, Law and Econ Research Paper No. 109; as published in Revista Brasileira
de Finanças, Vol. 7, 2009; U of Texas Law, Law and Econ Research Paper No.
109; Cornell Legal Studies Research Paper No. 08-014; ECGI - Finance Working
Paper No. 206/2008 (disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=1003059.
Acesso em 14/08/2018). A estrutura real pode romper o sistema dual, como re-
gistram Reinier Kraakman et. al. (Org.), op. cit., p. 51: “board practices can
blur the distinction between the two structures. Informal leadership coalitions can
short-circuit the legal separation between management and supervisory boards”.

RPCC 28 (2018)
422 Heloisa Estellita

que consigamos avançar na discussão, a análise que segue partirá


da hipótese de uma companhia no âmbito da qual se tenha decidido
seguir estritamente as disposições da LSA.

2. Garantidor de vigilância da diretoria e demais inte-


grantes da companhia?

Diante desse quadro de poderes e atribuições, divide-se a li-


teratura quanto à possibilidade de configuração de uma posição de
garantidores de vigilância dos membros do CA com relação aos
crimes cometidos por diretores e outros membros da empresa (44).
Trata-se de saber se os membros do CA têm o dever de intervir
diante de crimes na iminência de serem praticados ou com execu-
ção iniciada por membros da diretoria ou por outros membros da
companhia contra terceiros, externos a ela. A raiz das divergências
parece derivar, principalmente, de três circunstâncias: a de que o
CA não tem poderes de gestão, a de que não pode representar a
companhia perante terceiros e a de que sua relação com a diretoria é
prevalentemente horizontal (45).
a) Os membros do CA não têm posição de garantidores de vigilân-
cia relativamente a atos dos diretores ou outros membros da companhia
Quando se fundamenta a posição de garantidor do dirigen-
te por crimes praticados por seus subordinados no poder diretivo
destes sobre os subordinados, a ausência de uma relação de su-
bordinação entre CA e diretoria impediria afirmar a posição de

(44)
Recente diagnóstico acerca do posicionamento da doutrina na Alema-
nha caracteriza-o como “incerto”, Max Schwerdtfeger, Strafrechtliche Pflicht
der Mitglieder des Aufsichtsrats einer Aktiengesellschaft zur Verhinderung von
Vorstandsstraftaten, Berlin: Duncker & Humblot, 2016, p. 46.
(45)
LSA, art. 142, III; AktG, § 111, Abs. 1 (“Der Aufsichtsrat hat die Ge-
schäftsführung zu überwachen”; em tradução livre: “O Aufsichtsrat tem de vigiar
a direção da empresa”).

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 423

garantidor dos membros do primeiro órgão. É o que sucede com os


que seguem de perto a fundamentação originária de Schünemann,
que funda a posição de garantidor no domínio sobre o fundamento
do resultado, e, no que tange ao domínio sobre pessoas, no poder
diretivo do superior sobre os subordinados (46). Como o CA não tem
tal poder, seus membros estariam despidos de domínio sobre o
fundamento do resultado, e, pois, não poderiam ocupar posição
de garantidores relativamente aos atos da diretoria ou de outros
integrantes da empresa. Para isso seria necessário estabelecer um
equivalente ao domínio sobre o subordinado, tal qual reconheci-
do juridicamente por meio do direito de instrução do empregador
com relação ao empregado, o que não sucederia relativamente aos
membros da diretoria, que não são empregados, no sentido da le-
gislação trabalhista, e nem estão subordinados a um poder ou di-
reito de direção atribuído ao Aufsichtsrat (47). O mesmo valeria para
os subordinados aos diretores, uma vez que submetidos apenas a um
poder diretivo dos membros da diretoria, mas não do Aufsichtsrat.
Há quem sustente, ainda, que mesmo que se funde a posição
de garantidores dos dirigentes no controle sobre a fonte de perigo
empresa — e não em um poder diretivo —, seria o caso de ne-
gar uma tal posição originária dos membros do CA, uma vez que
nem os membros da diretoria, nem outros integrantes da empresa
padeceriam de déficit em sua autorresponsabilidade, nem mesmo
representariam, por si, uma especial periculosidade (48). O mesmo
valeria quando se fundasse a responsabilidade pela fonte de perigo

(46)
Mais recente: Tobias Dössinger, op. cit., especialmente, p. 437 ss.
(47)
Werner Beulke, op. cit., p. 37, nota 57. Também Daniel Krause,
“Ist der Aufsichtsrat Garant (§ 13 StGB) für die Verhinderung von Straftaten des
Vorstandes? Zur Reichweite der strafrechtlichen Organhaftung”, in: Heiko Ahl-
brecht et. al. (Ed.), FS Wessing, München: C. H. Beck, 2015, p. 241–251, p.
248-249.
(48)
Maxilimilian Utz, op cit., p. 230-231.

RPCC 28 (2018)
424 Heloisa Estellita

na ocupação de um cargo ao qual está atrelada uma responsabilida-


de de organização da empresa, posto que o CA não tem atribuições
ligadas à organização da empresa como a de determinar suas ope-
rações, alocar pessoas em cargos e funções, ou se pronunciar sobre
uma suspensão do trabalho (49).
Ademais, para os que compartilham deste entendimento, nem
o poder de aprovação prévia de certas transações ou operações pelo
CA/Aufsichtsrat poderia fundamentar tal posição, porque mesmo
que a lei societária contemple a possibilidade de que o estatuto re-
serve esferas de controle ao CA ao exigir, por exemplo, sua autori-
zação prévia para realização de certas transações ou atividades da
companhia, esse controle limitado e localizado não equivaleria a um
direito de emitir ordens ou instruções, até porque é vedado ao con-
selho submeter à sua prévia aprovação todos os negócios relativos
à gestão da companhia (50), ou mesmo implementar as medidas por
ele mesmo decididas, atividade esta que cabe à diretoria, exclusiva-
mente. Ademais, o dever de supervisão das atividades da diretoria,
previsto legalmente, seria apenas uma forma especial de exercício
dos deveres de proteção que os conselheiros têm perante a compa-
nhia em função da assunção de suas atribuições, ou seja, ligados a
uma posição de garantidor de proteção (51).
Quanto aos poderes de nomeação e destituição dos membros
da diretoria, argumenta-se que também não serviriam de fundamen-
to a uma posição de garantidor. Quanto à escolha e nomeação, por-
que ocorrem antes do exercício dos atos de gestão e direção pelo

(49)
Max Schwerdtfeger, op. cit., p. 189-192.
(50)
Peter Cramer, “Rechtspflicht des Aufsichtsrats zur Verhinderung
unternehmensbezogener strafbarer Handlungen und Ordnungswidrigkeiten”, in:
Wilfried Küper, Jürgen Welp (Eds.), Beiträge zur Rechtswissenschaft: FS Stree
und Wessels, Heidelberg: C. F. Müller, 1993, p. 584.
(51)
Werner Beulke, op. cit., p. 37, nota 57; Daniel Krause, op. cit., p.
246 ss.

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 425

nomeado e, pois, não traduziriam verdadeira possibilidade de in-


fluência sobre a atividade do diretor; quanto à destituição, porque
instrumento repressivo e que tem lugar após a prática do comporta-
mento ilegal, não podendo ser, assim, causal para o resultado, uma
vez que implementado após sua ocorrência (52). Ademais, sendo este
um ato discricionário do CA, seria incongruente, face ao princípio
da unidade do ordenamento jurídico, que se contemplasse, no di-
reito societário, a discricionariedade do ato e, no direito penal, sua
obrigatoriedade. Mas mesmo uma destituição prévia à prática de
um crime, que superaria o argumento de sua imprestabilidade para
evitar um resultado que se concretizou, não resistiria ao argumen-
to da natureza discricionária desta medida: ora, se destes, que são
os meios mais fortes de influência do conselho, não decorre uma
posição de garantidor com relação aos crimes cometidos por di-
retores contra terceiros externos à empresa, com maior razão não
decorreria tal posição dos demais meios à disposição do conselho,
como a competência de supervisão e aprovação ulterior das contas
da gestão da companhia e a de convocação da assembleia-geral, por
exemplo (53). Por fim, a atribuição de destituir os membros da direto-
ria não fundamentaria um poder deste órgão de dar ordens ou instru-
ções aos diretores, ou mesmo de organizar seu trabalho (54), sendo tal
proceder ilegal. Essa atribuição seria meramente negativa quanto à
conformação da organização da empresa, e, pois, não implicaria em
influência positiva do conselho na diretoria, o que tornaria questio-
nável fundar aí a posição de garantidores de seus membros (55).
Uma posição de garantidores por assunção, todavia, seria de se
cogitar, já que assumiriam estas funções com sua nomeação para o
(52)
Peter Cramer, op. cit., p. 585.
(53)
Roman Poseck, Die strafrechtliche Haftung der Mitglieder des Auf-
sichtsrats einer Aktiengesellschaft, Baden-Baden: Nomos, 1997, p. 117-120.
(54)
Max Schwerdtfeger, op. cit., p. 204.
(55)
Max Schwerdtfeger , op. cit., p. 199-200.

RPCC 28 (2018)
426 Heloisa Estellita

conselho por ato da assembleia-geral. Ocorre que dentre as atribui-


ções legalmente atribuídas a tal órgão não estaria a proteção de bens
jurídicos de terceiros contra atos criminosos da diretoria. Isso não
excluiria a possibilidade de que, no caso concreto, tais tarefas fos-
sem atribuídas a seus membros ou que eles as assumissem de fato,
caso em que, excepcionalmente, poderiam ser reconhecidos como
garantidores de vigilância (56).
A última possibilidade seria a via da fundamentação da posição
de garantidores na assunção de uma função de representação, apli-
cando-se o disposto no § 14, Abs. 1, Nr. 1, do Código Penal alemão
(StGB) (que regula a responsabilidade dos representantes, ou o atuar
em nome de outrem). Porém, os membros do CA não têm poder de
representar a companhia, sendo esta uma tarefa privativa dos direto-
res. Assim, ao fim e ao cabo, admissível seria somente uma posição
de garantidor por assunção de fato do círculo de deveres de vigilância
e intervenção, próprias dos membros da diretoria (57).
b) Os membros do CA têm posição de garantidores de vigilân-
cia sobre a diretoria ou outros membros da companhia apenas em
casos excepcionais
Há quem admita a posição de garantidores de vigilância dos
membros do CA apenas em casos de atividades intrinsecamente
perigosas da empresa, que em si representem perigos para tercei-
ros a ela externos. Nestes casos, os dirigentes teriam o dever não
só de vigiar para que coisas perigosas não causem danos a tercei-
ros e à coletividade, como o dever de vigiar as pessoas que com

(56)
Maxilimilian Utz, op. cit., p. 231-232.
(57)
Ibid., p. 233, e também Leenert Klattenberg, Die straf- und zivil-
rechtliche Verantwortlichkeit für die Nichverhinderung deliktischen Verhaltens
Dritter in Kapitalgesellschaften: zugleich ein Beitrag zur sogennanten “stra-
frechtlichen Geschäftsherrenhaftung”, Hamburg: Verlag Dr. Kovac, 2017, p.
314-315.

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 427

elas mantêm contato, para evitar que seu mau uso ou sua manipu-
lação inadequada possa causar tais danos (58).
c) Os membros do CA têm posição de garantidores de vigilân-
cia sobre a diretoria ou outros membros da companhia
Finalmente, há aqueles que reconhecem, total ou parcial-
mente, a posição de garantidores de vigilância dos membros do
CA e que desenvolvem seus argumentos a partir, essencialmente,
das três competências antes mencionadas: supervisão da gestão
da companhia; aprovação antecipada de certas operações e no-
meação e destituição de diretores. Dentre eles está Tiedemann,
por exemplo, quem afirma uma ampla posição de garantidores de
vigilância dos conselheiros relativamente à evitação de crimes
praticados por outros órgãos sociais ou membros da empresa em
prejuízo de terceiros e saca a fundamentação diretamente da tarefa
de supervisão da gestão da empresa que lhes é atribuída pelo §
111 da AktG (59). Contra tal argumento, pondera-se, com razão, que,
ainda que a norma seja um forte indicador das tarefas atribuídas ao
conselho como um todo, ela ainda não fundamenta a posição de
garantidores de seus membros, porque a competência de vigilância
sobre os atos da diretoria não traz consigo uma competência para
tomar decisões que sejam a eles oponíveis, daí que uma posição
de garantidor não possa derivar exclusivamente desta competência,
mas tenha de ser complementada com outras que impliquem poder
de decisão, mesmo que parcial, sobre a organização da companhia
(controle sobre a fonte de perigo empresa) e, ainda, a possibilidade

(58)
Thomas Weigend, “§ 13”, in: Heinrich Wilhelm Laufhütte, Ruth
Rissing-vanSaan, Klaus Tiedemann (Eds.), LK StGB, 12., neu b. Berlin: De Gruy-
ter Recht, 2007, nm. 56.
(59)
Klaus Tiedemann, Wirtschaftsstrafrecht, 5. ed. [s.l.]: Vahlen, 2017,
nm. 359.

RPCC 28 (2018)
428 Heloisa Estellita

jurídica de agir para evitar o resultado (60). Por isso, é preciso consi-
derar as atribuições, poderes e deveres do conselho para identificar
os fatores indiciários de uma posição de controle e gestão da fonte
de perigo, seu conteúdo e seus limites.
É isso que fazem autores como Schilha e Ransiek, por exemplo,
que afirmam uma posição de garantidor dos dirigentes por crimes
praticados por integrantes da empresa contra terceiros sempre que
alguém, a par do controle fático sobre uma fonte de perigo, também
está em posição de, no caso concreto, executar sua intenção de re-
pelir o perigo por meio de competências de intervenção jurídicas
efetivas (61). Para os membros do CA, portanto, deve-se avaliar seu
âmbito de responsabilidade tanto dentro do sistema dual de admi-
nistração da sociedade por ações, como seu limitado âmbito de in-
fluência sobre a gestão da fonte de perigo. A vigilância sobre os
objetos perigosos dentro da empresa se legitima como contraponto
da liberdade de organização e da competência exclusiva que tem o
proprietário sobre a coisa (62). A vigilância sobre pessoas como fon-
tes de perigo, por seu turno, se legitima em função do poder diretivo
fundado em normas jurídicas trabalhistas, ou, em outras palavras,
em uma relação de subordinação legalmente fundada (63), que de-
corre de atribuição concedida legalmente de tomar decisões sobre o
comportamento humano de terceiros, um domínio normativo sobre
as fontes de perigo dentro da empresa. Uma tal relação trabalhista
de subordinação não existe entre membros do CA e da diretoria,
o que obriga a buscar no direito societário outra possível fonte de
legitimação da posição de garantidor de vigilância dos conselheiros

(60)
Andreas Ransiek, op. cit., p. 624.
(61)
Ralph Schilha, op. cit., p. 123; Andreas Ransiek, loc. cit.
(62)
Ralph Schilha, op. cit., p. 162.
(63)
Com o que fica claro que Schilha segue uma concepção próxima da de
Schünemann (Ibid., p. 167-168). Ransiek funda essa posição no domínio, total ou
parcial, sobre a organização da empresa (Andreas Ransiek, op. cit., p. 617-618).

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 429

com relação aos diretores, a qual, porém, não poderá se basear em


uma inexistente relação de subordinação entre esses órgãos, uma
vez que se relacionam em uma estrutura horizontal de divisão de
funções e poderes na administração da companhia (64). Restaria, en-
tão, examinar se as competências do CA lhe permitiriam impor sua
vontade à diretoria de uma forma eficaz para evitar a lesão de bens
jurídicos de terceiros, a qual, afirmada, sedimentaria um poder de
domínio no sentido da dogmática das posições de garantidores (65).
A existência normativa de um tal poder tem de ser verificada a
partir das competências do conselho (66). Uma real possibilidade de
impor sua vontade à da diretoria adviria da competência de aprova-
ção prévia de certos negócios da companhia, prevista no § 111 Abs.
4 AktG. Essa atribuição permitiria um poder de veto do conselho
que poderia impedir a prática de crimes por membros da diretoria,
todavia, restaria saber se ela se equipararia materialmente ao poder
diretivo de natureza trabalhista, especialmente tendo em vista que
a diretoria poderia superar o veto do conselho por meio da obten-
ção de uma autorização para a operação emitida pela assembleia de
acionistas (67). Uma tal decisão, autorizando a prática de um ilícito,
seria por si só nula, mas, mesmo assim, a possibilidade do recurso
à assembleia não subtrai ao conselho a possibilidade de obstruir um
intento criminoso da diretoria. Se é pressuposto normativo de um

(64)
Ralph Schilha, op. cit., p. 169.
(65)
Ibid., p. 170.
(66)
Da competência de aconselhamento e opinião, não se poderia extrair
tal poder, já que apenas indicativa, mas não vinculante para a diretoria. Da com-
petência para emitir ordens de estruturação e atribuições da diretoria, prevista
como competência excepcional do conselho (§ 77 Abs. 2 AktG) e de inegável im-
portância como meio de influir na estrutura organizativa da companhia, também
não adviria um tal poder, visto que dela não derivaria um poder de dar ordens aos
diretores, o mesmo podendo ser dito da competência para convocar a assembleia-
-geral (Ibid., p. 170).
(67)
Ibid., p. 171-172.

RPCC 28 (2018)
430 Heloisa Estellita

poder de controle que o garantidor consiga impor sua vontade à


pessoa que representa uma fonte de perigo, então, o poder de veto
do conselho se equipararia materialmente ao poder diretivo do em-
pregador e implicaria uma forma negativa de controle do comporta-
mento da diretoria. Disso decorreria não só que o dever de agir para
evitar resultados típicos se limitaria, em razão de sua competência
estatutária, apenas às operações que demandam sua autorização pré-
via, como também que só se aplicaria a condutas ativas da direto-
ria, porque não há um direito de veto relativamente a uma omissão
da diretoria, já que o conselho não pode tomar iniciativas de gestão
da companhia (§ 111 Abs. 4 Satz 1 AktG (68)). O direito de veto se
mostra, assim, como um meio apropriado e eficaz de evitar a práti-
ca de crimes pela diretoria e, pois, estão os membros do conselho
obrigados a dele fazer uso em situação de perigo para bens jurídicos
externos em virtude de atos intentados pela diretoria (69).
Mas a competência mais eficaz atribuída ao conselho para
evitar a prática de crimes por membros da diretoria (e seus subor-
dinados) seria o de destituição, já que, com ela, pode-se evitar a
superveniência do resultado típico (70). Desta competência decorre-

(68)
AktG, § 111, Abs. 4, Satz 1: “4) Maßnahmen der Geschäftsführung
können dem Aufsichtsrat nicht übertragen werden” (tradução livre: “As medidas
da direção da empresa não podem ser transferidas para o Aufsichtsrat”).
(69)
Ralph Schilha, op. cit., p. 172-175.
(70)
Schilha se esforça, então, para justificar que a iminência da prática de
um crime por diretores seria uma hipótese de grave violação dos deveres sociais
dos diretores autorizadora da destituição do diretor pelo conselho. Isso é assim
porque o § 84 Abs. 3 Satz 1 AktG exige, como visto, um “fundamento relevante”
para o exercício da competência de destituição. Para Ransiek, o fato de haver um
risco de ser perpetrado um crime já é fundamento suficiente (Andreas Ransiek,
op. cit., p. 625-626). Para aqueles que entendem que há um dever geral de des-
tituição ou, então, para sistemas jurídicos como o brasileiro, que não fazem essa
exigência, não há necessidade de fundamentar a destituição (Ralph Schilha, op.
cit., p. 180, especialmente nota 452).

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 431

ria um direito, não explícito, de o conselho emitir uma instrução


para o membro da diretoria, como uma medida menos gravosa e
antecedente à destituição, cujo acatamento funcionaria como uma
condição para a permanência no cargo. Com isso, o conselho teria
uma competência especial de emitir instruções para os diretores que
fundamentaria um poder de controle constitutivo da posição de ga-
rantidores de seus membros (71).
Das competências de aprovação prévia de certos negócios (cujo
reverso é o poder de veto) e de destituição dos diretores, que traz
consigo uma competência implícita de emitir instruções, resultaria,
para Schilha, uma estrutura de controle pessoal, e para Ransiek, um
domínio sobre a organização, capazes de fundamentar a posição de
garantidor dos membros do conselho. O alcance de sua responsabi-
lidade limitar-se-ia, evidentemente, ao âmbito de suas competências
de controle e, pois, são estas competências que darão os contornos
dos seus deveres de agir para evitar o resultado: dever de veto e
dever de destituição, ambos, como se vê, com efeitos internos, den-
tro do âmbito da companhia (72). Ademais, como essas competências
têm como destinatários os membros da diretoria, o dever de vigilân-
cia do Aufsichtsrat encontra-se igualmente limitado a esse círculo
de pessoas. Isso não impede que se afirme um dever de agir diante
da prática de crimes por outros integrantes da empresa aos quais os
diretores delegaram funções e tarefas em razão da departamentali-
zação. Assim, quando os membros do conselho percebem que os di-
retores não estão exercendo corretamente seus deveres de vigilância
e controle sobre subalternos com a ameaça concreta de que venham
a ser responsabilizados por omissão por crimes cometidos por seus
subalternos, teriam os conselheiros o dever de agir, mas esse de-

(71)
Ibid., p. 177-181; no mesmo sentido, Andreas Ransiek, op. cit., p.
625-626.
(72)
Ralph Schilha, op. cit., p. 181-182.

RPCC 28 (2018)
432 Heloisa Estellita

ver, em virtude de suas competências sobre a diretoria, apenas terá


como alvo o diretor responsável, o que implica dizer que a medida
somente será, eventualmente, indiretamente eficaz para a evitação
do resultado (73), e, evidentemente, só poderá ter por objeto crimes
relativos às atividades da empresa (74). Diante da convicção de que
um diretor irá praticar um crime, é dever do conselho destituí-lo e
sua omissão pode levar à punibilidade por participação omissiva (75).

3. Tomada de posição

Este último entendimento parece-nos o mais convincente para


os modelos duais com divisão de funções de administração en-
tre dois órgãos societários (76): os membros do CA são garantido-
res originários de vigilância e recebem competências diretamente
atreladas ao cargo que exercem dentro do órgão (77). Isso somente
(73)
Ralph Schilha, op. cit., p. 183-184, o que terá impacto no estabe-
lecimento da relação de causalidade, especialmente tratando-se de hipótese de
omissões sucessivas (cf. Heloisa Estellita, op. cit., p. 265 e ss., com ulteriores
referências bibliográficas).
(74)
Ibid., p. 184-186.
(75)
Peter Cramer op. cit., p. 575-576. Não admitem a participação por
omissão em nossa literatura Nilo Batista, Concurso de agentes, 4. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 174; Juarez Cirino dos Santos, Direito penal:
parte geral, 3. ed. Curitiba: ICPC, 2014, p. 369, que se filiam ao entendimento de
que o omitente garantidor é sempre autor.
(76)
Por esta razão, as considerações feitas neste texto não são transponíveis
ao modelo norte-americano, no qual o poder de decisão está concentrado nas mãos
de um só órgão, a board of directors, que concentra tanto as atividades de super-
visão, como as de gestão (cf. Reinier Kraakman et. al. (Org.), op. cit., p. 50-51).
(77)
Mesmo autores que negam a posição de garantidor do CA acabam
reconhecendo-a em certas hipóteses como as aqui analisadas, seja sob o âmbito
de aceitação de uma posição de garantidor de proteção dos bens da companhia por
prejuízos materiais ou imateriais, como faz Maxilimilian Utz, op. cit., p. 229,
seja, mais restritivamente, sob o ponto de vista de uma posição de garantidor de
proteção da honra da empresa, Max Schwerdtfeger, op. cit., p. 210.

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 433

se aplica, porém, a situações específicas relacionadas às suas atri-


buições e nos limites das possibilidades jurídicas de agir que têm
seus membros, portanto, nos limites de seus poderes, conforme os
lineamentos adiante avançados.
O CA participa, em sistema dual, da administração da compa-
nhia, embora com poderes de intervenção em sua gestão bastante
limitados. As competências que lhes são atribuídas traduzem uma
relação juridicamente fundamentada com a fonte de perigo empre-
sa e lhes atribui um controle, ainda que limitado, sobre sua organi-
zação. Para além das competências acima abordadas — vigilância,
aprovação prévia de certos negócios e destituição de diretores —,
soma-se, no Brasil, a competência atribuída ao CA de fixar as atri-
buições dos diretores, nos termos do que dispuser o estatuto (art.
142, II, LSA), competência que lhe permite organizar a estrutura
do órgão gestor da companhia que é a diretoria. Podem, por exem-
plo, criar uma nova diretoria encarregada de riscos ambientais
que torne mais eficientes os controles; podem fundir atribuições
de diretoria, como a jurídica e a de controladoria; podem deci-
dir pela criação de uma diretoria exclusivamente encarregada do
compliance, como tem sido comum em tempos recentes (78). Consi-

(78)
A recente Lei 13.303, de 30.06.2016, alterou as competências dos CAs
das empresas públicas, sociedades de economia mista e de suas subsidiárias no
âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (cf. espe-
cialmente art. 18), o que certamente terá impactos no âmbito da responsabilidade
penal individual de seus membros. Digno de nota o disposto em seu artigo 9o,
determinando que a gestão de riscos deve ser alocada no âmbito da Diretoria (es-
tatutária) com eventual reporte direto ao CA quando “suspeite do envolvimento
do diretor-presidente em irregularidades ou quando este se furtar à obrigação de
adotar medidas necessárias em relação à situação a ele reportada” (§ 4.º), o que
reflete justamente a dinâmica que entendemos ser mais adequada no âmbito das
sociedades anônimas quanto à gestão de risco incumbir à diretoria e a participa-
ção do CA estar limitada às suas atribuições, no caso, a atuação sobre a diretoria.
A recente Resolução Bacen n. 4.595, de 28.08.2017, porém, impõe ao CA o dever
de “garantir que medidas corretivas sejam tomadas quando falhas de conformi-

RPCC 28 (2018)
434 Heloisa Estellita

dere-se que, além de todas estas competências de organização, se-


rão os membros do CA que nomearão e destituirão os diretores e,
ainda, para certos negócios de maior vulto, deverão manifestar-se
previamente. Esse feixe de competências expressa um poder orga-
nizacional que fundamenta um controle relevante sobre a fonte de
perigo empresa, e, pois, uma posição de garantidores de vigilância
de seus membros.
É verdade que o conselho não exerce um controle total sobre
a companhia, isso, porém, não impede a afirmação de uma posi-
ção de garantidor. Fosse assim, apenas na sociedade unipessoal,
ou na qual somente um sócio fosse também administrador, se po-
deria falar em garantidor de vigilância dos perigos advindos da
empresa. Se só se pudesse fundamentar a posição de garantidor em
um controle total sobre a empresa, seria tarefa simples contornar a
responsabilidade omissiva imprópria fragmentando a administra-
ção de tal forma que, ao fim e ao cabo, nenhum órgão ou integrante
possuísse controle sobre ela em sua integralidade. Isto nem mesmo
é exigido dos membros da diretoria, que atuam em estruturas hori-
zontais com divisão de áreas de competências determinada já pelo
estatuto. A se exigir que só houvesse garantidor ali onde houvesse
controle total, então nenhum diretor seria garantidor e teríamos a
esdrúxula situação de uma companhia cujos membros da diretoria,
que é seu órgão de representação e gestão, não têm posição de ga-
rantidores de vigilância sobre seus subordinados.
Muitas vezes não se considera apropriadamente que nas socieda-
des com administração distribuída entre mais de um órgão de admi-
nistração é justamente seu desempenho conjunto que se deve designar
de “administração” (79). Se não há que falar em relação propriamente

dade forem identificadas” (art. 9.º, II), o que poderá demandar ajustes nos instru-
mentos societários que cuidam das atribuições desse órgão.
(79)
Destacando essa linha de divisão entre as tarefas do Aufsichtsrat e da
Vorstand, cf. Peter Cramer, op. cit., p. 569.

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 435

hierárquica entre esses órgãos, também não se pode falar na adminis-


tração da companhia senão como resultado de sua atividade conjunta.
E, na sua parcela para a administração da companhia, não cabe
negar aos membros do CA a posição de garantidores em virtude do
caráter limitado de suas competências e de não poderem praticar
atos de gestão do dia-a-dia. Se é verdade que suas competências
são limitadas, isso não infirma suas posições de garantidores, mas
certamente limita suas possibilidades jurídicas de agir e, pois, o
conteúdo concreto de seus deveres de agir. Isto porque, apesar de
a administração da companhia ser uma tarefa conjunta do CA e
da diretoria e do fato de o CA ser um órgão que decide de forma
colegiada, isso não equivale a atribuir ao conselheiro os atos cole-
tivos, já que a responsabilidade penal é sempre individual, por ato
próprio, pessoal e subjetiva (80). A responsabilidade penal, portanto,
deverá ser individualizada, apontando-se para cada conselheiro o
descumprimento de seus deveres concretos de agir para evitar o re-
sultado, que se delimitam pela possibilidade jurídica de agir deter-
minada legalmente (81).
Como dito, o CA só pode tomar decisões de forma colegiada
e, assim, seus atos de intervenção direta na organização da empre-
sa não podem ser adotados individualmente, por cada conselheiro,
mas dependem de submissão ao conselho como um todo, o que
delimita o conteúdo de seus deveres de intervenção. Assim, diante
da prática de condutas criminosas pelos diretores, é obrigação do
conselheiro acionar os demais membros do órgão, informá-los e
votar no sentido da aprovação das medidas de contenção ou eli-
minação do perigo (ou de salvamento do bem jurídico, no caso

(80)
Discussão e crítica da proposta de uma abordagem top-down em Hel-
oisa Estellita, op. cit., p. 52 ss.
(81)
No mesmo sentido, embora de forma mais genérica, cf. Jesús-María
Silva Sánchez; Raquel Montaner Fernández; Nuria Pastor Muñoz, op. cit.,
p. 28.

RPCC 28 (2018)
436 Heloisa Estellita

do patrimônio da própria companhia) (82). Assim, por exemplo, em


uma instituição financeira, se um membro do conselho toma ciência
da iminência da prática do crime do art. 6.º da Lei 7.492/1986 (83)
por diretores em concurso com seus subordinados, deve acionar o
CA e votar no sentido da destituição dos diretores superintendente
e financeiro. Como o conselheiro tem de tomar todas as medidas
juridicamente devidas e possíveis para evitar o resultado típico,
a abstenção em votação de decisão que tenha por fim justamente
medidas nesse sentido poderá implicar responsabilidade penal por
omissão (84). Em caso de dissidência e de iminência da prática de cri-
me no âmbito da companhia, o conselheiro deve comunicar o fato à
assembleia-geral, dado que tem de fazer o que lhe for juridicamente
permitido para evitar o resultado típico (85) (86).

(82)
No mesmo sentido, Max Schwerdtfeger, op. cit., p. 123 e 155; tam-
bém Ralph Schilha, op. cit., p. 378.
(83)
Lei 7.492/1986: “Art. 6º Induzir ou manter em erro, sócio, investidor
ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação financei-
ra, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente: Pena - Reclusão, de 2
(dois) a 6 (seis) anos, e multa”.
(84)
Nesse sentido, Ralph Schilha, op. cit., p. 372-373.
(85)
Previsto no art. 158, § 1.º, parte final, LSA.
(86)
É questionável se o dever de agir para evitar o resultado abarca tam-
bém a exigência de comunicação do fato a autoridades externas encarregadas da
persecução penal, seja pela ausência de disposição expressa nesse sentido em
nosso direito positivo, seja à luz do dever de lealdade dos administradores para
com a companhia aberta (art. 155, § 1.º, LSA). No mesmo sentido, Ralph Schil-
ha, op. cit., p. 376-377. Contra, Jesús-María Silva Sánchez; Raquel Montan-
er Fernández; Nuria Pastor Muñoz, op. cit., p. 32. No ordenamento jurídico
alemão, a situação é diferente, pois o § 138 do StGB pune a não comunicação de
um rol determinado de crimes desde que em andamento ou cujo resultado ainda
possa ser evitado. Diante desse tipo penal omissivo puro, pode-se investigar hi-
pótese de colisão de deveres, causa de justificação peculiar dos crimes omissivos.
Trata-se daqueles casos nos quais há dois deveres de agir onerando o agente si-
multaneamente sendo que apenas um deles pode ser atendido, devendo o outro
ser descumprido. Haveria que se investigar a equivalência entre bem jurídico sa-

RPCC 28 (2018)
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DOS MEMBROS... 437

Por fim, a competência reservada ao CA para a aprovação


prévia de certos negócios da companhia atribui ao órgão um po-
der de veto apto a impedir a prática de crimes por membros da
diretoria. Se é pressuposto da posição de garantidor um poder de
controle sobre cursos causais potencialmente ofensivos a bens ju-
rídicos, a negativa de aprovação de negócios com tal potencial
poderá configurar forma de controle, ainda que indireto, da gestão
da companhia. Nestes casos, o dever de agir dos conselheiros, vo-
tando contra a aprovação de tais negócios se limitaria, em razão
de sua competência estatutária, apenas às operações que deman-
dam sua autorização prévia e só se aplicaria a condutas ativas da
diretoria, porque não há um direito de veto relativamente a uma

crificado e bem jurídico salvo, que dependeria dos bens jurídicos em jogo no caso
concreto (cf. Claus Roxin, Strafrecht: allgemeiner Teil - Band II - Besondere
Erscheinungsformen der Straftat, München: C. H. Beck, 2003, § 31, nm. 204
ss.; Kristian Kühl, Strafrecht: Allgemeiner Teil, 8. München: Vahlen, 2017.,
§ 18, nm. 134 ss.). Especificamente sobre a questão no âmbito do direito penal
econômico e, particularmente no que diz respeito ao whistleblower, cf. Florian
Jochen Späth, Rechtfertigungsgründe im Wirtschaftsstrafrecht, Berlin: Duncker
& Humblot, 2016, p. 384 ss. Certamente há a possibilidade de que a companhia,
por seus administradores, decida voluntariamente colaborar com autoridades pú-
blicas na apuração de crimes e infrações, conduta, aliás, cada dia mais frequente
e legalmente premiadas, como no Brasil, de forma mais eloquente, no art. 7.o,
VII, da Lei 12.846/2013. Para que o administrador não corra o risco de incidir em
responsabilidade perante a sociedade, a decisão tem, porém, de ser tomada pelo
órgão competente e implicar medidas que tragam benefícios à companhia, ou
não lhe tragam prejuízos (arts. 154, caput, e 155, II, LSA). Naqueles países que
a preveem, o ato poderia configurar administração desleal, como na Alemanha,
a teor do disposto no § 266 StGB (Untreue), e na Espanha, a teor do disposto no
art. 252 do CP espanhol, com a redação dada pela LO 1/2015. Sobre o primei-
ro, cf. Bernd Schünemann, “§266”, in: Heinrich Wihelm Laufhütte (Ed.) et.
al., Leipziger Kommentar StGB Band 9/1, 12, neu b. Berlin: De Gruyter, 2012,
p. 653–880, passim, sobre o segundo, Ivo Coca Vila; Nuria Pastor Muñoz, El
delito de administración desleal: claves para una interpretación del nuevo art.
252 del Código penal, Barcelona: Atelier, 2016, passim. Especificamente sobre
a prática da Untreue pelo Aufsichtsrat, Max Schwerdtfeger, op. cit., p. 54 ss.

RPCC 28 (2018)
438 Heloisa Estellita

omissão da diretoria, uma vez que o conselho não pode tomar ini-
ciativas de gestão da companhia. Em caso de omissão penalmente
relevante do diretor, a medida adequada é sua destituição. Parece-
-nos, assim, que também dessa competência resulta um controle,
embora limitado, sobre cursos causais perigosos para bens jurídi-
cos externos que também fundamenta a posição de garantidor dos
membros do CA (87) (88).

(87)
Mesmo em caso de aprovação, quando estaríamos diante de um ato
comissivo, seria de ponderar, como fazem Silva Sánchez, Montaner Fernán-
dez e Pastor Muñoz, que poderia se tratar de mero ato preparatório de parti-
cipação, já que a execução ulterior do negócio está a cargo da diretoria, não se
podendo falar em autoria para os conselheiros. Ocorre que a participação — neste
caso, na forma de instigação ou determinação, ou até mesmo auxílio — é impu-
nível por si só se o crime não chega ao menos a ser tentado pela diretoria (art. 31,
CP brasileiro) (cf. Jesús-María Silva Sánchez; Raquel Montaner Fernández;
Nuria Pastor Muñoz, op. cit., p. 29), algo que, embora pouco provável, não é
impensável.
(88)
As normas societárias concretas da companhia podem atribuir compe-
tências de organização e mesmo de gestão ainda maiores ao Conselho, ou lhe re-
servar as competências mínimas vedando-lhe, por exemplo, delimitar atribuições
dos diretores. Nestes casos, essa regulação terá consequências quanto aos âmbitos
de vigilância dos conselheiros, bem como quanto ao conteúdo concreto de seus
deveres. Uma dessas possibilidades é, inclusive, a criação de comitês dentro do
próprio CA, incumbidos de tarefas específicas e especializadas de supervisão,
como, por exemplo, riscos ambientais de alguma atividade ou planta industrial
da companhia, riscos ligados à participação em licitações e contratos, para as
companhias que atuam intensamente em setores que envolvam contratação com
o poder público. Isso não altera a qualidade da possibilidade jurídica de atuar dos
conselheiros, que se mantém limitada, há, porém, impacto na intensidade dos
deveres de vigilância dos próprios conselheiros eventualmente designados para
presidir ou coordenar tais comitês individualmente, com a intensificação para os
designados e parcial desoneração para os não designados. No mesmo sentido,
Ralph Schilha, op. cit., p. 379-381.
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E. Conclusão

Concluindo, ali onde os membros do conselho de administra-


ção das sociedades por ações com sistema dual de administração
gozem de competências para aprovar certas operações, nomear e
destituir membros da diretoria ou definir suas atribuições há pos-
sibilidade de que sejam titulares de deveres de garantidores de
vigilância para fins da responsabilidade penal omissiva imprópria,
cujos âmbitos de atuação pessoal e material serão, porém, limita-
dos a certos estratos da gestão da empresa e a medidas limitadas
pela sua possibilidade jurídica de agir, a serem determinadas no
caso concreto a partir da estrutura própria de cada companhia.

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