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Copyright © 2014 by Hwang Sun-mi

1ª edição — Novembro de 2014

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em
2009.

Esta obra é publicada com o apoio do Literature Translation Institute of Korea – LTI Korea (Instituto para traduções
literárias – Coreia do Sul)

Editor e Publisher
Luiz Fernando Emediato

Diretora Editorial
Fernanda Emediato

Produtora Editorial e Gráfica


Priscila Hernandez

Assistentes Editoriais
Adriana Carvalho
Carla Anaya Del Matto

Capa
Yasmin Mundaca

Projeto Gráfico e Diagramação


Alan Maia

Preparação
Karla Lima

Revisão
Vinicius Tomazinho
Marcia Benjamim

Livro Digital
Obliq

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sun-mi, Hwang
Flora Hen: uma fábula de amor e esperança / Hwang Sun-mi ;
tradução Lidia Luther. -- São Paulo : Geração Editorial, 2014.

Título original: Leafie : the chicken who dreamed she could fly.
ISBN 978-85-8130-282-9

1. Ficção coreana I. Título.

14-09599 CDD-895.73

Índices para catálogo sistemático


1. Ficção : Literatura coreana 895.73

GERAÇÃO EDITORIAL
Rua Gomes Freire, 225 – Lapa
CEP: 05075-010 – São Paulo – SP
Telefax: (+ 55 11) 3256-4444
E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br
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SUMÁRIO

EU NÃO VOU MAIS BOTAR OVOS!

ESCAPANDO DO GALINHEIRO
ANIMAIS DO QUINTAL
AMIGOS
PARTIDAS E CHEGADAS
ABANDONANDO O QUINTAL
NÔMADE E CAÇADORA
MAMÃE, EU NÃO SEI CACAREJAR
OS VIAJANTES NA REPRESA

CAÇANDO A CAÇADORA
NEVE CAINDO COMO FLORES DE ACÁCIA

SOBRE HWANG SUN-MI


SOBRE YASMIN MUNDACA
EU NÃO VOU MAIS BOTAR
OVOS!

O ovo de Flora rolou para baixo e parou no canto da tela de


arame. Ela olhou com tristeza para o pálido ovo com uma pequena
mancha de sangue. Era o primeiro que botava, em dois dias. Flora
não achou que ainda conseguia. No entanto, ali estava: um ovo feio
e minúsculo. Isso não pode acontecer de novo, ela pensou. Será
que a mulher do fazendeiro levaria embora este também? Ela havia
recolhido todos, reclamando o tempo todo que estavam ficando
cada vez menores. Ela não deixaria este para trás só porque era
feio, deixaria? Hoje, Flora não tinha forças nem para ficar de pé.
Não era de se admirar; afinal, ela havia botado um ovo, mesmo não
tendo comido nada. Flora ficou pensando em quantos ovos ainda
restariam dentro dela. Esperava que este fosse o último. Com um
suspiro, olhou para fora. Como sua gaiola ficava perto da entrada,
ela conseguia enxergar outra parte do quintal, além da que era
visível pela tela de arame. A porta do galinheiro não se ajustava
muito bem ao batente; através do vão, ela via uma acácia. Amava
tanto aquela árvore que não se importava com o vento frio que
penetrava pela fresta durante o inverno, nem com a chuva que a
molhava no verão.
Flora era uma galinha poedeira, o que significava que ela havia
sido criada para botar ovos. Chegara ao galinheiro mais de um ano
antes, e, desde então, tudo o que tinha feito fora botar ovos. Não
podia ciscar por aí, bater as asas, nem ao menos chocar os próprios
ovos. Jamais havia saído do galinheiro. No entanto, desde o dia em
que vira uma galinha correndo pelo quintal, seguida pelos adoráveis
pintinhos que ela mesma tinha chocado, Flora vinha alimentando um
desejo secreto: chocar um ovo e ver o nascimento de seu pintinho.
Mas isso era um sonho impossível. A gaiola era inclinada para a
frente a fim de forçar os ovos a rolarem para o outro lado da
barreira, separando-os de suas mães.
A porta se abriu, e o fazendeiro entrou, empurrando um carrinho
de mão. As galinhas cacarejaram impacientes, criando uma
algazarra.
— Comida!
— Depressa, depressa, estou com fome!
Com um balde, o homem apanhou a ração.
— Sempre esfomeadas! É melhor fazerem valer a pena. Esta
ração não é barata.
Flora olhou ao longe através da porta aberta, concentrando-se no
mundo lá fora. Ela havia perdido o apetite algum tempo antes. Já
não queria botar ovos. Seu coração se partia cada vez que a mulher
do fazendeiro catava um ovo seu. O orgulho que sentia ao botar
logo se transformava em tristeza. Depois de um ano inteiro assim,
estava exausta. E não podia nem tocar nos próprios ovos, nem
mesmo com a ponta do pé. Não sabia o que acontecia com eles
depois que a mulher os colocava numa cesta e os levava embora.
Era um dia claro. A acácia na ponta do quintal estava carregada
de flores brancas. Seu perfume doce era trazido pela brisa,
penetrando no galinheiro e no coração de Flora. Ela se ergueu e
enfiou a cabeça pelo buraco da tela de arame da gaiola. Seu
pescoço sem penas ficou arranhado e vermelho. As folhas deram
flores de novo! Flora ficou com inveja. Se estreitasse os olhos,
conseguiria ver as folhas verde-claras que haviam amadurecido e
gerado flores perfumadas. Flora notara a acácia logo no primeiro dia
em que havia sido trancada no galinheiro. De início, achara que era
uma árvore recoberta de flores, mas, alguns dias mais tarde, as
flores haviam se desprendido, as pétalas voando como flocos de
neve, deixando para trás folhinhas verdes. As folhas viveram até o
fim do outono, antes de se tornarem amarelas e caírem
silenciosamente. Flora ficara espantada ao observar como as folhas
enfrentavam os ventos fortes e a chuva intensa antes de finalmente
murcharem e caírem. E havia se encantado ao ver as mesmas
folhas renascerem, verdes e brilhantes, na primavera seguinte.
Flora era o melhor nome do mundo. Flora é a força da natureza
que penetra na folha, que abraça o vento e se entrega ao sol e
depois cai, se decompõe e vira adubo para que flores perfumadas
desabrochem de novo. Flora queria fazer algo da própria vida, assim
como a flora gerava os brotinhos da acácia. Tinha sido por isso que
ela havia resolvido se dar este nome. Não é que alguém a
chamasse de Flora, e ela sabia que jamais poderia ser exatamente
como a flora, mas o nome a fez sentir-se bem. Era seu segredo.
Desde que se autonomeara, havia desenvolvido o hábito de
observar os eventos que aconteciam fora do galinheiro: tudo, desde
a lua crescendo e minguando e o sol nascendo e se pondo até os
animais que viviam se enfrentando no quintal.
— Vamos, comam para botar um monte de ovos bem grandes! —
disse bem alto o fazendeiro.
Ele gritava isso toda vez que trazia a ração, e Flora já não
aguentava mais ouvir aquilo. Ignorando o homem, ela olhou para
fora.
Os animais no quintal estavam ocupados comendo. Uma grande
família de patos se aglomerava ao redor de um comedouro com os
rabos arrebitados para o céu, engolindo a ração sem erguer a
cabeça nem uma vez. O velho cão estava próximo, enchendo a
boca. Ele podia ter a própria tigela, mas precisava comer às
pressas, antes que o galo interferisse. Uma vez, quando se recusou
a deixar que o galo comesse sua ração, o cão tomou uma bicada
tão furiosa que seu focinho sangrou. O comedouro da galinha e do
galo não era disputado. Como ainda não tinham pintinhos, eram os
únicos a se alimentar com calma. Mesmo assim, o galo às vezes
mostrava interesse pela tigela do velho cachorro. O galo havia
consolidado sua liderança no quintal recusando-se a recuar mesmo
quando o cachorro esticava a cauda e rosnava. O vistoso galo tinha
um rabo longo e belo, uma brilhante crista vermelha, um olhar
destemido e um bico pontudo. Era seu papel cocoricar ao
amanhecer. Depois disso, só ficava saracoteando pelo campo com a
galinha.
Flora não aguentava ver a galinha do quintal; sentia-se ainda
mais confinada em sua gaiola de arame. Ela também queria ciscar
com o galo na pilha de material em decomposição, caminhar ao lado
dele, chocar os próprios ovos. Não conseguia chegar ao quintal
onde os patos, o velho cão, o galo e a galinha viviam juntos, não
importava o quanto esticasse seu pescoço pela tela; o arame só a
depenava ainda mais. Por que eu estou no galinheiro enquanto
aquela galinha está livre no quintal? Não sabia que o galo e a
galinha eram aves coreanas criadas organicamente. E também não
sabia que um ovo que botasse sozinha não tinha como gerar um
pintinho, não importando o quanto ela se sentasse sobre ele. Se
soubesse disso, talvez jamais tivesse nem sequer começado a
sonhar em chocar um ovo.
Os patos acabaram de comer e se reuniram sob a acácia,
bamboleando a caminho de um monte próximo, seguidos por um
pássaro um pouco menor e de uma cor diferente. O topo de sua
cabeça era verde como a folha da acácia; talvez ele até nem fosse
um pato. Por outro lado, ele gingava como um pato e grasnava
como um pato. Flora não sabia como um pato-real tinha ido viver no
quintal, só sabia que ele era diferente. Ainda estava olhando para
fora quando o fazendeiro se aproximou para alimentá-la. Ele inclinou
a cabeça, insatisfeito, quando viu que a ração do dia anterior estava
intacta.
— Hum... O que se passa aqui? — resmungou.
Geralmente, ele ia embora depois de deixar a ração, seguido de
sua mulher, que apanhava os ovos. Hoje, porém, ele estava fazendo
o trabalho dela.
— Sem comer todos estes dias. Deve estar doente — murmurou
o homem, olhando para Flora com desgosto.
Ele esticou o braço para pegar o ovo dela. Assim que seus dedos
tocaram o ovo, tudo se revelou: finas rugas se multiplicaram sobre
sua superfície. Flora ficou chocada. Ela sabia que o ovo era feio e
pequeno, mas nunca imaginou que fosse mole. A casca nem tinha
acabado de endurecer! O fazendeiro fez uma careta.
Flora sentiu o coração se partir ao meio. A tristeza que a
dominava toda vez que seu ovo era levado embora não se
comparava ao que sentia agora. Soluços lhe tomaram a garganta;
seu corpo inteiro se enrijeceu. O pobrezinho saiu sem casca. O
fazendeiro atirou o ovo no quintal, o que fez Flora cerrar os olhos. O
ovo se desfez sem produzir um único som. O velho cão se
aproximou e lambeu tudo. Lágrimas caíram livremente dos olhos de
Flora pela primeira vez na vida. Nunca mais vou botar ovos! Nunca
mais!
ESCAPANDO DO GALINHEIRO

Flora gostava de observar o quintal. Era preferível ficar olhando os


patos correndo do cachorro a beliscar a ração. Fechando os olhos,
ela se imaginava correndo livre pelo quintal. Fantasiava que
chocava um ovo em um ninho, que se aventurava pelo campo com
o galo e seguia os patos por aí. Suspirou. Era inútil sonhar. Nada
disso jamais aconteceria com ela. Não tinha conseguido botar um
ovo nos últimos dias. Não era surpresa, já que quase mal conseguia
ficar de pé.
No quinto dia sem botar um ovo, Flora acordou de um sono
profundo com a voz irritada da mulher do fazendeiro.
— Precisamos apartá-la. Tirá-la do galinheiro.
Flora nunca imaginou que sairia do galinheiro. Ela não sabia o
que “apartar” significava, mas só o pensamento de sair dali lhe deu
um impulso de energia. Levantou a cabeça com esforço e bebeu um
pouco de água. No dia seguinte, também não foi capaz de botar.
Flora sentia que seu corpo não tinha mais condições de produzir
ovos. Mesmo assim, ainda bebeu água e comeu um pouco de
ração. Ela mal podia esperar pelo início de sua nova vida. Chocaria
um ovo e criaria um pintinho. Sabia que poderia fazer isso se ao
menos conseguisse chegar até o quintal. Flora esperou,
transbordando de esperança. Teve um sono agitado, imaginando-se
brincando nos campos com o galo e ciscando o chão.
No sétimo dia sem ovo, a porta do galinheiro se abriu, e o
fazendeiro e sua mulher entraram empurrando um carrinho vazio.
Flora estava tão fraca que não conseguiu ficar de pé, mas suas
ideias estavam mais claras do que nunca. Ela levantou a voz pela
primeira vez em muito tempo: “Vou sair do galinheiro!”, cacarejou.
Chegara o dia mais maravilhoso de sua vida desde que fora
confinada. O perfume das acácias no ar aumentava o seu prazer.
— Provavelmente podemos ganhar algum dinheiro vendendo a
carne, não? — perguntou a mulher ao marido.
— Não sei, não, ela parece doente...
Flora não registrou a conversa deles. Seu coração batia com
força enquanto ela imaginava que finalmente iria viver no quintal. O
fazendeiro a pegou pelas asas, tirando-a de sua gaiola apertada.
Flora foi jogada no carrinho com um baque surdo. Não teve energia
para resistir, quanto mais para bater as asas. Esticou o pescoço,
mas apenas por um momento, até que outras galinhas fracas foram
jogadas por cima dela, sufocando-a. Os dois levaram as galinhas
fracas, cujos anos de produtividade já haviam passado, mas que
eram ainda saudáveis, para uma gaiola avulsa e as trancaram lá.
Em seguida a gaiola foi posta em um caminhão e levada para fora
da fazenda. Flora ficou no carrinho, pressionada sob o peso de
outras galinhas à beira da morte. A última delas foi jogada em cima
de sua cabeça. Flora estava assustada. Tentou não perder a
consciência, tentando compreender o que estava acontecendo. Os
cacarejos altos foram aos poucos diminuindo de volume, e logo ela
não conseguia ouvir nem mais um pio. Estava ficando difícil respirar.
É isso que quer dizer ser apartada? As pálpebras de Flora se
fecharam. Não posso morrer desse jeito. Ela tentou criar coragem,
mas ficava cada vez com mais medo. Do fundo de seu coração,
uma grande tristeza subiu à tona. Não podia morrer assim, não sem
antes chegar ao quintal. Tinha que escapar do carrinho. Mas as
galinhas por cima dela estavam esmagando seus ossos.
Flora se concentrou na imagem da acácia carregada de flores,
nas folhas verdes, no perfume maravilhoso e nos animais felizes no
quintal. Tinha apenas um desejo: chocar um ovo e ver o nascimento
de um pintinho. Era um desejo comum, mas agora ela estava
morrendo antes de poder realizá-lo. Conforme sua consciência se
esvaía, Flora começou a delirar. Viu-se sentada em um ovo,
aquecendo-o em um ninho. O nobre galo montava guarda a seu
lado, e as flores da acácia dançavam como flocos de neve. Eu
sempre quis chocar um ovo. Apenas uma vez. Um ovo só para mim.
Queria murmurar para o meu bebê: “Eu não vou te abandonar
nunca, Bebê. Vamos, quebre a casca, quero conhecer você. Não
tenha medo, Bebê!”. E abraçar meu bebê quando ele nascesse.
Acreditando que realmente chocava um ovo, Flora desmaiou com
um sorriso no bico.
Ela abriu os olhos. Quanto tempo havia passado? Estava
chovendo. Flora estava ensopada até a alma. Não sabia onde
estava. Acho que eu não morri. Estava congelando de frio. Mesmo
depois que sua mente clareou, não conseguiu se mover. Ela se
sentiria melhor se pudesse sacudir as penas, mas não tinha energia.
Ouviu alguma coisa vinda de cima. Somente depois que o
barulho se repetiu foi que ela compreendeu.
— Ei, você. Está me ouvindo? — gritou a voz.
Flora conseguiu erguer a cabeça. Sentia um cheiro horrível, mas
não conseguia ver o que havia no entorno.
— Você está bem. Eu sabia! — A voz, animada, ficou mais alta.
— Levante-se! Dê um passo!
— Dar um passo? Não consigo. É difícil demais.
Flora olhou ao redor, para as árvores sobre um monte ao
entardecer e para a grama que dançava ao vento no topo de uma
represa. Daquela direção ela ouviu a voz de novo.
— Você não está morta. Vamos, levante-se!
— Claro que não estou morta — Flora movimentou as asas,
esticou as pernas e sacudiu o pescoço de um lado para outro. Tudo
estava intacto; ela apenas estava fraca. — Quem é você?
— Pare de falar. Você precisa fugir. Rápido!
Flora se ergueu com dificuldade. Precisou de todas as suas
forças para dar alguns passos na direção da voz. Quando tinha sido
a última vez que caminhara? Um passo, dois passos. De repente
congelou e se sentou, perplexa.
— Oh, meu Deus. O que é isto?
Galinhas mortas estavam empilhadas ao seu redor. Ela estava
andando por cima delas. Estava presa no meio de uma grande cova
aberta.
— Mas eu ainda estou viva! Como pode ser?
Flora deu um pulo e correu em círculos, cacarejando aterrorizada.
Não tinha como escapar. Pisava nas carcaças a cada passo. Foi
tomada pelo terror. Não conseguia acreditar no que via.
— Mas o que é que você está fazendo? — a voz perguntou, de
cima da cova.
Mas Flora estava muito ocupada correndo em círculos e
cacarejando.
— Oh, não! O que eu vou fazer?
— Cuidado! Cuidado!
— Não estou morta! Como pode ser?
— Olhe para lá. Você está na mira!
— O que vou fazer? O que vou fazer?
— Fugir! Não percebe que você é um alvo? Sua galinha tonta!
Aqueles olhos estão espreitando você! — berrou a voz.
Só então Flora parou com a agitação. Alguma coisa estava
deslizando na grama do lado oposto de onde vinha a voz. Dois
olhos a espreitavam. Um arrepio desceu por sua espinha.
— Se você ficar aí, vai se dar mal!
Flora não sabia quem estava gritando ordens para ela acima da
cova aberta, mas concluiu que ele era mais confiável do que
aqueles olhos reluzentes.
— Você deve ser o galo — gritou ela.
Só o galo poderia estar gritando com tanta coragem assim no
meio da escuridão. Flora seguiu a voz até a beirada da cova. O
buraco era mais raso daquele lado, e ela podia pular para fora com
mais facilidade.
— Bom trabalho — disse o novo amigo, com uma voz bondosa e
calma.
Flora se chacoalhou e olhou bem para seu amigo. Era o pato-real
que vivia no quintal, aquele mesmo, de extraordinárias penas verdes
e marrons, o solitário que sempre andava atrás da família de patos.
Começou a parecer que ela havia realmente saído do galinheiro.
— Obrigada por me ajudar!
— Não precisa me agradecer. Eu não poderia deixar que ela
pegasse você. Quando ela pega alguém vivo, me dá uma fúria
danada.
— Ela quem?
— A doninha! — O pato-real tremeu e eriçou as penas do
pescoço.
Flora tremeu também. A doninha estava orgulhosamente em pé
do outro lado da cova aberta. Encarava os dois fixamente, cheia de
raiva por sua refeição ter escapado.
— Agora que sobreviveu, volte para lá — disse o pato-real,
começando a se afastar.
— Espere, para “lá” onde? — Então o pato não pretendia levá-la
junto! Ela queria ir com ele para o quintal. Por que iria voltar? — Não
vou voltar para o galinheiro. Acabei de conseguir sair. Fui apartada.
— Apartada? O que quer dizer isso?
— Não sei bem, mas acho que quer dizer que estou livre.
— De qualquer modo é perigoso ficar aqui. Vá embora. Estou
atrasado. Todo mundo estará dormindo. — O pato-real continuou a
caminhar, parecendo cansado.
Flora deu uma olhada para trás, para a doninha, e correu atrás do
pato-real.
— Como sabia que eu estava na cova?
— Quando estava voltando da represa, eu vi que a doninha
estava rondando por aqui. Isso quer dizer que havia pelo menos
uma galinha viva dentro do Buraco da Morte. Conheço aquela
criatura maldita! — O pato-real tremeu de novo, as penas em seu
pescoço se eriçando. — Ela sempre caça seres vivos. Ela é terrível.
E enorme. Maior que as outras. Age assim para mostrar o quanto é
poderosa. Uma galinha viva como você é uma boa caça e só
aparece de vez em quando. Você teve sorte.
— Tem razão, tive sorte. Tudo graças a você.
Flora continuou caminhando atrás do pato-real. Saber que ela era
uma boa caça deixou suas penas em pé.
— Nunca conheci uma galinha como você. Foi bom ter feito
aquele barulho todo. A doninha devia estar se perguntando como
poderia agarrar uma presa tão cheia de energia quanto você — o
pato-real riu alegremente e olhou para trás em direção à cova
aberta.
A doninha ainda estava lá parada, observando os dois. Flora
rapidamente desviou os olhos, mas o pato-real estava confiante.
— Tenho certeza de que você vai vê-la de novo. Aquela ali não
desiste.
— Mesmo? — balbuciou Flora.
— Acho que você é a primeira galinha a sair dali viva.
— Mas eu não tinha morrido — murmurou ela.
O pato-real continuou caminhando. Passaram pela acácia.
— E agora, para onde você vai? — perguntou ele.
Flora hesitou.
— Bem... Não tenho um pingo de desejo de voltar para o
galinheiro.
— Você já disse isso.
— Cer-certo. Eu disse — Flora esperava que o pato-real pudesse
ajudá-la. — Você não pode me levar com você?
— Para onde? Para o celeiro? — O pato-real balançou a cabeça.
Ela o havia colocado em uma situação difícil. Mas, talvez por sentir
pena dela, ele não negou imediatamente. — Eu não sou daqui. Mas
como você é uma galinha, então, quem sabe... — O pato a levou até
o celeiro, onde os animais do quintal se recolhiam para dormir.
ANIMAIS DO QUINTAL

O velho cão de guarda estava deitado no chão com apenas a


traseira dentro da casinha. Seus olhos entreabertos indicavam que
ele ia a caminho do mundo dos sonhos. Porém, quando percebeu a
presença do pato-real e de uma galinha ensopada e muitíssimo
magra, sem nenhuma pena no pescoço, seus olhos se arregalaram.
— Que fedor horrível! — rosnou ele, dando um passo à frente.
Flora se protegeu atrás do pato-real.
— Não há necessidade disso. É apenas uma galinha — disse o
pato-real gentilmente, para não ofender o cachorro.
O cão franziu o focinho e deu uma volta ao redor de Flora, como
se esperasse uma chance para abocanhá-la com sua mandíbula.
— Não posso deixar passar qualquer um. Sou um cão de guarda
muito zeloso! — rosnou ele, mostrando os dentes.
Ouvindo o tumulto, vários patos esticaram a cabeça de dentro do
celeiro para espiar para fora.
— Ah, então ele não foi embora, como tínhamos pensado? —
grasnou um pato.
— Oh, não — outro lamentou. — E o que ele arrastou para cá?
— Que confusão. Uma galinha depenada. Deve ter fugido da
mesa de jantar da doninha.
Os patos deram risada.
O pato-real ficou calado, mas suas penas se eriçaram e
tremeram. Flora sentiu pena por ele ser o alvo da chacota.
— Ei, Andarilho! — chamou um pato. — Você já é um fardo para
nós, para começo de conversa, e agora ainda traz junto uma galinha
doente?
— Expulse, mande embora! Ela vai deixar todos nós doentes.
Os patos começaram a gritar em coro que Flora deveria partir
imediatamente. O cachorro rosnou, triunfante.
— Entendeu? Nem pense em ficar por aqui.
Flora estava intimidada, mas não tinha para onde ir. Continuou
atrás de Andarilho.
— Não vou deixar ninguém doente. Não vou perturbar ninguém
— disse ela, em meio a soluços de choro. Os animais do quintal não
lhe eram estranhos; ela havia imaginado que tudo terminaria bem
quando deixasse o galinheiro. — E faz muito tempo que eu queria
viver no quintal.
— O quê? Você é uma galinha poedeira. Seu papel é botar ovos
no galinheiro! — rosnou alto o cão de guarda.
— Mas eu... — Flora gaguejou, tentando reafirmar sua posição.
O cachorro ficou mais feroz. Suas narinas se aproximaram dela e
a empurraram até que ela caísse no chão. Isso aconteceu várias
vezes. Os patos riam sem parar. Flora explodiu em lágrimas.
— Vocês estão sendo covardes! Deixem a galinha em paz! —
gritou Andarilho. — Eu vim aqui pedir a opinião de todos. Como
podem ser tão cruéis?
— Cruéis? Será que ele esqueceu quem deixou que ele morasse
no abrigo? — resmungou um dos patos.
Andarilho ficou ainda mais indignado.
— Esta galinha sobreviveu ao Buraco da Morte! Nenhuma outra
galinha conseguiu sair viva de lá. A doninha estava à espreita, mas
ela escapou. É muito corajosa!
Os patos pareciam surpresos.
— Ela enfrentou a doninha! — continuou ele. — Será que algum
de vocês conseguiria fazer isso? Teriam encontrado a morte
enquanto se afastassem gingando.
Os patos ficaram em silêncio diante da defesa vigorosa de
Andarilho. O velho cão parou de rosnar.
— Afinal, qual é o problema? Podemos oferecer a ela um
cantinho dentro do celeiro — propôs Andarilho.
Flora ficou maravilhada com a autoconfiança dele. Como ele
sempre andava atrás quando os patos iam a algum lugar, ela havia
pensado que ele era tratado como um filhotinho.
— Fique quieto! — comandou outro pato, o líder do bando, saindo
do celeiro. — Você é um forasteiro. Como se atreve a nos insultar?
Não se esqueça de que fomos nós que o deixamos morar no
celeiro. Você deveria estar agradecido!
O galo saiu do celeiro para ver o que era todo aquele tumulto.
— Eu sou o líder deste celeiro! Andarilho não tem o direito de
dizer isso ou aquilo. Eu é que tomo as decisões!
Todos escutavam o galo com grande respeito. Sua voz
comandava, da mesma forma como quando anunciava o
amanhecer. Ele continuou:
— Não façam tanta algazarra. Está escuro, então a doninha pode
aparecer. A galinha pode ficar no celeiro. Mas só por esta noite. De
qualquer maneira, o galinheiro está fechado. Ela pode dormir no
canto mais afastado. E assim que eu anunciar o amanhecer, ela
deve sair daqui imediatamente!
O galo voltou para dentro do celeiro. O líder dos patos o seguiu,
assim como o pato-real. Flora cautelosamente entrou por último. O
velho cão rabugento ficou vigiando o quintal.
Dentro do celeiro era aconchegante. Vasilhas de água e ração
estavam espalhadas, e um monte de feno morno foi colocado em
um canto. No celeiro, não existia a tela de arame que, no galinheiro,
havia contido Flora todas as vezes que ela tentara bater as asas. O
galo e sua galinha estavam empoleirados e vigiavam todo mundo.
Os patos se aninharam. Andarilho se acomodou perto da porta, a
certa distância dos outros. Ali parecia ser o lugar dele. Flora sabia
que tinha que ficar ainda mais longe do grupo. Assim, se aninhou
em um canto bem afastado dos outros e não ousou nem sonhar em
se deitar no feno morno.
— Não acredito que isso aconteceu de novo — a galinha
reclamou para o galo. — Aquela galinha tem que ir embora pela
manhã. Eu ando muito sensível, estes dias. Estou prestes a botar.
Se é para chocar os ovos, eu preciso que tudo esteja em paz. Tenho
certeza de que todos se lembram de que perdi todos os meus
pintinhos!
Flora olhou para a galinha no alto do poleiro. Até no escuro dava
para ver como era bonita; um corpo magnífico, penas lustrosas, a
crista perfeita. Era a companheira ideal para o garboso galo. Flora
sentiu inveja e se perguntou se algum dia seria tão elegante. E ela
vai chocar um ovo! Eu quero saber como é. Queria tanto poder ser
como ela. Flora nunca tinha prestado atenção à própria aparência.
No entanto, sabia que no momento estava muito feia, magricela e
sem penas. De repente, sentiu vergonha. Encolheu-se para se
esconder, tentando engolir as lágrimas. Não queria que ninguém
ficasse olhando para seu pescoço sem penas. Ela se consolou
dizendo a si mesma que havia escapado do galinheiro e que estava
com os animais do quintal, agora. Em breve eu vou conseguir botar
um ovo. Muito em breve! Mas então ela se lembrou das ordens para
ir embora ao amanhecer. Seu futuro era desolador. Além disso,
estava faminta. Mesmo assim, Flora dormiu bem pela primeira vez
em muito tempo. Acordou antes de todos, até mais cedo do que o
galo, mas não se moveu. Queria desfrutar mais um pouco do calor
do celeiro e não desejava perturbar os animais que ainda dormiam.
Sentia-se cada vez mais esperançosa. Talvez me deixem ficar. O
pato-real é um andarilho e se estabeleceu aqui. Vão compreender,
se souberem o quanto quero viver no quintal.
O galo acordou. Limpou as penas rapidamente e abriu as asas.
Esticou o pescoço e gritou: “Cocoricó!”. Desceu do poleiro para
perto de Flora. Ela se afastou para abrir espaço para ele.
— Você pode ficar até eu abrir minhas asas e cocoricar de cima
do muro de pedra. Depois, você some daqui — ordenou o galo. —
Deixamos que o pato-real ficasse porque ele realmente não tem
para onde ir. Mas você tem seu lugar. O galinheiro. É seguro, lá.
Não importa o quanto você seja corajosa, não pode continuar
fugindo da doninha. — Ele se estufou de orgulho. — Permiti que
dormisse aqui ontem à noite porque você é da nossa espécie. Mas a
nossa espécie não pode se tornar alvo de chacotas no celeiro.
Agora você precisa voltar para onde é seu lugar.
— Não quero voltar para lá. Quero viver no quintal. Aqui eu não
preciso me preocupar com a doninha — implorou Flora. — Fui
apartada.
— Apartada?
Flora confirmou, e o galo riu com desprezo. Olhou para ela
furioso, como se fosse bicá-la se ela respondesse.
— Ninguém quer você aqui!
As esperanças de Flora foram destruídas. Humilhada, ela cerrou
o bico. O galo foi para fora. Um momento depois, ela ouviu o
cocoricó, que era o sinal para ir embora. Olhou para o pato-real, que
estava acordado e a observava. Mas Andarilho não tinha como
ajudá-la, ocupava o último lugar na hierarquia. Ele se desculpou
com um gesto. Flora compreendia. Ele tinha feito o que podia,
ajudando-a quando ela estava prestes a virar o jantar da doninha e
tomando seu partido quando os animais do quintal a rejeitaram.
Flora deixou o celeiro, mas não tinha para onde ir. Encolheu-se sob
a acácia. O fazendeiro empurrava o carrinho até o galinheiro.
Quando estava no galinheiro, Flora esperava ansiosamente pelo
momento em que a porta era aberta, para poder espiar por um
instante o quintal que ela não imaginava poder alcançar. No entanto,
ali estava ela! Não devo ficar triste. É um milagre que eu esteja aqui!
Flora olhou para cima, para a acácia que se agigantava em direção
ao céu. Vou botar um ovo. E vou chocar um pintinho. Se eu sobrevivi
a tudo isso, nada pode me impedir! Seu estômago roncava. Flora
salivou quando viu a mulher do fazendeiro alimentar os animais do
quintal. Ela também queria comer. Levantou-se e correu até o
comedouro. Não fazia ideia de onde havia tirado a energia para
correr. Porém, antes de chegar até ele, um pato a bicou sem dó no
pescoço.

— Como se atreve?
Sem as penas para proteger o pescoço, Flora quase desmaiou de
dor.
— Suma daqui! Agora! — gritou o pato, antes de enfiar a cabeça
no comedouro. Os outros patos se aproximaram, os rabos
apontando para cima. Não sobrou um espacinho por onde ela
pudesse se enfiar entre eles.
Flora olhou para o comedouro do casal de galo e galinha. Havia
bastante espaço, mas ela não se atreveria. O galo era ganancioso e
bravo. E ela jamais se atreveria a se aproximar do cachorro.
O fazendeiro olhou para Flora enquanto empurrava o carrinho
para fora do galinheiro. Sua mulher, ao entrar para apanhar os ovos,
parou perto dele.
— De alguma maneira, conseguiu sobreviver — disse ela.
O marido assentiu.
— É. Ela é dura na queda.
— Devo pegá-la e colocar de volta no galinheiro? Ah, mas ela
não consegue mais botar ovos. Então, devemos comê-la?
Flora ficou aterrorizada. Mas o homem negou, fazendo um gesto
com a cabeça.
— Ela está doente. Logo vai morrer. Ou a doninha vai pegar.
Flora deu um suspiro de alívio. Mas ainda desejava poder comer
alguma coisa, qualquer coisa. Tentou engolir o ar. As galinhas no
galinheiro estariam ocupadas comendo, agora. Seu estômago vazio
parecia torcido em um nó. Embora a vida no quintal fosse mais difícil
do que havia imaginado, nem por um instante ela olhou para o
galinheiro.
A pilha do material em decomposição! Flora se lembrou do galo e
da galinha ciscando ali. Saiu correndo para lá sem uma pista do que
poderia encontrar. Ficou satisfeita ao avistar uma suculenta minhoca
se arrastando pelo chão. Era perfeitamente deliciosa. Mas a galinha
correu até Flora.
— Não coma o meu petisco! — E deu uma bicada aguda na
cabeça dela.
Flora gritou e se afastou. Ainda insatisfeita, a galinha bicou Flora
várias vezes pelo corpo todo e a empurrou para fora do quintal. O
corpo de Flora ficou todo machucado. Mas sua fome superava as
dores. Decidiu ir até o jardim. Beliscou pedacinhos de folhas de
couve, um alívio delicioso para a fome e a sede. Com medo de que
o galo e a galinha corressem até ela para defender seu território,
Flora continuou explorando. O jardim não era a única fonte de
alimentos, havia vastos campos ao seu redor. Flora se ergueu com
orgulho, cacarejando alegremente. O galo e a galinha não tinham
como comandar tudo aquilo!
AMIGOS

Flora passou o dia inteiro nos campos. Comeu lagartas, ciscou a


terra e tirou um cochilo revigorante deitada sobre a barriga. Havia
tantas coisas a fazer, muito mais do que imaginara no galinheiro.
Ninguém a perturbou. Os patos subiram a encosta e não retornaram
antes do fim do dia, e o galo e a galinha não se aventuraram para
longe do jardim. Flora estava satisfeita. Mas, quando começou a
entardecer, ficou preocupada. Tinha que encontrar um lugar seguro,
longe da doninha. Flora percorreu o olhar pelos campos a fim de
achar um local escondido para dormir. Mas não havia nenhum canto
onde pudesse se esconder. Assim, voltou ao quintal.
Os animais do quintal já haviam se recolhido para dentro do
celeiro, e o velho cão estava de guarda. Quando viu Flora, ele se
aproximou com uma expressão de desagrado.
— Nem adianta vir implorar, hoje. Ninguém vai tomar seu partido.
— Ele a rodeou várias vezes. — Andarilho já foi avisado. Se ele
causar problemas, terá que abandonar o celeiro. Portanto, ele não
vai mais ajudar você.
Flora se encolheu, temerosa. O cachorro continuou:
— E a galinha logo vai botar ovos. É meu dever manter tudo em
paz ao redor dela. Não quero você zanzando por aqui.
Flora sentiu que ele temia o mau gênio da galinha. Se ela ficasse
brava com ele, poderia bicá-lo no focinho, e ele não queria ser
humilhado por uma galinha.
— Eu não tenho outro lugar para dormir — disse ela,
educadamente.
Flora não estava tentando entrar no celeiro, como na noite
anterior. Apenas esperava poder dormir sob a proteção do cachorro.
Não se importava com o lugar onde dormisse, contanto que fosse
no quintal.
— Isso não é problema meu. Eu vou ficar cada vez mais
ocupado. A galinha quer chocar seus ovos em um lugar calmo. Bem
ali.
Ele apontou para um emaranhado de bambus próximo à pilha de
adubo. Parecia um lugar que a doninha poderia frequentar, à noite.
— Logo vou ter que patrulhar aquela área também. E na minha
idade! A galinha depende de mim. Se ela souber que você ainda
anda por aqui, vai ficar irritada. E eu estou muito velho para lidar
com isso — e suspirou.
— Eu não vou dar um pio. Só me deixe ficar por um tempo. Na
parte de baixo do muro de pedra ou em um canto distante do
quintal. Saio antes que o galo acorde.
— Você está pedindo demais. Em toda a minha vida, eu fui um
cão de guarda rígido. Não posso desobedecer às regras por sua
causa.
— Por que não posso viver no quintal? Sou uma galinha também,
como ela.
— Rá! Galinha tola. O que a faz pensar isso? Sim, vocês duas
são galinhas, mas são diferentes. Como é que não sabe disso? Do
mesmo jeito que eu sou um cão de guarda e o galo anuncia a
manhã, você foi feita para botar ovos em uma gaiola. E não no
quintal! Regra é regra.
— E se eu não gostar da regra? O que acontece, então?
— Isso é ridículo! — fungou o cão.
Ele se virou e entrou na casinha sacudindo a cabeça. Ele não a
ajudaria. E se ela o irritasse ainda mais, estaria pedindo para ser
humilhada, do mesmo jeito que o galo havia feito quando lhe disse:
“Ninguém quer você aqui”.
Flora saiu do quintal. Mas ainda não tinha para onde ir. Foi até a
beira do quintal e começou a ciscar junto ao pé da acácia até que
fez um buraco raso. Suas garras doíam. Enfiou-se no buraco e
abaixou a barriga nele. O cachorro apenas observou. O coração de
Flora estava repleto de tristeza e raiva. Queria ir embora o mais
rápido possível.
Pouco depois disso, a galinha começou a passar seus dias
sentada em um ninho em meio aos bambus. Às vezes, visitava a
pilha de esterco para caçar besouros, mas não ia mais ao jardim. O
ânimo de Flora desmoronou. Ela não se lembrava de quanto tempo
fazia desde que botara um ovo pela última vez. Não havia sentido
vontade de botar quando estava no galinheiro, mas agora estava
saudável mais uma vez, e todas as penas em seu pescoço haviam
crescido de novo. Porém, não importava quão desesperadamente
desejasse um ovo, ela sentia que não conseguiria botar mais
nenhum. Ficaria tão orgulhosa de si mesma e feliz se pelo menos
pudesse botar um ovo. Flora se sentia frustrada. Vagar pelos
campos em busca de comida não era tão diferente assim da vida
atrás da tela de arame do galinheiro. Tentou banir esses
pensamentos negativos. É claro que eu vou botar um ovo! Imaginou
que isso aconteceria naturalmente uma vez que preparasse um
ninho para si. Era óbvio que não botaria um ovo enquanto
continuasse dormindo tão mal, preocupada com a doninha. Porém,
bem lá no fundo, ela se perguntava se essa seria mesmo a única
razão. Às vezes, acordava à noite, assustada com os olhos
faiscantes da doninha na escuridão. Mas todas as vezes o cachorro
havia farejado o bicho e rosnado. A doninha tinha sido incapaz de
se aproximar dela, e Flora não precisara correr para o quintal para
escapar. Se não posso botar ovos, que sentido tenho em viver?
Flora se sentia ainda mais sozinha porque Andarilho havia
encontrado uma parceira. Agora, já fazia um bom tempo que ele não
ia a lugar nenhum sem a pata branca ao seu lado. No primeiro dia
em que ela seguiu o bando de patos até a represa, Flora o viu
brincando alegremente na água com a pata branca e subido em
suas costas. Flora ficou feliz por seu amigo. Mas a solidão dele tinha
deixado marcas nela, como uma doença contagiosa. Andarilho, por
sua vez, mudou quando encontrou seu par. Ele não ficava mais
seguindo a fila de patos e, em algumas ocasiões, não voltava para
dormir no celeiro. Nessas noites, Flora não conseguia adormecer,
preocupada com a segurança de seu amigo.
Certo dia, enquanto comia o café da manhã no campo, Flora viu
os patos gingando em fila em direção à represa. Andarilho não
estava com eles. Flora os viu desaparecer do outro lado da colina e
os seguiu, esperando ver o pato-real. Ela pensou que se acalmaria
se pudesse apenas dar uma espiada nele. Mas ele não estava na
represa; nem a pata branca. Será que ele foi embora? Flora havia
pensado que eles fossem amigos. Teria ele partido sem se
despedir? Se ela soubesse que ele iria sumir, teria se despedido,
pelo menos em seu coração. Era eu quem deveria partir. Quero
deixar o quintal. Pela primeira vez na vida, Flora sentiu falta do
galinheiro. Lá, ao menos, ela conseguia botar ovos. A vida não seria
tão sem sentido e solitária se ela tivesse se comportado como
qualquer outra galinha. Não sabia o que fazer. Virou-se e olhou para
o caminho que havia percorrido. O quintal, de repente, pareceu
muito distante. Eu não quero voltar para o quintal. Não havia sido
por causa do pato-real que ela quisera viver no quintal, mas, agora
que ele não estava mais lá, ela não tinha vontade de voltar. Queria
escapar do calor e dormir por um bom tempo. Ninguém gosta de
mim. Flora não queria mais viver debaixo da acácia, solitária,
observando o celeiro.
Ela reparou em um arbusto espinhoso que crescia na beira do
morro e que nunca havia notado antes. Ele proporcionaria um bom
abrigo contra o calor. Não precisava fazer um ninho no quintal. Flora
estava quase chegando ao arbusto quando ouviu um grito agudo.
Suas penas se arrepiaram. Os campos voltaram rapidamente à
calma. Porém, algo nefasto passou pelo seu campo de visão. Algo
que parecia um rabo curto e eriçado se misturou a um punhado
espesso de samambaias antes de desaparecer. As samambaias
farfalharam um pouco, mas foi apenas isso. Flora não ouviu mais
nada. Ficou congelada no mesmo lugar por um bom tempo, com
aquele grito de dor reverberando em seu coração. Sentiu tontura.
Tudo se tornou vermelho. Abriu os olhos cuidadosamente para se
livrar daquela visão avermelhada e devagar olhou ao seu redor.
Andarilho! Ela tremeu, exatamente como fizera no Buraco da Morte.
Mesmo sabendo que precisava sair dali sem mais demora,
continuou caminhando até o espinheiro selvagem. Dizendo a si
mesma para se manter alerta, ela enrijeceu as garras e arregalou os
olhos para manter a coragem. Está tudo bem. Ninguém pode me
machucar. Continuou andando, um passo de cada vez. Estava certa
de ter sido Andarilho a gritar. Nunca ouvira tanto terror na voz de
nenhum animal. Estava preparada para o que viesse, mesmo que
fosse ficar cara a cara com a doninha. Se era seu amigo que estava
em perigo, então não havia como voltar atrás. Mas não conseguia
ver nada. Não encontrou nem sequer uma pena perdida, quanto
mais a doninha. Tudo o que via era grama alta e galhos grossos.
Deve ter sido tudo fruto de sua imaginação. Sentindo-se aliviada,
Flora enfiou a cabeça entre os galhos do arbusto espinhoso. Era um
lugar adorável para um ninho, cercado por uma grossa trama de
samambaias. Mas havia algo ali.
— Nossa, o que será isso? — Confusa, Flora tirou a cabeça do
meio dos galhos e piscou várias vezes. Depois espiou novamente.
— Que lindo!
No meio da folhagem, estava um ovo branco com um tom
azulado. Um ovo que ainda não tinha sido chocado. Era grande e
bonito, mas não havia sinal da mãe ou de que estivesse sendo
incubado. Flora olhou ao redor para ver se a mãe estava por perto.
Seu coração batia desenfreado. De quem será? O que devo fazer?
O que devo fazer? Cacarejando, andou de um lado para outro. Não
podia deixá-lo sozinho. Se ela não adotasse o ovo, ele poderia não
vingar. Flora decidiu ficar só até que a mãe retornasse. Entrou na
pequena clareira secreta e cuidadosamente se sentou sobre o ovo.
Ainda estava quente; tinha sido botado havia pouco tempo. Você
quase se meteu em encrenca, meu pequeno. Vou manter você
quentinho agora. Não se assuste. Seu medo desapareceu
imediatamente, e uma grande paz desceu sobre o arbusto. E
felicidade também. Fechando os olhos, ela se deleitou naquele ser
morno aconchegado sob seu peito. A pequena clareira era
surpreendentemente aconchegante. Quando a noite caiu, ali dentro
se tornou escuro muito mais depressa do que junto à acácia, e o
ruído da brisa se esvaneceu.
— Sei que não posso botar mais ovos — disse Flora para si
mesma, em tom de conversa —, mas tudo bem. Estou chocando um
ovo! Meus sonhos estão se realizando. É apenas um único ovo, mas
está bom para mim.
Ela queria acreditar que havia reencontrado um dos próprios ovos
que havia botado no passado. Porém, não se descuidava de olhar
para a escuridão caso a mãe verdadeira voltasse. E quando os
zunidos dos insetos se acalmaram, Flora arrancou algumas penas
do peito para aconchegar melhor o ovo e mantê-lo aquecido. Um nó
se fez em sua garganta. Este é meu ovo. Meu bebê, para quem
posso contar histórias! Flora já amava aquele ovo. Mesmo que a
mãe voltasse, ela não tinha certeza se conseguiria abrir mão.
Concentrou-se inteiramente em manter o ovo quente; ela conseguia
sentir o minúsculo coração batendo dentro da casca.
Amanheceu. Tudo era diferente do dia anterior. Flora cobriu o ovo
com as penas que arrancara do peito e saiu do esconderijo do
arbusto espinhoso. Beliscou um raminho de grama ainda coberta de
orvalho. Não poderia ir muito longe enquanto estivesse chocando
um ovo, portanto, isso teria que ser suficiente. Os patos passaram
rebolando em direção à represa. O líder do grupo estava à frente, e
o mais jovem ia por último. Andarilho não estava com eles. Uma vez
mais, Flora desejou ter tido a chance de se despedir dele, mas
agora já não se sentia sozinha como antes. Procurou grama seca
para cobrir e manter o ovo quente. Quando estava voltando para o
arbusto com umas folhas de grama no bico, ouviu algo atrás de si.
Andarilho! Ficou tão perplexa que quase deixou cair tudo. Ele
parecia exausto e triste. Ela ficou contente ao vê-lo, mas parou onde
estava, pois não queria ser vista chocando o ovo. Antes de afinal se
sentar, ele ficou olhando em silêncio para o peito depenado de
Flora. Ela acabou voltando para o arbusto e se acomodando sobre o
ovo. Ficou imaginando o que teria acontecido com seu amigo. Ele
não lhe contou nada, mas, de vez em quando, erguia a cabeça de
sob a asa e a fitava com olhos tristes. Flora se perguntava qual seria
a razão para tanta angústia. E queria saber onde tinha ido parar a
pata branca.
Andarilho não partiu até o amanhecer. Ela sentia pena dele, mas
ficou grata por ele não fazer perguntas sobre o ovo. Quando o sol
surgiu por entre a névoa, Andarilho acompanhou os outros patos até
a represa. Algum tempo depois, retornou com um peixe pendurado
no bico. Ele o depositou na frente do esconderijo e foi embora.
PARTIDAS E CHEGADAS

Todos os dias, Andarilho trazia um peixe para ela. Graças a ele,


Flora foi capaz de chocar o ovo sem passar fome. Por que será que
ele não voltou para o celeiro? Por que será que a estava
alimentando? Por que será que ficava vigiando o arbusto a noite
inteira? Ela bem que tinha curiosidade sobre tudo que ele fazia, mas
não encontrava uma oportunidade para perguntar. Pois, além de lhe
trazer comida, ele não se aproximava, e ela precisava ficar sentada
sobre o ovo sem se mover. Cochichou para seu ovo:
— Bebê, Andarilho subiu a encosta e fica de olhar perdido para
um ponto bem distante. Acho que está olhando para um lugar muito
além da represa.
Nas noites em que a lua ficava especialmente brilhante, Andarilho
corria de um lado para outro batendo as asas. Isso era novidade, ele
nunca tinha feito isso no quintal. Na primeira vez que o viu gingando
tão rápido quanto conseguia, ela disse para o ovo:
— Bebê, a asa direita de Andarilho não se abre totalmente. Eu
me pergunto o que foi que houve. A asa esquerda, porém, é maior e
mais poderosa do que imaginei. As asas dele não se parecem com
as dos outros patos.
Nas noites em que ele bamboleava daquele jeito maluco, Flora
contava inúmeras histórias para o ovo. Ou murmurava canções de
ninar, para evitar que o ovo se assustasse com o grasnado agudo
de Andarilho ecoando pelos montes. Parecia que ele estava
dançando. Flora não podia deixar de se preocupar. O
comportamento dele estava ficando cada vez mais esquisito. No
entanto, preferiu não perguntar nada. Não queria deixá-lo
constrangido, principalmente ele sendo tão gentil de lhe trazer
comida todos os dias.
Quando a lua cheia começou a minguar, a excêntrica dança de
Andarilho se intensificou. A preocupação de Flora também. Ela
vinha chocando o ovo desde a lua crescente; o bebê lá dentro
estava quase totalmente crescido. Flora sentia bem as batidas do
coraçãozinho dele. A casca do ovo iria se romper em breve, e a
preocupação dela era que o pato-real assustasse o bebê.
Passaram-se mais alguns dias. Andarilho não apareceu algumas
noites, mas sua dança esquisita continuou. Flora o observava
pacientemente.
Certa noite, ele fez uma barulheira incessante. Não dormiu nem
por um minuto sequer. Correu para lá e para cá como se estivesse
sendo perseguido. Foi a pior noite de todas. Flora, que não havia
pregado o olho por causa da bagunça, resolveu ter uma conversa
com ele. Andarilho era um amigo querido, mas aquilo já era demais.
Ela conseguiu adormecer e descansar somente pela manhã,
quando o pato-real foi até a represa. Um pouco mais tarde, ele
voltou com um peixe. Flora abriu os olhos sonolentos e sacudiu a
cabeça.
— Por favor, não faça isso de novo. Eu gostaria que você não
fosse tão barulhento durante a noite.
Andarilho não disse nada. Ele parecia exausto.
— Você tem sido tão bom para mim — disse Flora. — Fico
extremamente grata. Eu nunca vou me esquecer de tudo o que fez
por mim. Mas, como você sabe, estou chocando um ovo.
Ele continuou quieto. Flora achou que havia ferido os sentimentos
dele. Tudo o que fizera fora reclamar, sendo que ele a salvara do
Buraco da Morte, tomara seu partido para que ela pudesse ficar no
celeiro e lhe trouxera comida todos os dias. Andarilho observava a
represa, perdido nos próprios pensamentos.
Flora se desculpou:
— Agora eu estou bem. Minhas garras são fortes, e meu bico é
duro. Não serei derrotada sem uma boa briga, caso a doninha volte.
Então, você pode ir e cuidar das suas coisas.
Ele olhou para ela, as penas do pescoço tremendo. Ela não
deveria ter mencionado a doninha.
— Quando o ovo eclodir, talvez na lua nova... — murmurou ele.
Flora se perguntou por que ele estava esperando que seu ovo
eclodisse, mas ele não ofereceu nenhuma explicação. Antes de
retornar à represa, ele disse enigmaticamente:
— Se eu pudesse nadar apenas uma vez com...
Aquela noite transcorreu calmamente. Flora ponderou sobre as
fases da lua. A crescente tinha se transformado em cheia e agora
minguava a cada noite; logo seria lua nova. A incubação estava
levando mais tempo do que ela havia imaginado, mas as batidas do
coração continuavam fortes. Andarilho trouxe comida como sempre.
Flora queria se desculpar pelo que havia dito antes.
— Eu não me importaria tanto, se você suavizasse as coisas
apenas um pouquinho. Com as asas abertas assim, parece que
você está dançando. Como se estivesse voando, belo e livre.
Flora abriu as asas como que para demonstrar, mas tudo o que
conseguiu foi levantar poeira. Suas asas não eram para voar. Eram
só para se ver.
— Voando livre? — perguntou baixinho Andarilho. Ele olhou
tristemente para a represa e então murmurou. — Se eu pudesse
voar de novo...
— Suas asas não são iguais às dos outros patos. Embora sua
asa direita seja um pouco esquisita.
— Bem, aposto que fiz papel de bobo. Minha asa direita...
Ele ficou em silêncio por muito tempo, observando Flora
enquanto ela beliscava o peixe que ele havia trazido. Depois da
refeição, Flora cavou um buraco no chão para se exercitar e rolou
na terra para se limpar. A coceira que sentia aliviou um pouco.
— Está quase na hora de o ovo eclodir, não? — perguntou
Andarilho, gentilmente.
— Acho até que já passou da hora. Já deveria ter eclodido —
Flora se sentiu feliz por estar sentada na frente dele e conversar.
— Hum, então, mais tarde, quando o ovo se quebrar... Você é
uma galinha... — Andarilho gaguejou, batendo nervosamente o bico
no chão entre uma palavra e outra.
Flora ficou um pouco irritada.
— Sabe, eu tenho nome — confessou ela. — Eu mesma me dei.
— Sério? Eu nunca ouvi.
— Porque ninguém sabe. Você pode me chamar de Flora?
— Flora? Como a que faz florescer a grama e as folhas?
— Isso mesmo. Não existe nada melhor do que a flora. Significa
fazer o bem.
Ele considerou as palavras dela. A intervalos, usava o bico para
esfregar o óleo da cauda nas penas.
— A flora é a mãe das flores — explicou ela. — Ela cria os brotos
que respiram, que aguentam chuva e vento, absorvem a luz do sol e
se transformam em flores brancas como a neve. Se não fossem as
floras, não haveria árvores. A flora é um ente maravilhoso e vital.
— Flora... Concordo, é o nome perfeito para você.
Flora ficou contente. Ela sabia que precisava tentar entender o
comportamento noturno dele em vez de ficar ressentida. Andarilho
ficou sério.
— Mesmo sem um nome como este, você é realmente uma
galinha incrível. Eu queria lhe dizer isso.
Flora se sentiu culpada. Ficou perturbada e inquieta, imaginando
o que ele pensaria se soubesse a verdade. Ficaria chocado e
horrorizado. Incapaz de olhá-lo nos olhos, Flora voltou para seu
ninho e se sentou sobre o ovo. Não havia o que fazer, agora. Ela
não contaria para ninguém, nem mesmo para seu melhor amigo. É
meu bebê! Eu o estou chocando e eu vou criá-lo. Certamente isso o
torna meu bebê. Flora mudou de assunto abruptamente.
— O que aconteceu com a sua asa direita? E por onde anda a
pata branca?
Andarilho ergueu a cabeça. Seus modos gentis mudaram em um
instante.
— Não se atreva a falar sobre isso!
Flora foi pega de surpresa. Ela não sabia o que estava proibida
de mencionar. As penas do pescoço dele se eriçaram como se ele
tivesse acabado de ver a doninha. Ficou tenso e olhou ao redor
rapidamente, como se houvesse se esquecido de alguma coisa
importante. Flora não tivera intenção de deixá-lo com raiva.
— Pensei que você tivesse saído do celeiro com ela — disse,
suavemente. — Sei que os animais do quintal não gostam de você.
Mesmo morando lá, sempre foi sozinho. Ah, quero dizer, o que
quero dizer é...
Ele não respondeu.
Flora tentou de novo.
— A pata branca é seu par, não é? Sou sua amiga, mas eu...
— Já disse para você parar! — Andarilho interrompeu, irritado.
Ele se levantou de um pulo e partiu, furioso, gingando mais do
que o normal. Flora não entendeu o porquê de tanta fúria. Logo ele
voltou, ainda furioso. Ele baixou o tom de voz e falou, severamente:
— A lua está minguando. Isso quer dizer que o ovo vai eclodir em
breve.
— É verdade, já era tempo.
— Flora, você é uma galinha inteligente, então vai saber o que
fazer. Quero apenas lhe dizer algumas coisas. Quando o ovo
eclodir, saia daqui. E vá para a represa, não para o quintal, está
bem? Não se esqueça de que, quando a lua está minguante, a
barriga da doninha fica vazia.
Ele falava como se fosse partir. Será que estava com raiva dela?
E por que estava dizendo tantas coisas ao mesmo tempo? Tanta
coisa que ela não compreendia muito bem.
— O que quer dizer com “a barriga da doninha fica vazia”? —
perguntou Flora.
— Acho que vai dar tudo certo. Mas estou avisando apenas para
você saber. Não vá para o quintal, vá para a represa.
— Por quê?
Ele não respondeu. Andou para cá e para lá, olhando ao redor,
subiu a ladeira e olhou para longe. Flora estava tensa, inquieta pela
menção à doninha. Depois de encontrar o esconderijo no arbusto
espinhoso, ela havia tirado a doninha da cabeça. Não tinha visto os
olhos reluzentes nem uma só vez enquanto chocava o ovo. Se a
doninha a tivesse encontrado, Flora teria corrido grande perigo e
seu bebê teria sido machucado. Era um pensamento horrível. A
noite veio. Flora não conseguia tirar a doninha da cabeça. Seu
coração congelava toda vez que a brisa noturna soprava a grama ou
quando o luar revelava as folhas dançando. Andarilho estava bem
perto, do lado de fora do esconderijo, com o bico sob uma das asas.
Isso a deixava muito apreensiva. Teria ficado menos assustada se
ele fizesse aquela dança esquisita dele.
De repente, um pensamento lhe ocorreu. Será que Andarilho
tinha feito todo aquele tumulto durante as noites por causa da
doninha? Para assustá-la e enxotá-la para longe? Flora estava
totalmente alerta, agora, assustada até a alma. Por que ele a
protegia, arriscando-se tanto simplesmente por uma amiga? Nem
mesmo uma pata eu sou... Flora olhou para o céu. As estrelas
cintilavam fracas, e a lua estava escura, um sinal de chuva iminente.
De repente, ela se lembrou do Buraco da Morte.
Naquele dia também tinha chovido.
Incapaz de se livrar do medo, Flora se levantou. Enfrentaria a
doninha corajosamente. Planejou erguer as garras e bicá-la
impiedosamente enquanto batia as asas. Gritaria e não se abateria
na luta. Fitou a noite. A doninha poderia até já estar lá, do outro lado
daquela escuridão, aquela caçadora de olhos estreitos, espiando
nesta direção, lambendo os beiços. De barriga vazia.
— Acorde, Andarilho! — gritou Flora.
Ele ergueu a cabeça, surpreso.
— O ovo eclodiu?
— Não, mas poderá, ao amanhecer. A julgar pelo tempo que está
levando, parece que vai sair um galo já crescido! — Ela riu alto de
propósito, mas ainda estava com medo. — Estou ficando
preocupada. E se a doninha aparecer?
Ele não parecia partilhar de sua ansiedade.
— Que bom! — exclamou ele. — Assim que o dia amanhecer.
Que maravilha!
Ele sacudiu as penas para espantar o sono e olhou ao redor.
Seus modos cautelosos se pareciam com os de uma mãe vigiando o
próprio ovo.
Flora ficou agradecida. Decidiu falar a verdade. Sentia-se mal por
ter mentido para seu amigo, que tomava conta dela desde o
começo.
— Andarilho, tenho uma coisa para contar. Eu tinha um desejo.
Queria chocar um ovo e ver o nascimento de um pintinho. Era um
sonho impossível, naquele galinheiro. Assim, não quis mais botar
ovos; pensei que jamais conseguiria...
Andarilho a interrompeu.
— Flora, você é uma mãe galinha exemplar.
— Não estou atrás de elogios.
— Mas é verdade. Eu sou um pato selvagem que não pode voar,
e você é uma galinha excepcional.
— Tudo bem, mas...
— Mas isso é tudo. Temos aparências distintas e por isso não
compreendemos os pensamentos mais íntimos um do outro, mas
cada um valoriza o outro à própria maneira. Eu tenho grande
respeito por você.
Flora ficou com um nó na garganta. Às vezes, ele era realmente
um amigo intrigante.
— Mesmo sem compreendermos um ao outro? Mas como?
— Porque sei que você é uma mãe maravilhosa — disse ele,
cheio de convicção. Flora ficou calada. Sentiu que confessar sobre o
ovo não tinha mais importância.
— Conheço bem aquela doninha — continuou Andarilho. — Ela já
nasceu caçando, por isso não podemos derrotá-la. Ela é maior e
mais forte do que qualquer doninha que eu já tenha visto. Mesmo
que tudo esteja bem agora, no final ela vai nos pegar. Temos que
terminar nosso trabalho antes que isso aconteça.
Flora não entendeu bem do que ele estava falando, mas em seu
íntimo ela sabia que era verdade. Seu coração ficou acelerado. Não
acreditava que tinha passado aquele tempo todo sem pensar na
doninha. Andarilho se afastou do arbusto espinhoso e murmurou:
— Espero que a casca do ovo se quebre amanhã, antes que seja
tarde demais. Estou exausto. Não sei se serei capaz de aguentar
muito mais.
Flora olhou para ele em silêncio. Não sabia o que havia entre ele
e a doninha, e isso a deixava ainda mais angustiada. Ele continuou
falando:
— Eu estou bem. Se ela estiver de barriga cheia, ficará
sossegada por um tempo. Tudo ficará bem, desde que o ovo vingue.
Estou pronto.
Flora não conseguia mais ouvir o amigo. Ele se acomodou em um
lugar mais distante do que aquele onde costumava ficar e enfiou a
cabeça sob a asa para dormir. As penas de Flora ficaram eriçadas
no momento que o pato-real mencionou a doninha. Ela virou o ovo
para aninhá-lo mais próximo do peito. Com Andarilho ali, nada
poderia acontecer, e a manhã chegaria logo. Tudo ficou quieto. Até
mesmo as folhas de grama estavam silenciosas, sem roçar uma na
outra. Ela se sentiu sonolenta. Fechou os olhos por um momento.
— Quaaaac!
Os olhos de Flora se arregalaram. Andarilho! Seu grasnado curto
e cheio de terror apunhalou o coração dela. Na escuridão de uma
noite sem luar, o pato-real lutava com todas as suas forças. Uma
criatura estava agarrando o corpo dele, que se contorcia. Não houve
mais gritos. O pescoço dele provavelmente tinha sido quebrado.
Flora teve um calafrio, e sua garganta se fechou.
— Andarilho! — Ela correu para fora, os olhos arregalados e as
asas batendo.
A doninha, com o pato-real entre os dentes, fixou nela seu olhar
terrível. O coração de Flora congelou. Os olhos faiscantes da
doninha alertavam para que ela não se aproximasse. Ela hesitou.
Não havia como ganhar a luta apenas com suas garras e bico.
Tremendo, assistiu ao trágico fim do amigo, seu corpo inerte sendo
carregado para longe. A doninha desapareceu na escuridão; quase
imediatamente, a floresta e os campos caíram em silêncio. Apesar
de uma vida tão preciosa ter sido extinta em um instante, o mundo
continuou sereno. As árvores, as estrelas, a lua e a grama estavam
quietas como se não tivessem testemunhado nada. Flora correu
atrás da doninha. Mas havia apenas escuridão, sem um vestígio
dela em nenhum lugar. Querendo encontrar alguma coisa, qualquer
coisa, mesmo que só uma pena, Flora vasculhou todo o monte
escuro. Ela não conseguia parar de chorar. Ele estava morto. E ela
não havia feito nada para impedir. Ficara estupidamente assustada.
Ele havia morrido sozinho. Os olhos da doninha haviam congelado
Flora por completo. Desde o instante em que saíra do galinheiro,
aqueles olhos a tinham perseguido. Andarilho a havia protegido com
a certeza de que o esconderijo no arbusto não era seguro. Ele ficara
acordado todas as noites para vigiá-la e proteger seu ovo da
doninha. Por que você não ficou acordado esta noite? Por que não
gritou em aviso? Coitadinho! Ele devia estar completamente
exausto. Flora se arrepiou. Poderia ter sido ela, a vítima. Tudo teria
se acabado em um piscar de olhos.
O dia amanheceu. O sol começou a subir por trás da represa,
envolto em névoa como sempre, iluminando o lugar onde Andarilho
costumava ficar. Ele, que se levantava e sacudia as penas quando
via o sol, nunca mais estaria lá. Flora prometeu jamais esquecê-lo.
Ela sacudiu as asas para o sol em um gesto de adeus para seu
amigo querido. Oh! O ovo já estava sozinho por um longo tempo,
agora. Flora correu para o esconderijo. Não acreditou no que viu.
Um bebê estava saindo do ovo!
Ele tinha quebrado a casca sozinho. A incrível criatura coberta de
penugem olhou para Flora, os olhos negros brilhando.
— Ó meu Deus do céu!
Flora ficou imóvel, atordoada. Sabia que havia um bebê dentro do
ovo, mas o que via agora era um sonho. Olhinhos, asinhas,
pezinhos, tudo era tão minúsculo. Mas tudo se movia, e cada
movimento era pequeno e adorável.
— Bebê, você chegou!
Flora correu e o abraçou com as asas abertas. Era um bebê de
verdade, todo pequeno e quentinho. Ela ouviu os patos em seu
caminho para a represa. Lá fora, parecia que nada havia mudado
desde o dia anterior, mas para ela aquela era uma manhã muito
especial. Em todos os cantos do campo, as coisas aconteciam
ininterruptamente. Alguém parte e alguém chega. Um morre e outro
nasce. Às vezes, um adeus e um olá ocorrem em simultâneo. Ela
sabia que não poderia ficar triste por muito tempo.
ABANDONANDO O QUINTAL

Flora marchou confiante em direção ao quintal, seguida por seu


bebê de clara penugem amarronzada. A sugestão de Andarilho para
que ela deixasse o ninho assim que o ovo eclodisse não havia sido
um comentário leviano. Ele estava protegendo o bebê dela de um
ataque da doninha. Tinha que levar Bebê para um lugar seguro
antes que o estômago da doninha, no momento ainda digerindo seu
amigo pato-real, ficasse vazio de novo. O cachorro, que estava
cochilando sob o sol do meio-dia, foi o primeiro a vê-la. E latiu:
— Vejam quem está aqui!
A galinha deixou de ciscar perto do muro de pedra e veio
correndo ver o que era. Seis pintinhos amarelos a seguiram. Todos
os pintinhos tinham a penugem de um amarelo imaculado, sem um
pingo de marrom-claro.
— Quem é? — perguntou a galinha, franzindo a testa.
Ela cacarejou para chamar o galo. Ele, não muito amigo do sol
forte, levou um tempo para sair.
Flora parou sob a sombra da acácia e esperou que Bebê se
aproximasse. Ele estava andando demais para um recém-nascido.
Havia tropeçado e caído várias vezes ao longo do caminho, mas,
com passinhos vacilantes, conseguira alcançar o quintal. O cachorro
farejou Bebê dando voltas ao redor dele, o que deixou Flora
nervosa. A galinha cacarejava, e os pintinhos piavam sem parar. A
galinha exclamou:
— Como foi possível que ela chocasse um ovo? Não faz o menor
sentido.
Os pintinhos, que estavam começando a aprender a falar, fizeram
um coro, imitando a galinha.
— Como foi possível que ela chocasse um ovo? Não faz o menor
sentido!
— Shhh! Vocês não precisam aprender isso.
— Shhh! Vocês não precisam aprender isso.
— Meu Deus, eu não posso dizer nada.
Os pintinhos iniciaram o coro com “Meu Deus”, mas a galinha
acrescentou, depressa:
— Hora do petisco gostosão! — E correu para o monte de adubo.
— Hora do petisco gostosão! — E os seis pintinhos correram
atrás dela.
Flora olhou para os pintinhos com um sorriso. Eram muito fofos. A
penugem amarela era especialmente bonita. Por nunca ter visto um
pintinho de perto, Flora concluiu que a penugem marrom-claro de
Bebê se tornaria amarela com o passar do tempo. Sentou-se ao pé
da acácia e aninhou Bebê sob a asa. Não importava o que
dissessem, ela não sairia do quintal até que ele estivesse totalmente
crescido. Sofreriam humilhações, sem dúvida, mas isso era
preferível a virar comida de doninha.
— Que confusão! — latiu o cachorro, erguendo a cabeça.
Incapaz de ignorar o tumulto, o galo finalmente saiu do celeiro.
Ficou chocado quando viu Flora. Talvez por não acreditar que ela
ainda estivesse viva, deu voltas e voltas pelo quintal com os olhos
grudados nela. O cão cochichou algo para o galo, que olhou
duramente para ela.
— É verdade? Deixe-me ver o bebê.
Flora sentiu medo, mas continuou onde estava. Não queria fazer
o que o galo havia ordenado.
— Deixe-me ver o patinho, não ouviu o que eu disse? — trovejou
o galo, as penas do pescoço eriçadas.
Flora foi pega de surpresa. Patinho? A galinha se aproximou, e os
pintinhos rodearam Flora. Mas ela permaneceu onde estava, com
Bebê ainda escondido sob a asa. Fatos do passado voltaram
depressa à sua mente. O ovo no esconderijo do arbusto espinhoso,
Andarilho, o peixe, o grito, a penugem marrom-clara... Um patinho?
Todos os dedos de seu bebê eram realmente ligados. Seu bico era
redondo, e ele gingava, mas Flora havia atribuído tudo isso à tenra
idade dele. O mundo girava sob os pés dela, tal como tinha
acontecido naquele primeiro dia quando ela enfiara o bico no
comedouro e fora bicada por um pato. Tudo fazia sentido, agora. Na
primeira vez que fora ao esconderijo do arbusto, ouvira um
grasnado horrível. Havia pensado que era o pato-real, mas talvez
tivesse sido a pata branca! Era por isso que o ovo estava ali e era
por isso que Andarilho aparecera. Eu estava chocando o ovo da
pata branca! Andarilho sabia de tudo: quando o ovo eclodiria e que
ele tinha que morrer para que bebê sobrevivesse. Naquela noite
fatídica, quando o pato-real, exausto, adormecera, estava
sacrificando sua vida, sabendo que o ovo logo iria eclodir. Andarilho
esperava que Flora e Bebê fugissem do ninho enquanto a doninha
ainda estivesse farta. Tinha sido por isso que ele havia dito que ela
deveria ir para a represa e não para o quintal. Flora sentiu um nó na
garganta, e seu corpo se enrijeceu. A dor explodiu em seu coração,
como naquele dia terrível em que ela botara um ovo mole e
enrugado. Andarilho, você foi um pai maravilhoso! O que devo fazer
agora?
Bebê espiou por baixo da asa dela. Flora ficou desconcertada,
mas permitiu; não tinha como mantê-lo escondido. Ele saiu e se
juntou aos pintinhos. Mesmo eles sendo amarelinhos e ele marrom-
claro, os bebês brincaram juntos alegremente. Coitadinho! Ele deve
achar que é um pintinho também!
— Viu só? Eu disse! — latiu o cachorro, triunfante.
O galo olhou furioso para Flora, enquanto a galinha cacarejava:
— Uma galinha que foi apartada não poderia ter botado um ovo!
Que indecência. Se tivesse sido vendida para um restaurante, você
não seria esta desgraça!
Confusa, Flora olhou para a galinha.
O galo lhe explicou, duramente:
— Ela quer dizer que é mais digno tornar-se um prato em um
restaurante. Você não tem vergonha? Você, um membro dos
galináceos, chocar um ovo de outra espécie?
— Que coisa — disse o cachorro, para provocar ainda mais. —
Uma galinha chocar um pato! Que visão ridícula!
O galo, cujo humor estava piorando a cada instante, correu para
bicar o cachorro, mas ele se afastou e se refugiou em sua casinha.
As penas do galo continuavam eriçadas.
— Isto é uma desgraça para os galináceos! — resmungou ele. —
Uma galinha ridícula nos transformou no alvo da chacota do celeiro.
Como eles se atrevem a rir de nós, a voz do sol, única espécie do
mundo possuidora de uma crista! Sua galinha tola!
O galo andava de um lado para outro agoniado, fazendo caretas
e, de vez em quando, parava para encarar Flora.
— Isso não pode continuar! — anunciou ele, com firmeza.
Os pensamentos de Flora estavam confusos, mas vergonha era
uma coisa que ela não estava sentindo. Ela havia chocado o ovo
com todo o seu ser. Desejara com todo o fervor que Bebê nascesse.
Amava-o desde o momento em que o sentiu dentro do ovo. Nunca
tivera suspeitas sobre o que havia dentro dele. Certo, ele é um pato,
e não um pintinho. Quem se importa? Ele sabe que sou sua mãe e
pronto!
Escureceu. Quando os patos voltaram da represa, o galo
convocou uma reunião para discutir “o problema da tola galinha e
seu patinho”. O galo queria se livrar de Flora e do patinho
imediatamente, mas ouviu o casal de fazendeiros conversando.
— Olhe para aquela galinha — disse a mulher. — Gorda e
saudável! De onde será que veio?
O homem parecia contente.
— E um patinho livre! Deveríamos colocá-los no celeiro.
Apesar das objeções do galo, Flora e Bebê pareciam destinados
a viver no celeiro. O galo, descontente, presidiu a reunião. Como o
líder do celeiro, ele tinha que preservar sua dignidade antes de
aceitar Flora e o patinho. O galo subiu no poleiro e olhou para baixo;
a galinha se aninhou em cima do feno com seus pintinhos. Os patos
rodearam o líder, e Flora amparou Bebê usando as asas e se sentou
de costas para a porta. O cão, responsável por vigiar a entrada,
manteve apenas as patas dianteiras dentro do celeiro, enquanto
ouvia o galo.
— Como todos sabem, este é um problema complicado —
anunciou o galo, olhando, cheio de desprezo, para Flora. — Esta
galinha chocou um ovo de pato e veio morar no quintal. Como líder
do celeiro, eu posso tomar uma decisão unilateral. No entanto,
quero ouvir o que os patos têm a dizer, pois este é um problema que
envolve tanto galináceos quanto patos. O que devemos fazer com
esta galinha tola? E o que devemos fazer com o patinho?
A galinha foi a primeira a falar.
— Uma galinha no celeiro já basta. E eu tenho seis pintinhos.
Não tem mais lugar. Estou preocupada com a educação deles,
também. Sei que eles vão ficar me perguntando “Por que ele faz
quac e chama uma galinha de mãe?” e “Por que ele é diferente da
gente?”. Alguns podem até tentar fazer quac quac também. Não
posso criar meus pintinhos em um ambiente caótico assim. Temos
que mandar os dois intrusos para fora daqui imediatamente.
— Tem razão — o cachorro opinou. — Manter a ordem é o mais
importante.
Flora abraçou ainda mais forte o seu patinho, que estava se
contorcendo para tentar escapar de sob suas asas. Os animais do
quintal poderiam se inflamar se ele começasse a circular ali por
perto deles, e esta reunião precisava correr bem.
— Bem — disse o líder dos patos com sua voz bondosa —, o
patinho é muito novo. Se o mandarmos embora, ele certamente vai
morrer. Então devemos deixar que os dois fiquem. O patinho é da
nossa espécie, portanto creio que minha opinião tenha prioridade.
Algum tempo atrás, Andarilho e a pata branca foram mortos pela
doninha. Somos poucos na família, agora. E não sei há quanto
tempo não vejo um patinho tão novo. Como vocês sabem, não
conseguimos chocar nenhum ovo, hoje em dia.
— Isso é ridículo — zombou a galinha. — Vocês são poucos na
família? Como pode dizer isso quando o celeiro inteiro está repleto
de patos? E aquele ali nem sabe que é um patinho.
O líder dos patos não recuou.
— Ele pode aprender. Uma galinha o chocou, mas ele continua
sendo um pato. Ele tem que nadar e pescar. Eu vou ensiná-lo
pessoalmente. Não podemos mandá-lo embora. Esta é a nossa
decisão.
— Temos, sim, que mandá-lo embora! — a galinha disparou de
volta, batendo as asas. — Se formos aceitar todo animal vadio que
aparecer, vai chegar a hora em que até a doninha vai querer se
mudar para o celeiro. É exatamente assim que as coisas começam!
O cachorro resmungou, inconformado:
— Cuidado! Você está insultando o melhor vigia que tem!
Os patos começaram a grasnar todos ao mesmo tempo. A
galinha cacarejava sem pausa nem para respirar. O debate varou a
noite; o tumulto foi tanto que o fazendeiro e sua mulher vieram com
suas lanternas para investigar o que acontecia.
— Guerra de território. Amanhã mesmo vou resolver isso — disse
o homem, direcionando a lanterna para os cantos para iluminar os
bebedouros virados e as penas flutuando no ar. Os animais se
acalmaram, e o facho de luz parou em Flora. — Agora olhe para ela!
— O fazendeiro estava satisfeito.
— Pois é. Nada mal, não? — disse a mulher dele, e os dois
deixaram o celeiro.
Preocupada com a conversa dos dois, Flora continuou ouvindo,
tentando descobrir o que eles planejavam para o amanhecer.
— Devo pô-la no galinheiro? — perguntou ela. — Ou podemos
cozinhá-la para a sopa do jantar.
— O que achar melhor — disse o fazendeiro. — E, por falar
nisso, acho que o patinho é selvagem. Não seria melhor colocá-lo
numa gaiola ou podar suas asas?
Flora ficou chocada. Porém, tinha sido a única a ouvir a conversa
dos dois. O galo e a galinha estavam brigando com os patos
novamente. Até o cachorro foi ficando irritado.
— Temos que mandá-lo embora! — cacarejava a galinha.
— Jamais! — grasnavam os patos.
— Nunca fui negligente em meu trabalho como cão de guarda! —
latia o cachorro.
Flora ainda estava concentrada nos planos do fazendeiro e de
sua mulher. Ela poderia acabar de volta no galinheiro ou no
caldeirão de sopa. Não conseguia parar de tremer. Saber daquilo
era tão assustador quanto os olhos da doninha. Agora se arrependia
de ter voltado para quintal. Será que tinha sido por isso que
Andarilho lhe dissera para ir para a represa? Sorrateiramente,
enxugou os olhos. Precisava deixar o quintal de imediato, antes que
fosse presa no galinheiro e as asas de Bebê fossem cortadas. A
noite passou muito lentamente. Flora não se permitiu adormecer,
pois sabia que precisavam partir antes que todos acordassem.
O sol surgiu no horizonte. Flora via agora a silhueta das árvores
nos montes. Normalmente, o galo já teria acordado a esta hora,
mas, como tinha ido dormir muito tarde, seus olhos ainda estavam
fechados. O cachorro também dormia profundamente.
Flora murmurou para o patinho sob sua asa:
— Bebê, vamos embora. Bem quietinho.
— Sim, mamãe.
Flora se levantou em silêncio e foi para fora na ponta dos pés. O
patinho a seguiu cautelosamente. O quintal continuava envolto no
tom azulado da madrugada. Ela não se preocupou, porém, uma vez
que logo ficaria claro. Atravessaram o quintal passando pela acácia,
e ela olhou para trás com tristeza. Jamais retornaria. Flora caminhou
resolutamente em direção à escuridão, olhando em frente com
firmeza, as garras enrijecidas, o bico levantado, o olhar feroz.
NÔMADE E CAÇADORA

O caminho para a represa era difícil. Marcava o início da árdua


vida dos dois no campo, sem a proteção do guardião do quintal ou
do celeiro; era o começo da vida desgarrada de ambos, com a
doninha sempre em mente. Em pensamento, Flora pediu a
Andarilho que lhe desse coragem. Ela precisava proteger Bebê até
que ele ficasse adulto. Ela sempre havia conversado sozinha, mas
agora podia conversar com o pato-real, que permanecia em seu
coração. Antes que conseguissem alcançar a represa, Bebê ficou
tão cansado que tiveram que parar para descansar. Flora o levou a
uma plantação de arroz. Beberam água das valas de irrigação e
para encher a barriga comeram gafanhotos entre os talos de arroz.
O patinho adormeceu sob a estrutura retorcida de irrigação. Flora,
que não tinha pregado o olho na noite anterior, também caiu em um
doce e irresistível sono.
— O que é isso? — Um grasnado alto penetrou em seus ouvidos,
mas ela não conseguia abrir os olhos. Suas pálpebras pesavam
como se estivessem grudadas. — Você não tem ideia do perigo em
que se encontra! — avisou a voz.
— Meu Deus, o que me deu na cabeça? — Flora se levantou.
O líder dos patos olhava para ela do alto do monte, com os outros
patos atrás dele.
— Por que você fugiu? Estaria mais segura dentro do celeiro.
— Bem, eu só...
Flora hesitou. Talvez não devesse contar que o quintal não era
seguro para eles. Que bem faria contar para ele sobre os planos do
casal de fazendeiros?
— Eu me senti culpada por vocês estarem brigando por nossa
causa. Estávamos indo para a represa.
Flora subiu a ladeira e retomou o caminho para lá. Os patos
rodearam Bebê. As fêmeas, principalmente, não conseguiam se
afastar do adorável patinho, mas ele só seguia Flora.
— Obrigada por ter chocado o ovo — disse uma das patas para
ela. — Ele é um patinho lindo! Nossos ovos são vendidos ou vão
para uma incubadora, assim nenhuma de nós jamais soube o que é
ter um bebê. Que milagre é ter um bebê na família!
Flora parou.
— Família? — disse ela, irritada. — Não planejo entregar o bebê
a vocês.
— O quê? O que pretende fazer? Você é uma galinha.
— Eu sou a mãe! Eles vão cortar as asas dele. Você acha que
vou deixá-lo voltar para o quintal?
— Você fugiu por causa disso? Não tenha medo. Não dói nada.
Só arde um pouquinho. Ele pode até nem sentir. Fazem isso para
ele não voar para longe.
— Para ele não voar para longe?
— Este bebê parece mais ser um pato selvagem do que um de
nós. Se você não domesticá-lo, ele correrá perigo. Será para
sempre um errante, como Andarilho, e acabará morto.
Flora continuou andando em silêncio. O fim de Andarilho tinha
sido trágico, mas ela jamais iria considerar a hipótese de desistir de
seu Bebê. O líder a seguiu e insistentemente tentou convencê-la.
— Pense em Andarilho. Ele andava sempre sozinho, depois que
os de sua espécie foram embora. É muito difícil viver entre dois
mundos, nem selvagem nem domesticado. Ele não tinha como
mudar o próprio destino. Perdeu a fêmea para a doninha e teve a
asa ferida. Não conseguia voar e por isso não tinha como retornar
para as terras frias.
— Foi a doninha que feriu a asa dele?
— Quem mais teria sido?
Flora entendeu. Agora sabia por que as penas do pescoço dele
tremiam com a simples menção da doninha.
— Ele encontrou uma parceira na pata branca, mas ela também
foi engolida pela doninha — o líder suspirou. — Tudo porque ele não
podia modificar sua essência de pato selvagem. Se a pata branca
tivesse chocado o ovo no celeiro, ela ainda estaria conosco agora.
Bem, suponho que se o fazendeiro tivesse pegado o ovo, ela
também não teria conseguido chocá-lo!
Flora se arrepiou, a imagem daquela noite fatal passando como
uma faísca por sua mente. Agora ela sabia exatamente o que
Andarilho estivera pensando. Ambos haviam partilhado do mesmo
desejo. Se pelo menos ela tivesse entendido antes! Ele tinha estado
nervoso o tempo todo, preocupado que ela não chocaria o ovo se
soubesse que era de pato. Mas ela não teria se recusado, mesmo
se soubesse. Ninguém poderia jamais imaginar a alegria que ela
havia sentido quando se sentou sobre aquele ovo. Flora diminuiu o
passo para que Bebê não ficasse para trás. As patas que
acompanhavam o grupo também desaceleraram, mesmo sem
querer. Ela sentiu uma fúria imensa pela doninha, que havia tirado a
vida de seres preciosos. Flora queria ser mais forte que a doninha
para poder se vingar. Mas sabia que era uma ilusão. Vingança? Só
de pensar em viver em campo aberto de novo era suficiente para
fazê-la chorar. Ela, porém, segurou as lágrimas e ergueu o
bico.Finalmente chegaram à represa. Os patos pularam na água,
cada um querendo chegar primeiro. Mas o líder e Bebê ficaram ao
lado de Flora.
— Olhe só para ele. Não sabe que é um patinho ou que pode
nadar. Apesar dos pés palmados, provavelmente acha que é um
pintinho! — O líder abriu bem as asas e tentou empurrar Bebê para
a água. Bebê resistiu, gritando.
— Deixe meu bebê em paz! — gritou Flora, furiosa com ele, as
penas eriçadas. Bebê se escondeu sob as asas dela.
O líder suspirou.
— Isto é errado. Mesmo sendo chocado por uma galinha, ele não
deixa de ser um pato. — O líder balançou a cabeça negativamente e
nadou para se juntar aos outros patos.
O coração de Flora ficou pesado. Mas ela precisava achar um
ninho. Caminhou pela beirada da represa, para longe do clamor dos
patos. Não sabia o que fazer. Apenas que tinha que se manter alerta
para que ambos não caíssem vítimas da doninha. Um emaranhado
de juncos surgiu à sua frente. Flora se apaixonou pelo lugar
imediatamente. Talos secos de junco se espalhavam pelo chão, e os
juncos novos se emaranhavam criando um esconderijo excelente. O
lugar era lindo, com nenúfares em flor e jacintos-d’água, mas a
melhor parte era a abundância de comida. A área estava repleta de
rãs coaxantes que se banhavam ao sol sobre as folhas flutuantes
dos lírios, libélulas descansavam em hastes de junco, peixinhos que
subiam à superfície da água, muitos gafanhotos e besouros
mergulhadores. Tinha tudo para ser um ótimo lar. Espero que
ninguém nos encontre. Flora construiu um ninho de folhas secas de
junco. Somente um pássaro pequeno seria capaz de atravessar as
densas plantas aquáticas.
Bebê saltou sobre uma folha flutuante de lírio.
— Bebê, cuidado!
— Cuidado, cuidado! — grasnou ele alegremente, em língua de
quac, antes de pular para outra folha.
Isso deixou Flora apreensiva, mas ela não tinha como trazê-lo de
volta. Bebê pulou de uma planta a outra até que chegou ao meio da
represa.
— Bebê, volte.
— Mamãe, estou aqui, veja!
Ele acenou alegremente, sacudindo a asinha para ela. A folha de
lírio tombou, e ele caiu na água.
— Bebê!
Flora entrou em pânico. Surpreso, Bebê se debatia. Flora correu
para dentro da água, mas suas penas ficaram ensopadas a tal ponto
que ela quase não conseguiu voltar para a beirada.
— Mamãe, olhe para mim! — gritou o patinho, meio sem fôlego,
debatendo-se.
Ela olhou mais atentamente. Não, ele não estava se afogando;
era desajeitado, mas definitivamente sabia nadar. Gotejando, Flora
riu alto. Seu bebê estava fazendo coisas que ninguém havia
ensinado.
— Sim, você é com certeza um pato!
Os dias passavam calmamente. Flora emagreceu para melhor
circular entre o junco. Ela se certificava de não fazer barulho para
não alarmar os vizinhos. Um casal de rouxinóis-das-caniças tinha
feito seu ninho entre as linguetas de junco e botado ovos. A lua ficou
cheia, mas ninguém apareceu para espiar entre o junco grosso.
Flora se sentia apreensiva quando a vegetação lançava sombras
sob o luar e o junco cantava na brisa, mas eles estavam seguros. A
cada dia, Bebê crescia mais e nadava melhor, mergulhava e pegava
peixes. A cada entardecer, gostava de se aninhar embaixo da asa
de Flora para dormir.
Um dia, ele nadou para bem longe e voltou acompanhado do líder
dos patos. Ou, a julgar pela expressão levemente assustada no
rosto do Bebê, o líder o seguiu sem ser convidado. Sob as ordens
do líder, os outros patos mantiveram certa distância. Ficaram
brincando entre os lírios, grasnando alto. Flora não gostou. A fêmea
do casal de rouxinóis piou nervosamente, e o macho deu vários
voos para ver o que se passava.
Flora balançou a cabeça, em desaprovação. Aquelas patas tolas
nunca haviam chocado um ovo e por isso não faziam ideia do
desconforto que uma mãe sentia em meio ao tumulto. Esperava que
a doninha não fosse atraída pelo barulho e encontrasse o
esconderijo. O líder, alheio às preocupações dela, começou uma
conversa fiada.
— Ele cresceu muito, eu quase não o reconheci. Ele herdou as
melhores características de Andarilho e da pata branca. É
impressionante que ele tenha aprendido tanta coisa sozinho! Está
de parabéns! — O líder tentou afagar Bebê, mas ele se afastou,
olhando primeiro para Flora e depois para o líder. Então o líder
continuou: — Mesmo tendo sido chocado por uma galinha, um pato
é um pato! Nossa espécie nunca esquece como nadar ou
mergulhar. Sabe disso sem precisar ser ensinado. É uma coisa que
uma galinha, confiante em um quintal, mas amedrontada no campo,
jamais poderia fazer!
Flora deu um muxoxo ao ouvir o líder se gabando como se fosse
o pai de Bebê. Ele não conhecia Bebê. Bebê não a largaria só
porque ele o bajulava. Bebê nunca a deixaria. Ela estufou o peito,
cheia de orgulho.
— Galinhas têm medo do campo, é isso?
— Oh, não você, é claro. Mas as outras galinhas não sabem de
nada. Tenho certeza de que não sabem nem mesmo que seus
ancestrais tanto andavam pelos campos quanto voavam pelos céus,
como pássaros.
— Galinhas? Como pássaros?
Flora não acreditou no que ouvia. Voar, com aquelas asas que
serviam apenas para levantar poeira? Tinha visto o galo pular do
muro de pedra com as asas bem abertas, mas aquilo não poderia
ser chamado de voar. No mínimo, voar exigia flutuar acima da altura
de uma árvore, ir de um lugar para outro e pairar no ar por muito
tempo. Seria maravilhoso se ela pudesse voar.
— Mas o que aconteceu, então? Por que não podemos mais
voar? — Flora esticou as asas. Não conseguiria nem mesmo
alcançar o topo do junco.
— Bom, isso é porque tudo o que vocês fazem o dia inteiro é
comer e botar ovos — explicou o líder. — As asas encolheram, e a
traseira cresceu. E, mesmo assim, vocês ainda pensam que são
grande coisa, dizendo que representam a voz do sol.
Flora achou irônico que ele falasse mal das galinhas pelas costas
do galo, sendo que, na frente, ele não tinha coragem de dizer uma
palavra.
— Então, se foi o nosso traseiro que cresceu, por que é que são
os patos que rebolam? — perguntou Flora, calmamente. — Vocês
também têm asas. E para que servem?
O líder pigarreou e mudou de assunto:
— Na verdade, vim aqui para conversar com você sobre o
patinho. É muito perigoso para ele viver assim. Vamos voltar para o
celeiro. Você deve deixá-lo partir, mesmo que não queira.
— Nada aconteceu conosco até você aparecer aqui. Com toda
essa algazarra, todo mundo vai saber onde estamos escondidos.
Por gentileza, vá para casa com a sua família. Nós não vamos
voltar.
— Dois pintinhos do quintal foram levados! — insistiu o líder. — A
curiosidade os levou a subir a ladeira próxima ao jardim. A galinha
está deprimida e não quer nem sair do celeiro.
Flora instintivamente sacudiu as penas, temerosa. Não
compreendia por que a doninha insistia em devorar os vivos.
— Bebê, vamos — disse ela, querendo mantê-lo protegido sob
suas asas. Ela queria lhe garantir que ele estava seguro mesmo que
a doninha estivesse por ali. Bebê, porém, simplesmente olhou para
ela e depois para o líder, o que feriu os sentimentos dela um pouco.
— Tomar conta de todos aqueles pintinhos sozinha foi demais
para a galinha — continuou o líder. — Mas nós somos diferentes.
Somos uma família grande, e, assim, fica mais fácil tomar conta de
um patinho. Não torne sua vida ainda mais difícil. Deixe-nos ajudar.
É óbvio que a doninha vai tentar pegar todos os pintinhos, desde
que tomou gosto pela carne tenra. Você sabe quem vai ser o
próximo.
Flora esticou as garras. Sentia a terrível sombra da caçadora se
aproximando. Em breve ela estaria ali. Poderia até já estar espiando
de longe. Ela olhou furiosa para o líder, fazendo-o calar-se.
— Deixe-nos em paz. Agora — ordenou.
— Você é tão teimosa! Não pode continuar pensando nele como
um pintinho. Mesmo que chocado por uma galinha, um pato é um
pato! — disse ele, grosseiramente, e foi embora.
Os outros patos armaram uma confusão quando perceberam que
o patinho não voltaria com eles. Os rouxinóis piaram nervosamente
até que a balbúrdia se acalmasse. Bebê ficou no ninho, observando
enquanto os patos partiam. Não parecia tão relaxado como antes. O
tumulto dos patos provavelmente o afetou.
— Bebê, precisamos partir — disse Flora. — Aqui não é mais
seguro.
— Por que não?
— Se os patos nos acharam, a doninha talvez consiga também.
Ela é poderosa. Pode facilmente nos machucar. Ela caça os seres
vivos e nunca desiste. Então, vamos procurar outro ninho antes que
anoiteça.
Flora catou as penas espalhadas e as jogou na água. Bateu as
garras no chão para destruir o ninho até que não restassem
vestígios. Saiu silenciosamente do esconderijo de junco, para
perturbar o mínimo o casal de rouxinóis. O patinho ficou olhando
para trás, relutante em se afastar da água. A má vontade dele ao
caminhar mostrou para Flora que eles não iriam muito longe. O dia
estava chegando ao fim. Flora subiu no pequeno monte gramado e
observou os campos de junco. A vaca, que tinha sido amarrada no
tronco do salgueiro durante o dia, havia sido recolhida para dentro
de casa. A vaca esticara a corda para pastar mais longe da árvore,
então a grama ao redor do tronco estava viçosa e não comida.
Havia estrume espalhado ao redor. Seria muito perigoso passar a
noite no campo sem um esconderijo. Mas Flora tomou coragem.
— Acho que podemos passar a noite aqui. O cocô da vaca vai
disfarçar nosso cheiro.
Ela cavou um buraco. Passou a noite nele, com as asas em torno
de Bebê. A grama alta de certo modo os escondia, mas Flora, de
qualquer forma, ficou acordada a noite inteira.
A lua iluminava tudo. Bebê, que estivera quieto durante todo o
entardecer, caiu no sono, e Flora ouvia apenas a brisa roçando a
grama. Alerta, ela olhou para a escuridão. Era como Andarilho,
agora. Naquela época, ela dormia sem preocupações, como Bebê,
enquanto ele ficava acordado para manter a doninha à distância,
com seu batido de asas e grasnados agudos. Ela se lembrou disso
com tanta clareza que foi como se uma gota de água fria pingasse
em sua cabeça. Tinha que ser corajosa como Andarilho. Antes que
ele lhe entregasse a própria vida, nem mesmo a doninha conseguira
pegá-lo. E a doninha não pudera pegá-la no Buraco da Morte
porque Flora tinha sido mais enérgica. Sabia que poderia enfrentá-
la, desde que tivesse coragem. Ela não pode nos tocar! Levantou-se
e saiu do buraco, olhando na direção do emaranhado de junco.
Desejou não ter abandonado o ninho, mas não poderiam ter ficado
ali para sempre. Ela era uma nômade, agora. Nômades não têm
casa. Não quisera ficar presa em uma gaiola e não pudera ficar no
quintal, como havia desejado. Agora, ela havia abandonado o ninho
nos juncos. No outro dia de manhã, eles partiriam de novo. Por que
sua vida era assim? Será que era porque ela havia ousado ter
esperança? Sabia que tinha que sair do quintal e, claro, escapar do
galinheiro. Pensou em Andarilho. Ele estava sempre no coração
dela, mas muitas vezes ela queria que ele estivesse ali ao seu lado.
Se ao menos pudesse ouvir sua voz ou ver seu rosto...
Flora percebeu alguma coisa se movendo.
Achatou-se contra o chão. Uma sombra escura se aproximava
silenciosamente do junco. A doninha. Eu sabia! Ficou petrificada.
Perdeu a linha de raciocínio. Começou a tremer. A doninha adentrou
o emaranhado da vegetação. Os talos de junco pareceram balançar
por um momento, mas ela não conseguiu enxergar nada. Sabendo
que a doninha sairia de lá de boca vazia, ela não pôde deixar de
sorrir. Tinha vencido aquela batalha. Nós não estamos aí! Você não
vai nos pegar! A doninha saiu do monte de junco e correu de volta
para o lugar de onde tinha vindo.
No dia seguinte, Flora e Bebê voltaram para os juncos. Ele pulou
na água, e Flora foi dar uma olhada no ninho. E foi então que se
deparou com uma cena horrível. Os rouxinóis-das-caniças tinham
sido atacados. O ninho deles fora destruído, e as cascas quebradas
dos ovos estavam espalhadas pelo chão. Os ovos estavam quase
prontos para eclodir! A mãe havia desaparecido. O rouxinol macho
chorava desconsoladamente enquanto dava voltas acima do junco.
Flora se arrepiou. Ela se afastou, prometendo a si mesma jamais
fazer uma casa permanente em nenhum lugar. Ela se concentraria
em identificar a sombra da doninha antes que a doninha
conseguisse localizar os dois.
MAMÃE, EU NÃO SEI
CACAREJAR

As chuvas de verão caíram incessantemente durante muito tempo,


alagando tudo. A água na represa subiu tanto que os juncos ficaram
quase submersos. Esses foram dias difíceis para Flora. Era duro
achar um lugar seco para ficar e, por causa das penas sempre
úmidas, sofria com uma gripe contínua. Tinha emagrecido bastante,
porque eles mudavam de ninho todas as noites, e ela não dormia
bem. Apesar disso, Bebê crescia forte e parecia cada vez mais um
pato, a cada dia mais a cara de Andarilho. Isso a deixava muito feliz
e também espantada a não mais poder. “Bebê” não era um nome
adequado para um pato adolescente, assim ela lhe deu o nome de
Topo Verde, por causa da cor da cabeça. No entanto, ainda o
chamava de Bebê, porque isso a fazia sentir-se mais próxima dele.
Quando as chuvas passaram, ela melhorou da gripe que a havia
aprisionado. No entanto, era improvável que seu corpo magricela
voltasse a ser rechonchudo. Estava envelhecendo. Mas nem
poderia ser de outra maneira, afinal, seu bebê estava quase
completamente crescido! Apesar disso, ela estava mais forte do que
nunca. Seus olhos calmos conseguiam distinguir até o mais discreto
movimento na escuridão; seu bico era sólido, e suas garras, afiadas.
Flora e Topo Verde nunca passavam mais de duas noites no mesmo
lugar. Às vezes, a distância, testemunhavam a doninha indo para
casa de estômago vazio. A vida como nômades era difícil, mas não
era tão ruim assim. Flora ficava de coração partido ao ver Topo
Verde perdido em pensamentos, com uma expressão infeliz no
rosto. Desde a visita do líder no pântano de junco, de vez em
quando ele ficava mal-humorado. Esses episódios de mau humor
aconteciam mais frequentemente agora que suas penas haviam
mudado de cor. Ela perguntava o que estava errado, mas ele não se
abria com ela.
Não choveria de novo por um bom tempo. As estrelas do
crepúsculo cintilavam, e as penas de Flora se mantiveram secas ao
longo de toda a noite. Com o tempo bom, eles poderiam dormir nos
campos de junco, mas Flora subiu a encosta com Topo Verde. Ela
inspecionou a rocha no topo do morro. Eles haviam dormido
naquela pequena caverna algumas vezes durante as tempestades.
Topo Verde não gostava de lá porque era muito longe da represa.
— Não vemos a doninha há dois dias. Tenho certeza de que a
veremos hoje. Aposto que ela irá aos campos de junco para caçar
pelo menos um rouxinol — disse Flora, mas Topo Verde não estava
escutando. Absorto em seus pensamentos de novo, ele estava em
pé no meio da relva de margaridas, com os olhos fixos na represa.
Era igual ao pai. Flora se aninhou na caverna e ficou vigiando Topo
Verde. Ele não era mais um bebê. Mesmo quando perguntava ao
pato-real que residia em seu coração o que estava acontecendo
com ele, ela não conseguia encontrar uma boa resposta. Tinha
medo de que a doninha o pegasse, como havia feito com Andarilho.
É muito perigoso quando não se está vigilante. Ela decidiu chamá-lo
para dentro. Deu um passo para fora e viu uma sombra deslizar de
uma pedra. Soava como o vento, mas não era.
Flora parou de respirar. Era a doninha.
Como pudera cometer tal erro? Tinha escolhido o lugar errado.
Eles haviam evitado a doninha até agora, mas ela estava um passo
adiante deles. Topo Verde não estava prestando a menor atenção.
Flora se forçou a recuperar o controle. Precisava voltar à razão. Ela
era a mãe dele. Não permitiria que isso acontecesse. Respirando
fundo, ela pulou, veloz como um relâmpago, cacarejando, batendo
as asas e gritando:
— Chispa daqui!
A doninha se virou e olhou para ela. Topo Verde, pego de
surpresa, bateu as asas e gritou. A doninha ficou perturbada e olhou
para Topo Verde antes de encarar Flora de novo. Ela parecia maior
e mais veloz do que antes, mas Flora sabia que não dava para
recuar. Topo Verde continuava batendo as asas, aterrorizado. Flora
esticou as garras e eriçou as penas do corpo inteiro. Seus olhos
encontraram os da doninha.
— Não se atreva! — ameaçou ela, pronta para morrer.
A doninha sacudiu a cabeça devagar, os olhos ainda fixos nela.
— Não interfira! — provocou a voz da doninha.
A doninha só queria Topo Verde e não tinha medo dela. Flora a
olhou com fúria.
— Deixe meu bebê em paz!
A doninha soltou uma risada cheia de desprezo. Flora sentiu
como se o corpo inteiro explodisse em chamas. Seu coração batia
em frenesi, e uma fúria imensa cresceu dentro dela. Já não sentia
medo daquele olhar. Quando a doninha se preparava para se virar,
Flora voou em sua direção como uma mariposa para a luz. E a
bicou furiosamente. A doninha gritou e correu até Topo Verde. Flora,
com o bico firmemente agarrado a alguma parte da doninha, foi
arrastada junto. Ouvia Topo Verde grasnando com grande
estardalhaço. Flora e a doninha formavam uma bola única e rolavam
pela encosta abaixo. A doninha, contorcendo-se, se agarrava à
barriga de Flora. Só quando se chocaram contra uma pedra no meio
da descida é que se separaram. Flora começou a perder a
consciência.
— Fuja, Bebê — murmurou.
Um momento mais tarde, abriu os olhos. Não conseguia enxergar
e não conseguia se mover. Tinha alguma coisa no bico. Quando
cuspiu, percebeu que era um naco de carne. Carne da doninha.
— Bebê! Bebê! — Flora olhou ao redor.
Tudo estava muito quieto. Será que a doninha o havia pegado?
Será que já estaria morto? Seus olhos se encheram de lágrimas. Se
Topo Verde não existisse mais, seria uma dor muito mais
insuportável do que a dos ferimentos que tinha agora. Que monstro!
Deveria ter levado a mim. Bebê é muito jovem para morrer... Flora
fechou os olhos. Estava completamente esgotada, como naquele
dia em que fora jogada no Buraco da Morte.
— Mamãe, levante!
Ela sentiu uma brisa acima da cabeça. Piscou. Topo Verde estava
flutuando no ar, batendo as asas. Precisava se esforçar para ficar no
ar, mas estava definitivamente voando.
— Meu Deus! O que aconteceu com suas asas?
— Não é incrível? Eu queria fugir e aí comecei a levantar voo. Eu
consigo voar! — gritou Topo Verde, empolgado.
Flora não conseguia falar. Apenas sorria. Era um milagre, o
terceiro que testemunhava desde que deixara o galinheiro e chocara
Bebê. Mas este era a cereja do bolo!
— Mamãe, deixa eu ver. Você está machucada?
Topo Verde abriu as asas e a abraçou. A garganta de Flora se
apertou de gratidão. Ela fechou o bico para não derramar nenhuma
lágrima, mas naquele dia foi impossível.
Conforme o verão se aproximava do fim, um vento seco começou a
soprar. Os raios solares ainda fortes faziam murchar as flores de
junco. Foram dias solitários para Flora. Topo Verde, completamente
absorvido pelos prazeres de voar, passava dias inteiros na represa.
Flora caminhava pelas margens dos campos de junco ou subia à
encosta para observá-lo nadar e voar. A doninha não apareceu
mais. Talvez estivesse espreitando o galinheiro em busca de
pintinhos ou caçando as galinhas moribundas despejadas no Buraco
da Morte, como deveria ter feito desde o início. Era tolice ficar
salivando atrás de Topo Verde. Como pode ter imaginado que caçar
um pato selvagem, voador, no meio do céu, seria tão simples quanto
abocanhar um pintinho no quintal?
Topo Verde adorava voar. Ele não apenas parou de se preocupar
com a doninha como também podia ir de um lado da represa para o
outro em um instante. E podia sobrevoar os juncos para escolher
um lugar seguro para dormir. Seu mundo se expandiu, da terra e da
água para o céu. Apesar de invejá-lo por isso, Flora sentia saudade
dele. Ele era seu bebê, mas também era um pato selvagem. Nós,
galinhas, renunciamos a nossas asas. Como é que somos tão
orgulhosas do fato de sermos seres com crista? Cristas são inúteis
contra caçadores. Topo Verde estava tão solitário quanto sua mãe.
Flora era uma galinha, e nem por isso ele podia cacarejar. Os patos
do quintal o desprezavam. Recusavam-se a se aproximar e até
mesmo a olhar para ele. Pelo menos, as noites de ambos eram bem
aconchegantes: dois seres rejeitados pela própria espécie dormindo
aninhados um contra o outro. Flora comia o peixe que Topo Verde
trazia todas as noites e pensava no pato-real, especialmente
quando as penas lustrosas de seu bebê cintilavam sob o luar.
— Bebê — disse ela, certa noite. — Mesmo quando você estiver
dormindo, mantenha os ouvidos apurados. A caçadora vem na
calada da noite. E virá, disso eu sei com certeza. Ela nunca desiste.
— Não se preocupe comigo. Eu é que me preocupo com você,
mamãe. Você não pode voar nem nadar.
— Estou bem. Ela não se interessa por mim. Estou tão magra
que ela provavelmente nem quer me comer — Flora brincou, rindo,
contente porque Topo Verde se preocupava com ela.
Ele ficou em silêncio por um momento.
— Mamãe, estive pensando — disse ele, vacilante, e se calou de
novo. Flora ficou apreensiva. — Que tal voltarmos para o quintal?
Eu não gosto de ficar sozinho o tempo todo.
Flora ficou de coração pesado. Era a primeira vez que ele dizia
algo assim. Devia ter lutado com aquele sentimento por muito
tempo.
— Ir de volta para o quintal?
— Sou um pato, então tudo o que sei fazer é quac quac.
— Quem se importa? Mesmo que sejamos diferentes, temos
carinho um pelo outro. Eu amo muito você.
Flora repetiu o que o pato-real lhe dissera muito tempo antes. Ela
havia entendido e esperava que Topo Verde também
compreendesse.
Mas ele discordou.
— Não sei não, mamãe. Tenho medo de que os outros patos
jamais me aceitem. Quero ser como eles — e começou a chorar.
Flora não sabia o que fazer. Então, afagou as costas dele.
— Bebê, estamos indo bem, até agora. Você é esperto, aprendeu
a nadar e a voar por conta própria...
Sabia que suas palavras não estavam ajudando. Talvez tivesse
sido melhor não reagir à conversa do fazendeiro e sua mulher. Se
as asas de Topo Verde tivessem sido cortadas, ele seria como os
outros patos. Talvez ela devesse tê-lo entregado ao líder dos patos
quando ele pediu para deixá-lo com sua família.
— Eu sei que você me ama, mas mesmo assim nós não somos
da mesma espécie — falou Topo Verde.
— É verdade, temos aparências diferentes. Mas sou tão feliz por
ter você. Não importa o que digam, você continua sendo meu bebê
— disse Flora, muito triste.
Topo Verde se afastou.
— Mamãe, precisamos voltar para o quintal. Eu vou me juntar ao
bando.
— Então eu vou acabar de volta no galinheiro...
Sentiu-se deprimida. Ela não tinha coragem de repreendê-lo.
Muito tempo atrás, quando ele pulara nas folhas de lírio na água e,
destemido, havia nadado, ela soubera que eles não pertenciam à
mesma espécie.
— Bebê, eu era uma galinha poedeira que tinha que botar ovos
na gaiola — disse ela, calmamente, tentando fazê-lo mudar de ideia.
— Nunca pude chocar meu próprio ovo, mesmo que tudo o que eu
quisesse era me sentar sobre um ovo e ver o nascimento de um
pintinho. Quando eu não conseguia mais botar, fui tirada do
galinheiro. Meu destino era morrer. Mas, então, encontrei você e
finalmente me tornei mãe. — Topo Verde enterrou a cabeça sob a
asa e não se moveu. O luar brilhava suavemente na água. — Bebê,
nós não temos razão nenhuma para voltar para o quintal. Eles não
me querem por lá, e você é muito melhor do que todos aqueles
animais.
Flora afagou as costas de Topo Verde. Ele não abriu os olhos
nem ergueu a cabeça, mesmo tendo ouvido tudo o que ela disse.
Ele estava muito grande para que ela conseguisse abraçá-lo,
mesmo se abrisse as asas completamente. Seu bebê tinha crescido
rápido demais.
Flora passou a noite toda inquieta. Não sabia o que deveria fazer.
Ela era inútil agora, até como protetora, já que a doninha não tinha
mais aparecido para caçá-los. E, mesmo que viesse, Topo Verde era
forte o suficiente para se livrar dela por conta própria. De manhã
cedinho, quando Topo Verde saiu para a represa, ela não levantou a
cabeça. Teve receio de que ele insistisse em se juntar ao bando. Do
alto, ela o observou se aproximando dos outros patos. Sentiu a
frieza com que tratavam Topo Verde. Grasnavam para ele. O líder
até o atacou. No entanto, Topo Verde continuou perto deles. Quando
o sol se pôs, os patos voltaram para o quintal. Topo Verde os
acompanhou de longe. Era como se ela estivesse vendo o solitário
Andarilho novamente.
— Bebê, volte! — chamou Flora. Mas ninguém olhou na direção
dela. — Você vai ficar solitário no quintal. Você é tão especial! Os
animais do quintal jamais vão aceitar você.
Flora o seguiu a distância.
OS VIAJANTES NA REPRESA

Flora se acomodou no monte, de onde podia avistar o quintal.


Nada havia mudado: a luz fraca que emanava do galinheiro, onde
as galinhas cacarejavam alto; o carrinho de mão com a ração; os
animais do quintal no celeiro. Na verdade, havia uma coisa
diferente: um galo novo. Era um dos jovens pintinhos que havia
conseguido escapar da doninha. Flora não tinha como ver o que se
passava dentro do celeiro, mas podia deduzir. Provavelmente, os
animais estavam discutindo em voz alta sobre Topo Verde. Já que o
líder dos patos não mostrava grande entusiasmo em acolher o pato
selvagem no bando, Topo Verde poderia ser rejeitado. Flora achou
que isso poderia ser a melhor solução. Ela queria levá-lo de volta
para a represa. Mesmo que ele ficasse sozinho, pelo menos não
seria humilhado e poderia voar livremente.
A noite passou. Topo Verde não foi expulso. O bando de patos
enfiou a cabeça no comedouro, e Topo Verde comeu de um
pequeno balde. A mulher do fazendeiro tinha arranjado uma tigela
para ele. Era óbvio que ela o cobiçava. Qualquer um sentiria o
mesmo, vendo as penas lustrosas e a forma elegante dele. Se ela o
quisesse, o galo e o líder dos patos seriam forçados a deixá-lo viver
no celeiro. Os patos saíram para uma caminhada, com o líder na
frente e os patos mais novos atrás. Topo Verde se preparava para
seguir o mais novo quando a mulher o agarrou. Ele grasnou
assustado e bateu as asas. Flora se levantou. Os patos ignoraram a
confusão e continuaram andando para a represa. A mulher do
fazendeiro amarrou Topo Verde em uma das estacas de madeira
que sustentavam o galinheiro. Ele tentou escapar, mas não
conseguiu. E começou a chorar, assim como Flora. Não importava o
quanto batia as asas ou puxava, não conseguia se livrar da corda.
Ela deveria ter contado a ele por que haviam fugido do quintal.
Assim, ele não teria voltado. Ela não conseguia ficar quieta. Topo
Verde recusou comida durante o dia inteiro, lutando para se libertar.
A família do galo ciscava no jardim, e o cachorro cochilava. No fim
do dia, os patos retornaram e todos entraram no celeiro para dormir.
Flora ficou pelas redondezas do quintal. Queria muito ir até Topo
Verde e afagar suas costas.
— Você ainda está viva? É muito tenaz — o cachorro rosnou,
mostrando os dentes.
Flora olhou para ele, furiosa.
— E você acha que eu sobrevivi por sorte? Já passei por tudo. É
melhor você não me provocar.
— Ah! Tão confiante. Bem, de fato você criou um patinho. Mas
nem pense em voltar ao quintal. Sou um cão de guarda zeloso e
tenho o hábito de morder primeiro — avisou o velho cão e, depois,
entrou na casinha.
Da acácia, Flora chamou Topo Verde:
— Bebê, a mamãe está aqui. Não chore. Vamos pensar nisso
juntos.
— Mamãe, não me deixe aqui! Minha perna dói!
Nervosa, Flora andava para lá e para cá. O fazendeiro e sua
mulher não haviam amarrado Andarilho. Então, por que prender
Bebê? Ainda andando, ela sem perceber se aproximou do Buraco
da Morte.
Sentiu algo ameaçador. Algo a observava na escuridão. A
doninha. Mas ela tinha apenas um olho. Flora eriçou as penas do
pescoço. Esticou as garras. Seu sangue fervia. Preparou-se para
atacar. A doninha trazia na boca uma galinha moribunda. Flora
notou uma asa se mexendo. A doninha se aproximou lentamente.
Flora não recuou. A doninha não atacaria enquanto tivesse o jantar
na boca. A doninha pôs a galinha no chão, mas não se preparou
para o bote. Flora encheu o peito e a encarou.
— Um pato delicioso — comentou a doninha. — Vou pegá-lo em
breve! — E riu assustadoramente.
— Você nunca o pegará!
— Não? Apesar de ele estar amarrado à estaca? Logo ele vai
ficar gordinho e lento e não vai mais poder voar. É assim que são
domados. — A doninha riu de novo.
Flora, de repente, compreendeu. Andarilho não foi amarrado
porque tinha uma asa quebrada; fosse como fosse, não podia voar.
— E você! — chiou a doninha. — Você me cegou de um olho!
Vou me vingar de ambos, vocês não perdem por esperar.
Flora ficou atônita. Aquele naco de carne no seu bico tinha sido o
olho da doninha!
— Prefiro morrer afogada na represa a deixar você me devorar —
gritou ela.
— Não faça isso. Não gosto de comer galinha morta. Fique viva
para ver o que eu vou fazer com o seu bebê!
A doninha riu de novo, abocanhou a galinha e desapareceu na
escuridão. Flora ficou olhando para ela. Estava arrepiada e
tremendo. A doninha havia lhe jogado uma maldição. Flora sacudiu
a cabeça para clarear os pensamentos e se afastou do Buraco da
Morte. Mas não conseguia esquecer aquelas palavras. Será que a
doninha entraria no quintal, mesmo com o cão de guarda por perto?
O cachorro latiria alto, e os outros animais fariam um tumulto. Ela vai
atacar o meu bebê. Mas Topo Verde estava amarrado; a doninha
não tinha como levá-lo embora. Ela vai esperar até que Topo Verde
esteja muito gordo e não possa voar. Vai esperar pacientemente o
momento certo, quando a mulher desamarrar o nó.
No dia seguinte, a doninha surgiu de novo e foi direto para o
Buraco da Morte. Voltou, porém, de boca vazia. Sorrateiramente,
aproximou-se do quintal, onde o novo galo estava ciscando a pilha
de material em decomposição. A doninha sabia que Flora a
observava de cima do monte. Virou-se ligeiramente em sua direção
somente para provocá-la. Flora não pôde se mexer. Queria gritar e
avisar o galinho, mas não conseguiu dar um pio. O cachorro não
farejou nada; seu nariz e ouvidos deviam ter parado de funcionar,
com a idade. Flora tinha certeza de que a doninha queria intimidá-la.
De repente, Topo Verde começou a grasnar alto. Com sua audição
aguçada, ele percebeu o perigo muito antes de todos ao seu redor.
E tudo aconteceu ao mesmo tempo. O cachorro latiu, a doninha
zarpou como uma flecha, e o galinho gritou. O cachorro, latindo
furiosamente, correu atrás da sombra escura que desaparecia, e os
outros animais saíram correndo do celeiro. O fazendeiro e sua
mulher apareceram por último. Não se via o galinho em lugar
nenhum. O galo e a galinha gritavam e gritavam, procurando seu
filhote por todo lugar. Então, para aumentar a algazarra, os patos,
surpresos, começaram a grasnar alto.

— Aquela doninha maldita! — berrou o fazendeiro. Sua mulher,


que estava tentando empurrar os patos para dentro do celeiro,
respondeu:
— Precisamos de um buldogue. Este cachorro está muito velho.
Senão, a galinha nativa vai parar de botar ovos.
— A doninha apareceu porque você amarrou aquele pato! —
retrucou o fazendeiro. — É como convidá-la para um jantar. Vá, tire-
o de lá e o amarre dentro do celeiro!
Flora ficou andando para lá e para cá nervosamente enquanto
observava a mulher desamarrando a corda. Topo Verde, grasnando
e se contorcendo, foi arrastado para o celeiro pelo pé atado à corda.
Flora não teria como vigiá-lo se ele fosse amarrado lá dentro. E não
poderia se perdoar se algo acontecesse.
— Solte meu bebê! — cacarejou Flora, correndo em disparada
para ele.
A mulher do fazendeiro se assustou com a visão de uma galinha
batendo as asas na sua frente. Como um galo de briga, as penas
eriçadas, ela começou a bicar a mulher.
— Ai! Ai! Essa galinha maldita vai me matar! — berrou a mulher,
a plenos pulmões.
Todos os patos saíram do celeiro, grasnando. Mais uma balbúrdia
havia começado. A mulher não conseguiu continuar segurando Topo
Verde enquanto tentava espantar Flora para longe.
— Bebê, voe! Fuja! — gritou Flora, e Topo Verde levantou voo
poderosamente.
Com a corda ainda atada à perna, ele desapareceu no céu por
trás do monte. Os outros patos olharam, admirados. Flora correu
como louca, salvando-se da morte por um triz, quando a mulher
pegou uma vassoura. O caminho para a represa era longo e escuro.
Ela, porém, não tinha nada a temer. De fato, estava tão feliz que
começou a cantarolar. O coitado do galinho tinha servido para
encher a barriga da doninha, e Topo Verde não iria mais querer ficar
no quintal. Tinha aprendido uma lição valiosa. Só porque vocês são
da mesma espécie não quer dizer que sejam uma grande família
feliz! O importante é ter respeito e compreensão um com o outro!
Isto é que é amor. Flora correu e correu, eufórica, cantando.
Flora estava mais magra do que nunca. Comia apenas o suficiente
para não morrer de fome e tinha ficado tão pequena quanto um
rouxinol-da-caniça. Era tudo porque passava o tempo correndo de
um lado a outro para vigiar Topo Verde. Depois de escapar do
quintal, Topo Verde escolheu ficar sozinho. Não voltava para Flora
nem mesmo à noite. Ficava na represa. Ela conseguia vê-lo de
longe, mas não sabia onde ele estava dormindo. Sentia-se aliviada,
claro. Tinha saudade de adormecer aconchegada nele, mas via
quanto ele tinha crescido. Não havia nada que pudesse fazer sobre
a situação. Sabia que era difícil para ele aceitar que eram de
espécies diferentes. No entanto, Flora queria ajudá-lo a se livrar da
corda ainda atada à perna. A corda flutuava atrás dele em qualquer
lugar para onde fosse. Ele parecia abatido, como se a corda fosse a
tristeza que o perseguia. Topo Verde não queria Flora por perto.
Mas ela sempre fazia seu ninho em um canto de onde pudesse
avistá-lo. A doninha rondou algumas vezes, mas nada aconteceu.
Topo Verde tinha ouvidos excelentes, assim como Flora, então
ambos sempre eram capazes de saber quando a doninha se
aproximava.
O outono passou lentamente. Nos campos de junco, Flora
começou a ver as libélulas, que vinham botar seus ovos sobre as
plantas aquáticas durante aquele que viria a ser seu último voo.
Depois que pousavam, as asas se endureciam, e os numerosos
olhos fixavam-se no céu azul. Os olhos das libélulas ainda se
moviam, mas não mostravam nenhum temor quando Flora se
aproximava para comê-las. Ela não apreciava muito este alimento
de olhos grandes e corpo magro, assim só se valia dele quando
estava faminta. O sol começava a se pôr mais cedo, levando os
patos a anteciparem cada vez mais a partida da represa. Então,
apenas o barulho do vento e o roçar seco da grama ecoavam nos
campos de junco. Topo Verde nadava até tarde, depois arrastava a
longa corda para os campos de junco. Flora o seguia lentamente,
enquanto a fria noite de outono se aprofundava.
Um dia, de manhã cedinho, um vento soprou forte. Os juncos se
sacudiram. Havia algo no ar. Flora tremeu com o vento frio entre
suas fracas penas. Ficou preocupada com Topo Verde, que estava a
distância de um chamado.
— Bebê, você está bem?
Topo Verde olhava nervosamente ao redor com o pescoço
esticado. De repente, ele gritou:
— Mamãe, cuidado! — E voou para longe.
Flora ficou tensa. Topo Verde indicou que a doninha estava
próxima. Fazendo uma algazarra, ele voou em círculos sobre o
campo de junco.
— São três, não, espere, tem mais uma! Por que são tantas?
Flora entrou em pânico. Uma doninha já era um estorvo, e agora
eram quatro! Cautelosamente, saiu do esconderijo de junco. A
doninha de um olho só apareceu do nada. Olhou para Flora com
desprezo. Flora a encarou de volta.
— Você não é o que queremos. A não ser que não haja outra
coisa para comer nos campos — disse a doninha, com um sorriso
malicioso. E virou-se.
Flora retrucou:
— Só um caçador extremamente habilidoso pode agarrá-lo. Para
uma caçadora de um olho só, como você, apenas observar já vai
ser cansativo demais. Você apareceu com mais três, mas olhe, ele
está lá em cima no céu! Ou será que você nem conseguiu vê-lo,
porque lhe falta um olho?
Irritada, a doninha curvou as costas agressivamente e mostrou os
dentes. Mas não atacou.
— Chegou a temporada de caça. Finalmente! Estávamos
aguardando por isso! — E foi embora.
Flora olhou ao redor. Estava nublado. Cada vez que havia uma
rajada de vento, o junco pendia e, com dificuldade, voltava a se
endireitar. Os ventos rudes que açoitavam o junco deixavam uma
espécie de marca. Algo de extraordinário estava por acontecer. Topo
Verde grasnou, chamando, e ela cacarejou, respondendo. Ele tinha
completado seu voo ao redor da represa. Pousou ao lado dela. Pela
primeira vez em um bom tempo, os dois ficaram parados lado a lado
para observar a represa.
— Mamãe, é estranho. Nunca senti isso antes. Alguma coisa vai
acontecer.
— Caçadores?
— Não, não é isso.
— Algo mais assustador?
— Mamãe, isso é diferente. Está cobrindo o céu inteiro. Você não
está sentindo?
— Bebê, do que você está falando? — Flora não sabia o que
Topo Verde estava observando com os olhos apertados nem o que
estava escutando.
— Uau, este barulho! Mamãe, é incrível. São tantos se
bandeando para cá!
Flora não sabia o que estava prestes a acontecer, mas sabia que
seria uma coisa completamente nova. Enquanto esperava, começou
a sentir o barulho de que falava Topo Verde. Ecoava entre o céu e
as montanhas distantes. Gradualmente se expandia e ficava mais
alto. Finalmente, pontinhos pretos apareceram.
Eram pássaros. Inumeráveis pássaros rapidamente cobriram o
céu. O mundo inteiro ficou repleto de pássaros, e ela não conseguia
ouvir mais nada. Os pássaros circundaram a represa e começaram
a pousar sobre a água. Flora e Topo Verde ficaram perplexos com a
visão dos viajantes de outro mundo.
— Topo Verde! Sua família chegou! — murmurou Flora.
Era sua espécie, a família da qual ele sentira falta toda vez que
havia subido o monte e olhado para as montanhas longínquas. Ele
fora separado de seu enorme bando. Como deve ter se sentido
solitário sem eles!
— Mamãe, por que meu coração está batendo com tanta força?
Topo Verde enfiou a cabeça sob a asa de Flora, como um bebê.
Estava tremendo, inexplicavelmente emocionado.
— Mas é claro que está! Você jamais tinha visto um bando tão
esplêndido.
Flora sentiu uma imensa paz. Sorriu. Ah, meu velho amigo! Agora
compreendo tudo. Ela pensou que tinha entendido, quando
Andarilho lhe dissera para ir para a represa com o bebê. Mas não
tinha. Ele queria que Topo Verde crescesse e voasse para longe,
acompanhando a própria espécie. Ela abriu as asas e abraçou seu
grande bebê bem apertado. Abraçou-o por um longo tempo. Sentiu
a textura sedosa das penas e o cheiro dele e afagou as costas de
Topo Verde. Esta talvez fosse a última vez. Momentos preciosos não
duram para sempre. Flora queria guardar tudo isso na lembrança.
Pois lembranças seriam em breve tudo o que ela teria.
CAÇANDO A CAÇADORA

Andarilho tinha razão. A doninha de um olho só era maior e mais


forte do que as outras. Meticulosa e rápida, às vezes juntava-se à
outra para caçar. As doninhas ficavam à espreita na represa,
esperando o momento certo para atacar. Estavam mirando os patos-
reais. Elas abocanhavam os patos mais jovens que se separavam
do bando ou aqueles que estavam em sua primeira migração. Os
patos-reais dormiam agrupados nos campos de junco e nadavam
em conjunto também. Quando o líder voava, todos os outros o
seguiam, criando uma revoada sonora e impressionante. A tranquila
represa havia acordado. Topo Verde deixou Flora para se juntar ao
bando, mas eles não demonstraram nenhum interesse nele. Topo
Verde não tinha cheiro de pato doméstico, porque havia crescido
nos campos, mas a corda amarrada no pé revelava que ele havia
fugido de um humano, e por isso desconfiavam dele.
Flora não deixou a encosta. Ela estava segura, ali. As doninhas
só tinham como alvo os patos-reais, e ali era o melhor lugar para
vigiar os campos de junco. Topo Verde se esforçava muito para ser
aceito. Mesmo que os outros patos-reais nem sequer olhassem para
ele, Topo Verde os acompanhava e dormia com o grupo. Não se
importava de fazer sua cama no canto mais distante e, por isso, o
mais perigoso. Era muito duro ver seu Topo Verde à parte do bando
ou nadando sozinho, mas Flora não tinha como ajudá-lo. Para ela,
ele sempre havia sido especial, principalmente quando comparado
aos patos domésticos. Mas ele não conseguia voar tão bem quanto
os patos-reais. Era mais lento e não tinha a energia para voar
durante tanto tempo quanto os outros. Era por causa da corda. Flora
queria poder cortá-la. Passava os dias catando grãos perdidos entre
a palha nos canteiros de arroz e, à noite, retornava para a caverna
sob a rocha na encosta. A caverna era quente, protegendo-a contra
a geada. De lá, ela vigiava as doninhas que rondavam os campos
de junco. Sabia que as intenções delas eram as piores.
Quando o outono virou inverno, as doninhas tinham comido todos
os patos jovens e os mais fracos. Agora, depois da primeira neve,
suas caçadas não estavam indo tão bem. Os patos-reais saudáveis
eram adversários formidáveis. As doninhas famintas os perseguiam
incessantemente, mas tinham sorte de conseguir capturar um a
cada dois dias. Quando conseguiam, rosnavam e brigavam entre si
para ver quem ficava com o maior pedaço. Duas doninhas foram
embora à procura de melhores terrenos de caça, mas a de um só
olho permaneceu com uma amiga.
Flora se preocupava com Topo Verde, pois ele dormia às
margens do grupo. Se uma caçada começasse, ele seria o primeiro
a ser atacado. E seria capturado, por causa daquela corda. Bebê,
não caia em sono profundo esta noite. Elas já não comem há dois
dias. De pé na encosta, ela observava as doninhas escondidas atrás
de um monte de junco caído. Os patos-reais continuavam nadando.
Começou a nevar. Flora andava de um lado para outro. Os flocos de
neve se acumulavam sobre os campos de junco e por cima da palha
seca onde as doninhas estavam escondidas. Os patos-reais saíram
da água um a um e começaram a alisar as penas. A um sinal do
líder, todos voaram, circundaram a represa e desapareceram sobre
o pequeno monte. Às vezes, eles escolhiam um lugar bom para
dormir por lá, mas geralmente voltavam para os campos de junco.
Flora apertou os olhos, tentando reconhecer Topo Verde. Na neve,
ela não conseguia ver a corda pendurada. Sem ela, nem mesmo
Flora tinha como reconhecer Topo Verde. Ela sabia que ele ficaria
de ouvidos apurados. Ele tinha experiência de primeira mão em
como as doninhas agiam. Mesmo assim, ela continuava apreensiva.
Flora se acomodou em sua caverna. Desejou que o bando
escolhesse outro lugar para dormir; nos montes de palha da
plantação de arroz ou entre os espinheiros selvagens nos montes.
Ela estava com fome. Não tinha comido nada, ocupada demais
vigiando as doninhas. Mas estava bem. Tinha se acostumado a
comer muito pouco ou nada. Para ela não tinha problema, embora
não se pudesse dizer o mesmo de seu peso e suas penas. A neve
caía mais forte. Um monte de neve se acumulou na entrada da
caverna e bloqueou sua visão. Mas ela ainda conseguia escutar
tudo. As doninhas estavam meio enlouquecidas de fome. Flora se
lembrou de como Andarilho ficava acordado a noite inteira dançando
e grasnando alto. Ele havia feito tudo o que podia para proteger o
ovo. Sou a mãe dele. Não posso ficar aqui sentada e deixá-lo ser
pego. Flora empurrou a neve e saiu da caverna.
O bando de patos-reais estava retornando. Haviam decidido
pernoitar nos campos de junco de novo. Eles iriam encontrar um
lugar coberto de junco grosso para escapar da neve, mas as
doninhas já estavam escondidas lá. Depois de circularem no céu
cinzento, eles pousariam em seus cantos para dormir. Ela precisava
se apressar. Desceu a encosta a toda a velocidade, mas a neve
caía pesada sobre ela, forçando-a a fechar os olhos. Quando ela os
abriu, Topo Verde estava parado na sua frente.
— Bebê! — gritou ela, feliz, e abriu as asas para saudá-lo.
Topo Verde parecia cansado e triste. Mas suas asas tinham
ficado mais fortes, o suficiente para criar uma nevasca. De repente,
um ruído de grande confusão subiu do campo de junco, e o bando
inteiro levantou voo de uma vez. Topo Verde correu para a beirada
da encosta.
— Uma caçada!
Ambos ouviram em silêncio o grito breve que cortou a escuridão.
As doninhas dormiriam de barriga cheia, esta noite. Uma vida
sacrificada significava uma noite pacífica para o grupo. Flora ficou
grata porque Topo Verde escapara ileso.
Ele inclinou a cabeça sobre ela.
— Não aguento mais. Quero viver com você, mamãe. Os outros
patos da minha idade dormem no centro, rodeados pelos adultos.
Mas eu tenho que dormir do lado de fora, até mais longe do que o
guardião do bando. Não sei em que posição devo ficar quando
voamos. Quando fico próximo a um adulto, sou repreendido por ser
desrespeitoso, e, se fico para trás, caçoam de mim. Estou sempre
sozinho, não importa onde esteja. Por que tenho que viver assim?
Já basta. Estou sempre feliz quando estou com você, mamãe. Por
isso, voltei.
A julgar por sua magreza, era óbvio como havia sido difícil para
ele o convívio com os outros patos-reais. No entanto, agora as asas
dele faziam vento. Topo Verde era, em todos os sentidos, um pato
selvagem. Flora deixou-o se lamentar. Cansado, ele entrou na
caverna, arrastando a longa corda atrás de si. Suas pegadas e o
rastro da corda ficaram marcados na neve.
— Durma bem — Flora murmurou, quando seu bebê se
enrodilhou como uma bola.
A neve se amontoou e bloqueou a entrada da caverna mais uma
vez. Estava quente, lá dentro. Topo Verde começou a roncar, mas
Flora não conseguia dormir. Esta era a noite em que ela o livraria da
corda. Ela bicou a corda a noite inteira. Quando o dia amanheceu,
seu bico estava tão dolorido que ela nem sequer conseguia abri-lo.
Ela sentia-se tonta, mas a corda estava em fiapos. Podia ser
facilmente rasgada. Topo Verde acordou. Seus olhos ficaram
molhados ao ver a corda carcomida. Ele pegou uma ponta com o
bico, e Flora pegou a outra. Juntos, puxaram um para cada lado, e a
corda finalmente se rompeu. Como Flora não fora capaz de
desfazer o nó, um pedacinho ainda ficou ao redor do pé dele, como
um anel, mas ele não achou incômodo. Cansada e com dores, Flora
se deitou. Topo Verde ficou parado, observando em silêncio, antes
de empurrar a neve e sair. Ela o viu voar para longe e caiu no sono.
Algum tempo se passou.
— Mamãe, acorde — disse Topo Verde, sacudindo sua mãe.
Devagar, ela abriu os olhos. Ele tinha trazido um peixe delicioso.
Os olhos dela se arregalaram quando ele disse:
— Sabe quem foram as vítimas, desta vez? Dois deles. Um era o
guia que procura os lugares para dormirmos, e o outro era o
guardião!
As doninhas devem ter agido em desespero, atacando aqueles
que pousaram primeiro, em vez de esperar por uma oportunidade
melhor. Flora comeu o peixe. Se não fosse por Topo Verde, ela não
teria como comer algo tão saboroso em pleno inverno.
— Obrigada, Bebê. Estava delicioso.
Topo Verde sorriu. Flora sorriu, mas seu sorriso era triste por
dentro.
— Fiquei tão feliz de poder livrar você daquela corda. Mas não há
nada que eu possa fazer sobre este anel ao redor de seu pé. Então,
vamos deixá-lo aí como um sinal de que você é o meu bebê. Assim
posso reconhecê-lo entre os viajantes.
— Mamãe, você quer que eu vá embora?
Flora olhou nos olhos de Topo Verde e confirmou, acenando a
cabeça positivamente.
— Você deve ir, sim. Você não quer voar com a sua espécie e
conhecer outros mundos? Se eu pudesse voar, jamais ficaria aqui.
Não sei como vou viver sem você, mas você tem que ir. Vá e se
torne o guardião. Ninguém tem melhor ouvido que você.
— Eu não vou embora — disse Topo Verde com lágrimas nos
olhos e enfiou a cabeça sob a asa de Flora.
— Faça o que o seu coração mandar. Pergunte a ele o que é.
— Mas você vai ficar sozinha. Você não vai poder voltar para o
quintal.
— Eu vou ficar bem. Tenho muitas lembranças boas, então não
vou me sentir sozinha.
Topo Verde chorou baixinho. Flora acarinhou amorosamente as
costas dele. Queria dizer a ele para se esforçar mais para ser aceito
pelo bando, mas a emoção lhe deu um nó na garganta e a deixou
muda.
— Por causa das doninhas, eles podem querer mudar o lugar de
dormir. Ouvi dizer que talvez voem para as montanhas do outro lado
da água e, se for assim, eu não vou poder ver você por muito tempo
— balbuciou Topo Verde.
Flora escutava em silêncio. Sabia que ele se juntaria ao grupo.
Mesmo assim, ao saber que o coração dele nunca havia se
desprendido completamente do bando, sentiu um vazio imenso no
peito. Foi difícil se manter firme.
— Nós temos aparências diferentes, mamãe, mas eu amo você
de qualquer maneira — disse Topo Verde e rapidamente deixou a
caverna.
Ela permaneceu parada, incapaz de se mover. Topo Verde olhou
para trás. Ela correu em sua direção, mas ele já estava voando. Ele
circundou a caverna uma vez e depois foi em direção à represa. Ela
ficou parada na encosta, observando enquanto ele voltava para a
própria espécie. Flora se sentia uma simples casca oca de si
mesma.
O inverno estava chegando ao fim. Na sombra, a neve
permanecia sem derreter, mas, nos cantos ensolarados, as
artemísias e as margaridas-do-campo começavam a brotar. Flora se
deleitava em beliscar as folhinhas verdes, mesmo que ainda
estivessem um pouco congeladas. Ela passou o resto do inverno em
movimento; a doninha se tornara ainda mais desesperada pela
fome. Flora se mudava dos campos de junco para a caverna, de
debaixo de uma árvore caída para um monte de palha de arroz e
depois para um barco abandonado e apodrecido, sempre com o
cuidado de não cruzar com a doninha. Seu lugar preferido era um
monte de palha que fervilhava de insetos que enchiam sua barriga,
mas ela não podia ficar muito tempo porque muitos ratos do campo
e pulgas também faziam ali a sua morada. Depois que o velho cão
tinha sido substituído por um buldogue na vigilância do galinheiro, a
fome da doninha tornara-se aguda. Conforme as presas
escassearam, as outras doninhas partiram. Mas não a de um olho
só.
Mesmo depois de perderem o guia e o guardião, os patos-reais
continuaram fazendo suas camas nos campos de junco. Para a
doninha, que caçava pelos campos cobertos de neve, os patos-reais
eram uma rica fonte de proteína, da qual ela não podia abrir mão. O
guardião era o pato menos difícil de ser caçado. Assim, Topo Verde
continuou sendo o alvo da doninha. Ele agora era um guardião
respeitado, com voz trovejante, penas brilhantes e um poderoso
bater de asas. Ninguém mais o desprezava. Quando os patos se
acomodavam para a noite, longe da represa, a doninha saía para
caçar Flora. Apesar da falta de penas e de gordura no corpo, Flora
era a caça mais fácil do campo. Porém, a doninha continuava
sempre um passo atrás. Por alguma razão, ela havia ficado lenta.
O vento se tornou mais morno. O gelo na represa derreteu, e os
patos-reais agora podiam nadar com vigor. Flora se aproximou das
margens da represa para observar Topo Verde mais perto. Os patos
do quintal saíram para sua primeira caminhada de primavera. Eles
não puderam nadar durante todo o inverno, dessa forma, pularam
na água alegres e barulhentos assim que se aproximaram. O líder
cumprimentou Flora com gentileza.
— Você deve ter passado um inverno difícil. Emagreceu demais!
Flora simplesmente sorriu. Ela não tinha tanta inveja assim dos
patos, que tinham engordado demais no celeiro durante o inverno.
— Mas você parece bem — disse o líder, com generosidade. —
O que quero dizer é que sua aparência não é das melhores, mas
tem alguma coisa... — Ele deu de ombros. — Você parece diferente
da nossa galinha. É estranho. Você está mais confiante e graciosa,
mesmo com algumas penas faltando.
Aos ouvidos de Flora, aquilo soava como um elogio. O líder
ajeitou as penas com o bico antes de entrar na água.
— Cadê o patinho? — perguntou ele. — Ele não...
Ele queria saber se Topo Verde havia morrido. Flora apontou para
Topo Verde, que nesse momento levantava voo majestosamente.
Surpreso, o líder estreitou os olhos para admirar. Ele demonstrou
respeito com um gesto de cabeça. Orgulhosa, Flora se afastou dos
campos de junco.
Quando ela se aproximou de um salgueiro, ouviu uns ruídos
estranhos que vinham da palha seca ao redor da árvore. Ela ouviu
com atenção. Eram berros fracos, mas desesperados, de animais
pequenos. Flora enfiou a cara em meio à palha. Estava escuro, e
ela não conseguiu ver nada. Quando os olhos se acostumaram à
escuridão, ela percebeu que estava dentro de uma pequena
caverna. Filhotinhos se contorciam, seus corpos encostados uns
aos outros, ainda incapazes de abrir os olhos. Quem eram? De
quem eram? O coração de Flora bateu acelerado.
Eram animaizinhos de quatro patas.
Flora se virou e saiu da caverna. Não seria nada bom se ela
fosse suspeita de lhes fazer algum mal. Mas ficou curiosa. Onde
estava a mãe deles? Estes bebês eram jovens demais para abrir os
olhos. Será que não morreriam, sem a mãe por perto? Flora subiu a
encosta e esperou para ver se a mãe voltaria para a caverna. Mas
ninguém apareceu. Era tarde. Os patos do quintal haviam deixado a
represa, e os patos-reais tinham voado. Mesmo assim, nem sinal da
mãe vindo para junto de seus filhotes. Isso deixou Flora apreensiva.
Será que a mãe tinha morrido? Então, quem criaria os bebês?
Ela deixou de especular quando os patos selvagens voltaram em
revoada por cima da montanha. Voavam baixo, desta vez. Flora
olhou para os campos de junco tentando avistar Topo Verde.
Percebeu a doninha ali à espreita. Estava escondida atrás do
espinheiro, exatamente como no dia em que abocanhou o outro
guardião e o guia. Flora ficou tensa. Topo Verde corria perigo. Fazia
algum tempo desde que vira a doninha. Se ela não tivesse caçado
durante todo esse tempo, estaria com uma fome voraz. Os patos
selvagens circundaram a represa. Ela não tinha tempo para hesitar.
Desceu a encosta a toda a velocidade, batendo as asas. Se pelo
menos pudesse voar, em vez de depender de suas pernas finas
pisando no chão! E essas asas tão absolutamente inúteis!
— Sua criatura maldita! — gritou Flora para a doninha,
começando a rolar pela encosta abaixo.
Os talos de grama seca e as árvores a arranhavam, mas ela nada
sentia. Seu único pensamento era chegar ao campo de junco antes
que Topo Verde pousasse.
— Olhe aqui! Estou chegando! — berrou ela a plenos pulmões.
Devia ser uma visão engraçada, aquela bola de penas e palha
rolando pela encosta, mas sua voz não tinha nada de engraçado.
Seu tom era furioso e ameaçador.
A doninha se ergueu imediatamente. Ela se aproximou de Flora,
rosnando, o olho brilhando de fúria. Flora a encarou com
determinação. A doninha estava tão magra. Flora quase teve pena.
Há quanto tempo vinha passando fome? E não parecia ser a
caçadora que já fora um dia, aquela que se movia como o vento. Em
seguida, ela reparou no estômago aumentado e nos mamilos. Oh!
Flora ficou perplexa. Durante o inverno rigoroso, ela havia se
perguntado muitas vezes como a barriga da doninha tinha se
arredondado tanto e por que ela havia se tornado tão lenta. Agora
compreendia. Os filhotes de quatro pernas que berravam de fome
escondidos na caverna... A doninha era a mãe deles!
Os patos-reais estavam prestes a pousar. Um pousou primeiro.
Ela avistou a corda em torno do pé. Topo Verde.
— Sua galinha chata! Chispa daqui! — A doninha mostrou os
dentes.
Flora precisava distraí-la de alguma forma. Deu um passo para
trás e avisou:
— Cuidado. Vou pegar seus filhotes! — E correu para o salgueiro.
Percebendo tardiamente a intenção de Flora, a doninha correu
atrás dela. Flora correu de bico cerrado. Não importava quão fraca
estivesse a doninha, ela ainda era uma excelente caçadora. Flora
quase foi agarrada pelo pescoço, mas conseguiu chegar antes à
caverna debaixo do salgueiro. Com suas garras, pegou os filhotes
que se amontoavam uns sobre os outros. Eram meros nacos de
carne, ainda sem pelos. Flora não queria de verdade fazer aquilo.
Não era correto, porém não havia alternativa. Com seu único olho, a
doninha olhou suplicante para Flora. Ficaram se encarando até que
a respiração delas se acalmou. Sob os pés de Flora, os filhotes
berravam. A expressão da doninha se desmoronou ao ouvir os
gritos de suas crias.
— Por favor, tenha misericórdia — pediu a doninha, com a voz
trêmula. — Eles nem abriram os olhos ainda.
Flora não assentiu.
— Você poderia ter demonstrado misericórdia muitas vezes. Mas
nunca o fez. Nem com a pata branca, nem com Andarilho, nem
comigo nem com meu bebê. Você teve muitas chances, mas jamais
mostrou misericórdia.
— Eu não tinha saída. Vocês simplesmente apareceram no meu
caminho quando eu estava com fome. Eu só cacei para não morrer
de fome. E agora estamos famintos.
— Aparecemos no seu caminho? Não, você não via a hora de
nos comer. Agora vou machucar seus preciosos bebês! É só o justo.
— Não, não. Não é justo. Você não está com fome. Eu só caço
quando preciso comer. Para sobreviver.
— Minha vida inteira tem sido fugir de você. Você não faz ideia de
como estou exausta e de quão triste eu tenho sido.
— Eu não acredito! — retrucou a doninha. — Você é a galinha
mais sortuda do mundo! Jamais consegui pegar você. E fez tantas
coisas na vida. Sou eu quem está exausta. Tenho calos nas patas
de tanto perseguir você.
Flora pensou por um momento. A doninha não estava
completamente errada. Ela havia quase morrido várias vezes, mas
ainda estava ali, viva. Sentiu pena dos filhotinhos presos sob as
garras afiadas. A pele fina sangraria em um instante. Ela relaxou as
garras sorrateiramente para que a doninha não percebesse.
— Se você achar outra fonte de alimento, vai deixar meu bebê
em paz?
— É claro!
— Promete? Se eu disser onde você pode achar algo para
comer?
A doninha disse que sim imediatamente, balançando a cabeça.
— Prometo. Se houver outra coisa para comer, não chego perto
de seu bebê.
— Estou velha, mas minhas garras e meu bico ainda são fortes
— ameaçou Flora. — Deve saber por experiência. Se não cumprir a
promessa, seus bebês podem perder um olho, igual à mãe.
Ela contou à doninha sobre as palhas secas nas fileiras de arroz.
Contou sobre os ratos do campo que tinham engordado no inverno,
brigando todas as noites porque suas tocas estavam superlotadas, e
o olho da doninha brilhou de alegria. No entanto, Flora hesitou em
deixar a caverna, sem confiar totalmente nela.
— Você sai primeiro. Depois eu vou — prometeu Flora.
A doninha finalmente saiu. Flora olhou para os filhotes que
tremiam de frio e fome. Sentiu pena, agora, pois a doninha era uma
mãe como ela. Uma mãe que corria pelos campos escuros, uma
mãe que precisava voltar rapidamente para seus filhotes ainda
cegos e que não conseguiriam sobreviver se ela não fosse tão veloz
quanto o vento, uma mãe que era uma caçadora exausta e veterana
de um olho só.
NEVE CAINDO COMO FLORES
DE ACÁCIA

Os raminhos verdes surgiam de cada canto tocado pela luz do sol.


Flores amarelas desabrochavam nas cerejeiras nos montes
distantes. A primavera tinha chegado. Flora andava pelas margens
da represa todos os dias. Topo Verde jamais veio nadar perto dela.
Ela entendia que o guardião não podia deixar o bando, mas mesmo
assim era difícil esconder sua decepção. Havia muito tempo que
não conversavam.
O tempo agradável, de repente, virou. O vento ficou frio, e o céu
se acinzentou, ameaçando nevar. Flora não se sentia lá tão bem.
Estava cinza e doentia, exatamente como o tempo. Voltou para a
encosta, exausta depois de caminhar pelas margens da represa o
dia inteiro. Nessa época, ela voltava para a caverna na encosta
todas as noites, a fim de poder vigiar Topo Verde. Ela queria diminuir
o ritmo, na velhice. Sabia que a doninha andava por perto, mas lhe
faltava a energia para fugir. Talvez porque estava envelhecendo,
Flora começou a sentir compaixão pela doninha. Ela sabia quão
difícil era atravessar o inverno tendo bebês. Flora se agachou na
beira da encosta e enfrentou as rajadas de vento frio. Às vezes, uma
pena se desprendia e flutuava para longe. O vento feroz açoitava
seu corpo, mas ela não tinha vontade de entrar na caverna.
Sentindo-se letárgica, apertou os olhos e mirou a represa. Não
acreditava que conseguiria descer para a represa no dia seguinte.
No fim da tarde, o bando de patos-reais se tornou mais ativo.
Naquele dia, quando eles rodearam seus líderes e grasnaram muito
alto, davam a impressão de estarem mais animados e mais
barulhentos do que em qualquer outra ocasião. Flora não sabia que
eles estavam se preparando para deixar a represa rumo às terras
frias do norte. O vento soprou com mais força. Vinha dos montes de
trás e fazia redemoinhos, levantando a palha dos juncos. As folhas
balançavam, e o junco cantava. Os patos selvagens batiam as asas,
enquanto a esfomeada doninha os espreitava, aguardando sua
chance. O líder dos patos-reais levantou voo majestosamente. Os
outros o seguiram, um a um, em fileiras. Flora olhou para eles
enquanto circulavam entre a represa e os montes distantes. Um
deles se afastou dos outros e desceu voando para a encosta. Flora
se ergueu.
— Topo Verde, meu bebê!
Flora abriu as asas para abraçá-lo, mas ele apenas deu uma
volta ao seu redor, em vez de pousar. Somente tocou nela de leve
com uma das asas e exclamou: “Mamãe!”, como se estivesse se
despedindo. O vento carregou a voz dele para os campos. Flora
ficou muda em meio ao redemoinho que ele criava. Ela
compreendeu que era adeus. Ele está indo embora. Sempre
soubera que este dia chegaria. No entanto, não tivera tempo
suficiente para conversar com ele nem para se despedir direito.
Topo Verde acelerou o voo e bateu as asas fortemente para se
juntar aos outros, que a esta altura já estavam bem distantes. Todas
as inúmeras coisas que ela havia guardado no coração, esperando
a chance de contar para ele, explodiram em direção à garganta,
mas não conseguiram se transformar em uma palavra. Só o que ela
conseguia pôr para fora eram soluços. Meu bebê está me deixando!
A revoada de patos-reais que cobria o céu gradualmente
desapareceu por trás das montanhas, e o barulho que faziam se
tornou apenas um rumor fraco. Era como se um mundo
desconhecido do outro lado do céu os sugasse para dentro. De
repente, tudo ficou em silêncio. Era como se toda forma de vida
tivesse sido sugada para o outro lado do céu. Flora não conseguia
respirar. Toda vez que tentava, sentia uma grande dor no peito,
como se seu coração estivesse sendo deslocado. Desejou
desesperadamente ir com ele. Queria voar ao lado dos patos
selvagens. Sentia medo de ser deixada sozinha e odiava o que
estava acontecendo.
Em certo momento, a doninha se aproximou dela. Mas a
caçadora não lhe dava tanto medo quanto a ideia de ficar sozinha.
Flora fechou os olhos. Ela havia tido um único desejo: chocar um
ovo e ver o nascimento de um pintinho. Seu desejo tinha se tornado
realidade. Sua vida fora difícil, mas ela havia sido feliz. Fora isso
que a mantivera viva. Agora eu quero voar! Quero voar para longe
como Topo Verde! Ela bateu as asas. Por que ela não havia
praticado, quando até o jovem Topo Verde começara, tão
desajeitado e por conta própria? Ela nunca havia se dado conta de
que secretamente guardava outro desejo. Era mais do que um
desejo; era uma coisa pela qual seu corpo ansiava
desesperadamente. Flora olhou para o céu vazio, sentindo-se
imensamente sozinha. O olho da doninha a espreitava. Flora,
porém, continuou apertando os olhos e fitando o horizonte, tentando
enxergar o fim do céu. A neve começou a cair. Enquanto ela
admirava os flocos dançando ao vento, um sorriso se espalhou por
seu rosto. As flores de acácia estão caindo! Para Flora, a neve
parecia exatamente como as pétalas de acácia. Querendo sentir as
pétalas caindo por todo o seu ser, ela abriu as asas completamente.
Queria sentir seu perfume. Sentiu-se incrivelmente bem. Não tinha
mais frio nem solidão.
Em seguida um grunhido, e tudo desapareceu: as pétalas de
flores de acácia, o perfume, a brisa suave. Em frente à Flora estava
uma doninha faminta.
— É você — disse Flora.
Ela encarou o olho profundo da doninha e pensou naqueles
filhotinhos moles de carne tão frágil. Aqueles nacos de carne eram
como o último ovo que Flora havia botado, aquele que havia saído
com a casca mole e se espatifara no meio do quintal. Ela se
lembrou de como isso havia partido seu coração, da tristeza que
sentira. Seu corpo estava duro, agora. Ela não podia mais fugir. Já
não tinha motivo nem forças.
— Vá em frente, pode me comer — disse ela. — Encha a barriga
de seus filhotes.
E fechou os olhos.
Flora começou a sufocar. Havia imaginado que seria dolorido,
mas tudo o que sentia agora era um alívio profundo. Você me
pegou, finalmente. Tudo ficou preto. Isso já tinha acontecido uma
vez antes, nos campos. Quando ouvira a pata branca gritar. Tudo se
tornara escuro, e, depois, gradualmente, como agora, ela começara
a perceber um tom avermelhado. Em seguida, tudo se tornou
lentamente mais claro.
Flora abriu os olhos. O céu era de um azul estonteante. Ela se
sentiu transparente e leve. E em seguida, flutuou como uma pena.
Cortando o ar com suas asas enormes e lindas, Flora olhou para
tudo lá embaixo: a represa, os campos em meio à tempestade de
neve e uma doninha, que ia embora cambaleante levando uma
galinha magra e depenada entre os dentes.
SOBRE HWANG SUN-MI
Hwang Sun-mi nasceu no interior da Coreia do Sul, em 1963. Ela
jamais havia pensado em ser escritora, mesmo depois de ter se
formado, após uma infância difícil. Como era pobre, não teve acesso
a uma escola de ensino médio, mas estudou sozinha, graças a uma
professora que lhe deu a chave de uma sala de aula, onde havia
livros e material escolar.
Mais tarde ela fez mestrado numa universidade e um curso de
redação criativa. Queria saber como escrever livros infantis não para
publicar, mas para ensinar seus filhos a ler. Por isso sua estreia
literária foi tardia, aos 32 anos. A partir daí ela não parou de publicar
e ganhar prêmios. Até o presente são mais de trinta livros.
As obras de Hwang Sun-mi lidam com uma variedade de temas,
como o significado da liberdade, o valor do amor e da atitude
ecoconsciente. Suas histórias cruzam fronteiras entre o passado e o
presente, entre a realidade e a fantasia. Um de seus livros critica
adultos por meio da perspectiva infantil e procura uma maneira para
que adultos e crianças possam se comunicar de uma forma justa.
Flora Hen, seu livro de maior sucesso, que vendeu mais de 2
milhões de cópias na Coreia do Sul e foi transformado em filme, lida
com temas como a beleza e o orgulho de uma mãe lutando pela
liberdade e pela concretização de seus sonhos.
O livro encantou não só crianças, mas também jovens e adultos
em mais de vinte países. Sua inspiração para criar o personagem
veio do relacionamento com seu pai, em sua adolescência. A edição
inglesa, pela Penguin norte-americana, saiu em 2013 e foi escolhida
como “Melhor Livro do Mês da Amazon”.
SOBRE YASMIN MUNDACA
Yasmin Mundaca nasceu no Chile e mudou-se para o Brasil, com
os pais, no início da década de 1970.
Desde criança ela desenhava em qualquer superfície – até nas
paredes do seu quarto. Descobriu sua paixão pelas ilustrações
frequentando livrarias e se encantando com os livros ilustrados.
Ela se formou em Ilustração Editorial em 2011, pela Quanta
Academia de Artes.
Tão logo começou a exibir suas ilustrações em seu blog, foi
chamada para fazer uma exposição de seus trabalhos nos Estados
Unidos e depois na Sardenha, Itália. Foi aí que começou a ilustrar
para autores na Espanha, nos Estados Unidos e na Argentina.
Yasmin Mundaca vive e trabalha em Indaiatuba, no interior de
São Paulo, com seu gato Sebastião e o filho Mickey.
Sonho Estrelado
Baiano, José Ubaldo
9788563420985
148 páginas

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Este livro é um hino à vida, ao trabalho, à luta para se superar e vencer os obstáculos da
batalha diária rumo ao autoconhecimento e ao sucesso profissional. José Ubaldo Tuca
Baiano, um dos maiores homens de vendas do Brasil, narra sua infância pobre no interior
da Bahia, a ajuda que teve de um parente melhor de vida, as lições que aprendeu, suas
aventuras no Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, e o valor da amizade e da
honestidade para seguir em frente e tornar-se um vitorioso. Seu relato, simples e acessível
a qualquer um, mostra como venceu na vida e como - com a criação de um círculo de
grandes amizades que sempre o respeitaram - chegou a ajudar dois rapazes simples e
corretos que há 20 anos o procuraram para vender sabão e carne e se transformaram em
proprietários da maior empresa privada brasileira, o Grupo JBS, dono da Friboi. Trata-se de
um relato admirável, para qualquer leitor que valorize a vida e o trabalho.

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A privataria tucana
Jr, Amaury Ribeiro
9788561501990
344 páginas

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Prepare-se, leitor, porque este, infelizmente, não é um livro qualquer.


A PRIVATARIA TUCANA nos traz, de maneira chocante e até decepcionante, a dura
realidade dos bastidores da política e do empresariado brasileiro, em conluio para roubar
dinheiro público. Faz uma denúncia vigorosa do que foi a chamada Era das Privatizações,
instaurada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e por seu então Ministro do
Planejamento, José Serra. Nomes imprevistos, até agora blindados pela aura da
honestidade, surgirão manchados pela imprevista descoberta
de seus malfeitos.
Amaury Ribeiro Jr. faz um trabalho investigativo que começa de maneira assustadora,
quando leva um tiro ao fazer reportagem sobre o narcotráfico e assassinato de
adolescentes, na periferia de Brasília. Depois do trauma sofrido, refugia-se em Minas e
começa a investigar uma rede de espionagem estimulada pelo ex-governador paulista José
Serra, para desacreditar seu rival no PSDB, o ex-governador mineiro Aécio Neves. Ao
puxar o fi o da meada, mergulha num novelo de proporções espantosas.

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Sangue azul
Gudel, Leornado
9788581301372
332 páginas

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Mais violento que o filme "Tropa de Elite". Mais polêmico que o livro "A elite da tropa".Mais
revelador que "Rota 66". Mais impressionante que qualquer livro, filme ou documento que
você tenha lido ou visto sobre o tráfico de drogas e a corrupção policial e política no Rio ou
em qualquer lugar. Incomparável. Revoltante. Absurdamente real. Um depoimento
chocante e arrasador!

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O Piloto de Hitler
Sweeting, C.G.
9788581301457
440 páginas

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Um livro que faltava sobre as duas guerras mundiais e o inferno do nazismo. C. G.


Sweeting resgata nas páginas deste O piloto de Hitler o testemunho privilegiado de um
homem fiel ao ditador alemão mesmo depois dos dez anos de sofrimento em masmorras e
campos de prisioneiros da União Soviética. Hans Baur era a sombra de Hitler no ar. Amava
o Führer e os aviões. Tudo sobre os horrores da guerra está aqui.

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Política
Moraes, Míriam
9788581302614
172 páginas

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Não fique por fora dos temas que agitam o país. Veja aqui o que você precisa saber para
entender,opinar e debater política e atualidades. O pior analfabeto é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o
custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa
o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política,
nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político
vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo. Bertolt Brech

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