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Religião
Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof. Hermes de Sousa Veras
184p.
ISBN 978-85-515-0618-9
ISBN Digital 978-85-515-0619-6
“Graduação - EaD”.
1. Antropologia 2. Religião 3. Brasil
CDD 266
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679
Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Esse livro será um guia, ou um passeio, pela Antropologia Social e pela
Antropologia da Religião. Percorreremos um pouco da história dessa disciplina, que se
intensificou e se institucionalizou no final do século XIX, completando, no século XX, o
seu processo de modernização e prática.
Bons estudos!
Prof. Hermes de Sousa Veras
GIO
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avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo
para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
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LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 56
REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 119
TÓPICO 2 - ESPIRITUALIDADES........................................................................................143
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................143
2 A EMERGÊNCIA DAS ESPIRITUALIDADES.....................................................................143
3 ESTUDOS SOBRE ESPIRITUALIDADES NO BRASIL....................................................... 147
4 ESPIRITUALIDADES E CIÊNCIAS SOCIAIS....................................................................152
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................156
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 157
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................182
UNIDADE 1 -
ANTROPOLOGIA: HISTÓRIA,
FUNDAMENTOS E
CAMINHOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
1
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!
Acesse o
QR Code abaixo:
2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ENQUANTO
CIÊNCIA
1 INTRODUÇÃO
A Antropologia é uma ciência que carrega em seu nome uma simplicidade. Ora,
não precisamos ir muito longe para saber que Antropologia significa o estudo científico
do ser humano em uma perspectiva totalizante e sistemática. Logo, descobrimos
que, apesar de ter uma perspectiva total, seguiu diversos caminhos, com campos e
subcampos que se estabeleceram ao longo do tempo. Portanto, começaremos com um
panorama comum a todos os sujeitos que se interessam pela antropologia no geral, para
depois passearmos pelas perspectivas da humanidade em seu enfoque social e cultural
(antropologia sociocultural), em sua dimensão da diversidade de expressões linguísticas
e de linguagens (antropologia linguística), em sua experiência em múltiplos tempos
históricos (antropologia arqueológica) e, finalmente, na humanidade em sua constituição
enquanto espécie, um ser vivo configurado biologicamente (bioantropologia).
3
A antropologia, justamente pelas abrangências de seus objetos (a humanidade
em toda a sua experiência), métodos e abordagens, iniciou a sua trajetória enquanto uma
disciplina, relativamente unificada, que se propunha a compreender o humano em sua
totalidade. Em nossa busca por uma maior compreensão sobre a formação da antropo-
logia e como um de seus subcampos, a antropologia da religião se tornou importante no
cenário da antropologia, acompanharemos o diálogo entre a unidade do gênero humano e
a diversidade de suas manifestações sociais, culturais e históricas. Para começar, acom-
panharemos a preocupação manifesta por pessoas interessadas em exercer “o estudo do
homem inteiro” dentro de um campo científico (LAPLANTINE, 2003).
4
que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo do Iluminismo, tenha fundado as
ciências do homem (LÉVI-STRAUSS, 1993) pelo seu interesse humanista em apreender
a realidade humana em toda a sua complexidade política, histórica e geográfica.
Voltemos, então, para os pensadores citados logo no início desse tópico. He-
ródoto é lembrado por Laraia justamente por ter se preocupado com “a diversidade de
modos de comportamento existentes entre os diferentes povos” (LARAIA, 2001, p. 5).
Heródoto de Halicarnasso (484-425 a.C), portanto, tendo nascido em um território colo-
nial grego, é conhecido por ter viajado pela Ásia e o Egito, tendo produzido relatos e re-
flexões sobre as diferenças entre os Gregos e outros povos do mundo, preocupado em
saber “como devemos relacionar-nos com os ‘outros’” (ERIKSEN; NIELSEN, 2007, p. 10).
IMPORTANTE
Já reparou que, ao citar outros autores, como Laraia e Eriksen e Nielsen,
tive que datar os anos de nascimento e morte de pessoas com a sigla “a.C”.
Você já deve imaginar que isso significa “antes de Cristo”. Como estamos
em um livro de Antropologia da Religião, vale ressaltar que dividir toda a
nossa experiência de tempo a partir do marcador “Antes” e “Depois” de
Cristo reflete a influência e a importância da cosmologia cristã para a
razão ocidental. Entretanto, como a antropologia tem a diversidade e o
diálogo com a multiplicidade de pontos de vistas como base, não considera
razoável que todas as outras experiências religiosas sejam anuladas. É um
princípio básico antropológico de evitar o etnocentrismo. Para contornar
tal problema, a arqueologia, por exemplo, utiliza “A.P”, isto é, Antes do
Presente, com referência a datação com radiocarbono, que é uma técnica
de medição arqueológica (BICHO, 2006), ou Antes da Era Comum.
5
Dando um salto histórico, lembremos, nossa preocupação aqui não é
historiográfica, estamos apenas elencando algumas características encontradas entre
outros campos dos saberes que estão presentes na antropologia contemporânea,
chegamos a Montaigne e a sua abordagem ensaística da humanidade. O filósofo francês
é lembrado como um relativista cultural antes mesmo do conceito ser elaborado.
Como muitos de seus conterrâneos e contemporâneos, se interessou pela prática do
canibalismo encontrada entre indígenas da América do Sul, assunto que quase sempre
foi pensado a partir de visões estereotipadas e etnocêntricas. Montaigne, entretanto,
considera que os costumes das populações ditas selvagens, não eram menos bárbaros
do que algumas práticas encontradas entre os europeus, como a tortura e o mutilamento
(LARAIA, 2001; LAPLANTINE, 2003; ERIKSEN; NIELSEN, 2007).
Montaigne, nos contam Eriksen e Nielsen: “No ensaio ‘Dos Canibais’, ele inclusive
conclui que se tivesse nascido e sido criado numa tribo canibal, com toda probabilidade
teria comido carne humana” (ERIKSEN; NIELSEN, 2007, p. 15). Os autores ainda contam que
Montaigne cunhou o termo “o bom selvagem”, influenciando Rousseau posteriormente.
Assim, acompanhamos em Montaigne que a diferença cultural se dá muito mais pelos
nossos costumes, da maneira como eles são construídos em determinado grupo social.
Assim, a diferença passa a ser pensada como um valor na humanidade, e não como um
grau de comparação entre civilizações superiores e inferiores.
Como não estamos abordando a história com profundidade, mas dando saltos,
é evidente que embora ideias aproximadas do que hoje denominamos de relativismo
cultural, que é o valor de que nenhuma cultura pode ser compreendida por valores
externos a ela mesma, portanto, não podemos hierarquizar diferenças culturais,
nem tampouco avaliar uma cultura pelo olhar da nossa própria (o que consiste em
etnocentrismo), isto é, embora tudo isso esteja presente em várias reflexões, isto não
significa que o etnocentrismo, a xenofobia e outrofobia tenham saído de cena. Mas
como já citamos Rousseau e a sua influência em Montaigne, recordemos da proposição
de Lévi-Strauss, para quem o próprio Rousseau é um fundador da antropologia:
Etnologia, conforme veremos adiante, foi o nome dado para a ciência que estuda
a humanidade em uma perspectiva cultural e comparativa, tendo se preocupado sobre-
tudo com o estudo das sociedades e populações tradicionais, ou seja, os “outros”, aqueles
que apresentavam maiores diferenças, mas também semelhanças, em relação a socie-
dade do próprio observador, isto é, o etnólogo e a etnóloga. Para Lévi-Strauss, Rousseau,
em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens,
6
publicado em 1755, estabeleceu as bases da antropologia, isto é, a sua especificidade em
relação a outros conhecimentos já estabelecidos. É nessa obra mesmo, que Lévi-Strauss
identifica, em Rousseau, uma imagem antropológica percursora. Pois, pensa Rousseau:
“Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar perto de si; mas para estudar o ho-
mem, é preciso aprender a dirigir para longe o olhar; para descobrir as propriedades, é
preciso primeiro observar as diferenças” (ROUSSEAU apud LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 43).
No trecho de Rousseau, podemos identificar as relações semelhança – diferença, ou fa-
miliaridade – alteridade e um certo imperativo da distância geográfica como critério para
conhecer a diferença. Afinal, conforme acompanharemos, a antropologia, dentre muitas
outras características, dependeu dos movimentos de expansão das sociedades europeias
e o choque de cultura resultante dessa expansão.
7
Quando se conta a história da antropologia, a nossa tendência é reproduzir as
trajetórias da Antropologia em basicamente, três países: França, Inglaterra e Estados
Unidos da América. Via de regra, a Antropologia, no final do século XIX, era considerada
uma ciência mais próxima das ciências da natureza. Diferente da sociologia, que pelo
menos com o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), em especial em sua obra
As regras do método sociológico (1895), tem os seus métodos bem estabelecidos e o
seu objeto bem deliminado, isto é, a sociedade, a realidade do próprio social e do fato
social. Portanto, no século XIX a antropologia ainda estava enraizada em pressupostos
biológicos e racistas, quando muito, imersos no paradigma do evolucionismo cultural de
Tylor, Morgan e Frazer (CASTRO, 2005).
8
A influência da Antropologia Física francesa se deu em todo o mundo, inclusive
no Brasil, tendo impacto na obra de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), considerado
o primeiro pesquisador a se interessar, em uma perspectiva etnográfica, por religiões
de matriz africana no Brasil, embora estivesse limitado, justamente, pelo racismo
pseudocientífico do século XIX.
9
Diante desse panorama, podemos perceber que as sociedades antropológicas
e etnológicas no século XIX ajudaram a consolidar a antropologia enquanto ciência,
embora estivessem, em grande medida, enraizadas em uma perspectiva generalista,
ancorada na antropologia física. Veremos, adiante, que o problema não é o aspecto
total, ou seja, de compreender a humanidade em suas diversas camadas, aspectos
e realidades. O que encontramos enquanto problemático, nesse período histórico da
antropologia, é o seu amparo em um racismo pseudocientífico que, pouco a pouco,
deixará de ser evocado e substituído pelo desenvolvimento da antropologia social e
cultural, junto com a etnologia em sua perspectiva moderna.
INDICA
Para uma boa exemplificação do que seriam as Sociedades Científicas,
o papel que elas tiveram na ciência e na sociedade, assim como
as principais sociedades científicas antropológicas, sugerimos o podcast
Antropocast: navegando pela antropologia (2020), criado, produzido, dirigido
e gravado pelo antropólogo Fred Lucio. Há 16 episódios, além do introdutório.
Um desses episódios, tem o título de “As primeiras sociedades científicas de
antropologia”. Mas o convite fica para a escuta de todos os episódios! Há um
episódio para cada subcampo da antropologia: social e cultural, arqueologia,
linguística e antropologia física e biológica, além de um momento dedicado
para a produção da pesquisa etnográfica no Iluminismo. Assim, podemos
estabelecer algumas relações entre o que acompanhamos sobre Rousseau ser
considerado, por Lévi-Strauss, como um precursor da etnologia (antropologia).
Figura 1 – Reflexividade
10
Apesar das muitas divergências entre a Antropologia Física do século XIX e a
Antropologia Social e Cultural que se estabelece, sobretudo, no século XX, a própria
Antropologia, que atualmente denominamos de Antropologia Biológica, concorda com
a unidade biológica da espécie humana, ao mesmo tempo que reconhece a riqueza
das interações na esfera da sociobiodiversidade, evitando a repetição e paradigmas
deterministas.
11
Essas três teorias são: 1) a cultura como sistema cognitivo; 2) cultura como sistema
estrutural, 3) cultura como sistema simbólico (LARAIA, 2001). Essas três concepções não
esgotam as possibilidades de cultura, o que seria impossível, mas nos coloca em contato
com três grandes possibilidades de perceber cultura que nos coloca dentro da capacidade
de interpretar a unidade do gênero humano e a sua multiplicidade cultural.
Portanto, para Clifford Geertz, a cultura é um sistema simbólico que não deve
ser estudada dentro da cabeça das pessoas, mas em seu aspecto público: está nas
praças, nos encontros entre as pessoas, enfim, está em ação quando as pessoas se
encontram e estabelecem relações. Nesse aspecto, cultural, para Geertz, pode ser
chamada, também, de “programa”, ou seja, uma metáfora computacional. Com esse
recurso linguístico, Geertz justifica a unidade da humanidade e a sua diversidade cultural.
12
Assim, para Geertz, todos os homens são geneticamente aptos para
receber um programa, e este programa é o que chamamos de cultura.
E esta formulação — que consideramos uma nova maneira de encarar
a unidade da espécie — permitiu a Geertz afirmar que "um dos mais
significativos fatos sobre nós pode ser finalmente a constatação de
que todos nascemos com um equipamento para viver mil vidas, mas
terminamos no fim tendo vivido uma só!" Em outras palavras, a criança
está apta ao nascer a ser socializada em qualquer cultura existente.
Esta amplitude de possibilidades, entretanto, será limitada pelo con-
texto real e específico onde de fato ela crescer (LARAIA, 2001, p. 59).
IMPORTANTE
A diversidade de religiões sempre despertou a atenção e curiosidade das ciências sociais,
assim como do senso comum. Antropólogos evolucionistas, como Edward Burnett Tylor
(1832-1917) e James George Frazer (1858-1951) tentaram compreender a origem da religião.
Para tal missão, estudaram as religiões das sociedades ditas primitivas. Como eles entendiam
que as populações tradicionais fora da Europa representavam as culturas modernas
europeias em sua infância, acreditavam que era possível compreender todas as religiões,
caso interpretassem essas sociedades “crianças”. Quem desconstrói essa ideia, no
âmbito dos estudos da religião, é o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917).
Embora apresente interpretações etnocêntricas sobre as “religiões australianas”,
conforme nos relembra Renato Ortiz: “Durkheim utiliza o termo primitivo num
duplo sentido, o de selvagem (reforçando o etnocentrismo europeu) e o
de primeiro (os povos que teriam antecedido a todos os outros na escala
evolutiva dos homens)” (ORTIZ, 2012, p. 19), Durkheim compreendia que
ao se entender como funciona uma religião em suas instituições e funções
fundamentais, seria possível compreender o funcionamento de todas as
religiões. Ou seja, não é um problema de origem, mas de estrutura social.
13
epistemológico das unidades ou ‘coisas’ culturais não depende da
sua observabilidade: mesmo fantasmas e pessoas mortas podem ser
categorias culturais”. Neste ponto, o leitor já deverá ter compreendido
que a discussão não terminou — continua ainda —, e provavelmente
nunca terminará, pois uma compreensão exata do conceito de
cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema
perene da incansável reflexão humana (LARAIA, 2001, p. 59).
Por essa razão, essas concepções de cultura, encontradas em autores como Lévi-
Strauss, Schneider e Geertz, reforçam nossa unidade psíquica e do nosso equipamento
biológico, ao mesmo tempo que reforçam a nossa capacidade de construir diversas
relações e articulações entre sistemas e estruturas, portanto, de construir diferentes
sociedades e culturas.
14
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• Por outro lado, até o século XIX, a antropologia, em especial a praticada nas
primeiras sociedades científicas antropológicas, possuía um paradigma racialista,
isto é, hierarquizava as diferenças étnico-raciais, colocando no ápice da evolução,
o homem branco. Na etnologia e na antropologia social, começava-se a substituir
esse paradigma racialista por um cultural, embora ainda evolucionista, pois
considerava a civilização ocidental como a experiência máxima de evolução
social. Assim, o evolucionismo cultural separava as sociedades em três etapas
evolutivas: selvageria, barbárie e civilização.
15
AUTOATIVIDADE
1 A Antropologia é a ciência da humanidade. Acerca dessa afirmativa, assinale as
alternativas CORRETA:
16
3 Apesar das diferenças de abordagem da Antropologia contemporânea, mesmo
em seus subcampos, há um consenso de que a diversidade cultural e social não
é explicada pela nossa biologia. Isto é, não podemos interpretar comportamentos
sociais e culturais sob uma ótica biológica. Levando em consideração a unidade
biológica da humanidade e a sua diversidade cultural, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas:
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
5 Perguntar-se sobre nossas origens, o que nos une e o que nos diferencia, é uma
forma de pensamento que aparece em qualquer sociedade. Entretanto, foi o ocidente
que construiu a antropologia enquanto uma ciência. Disserte as razões para tal feito.
17
18
UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL,
ARQUEOLOGIA, BIOANTROPOLOGIA E
ANTROPOLOGIA LINGUÍSTICA
1 INTRODUÇÃO
Neste Tópico 2, acompanharemos, com um pouco mais de atenção, a formação
dos subcampos da Antropologia. Como já sabemos, esse livro se interessa sobretudo
pelos fenômenos históricos, sociais e culturais, afinal, trata-se de uma obra de
Antropologia da Religião. Entretanto, para que você possa se aprofundar no estudo
antropológico da religião, estamos percorrendo um pouco da história da antropologia e
a sua complexidade.
Até agora foi possível acompanhar o uso alternado entre Antropologia Social,
Cultural e sociocultural. Agora, é o momento de entender essa variação. Primeiro,
é importante ressaltar que as diferenças entre Antropologia Social e Antropologia
Cultural é basicamente da histórica especialização que elas desenvolveram em
determinados países. Portanto, a explicação para essa variação está na nacionalidade
19
dessas antropologias. A Antropologia Social se desenvolveu sobretudo na Inglaterra,
enquanto a Antropologia Cultural nos Estados Unidos da América. Isso não significa
que esses países são os únicos a desenvolverem essas antropologias. Entretanto, eles
são exemplares para entendermos como se deu essa diferenciação. Entretanto, cabe
mencionar que não há uma separação total entre sociedade e cultura entre essas
tradições. O que acontece é, de fato, um foco e escopo distinto, embora muitas vezes
essas diferenças sejam atenuadas e mesmo rompidas.
Tylor, por exemplo, apresentou uns dos primeiros conceitos de cultura. Pelo
menos, um mais próximo do que é utilizado pela antropologia hoje. Para o autor:
Vamos nos ater ao fato de que Tylor acionava, já nesse conceito, uma relação
entre sociedade e cultura. Outro aspecto importante é que essa definição mostra como
funcionou o evolucionismo cultural. Tylor utiliza o conceito no singular, como sinônimo
de civilização, diferente do que a Antropologia Cultural norte-americana fará (CASTRO,
2005). Tylor, portanto, considerava a cultura como um efeito único e hierárquico.
20
Na verdade, poder-se-ia sustentar, com alguma razão, que a Antro-
pologia Social, ou o estudo do homem em sociedade, é apenas uma
outra expressão para Sociologia. No entanto, penso que as duas ci-
ências podem ser convenientemente distinguidas e que, enquanto o
nome Sociologia deve ser reservado para o estudo da sociedade hu-
mana no mais abrangente sentido das palavras, o nome Antropologia
Social pode, com vantagem, ser restringido a um departamento par-
ticular daquele imenso campo de conhecimento. Pelo menos, desejo
deixar perfeitamente claro, de início, que eu, por exemplo, não pre-
tendo tratar da totalidade da sociedade humana, passada, presente
e futura. Que o escopo mental e a amplitude de conhecimento de um
único homem sejam suficientes para tão vasto empreendimento, isso
não me atrevo a dizer, mas o que digo, sem hesitação ou ambigüi-
dade, é que, no meu caso, certamente não são. Posso falar apenas
sobre o que estudei, e meus estudos, em sua maior parte, estiveram
limitados a uma parcela pequena, muito pequena, da história social
do homem. Essa parcela corresponde à origem, ou melhor, às fases
rudimentares, à infância e à meninice da sociedade humana, e a ela,
portanto, proponho que se restrinja o escopo da Antropologia Social
ou, de qualquer modo, meu tratamento dela (FRAZER, 2005, p. 47).
Não por outro motivo, a religião dessas sociedades ditas primitivas, muito
interessaram a esses estudiosos da antropologia. Acreditava-se que ao se debruçar sobre
religiões animistas, fetichistas, “primitivas”, se compreenderia não apenas essa parcela
da humanidade, como toda ela. Na prática, o que acontecia era uma supervalorização
dos elementos do homem moderno, ocidental e branco, incluindo a sua religião.
21
A tarefa da Antropologia Social era desenvolver “estudos geralmente de caráter
sincrônico em que se procuram relacionar técnicas, costumes, instituições, crenças,
valores de uma mesma sociedade, ou encontrar princípios que valham para todas
as sociedades” (MELATTI, 2007, p. 5), que se não servissem de fato para todas as
sociedades humanas, que fossem pelo menos entre os mesmos tipos de sociedade
(idem). Desta maneira, a Antropologia Social se moderniza e estabelece esse foco,
com a ajuda de uma comunidade antropológica, evidentemente. Nesse momento, são
importantes as antropologias sociais desenvolvidas pelo próprio Radcliffe-Brown, mas
também Bronislaw Malinowski (1884-1942) e seus alunos e continuadores, tais como
Evans-Pritchard (1902-1973), Raymond Firth (1901-2002), Edmund Leach (1910-1989).
Franz Boas, por exemplo, atacou o evolucionismo cultural, que ele denominava
de “método comparativo”. A principal preocupação de Boas quanto ao método dos
evolucionistas, era a sua tendência para com a generalização. Afinal, esse paradigma
teórico, como já apresentamos, acreditava piamente que era possível deduzir uma única
linha evolutiva na cultura humana. Aliás, cultura no singular é, justamente, aquilo que
melhor descreve essa linha interpretativa. Portanto, Boas apostava que não era possível
afirmar, cientificamente, essas grandes generalizações, unido as mais variadas culturas
humanas em uma “camisa-de-força teórica” (CASTRO, 2005, p. 16). Portanto, em 1866,
Franz Boas já apresentava “As limitações do método comparativo da antropologia”,
afirmando que a antropologia deveria desenvolver um método indutivo e empírico, para
escapar dessa amarra teórica que generalizava. Com essa tendência, Boas passou a
desenvolver um argumento de que cada cultura poderia ser pensada em si mesma, a
partir também, das relações que estabelecia com outras culturas e dimensões da vida:
o ambiente e o tempo, por exemplo.
22
A concepção boasiana de cultura tem como fundamento um relativis-
mo de fundo metodológico, baseado no reconhecimento de que cada
ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura em que cresceu
- em uma expressão que se tornou famosa, ele disse que estamos
acorrentados aos "grilhões da tradição". O antropólogo deveria procurar
sempre relativizar suas próprias noções, fruto da posição contingente
da civilização ocidental e de seus valores (CASTRO, 2005, p. 18).
Apesar das diferenças entre Antropologia Social e Cultural, por conta de suas
formações nacionais e foco empírico, a Antropologia Social não renuncia à noção de
cultura, nem vice-versa. Os conceitos continuam centrais, embora apresentem focos
e posições diferentes. Portanto, “O conceito de sociedade (e de social) parece prestar-
-se mais a uma percepção mecânica do mundo humano, pois ele põe claramente pro-
blemas de inter-relação entre grupos, segmentos, pessoas, papéis sociais” (MATTA,
1981, p. 55), daí a importância dos temas da organização social, das instituições, das
relações de parentesco. A religião, por exemplo, quando surge nessa vertente social
e funcionalista, tende a ser justificada como um elemento que organiza e estrutura a
social (enquanto instituição).
Por outro lado, “A noção de cultura permite descobrir uma série de dimensões
internas ligadas ao modo como cada papel é vivenciado, além de indicar as “escolhas”
que revelam como este grupo difere daquele na sua atualização como uma coletividade
viva” (MATTA, 1981, p. 56). Nesse sentido, a cultura é dimensionada como uma espécie
de conteúdo vivo da sociedade e sua organização social. De qualquer maneira, como já
bem definido, sociedade e cultura permanecem conceitos centrais para a antropologia,
tendo inclusive, sofrido muitas críticas e reelaborações.
23
2.1. BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEMPO E A ARQUEOLOGIA
Até aqui, acompanhamos como as dimensões sociais e culturais são basilares
para a antropologia. Agora, peço licença para meus colegas da arqueologia para ser
muito breve. Como já deixamos bem definido, por questão de espaço e possibilidade, a
nossa ideia não é desenvolver uma história da antropologia nem de seus subcampos.
Sabemos, também, que a Arqueologia é tão desenvolvida que pode ser pensada
fora do campo da Antropologia, sendo uma irmã da disciplina, e não uma filha, se
quisermos utilizar a metáfora familiar e hierarquizante. Basicamente, a Arqueologia lida
com a dimensão do tempo, que conforme já estudamos, acaba saindo de evidência
na Antropologia Social britânica, que enfatiza pesquisas sincrônicas e empíricas de
instituições e organizações sociais. O tempo é importante para a corrente boasiana de
cultura, evidentemente, por considerar como as culturas são atravessadas pelo tempo,
mas não é fundacional quanto o é para a Arqueologia.
24
(FAUSTO, 2000). A Arqueologia feita no Brasil, em diálogo com a etnologia indígena
e a Etno-história, tem mostrado a complexidade social, a diversificação de grupos e
nações indígenas que habitaram as Américas, os seus complexos integrados de relação
mercantil e guerreira, enfim, tem demonstrado que do pouco conhecemos das Américas
antes da colonização, é possível afirmar a que nunca existiu simplicidade e ausência de
transformação social e histórica na América indígena.
INDICA
Para você conhecer um pouco mais de Arqueologia, sugiro a consulta do site
da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Fundada em 1980, essa instituição
agrega muitas importâncias. Você poderá desvendar um pouco mais da
Arqueologia e de sua estrutura no Brasil. Basta visitar o site em: https://
www.sabnet.org/. Ali, você poderá visitar e conhecer, também, a Revista de
Arqueologia. Caso tenha ficado uma curiosidade maior sobre a Arqueologia
Brasileira, que tal consultar o livro de mesmo título, justamente Arqueologia
Brasileira, de André Prous (1992)?
3 BIODIVERSIDADE E SOCIOBIODIVERSIDADE
Ao longo dessa unidade, acompanhamos como a Antropologia Física teve
centralidade na história da Antropologia, com o desenvolvimento relativamente posterior
da Antropologia Social e Cultural. Mostramos o quanto a Antropologia Física ficou
restrita em um vocabulário e paradigma racista. Entretanto, como era de se esperar,
a Antropologia Física também passou por suas transformações, afinal, não poderia
continuar se sustentando em uma perspectiva pseudocientífica, tendo ficado cada
vez mais próxima dos estudos da diversidade de populações humanas, a diversidade
genética e a sociobiodiversidade.
25
Portanto, podemos observar que no século XX há uma transformação na
Antropologia Física. Com o desenvolvimento da biologia, se aproxima da perspectiva
da evolução humana, no sentido processual, na maioria das vezes, buscando escapar
dos determinismos e racismos anteriormente defendidos. Nesse aspecto, a interação
entre cultura e biologia é importante, criando conceitos tais como o de biossocial e
sociobiodiversidade.
26
A Antropologia Biológica, como estamos acompanhando, se desenvolveu em
contato interdisciplinar. A sua relação com a antropologia cultural, a arqueologia e a
antropologia linguística aceleram e produziram algumas hipóteses sobre a experiência
humana. Os outros subcampos também se aproveitam dessa proximidade. Como
já comentamos, Clifford Geertz, por exemplo, especulou, ao dialogar com a evolução
humana e a antropologia biológica, que a cultura não surgiu do nada, sendo ela coetânea
com o desenvolvimento cerebral do gênero homo.
INDICA
Quer conhecer um pouco mais sobre a bioantropologia e suas relações
com as demais áreas da antropologia? Então você pode acessar o blog
Bioantropologia na Amazônia, organizado e publicado pelo Laboratório de
estudos bioantropológicos em saúde e meio ambiente. Se quiser conferir
algumas pesquisas publicadas na área, você pode acessar o periódico
Amazônica: revista de antropologia.
Consulta em: https://bit.ly/3BSsLqj; https://bit.ly/3rfwc5B.
27
4 O CAMPO DA LINGUAGEM
Há uma espécie de anedota antropológica que diz que Franz Boas resolveu
mudar de carreira (saindo das ciências físicas e geográficas para a antropologia), quando
descobriu que as sociedades inuítes, às dezes denominadas de inuítes, possuíam várias
palavras para distinguir as cores e tonalidades da neve. Independente da veracidade
dessa história, nela encontramos o espírito da antropologia linguística, mostrar,
justamente, as relações entre a linguagem e a natureza, a cultura, a sociedade e a tudo
mais que nos constrói humanos.
Voltaremos a anedota mais tarde. Mas o que é indiscutível é que Franz Boas
ajudou a desenvolver a linguística em sua perspectiva moderna (STOCKING JR., 2004,
p. 193). Foi ele quem também impulsionou o estudo das línguas indígenas americanas,
tendo publicado o Handboock of American Indian Languages, “cujo primeiro volume
saiu em 1911, marcou uma transformação estrutural no método e nos pressupostos
linguísticos americanos, tornando-se o ponto de partida da tradição moderna em
linguística descritiva” (STOCKING JR., 2004, p. 193).
Afinal, como quase tudo que não era ocidental e interpretado sob a lógica do
selvagem e do primitivo, a língua também era considerada de maneira hierárquica,
sendo considerada menos complexa entre essas civilizações denominadas. O que Boas
e a comunidade antropológica linguística fizeram foi desconstruir esse preconceito.
28
A linguagem, evidentemente, ganha centralidade para Boas, mas também para essa
comunidade, porque faz parte de uns dos elementos centrais da experiência humana
(no caso de Boas, seriam linguagem, organização social, religião). O que é relativamente
óbvio para nós. Não podemos pensar fora do campo da linguagem, nem nos expressar
sem um código linguístico.
Edward Sapir (1884-1939), conforme já vimos, foi uns dos alunos de Franz Boas
e uns dos principais antropólogos a se dedicar ao campo da linguagem. Em um artigo
proeminente, intitulado “Língua e ambiente”, Sapir define a um só tempo a língua e a
sua relação com o ambiente. A língua, portando, é definida como: “um complexo de
símbolos refletindo todo o quadro físico e social em que se acha situado um grupo
humano, convém compreender no termo ‘ambiente’ tanto os fatores físicos como os
sociais” (SAPIR, 1969, p. 44).
O ambiente, para Sapir, vai se relacionar com a língua, mas de uma maneira
muito específica. Segundo a melhor tradição boasiana, ele não vai estabelecer uma
relação determinística entre língua, ambiente e cultura. Ambiente, portanto, para Sapir,
em grande medida, pode ser considerado como fruto de “forças sociais”, ou seja, aquilo
que apesar de fazer parte do meio, é transformado por conta de tais forças. Por outro
lado, considera que: “De maneira geral, é melhor empregar o termo ‘ambiente’ apenas
quando se faz referência a influências, principalmente de natureza física, que escapam
à vontade do homem” (SAPIR, 1969, p. 44). O ambiente, portanto, que articula aspectos
físicos e sociais, e que se relacionará com a língua, terá, sim, uma atuação, porém, não
de forma determinada. Assim, o ambiente físico, geralmente, só atua sobre a língua
quando esse aspecto físico é modelado por “forças sociais”.
É assim que Sapir exemplifica essa relação, ao supor uma suposta interação
entre um animal e uma cultura/linguagem:
29
É aí que podemos relembrar da anedota de Boas e os muitos termos para
neve para os inuítes. Entretanto, o tempo e a comunidade antropológica e linguística
acabaram por fazer uma hipérbole com a experiência de Boas entre as sociedades
inuítes. Boas, conforme veremos no último tópico dessa unidade, fez os seus primeiros
trabalhos de campo entre essas sociedades. No já citado Handboock of American Indian
Languages, Boas elencava apenas quatro palavras para neve (MARTIN, 1986). Apesar do
exagero que foi criado em cima desse fato, não se tira a importância e a complexidade
das relações entre cultura, ambiente e linguagem. Lembrando que para a antropologia,
essas relações nunca são determinísticas, ou seja, não podem ser explicadas em línguas
de casualidades simples, podendo ser pensadas, sim, a partir de intricadas, dinâmicas e
complexas redes de interrelações.
INDICA
A ficção científica é um campo muito inventivo e interessante para pensarmos sobre a
nossa experiência humana. Há um filme que pode nos auxiliar na compreensão de como
a nossa linguagem influencia elementos básicos de nossa vida, inclusive, a maneira como
estabelecemos e criamos o nosso tempo. Estou falando do filme A chegada (Arrival), de
2016, dirigido por Denis Villeneuve. O filme é uma adaptação de um conto do escritor Ted
Chiang. No filme, seres extraterrestres entram em contato com a Terra e deixam marcas
que podem ser compreendidas enquanto linguagem. Para interpretar esses códigos
alienígenas, o governo convoca a mais proeminente antropóloga linguística de seu tempo.
30
se torne uma prática de política pública, considerando que o idioma é uns dos elementos
basilares para a continuidade de suas sociedades, embora ela, a língua, não possa ser
considerada como parâmetro definidor de um marcador de identificação indígena.
31
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
32
AUTOATIVIDADE
1 A moderna Antropologia Social foi desenvolvida na Inglaterra. Apesar de James Frazer,
considerado como um antropólogo de gabinete, ter assumido a primeira cadeira
com esse nome em uma universidade, são nomes da próxima geração, tais como
Radcliffe-Brown e Malinowski, que fundamentaram a Antropologia Social com base
no trabalho de campo intensivo e científico. Sobre esse momento da Antropologia
Social, assinale a alternativa CORRETA:
33
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
34
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
A ETNOGRAFIA E A OBSERVAÇÃO
PARTICIPANTE ENQUANTO PRÁTICAS
FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA
1 INTRODUÇÃO
Até agora acompanhamos um pouco da história da antropologia e de seus
subcampos. Passeamos pelas dimensões biológicas, culturais e sociais, históricas
e linguísticas da experiência humana. A partir de agora, vamos começar a afunilar:
focaremos na antropologia social e cultural. Via de regra, usarei indistintamente o
termo antropologia e, quando preciso, alternarei entre antropologia social, cultural e
sociocultural. Como já compreendemos a dinâmica e a multiplicidade dessa ciência,
podemos agora focar no que interessa diretamente a esse livro: a religião enquanto
fenômeno antropológico.
35
ampliar a noção que temos sobre a vida social e nós mesmos, vira uns dos objetivos
da antropologia, especialmente a de Tim Ingold, para quem o termo “observação
participante” é mais interessante do que a própria etnografia.
Pudemos dizer, portanto, que Boas inaugura também uma certa compulsão
etnográfica, quase que o imperativo antropológico de saber e dar conta de tudo.
Evidentemente que nem com esforço coletivo isso é possível, ainda mais entre uma
única pessoa realizando uma pesquisa.
36
o trecho de Laplantine demonstra, isso não é nenhum milagre, ou um aspecto de
genialidade que se despontava entre as pesquisas antropológicas de seu tempo. Se
deu, simplesmente, porque Boas se apoiava em vasto material etnográfico.
Mesmo a sociologia, uma disciplina que divide muito com a antropologia, forman-
do parte das ciências sociais, não tinha tradição em fazer pesquisas empíricas no sentido
em que estamos falando aqui, do etnográfico, um contato prolongado e continuado com
grupos humanos, a partir de técnicas de observação e registro. Assim, o próprio Durkheim,
de quem já falamos, ao falar sobre as religiões “primitivas” australianas, baseava-se nos
relatos de etnólogos que por si só, já se baseavam em relatos de outras pessoas.
37
será a tradição da antropologia social britânica. A sua pesquisa era colaborativa. Afinal,
lembremos, Boas tinha muitas preocupações e estabelecia contato com linguistas, ar-
queólogos, antropólogos físicos e daí por diante. Portanto, o trabalho de campo acon-
tecia por um longo período, intercalado por intervalos, junto a uma equipe. De qualquer
maneira, isso não significa que Boas não tenha marcado a pesquisa etnográfica, afinal,
deixou um legado diverso para uma comunidade diversa pesquisadora que continuou o
seu trabalho. Em relação ao período da pesquisa de campo, que com uma circularidade
de uma equipe, nos esclarecem Eriksen e Nielsen: “Essa estratégia metodológica talvez
fosse perfeitamente natural, visto que, nos Estados Unidos, ‘o campo’ estava próximo, e
não no outro lado do globo, como na Inglaterra” (ERIKSEN; NIELSEN, 2007, p. 53).
Leiamos, portanto, como Franz Boas encerra uns de seus relatos etnográficos,
resultado de pesquisa junto aos Inuíte da Ilha de Baffin, no Canadá ártico:
38
Em Argonautas do Pacífico Ocidental, publicado originalmente em 1922,
Malinowski estudou o Kula, um “fato social total”, para utilizar o termo do sociólogo
francês Marcel Mauss, que se inspirou na etnografia de Malinowski para cunhá-lo. O
Kula é uma instituição que coloca em relação os mais variados aspectos da vida social
de grupos das Ilhas Trobriand, ilha da Papua Nova-Guiné. O início da obra é dedicado
a fundamentar os aspectos de sua metodologia e como o moderno etnógrafo deve se
portar. Em um desses trechos, estabelece:
39
2) Em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, pela primeira vez, o social deixa de ser
anedótico, curiosidade exótica, descrição moralizante ou coleção exaustiva erudita. Pois,
para alcançar o homem em todas as suas dimensões, é preciso dedicar-se à observação
de fatos sociais aparentemente minúsculos e insignificantes, cuja significação só pode
ser encontrada nas suas posições respectivas no interior de uma totalidade mais ampla.
Assim, as canoas trobriandesas [...] são descritas em relação ao grupo que as fabrica e
utiliza, ao ritual mágico que as consagra, às regulamentações que definem sua posse, etc.
Algumas transportando de ilha em ilha colares de conchas vermelhas, outras, pulseiras
de conchas brancas, efetuando em sentidos contrários percursos invariáveis, passando
necessariamente de novo por seu local de origem, Malinowski mostra que estamos frente
a um processo de troca generalizado, irredutível à dimensão econômica apenas, pois nos
permite encontrar os significados políticos, mágicos, religiosos, estéticos do grupo inteiro.
3) Finalmente, uma das grandes qualidades de Malinowski é sua faculdade de restituição
da existência desses homens e dessas mulheres que puderam ser conhecidos apenas
através de uma relação e de uma experiência pessoais. Mesmo quando estuda
instituições, não são nunca vistas como abstrações reguladoras da vida de atores
anônimos. Seja em Os Argonautas ou Os Jardins de Coral [outra obra do autor], ele faz
reviver para nós esse povo trobriandês que não poderemos nunca mais confundir com
outras populações “selvagens”. O homem nunca desaparece em proveito do sistema.
Ora, essa exigência de conduzir um projeto científico sem renunciar à sensibilidade
artística chama-se etnologia. Malinowski ensinou a muitos entre nós não apenas a
olhar, mas a escrever, restituindo às cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor.
Fonte: adaptado de Laplantine (2002)
40
da nossa vida em sociedade. Portanto, a etnografia pretende articular sensibilidade com
pesquisa empírica. Essa articulação, posteriormente, vai ser utilizada como categoria
de acusação para com a antropologia. De qualquer maneira, essa articulação persiste
enquanto umas das potências da antropologia, sendo explicitada no uso da observação
participante e da etnografia por áreas vizinhas da antropologia.
3 A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
A observação participante, desde Malinowski, passa a ser umas das caracterís-
ticas centrais da prática antropológica. Não é incomum que ela seja tratada como, pra-
ticamente, sinônimo de etnografia. Entretanto, muitas imprecisões e confusões fizeram
com que a observação participante e a própria etnografia fosse tratada como apenas
um método. Veremos que não é esse o caso. Apesar do sucesso que a etnografia e
a observação participante fizeram na antropologia, espalhando-se para várias outras
disciplinas, tais como a própria sociologia e a educação, precisamos refletir sobre es-
ses dois processos de pesquisa que, na maioria das vezes, convergem, e são a própria
possiblidade epistemológica da antropologia estabelecer relações entre perspectivas
distintas e, portanto, produzir conhecimento.
Vamos nos ater a esse trecho de Malinowski. Ele é demonstrativo do que vem a
ser a observação participante. Entretanto, precisamos comentar, o quanto antes, o que
Malinowski supõe ali pelo meio dessa citação. Podemos notar que o antropólogo polonês
faz um comentário nada científico, tentando associar a sua origem étnica, enquanto
eslavo, com o sucesso que teve em interagir com seus interlocutores “selvagens”. Isso
está centrado em preconceitos e estereótipos do início do século XX. Por ser um europeu
mais “espontaneamente” selvagem, Malinowski estaria mais próximo dos próprios
41
“selvagens”. Assim, a chance de obter sucesso com a observação participante, seria
muito maior. Devemos reforçar que Malinowski era um antropólogo polonês tentando
ser aceito na comunidade britânica de antropologia. A um só passo ele se nivela com “os
selvagens”, nesse sentido, mas também reforça a sua qualidade enquanto etnógrafo.
Apesar de ser um jogo de autoafirmação, tem muito mais nesse trecho.
Por exemplo, o chamado para que a pessoa etnógrafa deixe de lado seus equipa-
mentos de registro da vida empírica – caderno, lápis, máquina fotográfica – para, de fato,
participar da vida social do grupo que está tentando estudar, descreve muito bem o que é
a observação participante. Reparemos que a citação aos equipamentos de registro não é
simplória. Malinowski admite que deixar de lado esses objetos de “captação” é essencial,
mas junto a esse método da observação participante, há justamente o intenso registro da
vida nativa. Por isso que o campo deve durar por bastante tempo. O suficiente para que a
pessoa etnógrafa identifique os comportamentos e fatos rotineiros, e os diferencie do que
é considerado como extraordinário. Enfim, o chamado para deixar de lado os equipamen-
tos que formam a objetividade da pesquisa, para “participar”, é o coração da antropologia
porque admite que se aprende muito mais em convívio e participação. Não se trata de
“virar nativo”, como já foi discutido em outros momentos, mas de participar dessa vida, de
alguma maneira. Como o próprio Malinowski diz, cada um respeitando a sua limitação. É
nesse aspecto também, como já mencionamos anteriormente, que se articulam a sensi-
bilidade com o anseio de objetividade da pesquisa científica.
Como já sabemos, a observação participante acaba por ser utilizada como uma
espécie de técnica de pesquisa, fruto da etnografia, lida como um método. Conforme
veremos no último tópico dessa unidade, discordamos dessa abordagem, pois como já
deixamos evidente, a etnografia e a observação participante são as próprias condições
para que a antropologia estabeleça relação com as pessoas e seus coletivos, portanto,
gere conhecimento. Há, evidentemente, muitas limitações em todo esse processo, mas
não devemos esquecer de sua riqueza e contribuição.
42
uso, se desgastou e desviou a antropologia para o que é mais importante, justamente
aqueles aspectos que já mencionamos, a convivência e a participação, a construção de
um conhecimento compartilhado. Não aprofundaremos a crítica de Ingold à etnografia,
mas ressaltaremos alguns aspectos.
43
Comandados não pelo dado, mas pelo que está a caminho de sê-lo,
deve-se estar preparado para esperar [wait] (MASSCHELEIN, 2010b,
p. 46). Com efeito, esperar pelas [wait upon] coisas é precisamente o
que se quer dizer por atender [attend] a elas (INGOLD, 2016, p. 408).
É nesse sentido que Ingold associa a antropologia com a educação, pois para
ele, conforme pudemos acompanhar, a observação participante, prática fundamental
da antropologia, insere quem pesquisa em uma rede de transformação e deslocamento
de suas perspectivas, assim como insere esse sujeito em uma trama de convivência
e participação, onde nunca é possível prever os próximos passos e dias. Esperar e
atender, nesse sentido, é corresponder com o mundo das pessoas com quem estamos
relacionados. Independente da proposta de Ingold de substituir a etnografia pela
observação participante, ou pelo termo educação, devemos reforçar o seguinte: a
observação participante é uma maneira de se engajar com as outras pessoas, e nesse
engajamento, tudo que é importante para essas pessoas, passa a fazer parte dessa
relação: ou seja, seus ambientes, preocupações e todos os outros seres mais-que-
humanos e não-humanos que participam dessa vida.
44
nografia e da teoria não se manifesta apenas no exercício monográ-
fico. Ela está presente no dia a dia acadêmico, em sala de aula, nas
trocas entre professor e aluno, nos debates com colegas e pares, e,
especialmente, na transformação em “fatos etnográficos” de eventos
dos quais participamos ou que observamos. Desta perspectiva, etno-
grafia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma
maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em
ação (PEIRANO, 2008, p. 3).
45
muito sentido largar a noção de etnografia agora, justamente quando cada vez mais
outras áreas das ciências humanas e das ciências sociais aplicadas tentam utilizar o
arcabouço ferramental (e nem tanto conceitual) da antropologia.
46
LEITURA
COMPLEMENTAR
ETNOGRAFIA, OU A TEORIA VIVIDA
Mariza Peirano
No Brasil, não foi diferente. Em 1961, ao fazer uma conferência na reunião da ABA,
Florestan Fernandes estimulou os antropólogos ali reunidos a abandonar a perspectiva pura-
mente empírica, etnográfica, e a ousar mais, almejando uma perspectiva teórica, etnológica.
47
de Yale. O exercício era formulado da perspectiva de que “etnografia é o estudo profun-
do de um grupo cultural particular”, enquanto a “etnologia é o estudo comparativo dos
dados etnográficos, da sociedade e da cultura”. Nele, pedia-se que o aluno desenvol-
vesse uma “apresentação etnológica” a partir de dados coletados. Embora recente, esse
exercício parece, hoje, fora de moda.
Mais na moda, no entanto, foi a preocupação com a etnografia no final dos anos
80/início dos 90. Naquele contexto “pós-moderno”, a etnografia passou a ser abertamente
criticada, agora pelos próprios antropólogos, tendo como motivação central a característica
“politicamente incorreta” do que ficou conhecido como “a autoridade etnográfica”. Nesse
movimento incluíam-se Paul Rabinow, que falava de um estágio “além da etnografia”; Mar-
tyn Hammersley, que se perguntava o que estava errado com a etnografia; Nicholas Tho-
mas, que se posicionava abertamente “contra a etnografia”. (Foi nesse contexto que achei
por bem tomar uma posição “a favor da etnografia”, em um texto-ficção – já que, escrito em
português, os autores não saberiam que estavam sendo questionados no Brasil).
48
Há, nisto tudo, porém, um dado curioso. Tanto na revista Ethnography,
quanto na prática dos cientistas sociais africanos, a etnografia é compreendida como,
basicamente, um método. Desta forma, mesmo quando se pleiteia a necessidade de
um quadro teórico, a etnografia, sendo, basicamente, uma metodologia, está acessível
e aberta a sociólogos, historiadores, geógrafos, filósofos. Em alguns casos, inclusive,
fazer etnografia é a forma de um autor se diferenciar e se distinguir nas respectivas
disciplinas ou áreas de conhecimento.
É nesse contexto amplo que gostaria de sugerir que a (boa) etnografia de ins-
piração antropológica não é apenas uma metodologia e/ou uma prática de pesquisa,
mas a própria teoria vivida. Uma referência teórica não apenas informa a pesquisa, mas
é o par inseparável da etnografia. É o diálogo íntimo entre ambas, teoria e etnografia,
que cria as condições indispensáveis para a renovação e sofisticação da disciplina - a
“eterna juventude” de que falou Weber. No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de ma-
neira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas e nos nossos dados. Mais:
a união da etnografia e da teoria não se manifesta apenas no exercício monográfico.
Ela está presente no dia a dia acadêmico, em sala de aula, nas trocas entre professor e
aluno, nos debates com colegas e pares, e, especialmente, na transformação em “fatos
etnográficos” de eventos dos quais participamos ou que observamos. Desta perspecti-
va, etnografia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de
interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação. Os comentários que se
seguem têm como objetivo examinar algumas implicações deste ponto de vista.
Este é um ponto central da síntese que Evans-Pritchard fez após viver várias
experiências de campo – nem todos somos, ou podemos ser, bons etnógrafos. A
personalidade do investigador e sua experiência pessoal não podem ser eliminadas
do trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas, plantadas nos fatos
etnográficos que são selecionados e interpretados. Como relembrou o escritor sul-
africano J. M. Coetzee, por meio da personagem Elizabeth Costello, a simpatia está do
lado do “eu”, e não do “outro”, e se revela plenamente na capacidade de se colocar no
lugar desse “outro”. Nesse encontro singular entre o etnógrafo e o grupo observado, a
teoria surge como um terceiro elemento [um Terceiro peirceano], em princípio como
uma convenção flexível que permite o diálogo produtivo.
49
Ao falar de etnografia, portanto, indiretamente nos reportamos às monografias
clássicas da antropologia. O fazer etnográfico está na base das monografias, que
continuam sendo o objetivo ideal (ou utópico) do investigador. Construídas como um
retrato sincrônico de um momento específico, elas tornaram-se documentos de um
horizonte histórico para as culturas e sociedades sob análise e, igualmente, documentos
de um horizonte histórico para as sociedades dos etnógrafos que as produziram. Mas
elas não apenas refletem um passado. Esta seria uma apreciação apenas histórica. De
um ponto de vista teórico, elas nos indicam mais:
50
“errados”. O conjunto de seus diários de campo era, sim, o que de mais importante
havia produzido. E antecipava, inclusive, que o trabalho de Florestan Fernandes
sobre os Tupinambá é que permaneceria vivo, enquanto as teses sobre a “revolução
burguesa” possivelmente envelheceriam. (Isto foi dito em 1978.) Nesse contexto,
também, fica mais claro o interesse recente por Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss,
um livro que, por muito tempo, foi relegado às margens da antropologia.
Talvez não tenha sido por acaso que foi tão comum encontrarmos títulos
espirituosos ou provocativos na primeira metade do século XX, tanto nos livros quanto
nos artigos etnográficos. (P. ex., os títulos das monografias de Malinowski; os artigos
“Virgin birth”, de Leach; Twins, birds and vegetables, de Firth; Some muddles in the
models, de Schneider.) Não creio muito na versão que os vê apenas como expediente
para uma maior vendagem. De uma perspectiva etnográfica, eles talvez denunciem
um aspecto mais profundo. Talvez eles denunciem o empenho do etnógrafo em
trazer a experiência da pesquisa para seus leitores. Hoje, passada a moda da ênfase
exagerada, a persistência do caráter poético dos títulos, tanto quanto a arquitetura
das monografias, talvez indique aquele pequeno detalhe do grande empreendimento
existencial e intelectual da pesquisa de campo, apontando para a complexidade da
tarefa que é comunicar uma nova descoberta e reavaliar a teoria acumulada, fazendo
a teoria espiralar e alcançar novos patamares, desvendar novas questões, trazer novas
dúvidas, ampliar o leque de possibilidades interpretativas e, assim, continuar a tradição
da “eterna juventude” das ciências sociais.
51
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
52
AUTOATIVIDADE
1 “A revolução que ocorrerá da nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é
considerável: ela põe fim a repartição das tarefas, até então habitualmente divididas
entre o observador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subal-
terno de provedor de informações, e o pesquisador erudito, que, tendo permanecido
na metrópole, recebe, analisa e interpreta – atividade nobre! – essas informações. O
pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete
de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não
mais como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o rece-
bem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a
viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a
sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de
condições de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o viajante do sé-
culo XVIII e até o missionário ou o administrador do século XIX, residindo geralmente
fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e
informadores: este último termo merece ser repetido”. Com base no texto, acerca do
que mais se aproxima da “revolução” que Laplantine comenta e que aconteceu na
antropologia, assinale a alternativa CORRETA:
53
simplesmente que o pesquisador não pode deixar de ser social, e que o fruto do seu
trabalho está composto precisamente das suas interações em campo. E daí que seu
trabalho não consiste em eludir as distorções provocadas pela sua presença, mas
precisamente focá-las e anotá-las. O pesquisador de campo deve tirar partido das
diferenças entre o campo e o laboratório, e não imaginar um laboratório no campo.
A isso se reduz, em síntese, a observação participante”. Considerando a observação
participante, analise as sentenças a seguir:
54
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – F – F – V.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) F–V–F-V
d) ( ) F – F – V – V.
55
REFERÊNCIAS
ASAD, T. Introdução a “Anthropology and the Colonial Encounter”. Ilha: revista de
antropologia, v. 19, n. 2, Florianópolis, 2017.
56
LUCIANO (BANIWA), G. J. Língua, educação e interculturalidade na perspectiva
indígena. Revista Educação Pública, Cuiabá, v. 26, n. 62/61, 2017.
MARTIN, L. "Eskimo Words for Snow": A Case Study in the Genesis and Decay of an
Anthropological Example. American Anthropologist, v. 88, n. 2, 1986.
SAPIR, E. Linguística como Ciência (ensaios). Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1969.
57
58
UNIDADE 2 —
ANTROPOLOGIAS DAS
RELIGIÕES
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
59
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
Acesse o
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60
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
ANTROPOLOGIAS DAS RELIGIÕES
1 INTRODUÇÃO
Vamos tentar pensar sobre religião? Será que nos consideramos uma pessoa
religiosa? Caso sim, talvez percebamos o quanto os fenômenos religiosos estão presentes
não só na nossa vida, como na de muitas outras pessoas. Caso nos consideremos uma
pessoa sem religião, ateia ou agnóstica, é possível que compreendamos que a religião
está presente em diversas instâncias e esferas que nos rodeiam. O catolicismo, durante
boa parte da história colonial e moderna do Brasil, foi e ainda é a religião dominante,
embora tenha perdido espaço, paulatinamente, para as religiões evangélicas. Assim,
os códigos católicos, símbolos e condutas foram naturalizados. Podemos encontrar
cruzes, santos, santas e outros símbolos católicos em tribunais, câmeras legislativas e
outros espaços que seriam considerados, em nossa sociedade, como laicos (GIUMBELLI,
2013). Por outro lado, independentemente da sua condição religiosa ou não, já deve
ter percebido o quanto o carnaval (CUNHA, 1986), por exemplo, mas também outros
elementos da cultura popular brasileira, mobilizam símbolos e conteúdos das religiões
de matriz africana, atingindo certo sucesso com isso. Por outro lado, se essas religiões
são “toleradas” (NOGUEIRA, 2020) no carnaval, não é muito difícil encontrar exemplos
de intolerância e racismo religioso, voltados para essas religiões. Basta abrir os portais
de notícias ou ficar atento ao nosso redor.
61
Figura 1 – Tirinha de Carlos Ruas
FONTE: Tirinha de Carlos Ruas. Disponível em: <https://bit.ly/3SnSnCC>. Acesso em: 3 jul. 2022.
62
tema permaneça no singular ou no plural. No entanto, essa questão
já aponta para um debate bastante sério que diz respeito ao objeto
próprio. Afinal, qual o conceito de religião que se está utilizando?
(GUERRIERO, 2013, p. 243).
Mas voltemos para a citação que abriu nosso subtópico. Silas Guerriero
apresenta um debate bastante repetido em nossa área. De fato, para muitas pessoas
que se dedicam ao estudo da religião na antropologia, não é possível falar em uma
Antropologia da Religião, no singular (CAMURÇA, 2008). Nesta unidade, a preocupação
está justamente no coração da antropologia, ou seja, na cautela para que não exista
uma projeção única de religião dominante, para todas as experiências possíveis que, de
alguma maneira, percebemos e reconhecemos como religiosa. Contudo, nas disciplinas
oferecidas nos cursos de antropologia, nas linhas de pesquisa e nos núcleos de pesquisa,
opta-se por falar em Antropologia da Religião. Conforme pontuam tanto Guerriero
(2013) quanto Camurça (2008), não é por denominar de Antropologia da Religião que
a disciplina considera que exista uma religião única. Se esse fosse o fato, não haveria
nem a possibilidade de uma antropologia. Entretanto, é importante compreender que
a disciplina ficou reconhecida assim, na unidade, justamente por herdar um esforço
unificador da disciplina. Isso levou para algumas definições essencialistas e universais
da religião, a quais nos referiremos no próximo subtópico.
63
IMPORTANTE
Com a dinâmica das nossas relações sociais, tendemos a naturalizar as-
pectos de nossas vidas que são construídos social e culturalmente. Um
fenômeno próximo ao naturalizar, é o de essencializar, que é tornar uma
realidade complexa em uma realidade simples, ao considerar que realida-
des humanas podem ser explicadas a partir de essências imutáveis. Esse
processo acontece, por exemplo, quando nos deparamos com uma rea-
lidade cultural distinta, e nela reconhecemos um elemento dessa cultura
como a sua característica central. Dessa maneira, há uma essencialização
de uma cultura, o que impossibilita a sua compreensão, pois o essencialis-
mo, ao reduzir a complexidade da realidade cultural, a deforma.
Aqui, fica impossível não ter compreendido que a diversidade é umas das princi-
pais chaves de leitura da antropologia. Com o subcampo da religião, acontece o mesmo.
Com o esforço de tentar compreender, conceber e até mesmo dominar essa diversidade,
encontrada também em uma variedade de práticas e concepções cosmológicas do mun-
do e do universo, a antropologia, e disciplinas vizinhas, tentaram definir a religião de di-
versas maneiras. Cabe ressaltar que: “Longe de demonstrar fraqueza teórica, essa diver-
sidade evidencia uma riqueza e um eterno questionamento que fez com que essa ciência
avançasse e renovasse a si mesma na busca de uma melhor compreensão da religião e do
ser humano em geral” (GUERRIERO, 2013, p. 248). Assim, antes de avançarmos para algu-
mas dessas definições, é preciso termos esse entendimento. O interesse da Antropologia
da Religião, o que justificaria que fosse considerada como Antropologia das Religiões, ou
até mesmo Antropologias das Religiões, é justamente alargar a nossa compreensão sobre
a humanidade e a religião, em suas pluralidades, conflitos, mediações e possibilidades.
IMPORTANTE
O conceito de gênero descreve as diferenças atribuídas entre homens
e mulheres justificadas como naturais, como na verdade, fazendo parte
de processos e construções sociais, históricas e culturais. Assim, as
desigualdades encontradas entre esses gêneros, concretizam-se por uma
percepção natural dessas diferenças e assimetrias de poder. Portanto,
as ciências sociais, junto com intelectuais feministas e de outros sujeitos
coletivos que se denominam para além das definições de gênero, têm
demonstrado os aspectos sociais e históricos das categorias de gênero.
65
Assim, voltemos para os pontos de Camurça. Podemos centralizar o seu
argumento, fixando a ideia de que o termo ciências das religiões já aparecia nos
principais autores da antropologia e sociologia na transição do século XIX para o
XX: Émile Durkheim, Marcel Mauss, Max Weber, e que, portanto, não havia nenhuma
objeção desses autores a considerarem a religião em uma perspectiva plural, embora
acreditassem ser possível considerar as religiões das escrituras como mais complexas
do que as religiões tradicionais e étnicas de boa parte do mundo.
IMPORTANTE
Você deve ter reparado que já comentamos bastante sobre Émile
Durkheim (1858-1917). Agora, vimos o nome de Marcel Mauss (1872-
1950), que era o seu sobrinho. Durkheim, Mauss, mas também Henri
Hubert (1872-1927), Arnold van Gennep (1873-1957), Robert Hertz
(1881-1915), dentre outras pessoas, fazem parte do que denominamos
de “Escola sociológica francesa”, ou “Escola francesa de sociologia”. Caso
você tenha interesse em se aprofundar, cabe consultar os artigos de
Renata Menezes (2009), disponível em: https://bit.ly/3dL6uD3 e o artigo
de Juliana de Farias Pessoa Guerra e Paulo Henrique Martins (2013),
disponível em: https://bit.ly/3CiDhsm.
66
Concluindo estas minhas ideias, gostaria de dizer que a tentativa de
me opor a uma perspectiva essencialista de religião – que comportaria
uma ciência própria – não significa que defenda um reducionismo
socioantropológico stricto sensu da dimensão religiosa a uma
fundamentação sociocultural, em que ela exerça apenas funções
de integração ou compensação de relações sociais. Como observou
Magalhães, em ensaio sobre os paragimas em ciências da religião,
a experiência religiosa aponta para “algo mais, que transcende o
aspecto da função social, [das] relações sociais” que é o seu “lado
fantástico, fantasioso e poético, [...] dimensão da auto-satisfação,
do envolvimento com o lúdico, [...] subjetividade do encontro com o
sagrado (CAMURÇA, 2008, p. 34).
IMPORTANTE
O conceito e representação social e/ou coletiva é central para a sociologia
de Durkheim e a escola sociológica francesa. Está próximo do fato social:
um fenômeno exterior ao indivíduo, coercitivo e coletivo. Entretanto, é
mais flexível, pois está na ordem das interações sociais e simbólicas. Desta
maneira, as representações coletivas fazem parte da maneira como um
grupo social produz conhecimento e ação social. Assim, “Socialmente, as
representações coletivas sintetizam o que os homens pensam sobre si
mesmos e sobre a realidade que os cerca” (OLIVEIRA, 2012, p. 71).
67
3.1 MAGIA
Em Esboço de uma teoria geral da magia (1902), Marcel Mauss e Henri Hubert
ensaiam uma definição sociológica da magia, considerando-a como um fenômeno que
se relaciona, mas que é distinto da religião. Posteriormente, veremos que a distinção
entre magia e religião, apesar de ser evocada por algumas pessoas religiosas, na prática,
não se sustenta de uma maneira definitiva. Mas voltemos para o “esboço”. Magia,
portanto, seria percebida e estudada a partir de uma outra noção, que é importante
para os estudos socioantropológicos da religião, o rito:
68
é temerário supor que, em boa parte, tudo o que as noções de força,
de causa, de fim, de substância ainda possuem de não positivo, de
místico e de poético, deve-se aos velhos hábitos mentais de que
nasceu a magia, e dos quais o espírito humano é lento em desfazer-
se (MAUSS, 2003, p. 177).
Há uma afirmação que, embora parta também do senso comum, serve para
pensarmos um sobre a magia na contemporaneidade. Diz-se que a magia é a religião
do outro. Isto significa que esse argumento é mobilizado quando não se reconhece
a prática religiosa de um coletivo ou grupo social, enquanto real, ou seja, tendo valor
equivalente ao religioso do observador (GUERRIERO, 2014).
3. 2 ANIMISMO
O animismo foi pensado por muitas autorias. Entretanto, foi em Edward Tylor
(1832-1917), que já conhecemos, que o termo ganhou destaque como uma tentativa
de definição mínima de religião, pois: “Quando Tylor escreveu sobre o culto dos mortos
como sendo central para o desenvolvimento da religião, o significado é claro porque
ele propõe uma definição mínima de religião: a crença em seres espirituais, ou seja, o
animismo” (GOODY, 2012, p. 21).
Foi em seu livro Primitive Culture (Cultura Primitiva), publicado em 1871, que
Edward Tylor apresentou a sua elaboração sobre o animismo. Para Tylor (1871), o animismo
faz parte de uma definição mínima de religião. Dessa forma, poderíamos compreender, a
69
partir dela, como se formaram as outras ideias religiosas. Nessa concepção, animismo é
a crença de que certos seres e objetos do mundo são dotados de alma. Pedras, vegetais,
rios e outros elementos da natureza, por exemplo, são pensados como animados, no sen-
tido de possuírem alma. Vale ressaltar que Tylor acreditava que essas crenças foram for-
madas a partir do sonho. Por conta do mundo onírico, a humanidade forjava seus espíritos
e deuses. Assim, Tylor apresenta a sua definição mínima de religião: “a crença em seres
espirituais”, e esses seres devem ser compreendidos como “sujeitos conscientes, dotados
de poderes superiores aos que possui o comum dos homens; essa qualificação convém,
portanto, às almas dos mortos, aos gênios, aos demônios, tanta quanta às divindades
propriamente ditas” (TYLOR APUD DURKHEIM, 1996, p. 11-12).
70
IMPORTANTE
Cosmologia é um conceito central para a antropologia. No caso da antropologia
produzida no Brasil, foi desenvolvida no campo da etnologia indígena
e está relacionada, intimamente, com outro importante conceito para
as ciências sociais, a noção de pessoa. Isso significa que há muitas variações
sociais sobre a concepção de pessoal, do que a define, como é construída e
quais moralidades e práticas as atravessa e constitui. A cosmologia situa a
pessoa, o corpo e a sociedade em uma dimensão cósmica e ampla. Por essa
razão, é muito próxima da religiosidade. No artigo “A construção da pessoa
nas sociedades indígenas brasileiras”, Anthony Seeger, Roberto da Matta e
Viveiros de Castro (1979) apresentam as articulações sobre a noção de pessoa
e a cosmologia. Embora na antropologia contemporânea consideramos que
há cosmologias nos universos da ciência e do próprio capitalismo, a noção
de cosmologia geralmente é empreendida para descrever sociedades que
elaboram concepções morais, econômicas e políticas diferentes da ciência
moderna e ocidental (SILVA, 2020).
Portanto, conforme Descola aponta, o animismo deixa de ser uma definição mí-
nima de religião, que passa pela definição de Tylor, passa a ser, como muito o foi, uma
categoria de acusação, como no caso dos missionários em contato com sociedades tra-
dicionais do Sudão (os Dinka, por exemplo), ou o governo da capital daquele país (Car-
tum), por ser de maioria mulçumana, acusa de animista essa e outras sociedades tradi-
cionais. Descola, ainda assim, defende o uso como categoria antropológica situada no
contexto dos Achuar, sem ter a pretensão de espalhá-la para todo o mundo. Tampouco,
a ideia é dizer que determinado povo é animista ou não, mas mostrar como o animismo
pode ser pensado com uma antropologia da natureza, em determinados contextos.
3.3 TOTEMISMO
O totemismo, assim como o animismo, foi uma tentativa de compreender
práticas e concepções tão diversas, que fez com que a antropologia no século XX e em
diante, passasse a duvidar se fosse, de fato possível, reunir todos esses acontecimentos
em um único rótulo e conceito de totemismo.
Émile Durkheim, por exemplo, cunhou uma definição de religião a partir do estudo
bibliográfico de materiais etnográficos sobre as sociedades tradicionais australianas,
que ele definia como totémicas, isto é, a religião desses grupos, segundo Durkheim,
partia do totemismo enquanto um sistema de classificação. Portanto, em seu As formas
elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, publicado em 1912,
Durkheim apostou que o totemismo seria a forma de religião “elementar”, isto é, a mais
simples e que derivou o próprio animismo. Ao analisar o totemismo, Durkheim acreditava
que podia extrair uma definição fundamental e universal de religião. O sistema do totem,
como o próprio Durkheim reconhece, tem esse nome apenas em sociedades indígenas
na América do Norte. Mas com o desenrolar da história das religiões comparadas,
71
acreditou-se encontrar elementos similares em diversas outras sociedades, inclusive
nas australianas, o que justificaria a classificação destas enquanto totêmicas. Esse
tipo de transformação de uma categoria êmica de determinadas sociedades, em uma
categoria antropológica de pretensões mais amplas, foi comum na antropologia, com as
noções de mana e tabu, por exemplo. Mas Durkheim, portanto:
Isso não significa que a teoria de totem de Durkheim seja aceita até hoje.
Veremos, adiante, que o totemismo passou por diversas configurações e contestações
desde Lévi-Strauss, que publicou a obra “O totemismo hoje” em 1962. Apesar de não
descartar a importância da obra de Durkheim sobre a religião e reconhecer a sua
contribuição na contemporaneidade, Renato Ortiz aponta o problema de Durkheim ter
enraizado a sua análise no totemismo como uma realidade encontrável nas sociedades
australianas, assim como influenciadora de outras formas de religião:
72
a sua definição dentro de uma noção, necessariamente totêmica, mas também pela
consistência de alguns dos elementos que Durkheim apresenta, a sua definição de
sociologia, portanto, continua inspirando os estudos socioantropológicos. Então, como
Durkheim define a religião no seu livro? Para o sociólogo francês: “uma religião é um
sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas,
proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada
igreja, todos aqueles que a elas aderem” (DURKHEIM, 1996, p. 32)
Sobre isso, é importante termos bem definido que igreja, aqui, não é a mesma
do senso comum cristão. Igreja, para Durkheim, é uma instituição que agrega, reúne e
evidentemente, institucionaliza a religião. Uns dos aspectos mais importantes de seu
conceito está na noção de comunidade moral, que faz com que uma série de elementos
e práticas sejam consideradas como proibidas, inseridas na dinâmica do tabu. Por isso
a separação entre sagrado e profano.
73
indígena também se interessou pelas religiões indígenas, evidentemente, assim como
buscou analisar como essas religiões se tensionaram a partir do contato colonial, da
catequese e das mediações (MONTERO, 2006). Essa predominância dos estudos an-
tropológicos da religião enfatizando as religiões minoritárias, está relacionada com a
própria história da antropologia no Brasil: “Duas tradições inauguraram a antropologia
brasileira: a dos estudos das populações indígenas e a das populações afro-brasileiras”
(SILVA, 2008, p. 285).
Foi na década de 1960 que Geertz “estabelece uma definição de religião tida
como clássica atualmente. Religião para ele é um sistema de símbolos, e a possibilidade
de estudo se dá por uma via Hermenêutica e Semiótica” (GUERRIERO, p. 2013, 249).
Isso não significa que Geertz tenha sido o único a enfatizar a questão do símbolo, do
signo, do significado e do simbolismo como entradas para interpretar o religioso. Essas
chaves analíticas e conceituais foram utilizadas desde sempre, apesar de Geertz ter
empreendido um esforço de uma antropologia interpretativa, que por consequência, é
um desdobramento da antropologia cultural norte-americana. Assim, acompanharemos
com uma maior precisão o que é uma religião para Geertz:
74
(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade
que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas
(GEERTZ, 2008, p. 67).
INDICA
A antropologia interpretativa, hermenêutica ou simbólica, é uma corrente do pensamento
antropológico que enfatiza a raiz humanística das ciências sociais, reforçando que a
realidade social e cultural deve ser entendida sob uma perspectiva compreensiva.
Essa perspectiva tem base no sociólogo alemão Max Weber, que propunha que
a sociologia fosse uma ciência compreensiva. Assim, a ciência social interpreta
e compreende, no lugar de explicar. O antropólogo norte-americano Clifford
Geertz (1926-2006) reelaborou essa perspectiva e foi uns dos principais
responsáveis pela consolidação de uma antropologia interpretativa. Para ele,
a antropologia é uma atividade empírica, mas sobretudo interpretativa, pois
a ação humana é sempre simbólica. Umas das principais obras de Geertz,
de apresentação ao seu paradigma hermenêutico, é A interpretação das
culturas, publicado pela primeira vez em 1973.
75
O livro é dividido em 4 partes, e conforme já acompanhamos, relaciona pesqui-
sas feitas em Salvador e Porto Alegre, no Nordeste e no Sul brasileiro, respectivamente.
Por limitação de espaço, comentarei as duas primeiras partes desse livro.
76
“O decréscimo da população católica não significa necessariamente um óbvio
enfraquecimento de seu poder institucional. Mas, como (re)definir o lugar e o peso do
catolicismo nas identidades, expedientes e recursos da vida cotidiana e, também, no
acesso e efetivação das políticas públicas?” (NOVAES, 2015, p. 226-227) Essas perguntas
ainda estão em processo de resposta, mas nos ajuda a compreender como não há
respostas fáceis na área da antropologia da religião. Como encontramos no trecho a
seguir, de Giumbelli e Tavares, uma reflexão sobre a complexidade do que é religião e
como ela está relacionada com outras esferas da nossa vida:
Assim, a religião, apesar de ter sua institucionalização nos seus lugares de culto,
ela transcende esses espaços e percorre a sociedade. O religioso pode se transformar
em “cultural”, em “social”, por um lado, e por outro, quando somos obrigados a definir
os “limites da religião”, não encontramos uma substância, em separado, da vida social,
mas muitas concepções e práticas associada a ela. Por isso, as pesquisas empíricas,
etnográficas e comparativas se fazem pertinentes e importantes, afinal, a antropologia
contemporânea não trabalha com definições essencialistas nem universalistas, e a
elaboração conceitual é constantemente re-feita, na medida em que pesquisas e
diálogos se ampliam.
77
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• A religião, por ter sido sempre umas das preocupações da antropologia social e
cultural, e por consequência, essa ciência ter se dedicado ao estudo de sociedades
não-ocidentais, passou por diversas definições, conceitualizações, a partir do
contato com as religiões ditas primitivas, tradicionais e minoritárias, assim como
noções que antes estavam fora dos estudos sobre religião, tais como magia,
animismo e totemismo, passaram a fazer parte da história das religiões comparada.
Assim, a ampliação e redefinição do que seria religião, entra em pauta constante na
Antropologia da Religião, sem almejar alcançar uma resposta definitiva.
78
AUTOATIVIDADE
1 A Antropologia da Religião recebeu influência da “escola sociológica francesa”, que
possuía como o seu maior representante, o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917),
autor de As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico (1912), reforçando
a tradição de se estudar a religião a partir das religiões “ditas” primitivas, por serem
consideradas mais “simples” e por não possuírem ligação histórica com nenhuma
outra religião, principalmente as chamadas religiões da revelação e da escritura.
Sobre a obra do Durkheim e a referida escola assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Émile Durkheim acreditava que as religiões totêmicas eram mais simples do que
as religiões monoteístas, por isso seria impossível compreender as religiões mais
elevadas a partir do conhecimento das religiões mais simples.
b) ( ) A escola sociológica francesa era formada exclusivamente por franceses. Um
de seus fundamentos era a defesa da civilização francesa como o ápice da
humanidade.
c) ( ) O livro As formas elementares da vida religiosa, apesar de ter mais de cem anos,
continua relevante nas ciências sociais da religião contemporâneas.
d) ( ) Junto com Marcel Mauss, Émile Durkheim defendia que o totemismo, apesar
de apresentar elementos religiosos, não poderia ser compreendido como uma
religião, por ser demasiado simples.
79
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
80
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
RELIGIÕES MAJORITÁRIAS, RELIGIÕES
MINORITÁRIAS
1 INTRODUÇÃO
A Antropologia da Religião, portanto, teve papel fundamental na análise das
religiões não-ocidentais, o que mostra o papel da disciplina, que a um só tempo, tem uma
perspectiva crítica em relação ao ocidente, na medida em que pretende compreendê-lo.
Para compreendermos esse processo de entendimento das religiões no mundo, vamos
acompanhar pelo que ficou conhecido como religião majoritária e religião minoritária.
81
O antropólogo Evans-Pritchard, em “Theories of Primitive Religion” (1965),
traduzido no Brasil como “Antropologia social da religião” (1978), considera que há, pelo
menos, duas razões para compreendermos, estudarmos e levarmos a sério as religiões
ditas primitivas. Devemos ter em mente que a audição de Evans-Pritchard é europeia,
portanto, para valorizar as religiões dos outros, ele traçará relações entre aquelas
e o pensamento ocidental. A primeira justificativa, portanto, é a de que os principais
filósofos da moralidade, da política, da filosofia social, “desde Hobbes, Locke e Rousseau
até Herbert Spencer, Durkheim e Bergson julgaram os dados da vida primitiva como
sendo dotados de grande significação para a compreensão da vida social em geral”
(EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 11-12). Esse argumento é irrefutável, pelo menos em seu
aspecto empírico: de fato, essas intelectualidades pensaram as religiões ditas primitivas
e marcaram, em cada particularidade de pensamento, a razão ocidental.
A segunda justificativa merece uma citação mais longa, pois define muito do
que foi o estudo comparativo das religiões dentro do campo da antropologia, sobretudo
em seu período moderno. Aqui, moderno no sentido que definimos na Unidade I, ou
seja, de quando a antropologia passou a praticar a observação participante, ou seja, a
pesquisa empírica como a maneira fundamental como a disciplina constrói seus dados,
e elencou as sociedades ditas primitivas, ou pelo menos, não ocidentais, como seu foco
de pesquisa imediato. Portanto, acompanhemos como Evans-Pritchard termina de
justificar essa importância:
82
etnocentrismo, conforme já acompanhamos, acreditava-se que as religiões monoteístas
eram as mais elevadas, já as animistas (por não possuírem nenhuma noção de deuses,
mas sim de seres sagrados), e as politeístas, seriam fases menos elevadas de religião.
83
Gostaria mesmo de dizer mais: que para compreender plenamente a
natureza da religião revelada, temos que compreender a natureza das
chamadas religiões naturais, uma vez que nada poderia ser revelado
acerca de qualquer coisa, se o homem não estivesse já dotado de uma
ideia acerca da coisa mesma. Ou então, talvez devamos dizer, a dico-
tomia entre religião natural e religião revelada é falsa e suscita obscuri-
dade, pois há um sentido dentro do qual se pode dizer que todas as re-
ligiões são religiões de revelação: o mundo que as circunda e sua razão
em toda parte revelaram aos homens algo divino e algo de sua própria
natureza e seu próprio destino (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 13).
84
estudioso da religião, que reconhece na religião uma instituição social como qualquer
outro, a atacaria? Esse ponto é delicado e polêmico. Portanto, voltemos para um argu-
mento complementar, apresentado no já citado “Antropologia social da religião”:
INDICA
Umas das melhores maneiras de estudar com o interesse acadêmico, é
cercar-se de bons textos e argumentos. Esse caminho pode ser traçado
com a leitura de revistas especializadas e acadêmicas. A Revista Senso pode
ser um guia para uma compreensão da religião no mundo contemporâneo,
que aposta na diversidade religiosa e cultural, assim como na liberdade
e no combate à intolerância religiosa. Conheça como a revista se define:
“A Senso é uma revista bimestral voltada à temática do senso religioso
contemporâneo sob o olhar de múltiplas áreas do saber, tendo como
referencia os Estudos Religião”.
85
3 AS DICOTOMIAS DO RELIGIOSO
Para entender, diferenciar e relacionar as múltiplas religiões, a antropologia criou
algumas dicotomias, que a nível didático e classificatório, nos auxiliam na compreensão,
mas que acabam por não se sustentar de uma maneira definitiva, nem tampouco empí-
rica. Acabamos de conhecer como Evans-Pritchard descarta a dicotomia entre religião
natural e religião da revelação. Mas percorreremos mais algumas dessas dicotomias.
86
que possuem registros para além do escrito, enfatizando os aspectos da tradição e dos
textos orais, a religião comparada e a história das religiões enfatizaram a interpretação
de textos escritos, ou seja, as religiões das escrituras.
87
está centrada em outra, no oral versus o escrito. Assim, André Mary reflete, essa maneira
dicotômica de pensar as religiões, reforçou uma divisão do trabalho científico, tornando
“impensável a ideia de um trabalho etnológico sobre os textos” (MARY, 2015, p. 24).
Mesmo no do estudo das chamadas ‘grandes religiões’”, haveria algo de irreconciliável,
pois como aponta Mary, por um lado estaria os teólogos e os estudos teológicos, que
ao estudar os textos sagrados, chegariam na verdadeira noção e essência da religião, e
de outro, o estudo com os porta-vozes “das tradições orais e da experiência ritual das
comunidades rurais” (MARY, 2015, p. 24) que professam essa mesma religião.
88
O antropólogo Joel Robbins considera que a antropologia do cristianismo passa
a se firmar e a existir, como a conhecemos hoje, de fato, a partir da década de 1990.
Ou seja, é um subcampo da disciplina bastante recente. Ele apresenta como umas das
principais preocupações desse desdobramento da antropologia da religião, o campo da
ideologia linguagem. Como essa disciplina se desenvolveu, sobretudo em estudos junto
a comunidades tradicionais não-ocidentais que passaram pela influência missionária
pentecostal, sendo esse o caso do próprio Joel Robbins, que estudou os processos
de conversão na Papua Nova Guiné (ROBBINS, 2011). Joel Robbins, assim justifica a
sua opção pelo pentecostalismo: “Outra razão, talvez mais preponderante, é que o fluxo
pentecostal é o ramo do cristianismo que cresce mais rapidamente hoje, com mais de
600 milhões de seguidores em todo o mundo” (ROBBINS, 2011, p. 16). Esse é também
uns dos motivos que fizeram com que os estudos antropológicos junto a comunidades
pentecostais e neopentecostais cresceram no Brasil, por conta do seu crescimento e
maior presença no espaço e poder público.
89
Portanto, se estamos no campo da laicidade em uma sociedade democrática,
construindo uma Antropologia da Religião, um de nossos interesses é o pluralismo
religioso enquanto valor. Quando essa pauta entra em voga, um outro tema surge
em sua importância, que é o da intolerância religiosa. Para falarmos sobre esse tema,
abordaremos o caso brasileiro e a realidade histórica das religiões de matriz africana
no Brasil, mas também comentaremos sobre outras minorias religiosas e como a
antropologia tem adotado um compromisso de diálogo com esses grupos.
Faço, agora, um exercício que você pode emular em casa, embora, certamente,
os resultados variem um pouco, o seu cerne permanecerá. Abro o meu buscador de
pesquisa online e digito o termo, no modo navegação anônima, “Intolerância religiosa”.
De imediato, surgem algumas notícias de pessoas e grupos relatando terem sofrido
intolerância religiosa. Há, também, uma matéria vinculada ao Jornal da Universidade
de São Paulo (USP), com o título de “Falta de conhecimento sobre outras culturas
agrava intolerância religiosa no Brasil”, publicado em 14 de junho por Léia Coelho (2021).
Leiamos o início do texto:
Uns dos espaços que teria que modificar esse cenário de intolerância, gerada,
em parte, pelo desconhecimento e a ignorância, seria a própria escola, que conta com
professores formados em ciências da religião, aptos, portanto, a lecionarem a disciplina
de ensino religioso, assim como contaria com o apoio das demais disciplinas para dar
conta dos conteúdos previstos na Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e
da cultura africana, afro-brasileira e indígena em todos os níveis de ensino. Além disso,
como mostra a reportagem citada, a intolerância religiosa é crime. Para ampliar o seu
espaço de interlocução, Léia Coelho escuta Sidnei Nogueira, professor e doutor pela
USP, também coordenador do Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-
Brasileiras e autor do livro “Intolerância religiosa” (NOGUEIRA, 2020).
90
2003 (Lei 10.639). No entanto, continua o professor, essas culturas
ainda têm pouco espaço nas salas de aula, locais que poderiam
ajudar a combater a intolerância religiosa, formando e ensinando
sobre a cultura de outros povos (COELHO, 2021, n. p).
IMPORTANTE
A Lei nº 10.639, instituída em 2003, alterou a lei das diretrizes e bases da educação nacional,
incluindo no currículo oficial da rede de ensino a história e cultura africana e afro-brasileira.
Já a lei 11. 645 incluiu a obrigatoriedade do ensino com temática indígena:
91
O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africa-
nos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultu-
ra negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas
áreas social, econômica e política, pertinentes à história do
Brasil (BRASIL, 2008).
92
É importante destacar que os dados de 2018 evidenciam que, das 506
denúncias, 30% (152) das vítimas são adeptos de umbanda, candomblé
ou religiões de matriz africana; 1,97% (10), católicas; e 11,6 (59), evan-
gélicas e protestantes. Do total, 51% (261) não especifica qual a religião.
Os dados revelam que a religião hegemônica, a católica, quase não
é perseguida e, na sequência, os evangélicos e protestantes sofrem
cerca de 10% das perseguições. No entanto, os adeptos de umbanda,
candomblé e religiões afins são alvo de 30% das perseguições. Ao se
considerar a invisibilidade, a marginalização, a estigmatização e a ver-
gonha desses grupos em assumirem ser praticantes dessas tradições
religiosas de origem africana, pode-se elevar o número de denúncias
para praticamente 80% com o somatório das denúncias com e sem
informação da religião (NOGUEIRA, 2020, p. 76).
93
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
94
AUTOATIVIDADE
1 A Antropologia, quando estuda a religião, depara-se com uma série de afirmações
e comportamento que são interpretados pelos fiéis enquanto sagrados e verdades
imutáveis. Além disso, junto com a sustentação dessa postura, pode haver o
reconhecimento de seres e/ou deuses que reforçam essa concepção ontológica de
mundo. Sobre o estudo antropológico da religião, assinale a alternativa CORRETA:
95
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
96
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
RITUAIS, MITOS E SÍMBOLOS
1 INTRODUÇÃO
Não há religião sem comunicação. Rituais, mitos e símbolos são elementos que
se conectam e, em grande medida, expressam e constituem a religião. Evidentemente,
ritos, mitos e símbolos não são exclusivos da religião, mas encontram no religioso um
lócus de imaginação e possibilidade expressiva. Para acompanharmos essa constatação,
percorreremos o universo do ritual e do rito como comunicação, que apresenta suas
características formais, suas dinâmicas de variação e repetição, assim como o seu
aspecto de transmissão de valores e conhecimentos em “Ritual como expressão”.
97
até Desalma (2020), uma série audiovisual escrita pela autora e escritora de literatura Ana
Paula Maia. Desalma conta a história de uma cidade fictícia, no sul do Brasil, onde há um
ritual pagã e ucraniano chamado de Ivana Kupala.
Com esses exemplos, parece que o ritual é algo de fato, distante, não cotidiano.
Mas e quando comemoramos nosso aniversário? Quando defendemos o nosso trabalho
de conclusão de curso? Quando antes de dormir, ou em outra ocasião que pode
demandar, pedimos bênção aos nossos pais e parentes mais próximos, mesmo quando
não somos religiosos? Esses são apenas alguns dos exemplos possíveis. Mas não,
rituais não são comportamentos irracionais, nem tampouco estão situados apenas em
culturas ditas exóticas e distantes de nós. Os rituais sempre comunicam algo e fazem
parte da nossa vida cotidiana. Autoras como Mariza Peirano (2003), defendem que o
ritual não é exclusivo da religião e faz parte, por exemplo, da vida política: “a natureza
dos eventos rituais não está em questão: eles podem ser profanos, religiosos, festivos,
formais, informais, simples ou elaborados” (PEIRANO, 2003, n.p).
98
Com essa definição, temos algumas características fundamentais para compre-
endermos o ritual como conceito antropológico. Todo ritual comunica e expressa. Por
isso, é um sistema de comunicação simbólico. O simbólico, aqui, de uma maneira didá-
tica, implica que há uma série de símbolos que são operacionalizados e fazem sentido
dentro de algum grupo específico, mas que também pode se espalhar e comunicar para
além desse grupo. Por exemplo, o crucifixo. Dificilmente nos depararíamos com esse
símbolo sem compreender e evocar, mesmo que de uma maneira caótica e complexa,
diversos significados referentes a cultura cristã ocidental, ocidentalizada e a sua própria
presença na sociedade brasileira.
Outro ponto muito importante dessa definição, é que o ritual se expressa em uma
sequência padronizada, em diversos níveis de rigidez e flexibilidade, juntando palavras
e atos (gestos), ou seja, mobilizando uma linguagem que vai para além da verbal. Ou
seja, para ficarmos em exemplos religiosos: uma missa, uma gira de umbanda e de
candomblé, um culto evangélico, há modos de fazer e de realizar esses eventos rituais,
que variam de acordo com as diversas circunstâncias, mas que ainda permanecem
de alguma maneira “redundantes”, ou seja, repetitivos, para que possam ainda ser
considerados como rituais.
99
de uma abordagem que nos auxilia a examinar a fonte desse poder
nas características próprias da ação social plena, que inclui tanto o
falar quanto o agir (PEIRANO, 2003, n. p).
Importante notar que a definição de Goody elenca uma dicotomia entre racional e
não racional. Ou racional e irracional. O objetivo de Mariza Peirano foi, justamente, extrapo-
lar essa dicotomia e mostrar que não precisamos estudar o ritual sob essa lógica. Mesmo
100
com a noção de Goody, que se comunica com outras definições da antropologia da religião,
compreende-se que comportamentos aparentemente irracionais, estão inseridos em um
sistema simbólico possível de ser interpretado, não somente pelo nativo, mas principalmen-
te, sob essa ótica da antropologia, pelo próprio antropólogo e antropóloga. Assim, o prag-
matismo da ação ritual e mágica, se foi interpretado por Goody como um padrão de com-
portamento irracional e sem uma ligação entre fim e meios, Mariza Peirano, em diálogo com
Tambiah, mostrou que a magia é uma linguagem, e que a ação ritual, conforme já vimos,
tem efeitos sociais, que muitas vezes extrapola o seu ambiente religioso e ritual e perpassa
outras esferas do social. Antes de encerrar, acompanhemos mais uma definição de rito:
Essa definição da cientista social Maria Vilhena enfatiza os ritos religiosos, encontran-
do neles, o seu poder de transformação social, de movimentar a estrutura social. O rito, por-
tanto, pode ser tanto para agregar uma comunidade, na medida em que a separa de um todo.
Reforçar laços sociais, mas também, pode rompê-lo e daí por diante. Diante da complexidade
de definições sobre o que é o ritual, podemos compreender que os rituais são linguagens e
sistemas de ação imprescindíveis para a compreensão da religião. E, conforme acompanha-
mos até aqui, não se limitam ao religioso, mas possuem um forte vínculo com esse universo.
INDICA
Figura 2 – Capa da revista Religião e Sociedade vol 13
101
A revista Religião e Sociedade é um periódico acadêmico, fundada em
1977 pelo Centro de Estudos da Religião (CER) e pelo Instituto de Estudos
da Religião (ISER). Em atividade até hoje, a revista reúne uma ampla
variedade de artigos científicos sobre a religião, sob a ótica das ciências
sociais. Recentemente, todos os números foram digitalizados, podendo
ser acessados no site do periódico.
As respostas, certamente, são muitas. Mas posso apostar que ela deve apresen-
tar pelo menos dois sentidos, um positivo e outro negativo. Esse último, é o mito como
algo falso, uma mentira, algo que não se encontra na realidade. Nesse sentido, mito tem
como sinônimo, lenda. Próximo desse sentindo, tem a palavra mito como uma informa-
ção errônea que é tida como verdade por sua repetição e que acaba passando, desper-
cebidamente, por nós. Por isso, continuamos a perpetuá-la. Já o significado positivo, é
utilizado para descrever alguém que se credita ter construído e executado feitos glorio-
sos, tornando essa pessoa, praticamente, em um ente não-humano, um super-humano.
Ambos os sentidos pouco têm a nos dizer sobre o que é o mito na antropologia.
102
Ritos e mitos marcariam, portanto, uma antinomia inerente à condição
humana: a do viver e a do pensar. Influenciado pela linguística
dominante na época (derivada de Ferdinand de Saussure e de Roman
Jakobson), para Lévi-Strauss o mito tinha uma afinidade profunda
com a estrutura da língua, transformando-se no pensar pleno — e,
assim, superior ao rito, relacionado à prática. Curiosamente, até os
contendores de Lévi-Strauss na época contribuíram para a analogia
mitos = representações. Victor Turner, por exemplo, ao se definir
claramente contra a linguística, estabeleceu que ritos eram bons
para a resolução de contendas e explicitação das ambiguidades
da estrutura social. Turner se colocava, portanto, do lado oposto a
Lévi-Strauss, fazendo dos ritos o caminho virtuoso para se acessar
a estrutura — não da mente, mas da sociedade. Em outras palavras,
o viver e o pensar definiam-se como incompatíveis na prática e na
teoria: Turner se interessava pelo primeiro, Lévi-Strauss afirmava a
importância do segundo (PEIRANO, 2003, n. p).
103
que fundamentam as religiões de matriz africana, indígena e diversas outras. A chave
para interpretar esses mitos, portanto, não é da falseabilidade da realidade, mas da po-
tência criativa e de como essas narrativas funcionam e nos revelam aspectos profundos
das sociedades. Lévi-Strauss, por exemplo, em seu empreendimento monumental, nos
livros Mitológicas, interpretou as mitologias dos povos indígenas das Américas. Para Lé-
vi-Strauss, a chave interpretativa do mito não só é o do falso e do irracional, como, para
ele, o mito tem a sua própria ciência e se encontra, de alguma maneira, com a ciência.
104
1962), para reiterar a necessidade de uma colaboração entre cien-
tistas, etnólogos e poetas. Isso porque, para Bohr, assim como para
Lévi-Strauss, não há especulação intelectual sem imaginação, sem
representação antecipada e algo confusa de uma ordem de realidade
que não se pode conhecer por via imediata (SZTUMAN, 2009, p. 59).
Talvez, por já termos uma base, ou seja, por termos acompanhado até aqui como a
antropologia constrói o seu conhecimento, já não nos pareça tão absurda essa cooperação
imaginativa e experimental entre cientistas, etnólogos e poetas. As pessoas, em todos os
lugares e tempos, ao se expressarem, elaboraram o rito e o mito a partir de suas linguagens
próprias, expressas em uma comunicação simbólica. Não é exagero dizer que a antropolo-
gia, de fato, aprende com essa criatividade envolvida nessas expressões, assim como pre-
cisa exercitar a sua imaginação para fazer jus a essa criatividade (WAGNER, 2010).
105
As escrituras das religiões mundiais e as narrativas - literaturas das religiões
minoritárias, são mitológicas e nos possibilitam uma maior compreensão das sociedades
relacionadas a elas, assim como amplia a nossa possibilidade interpretativa sobre a
humanidade, a respeito do que significa ser gente.
107
coroa as funções e o alcance da monarquia, e a aliança a importância
do matrimônio. Esses objetos são susceptíveis de exercer os efeitos
afetivos mais poderosos porque acompanham, continuamente, a
vida do grupo, acumulando em si todos os acontecimentos afetivos
mais poderosos porque acompanham, continuamente, a vida do
grupo, acumulando em si todos os acontecimentos afetivos. Ao lado
dos efeitos afetivos podem partir dessas objetivações poderosas,
influências sobre a vontade e as ideias do grupo» VIERKANDT [...]
(BALDUS e WILLEMS, 1939, p. 206).
108
Nesse aspecto, podemos articular o estudo da linguagem simbólica com as
dimensões históricas e discursivas de produção do poder e da verdade religiosa. Ao
mesmo tempo que essa ênfase nos permite rastrear como os símbolos, os ritos, os
mitos, enfim, a religião, são constituídos em sociedade, assim como constituem o que
consideramos como a sociedade e o próprio mundo.
INDICA
Aprendemos que não existe apenas uma antropologia da religião porque estamos falando,
sempre, de religiões. Sabemos que o Brasil é um país considerado plural em suas religiões,
embora existam grupos hegemônicos e as religiões cristãs sejam dominantes. Para uma
melhor compreensão dessa multiplicidade religiosa e seus conflitos, vale assistir ao
documentário-reportagem, da TV Brasil, Intolerância e fé no Brasil, que assim, abre a sua
chamada: “No Brasil, apesar da miscigenação e da diversidade de credos, a intolerância
religiosa também deixa suas marcas. Em 2014, igrejas católicas de diferentes cidades do
interior de Minas Gerais foram atacadas. No Rio, terreiros de candomblé tornaram-se alvos
de vândalos. O da Mãe de Santo Conceição d'Lissá, em Duque de Caxias, já sofreu oito
invasões. O que estaria por trás do aumento das notificações de casos de intolerância
registrados por órgãos como a Secretaria de Direitos Humanos, em Brasília?
109
LEITURA
COMPLEMENTAR
A teoria do simbólico de Durkheim e Lévi-Strauss: desdobramentos
contemporâneos no estudo das religiões
Paula Montero
Lévi‑Strauss e a escola sociológica francesa
111
podem ser consideradas indícios de um pensamento ou emoção aberrantes ou equi-
vocados, o autor ainda postula que elas constituem um modo particular de expressar o
real e a vida social. “[…] [D]ebaixo do símbolo, é preciso saber atingir a re‑ alidade que ele
figura e que lhe dá sua significação verdadeira […]”16, observa Durkheim ao afirmar que
as religiões primitivas não podem ser consideradas nem “erro” nem “mentira”, porque
estão “fundadas na natureza das coisas”. Temos aqui a distinção entre estrutura social e
estrutura mental mencionada por Lévi‑Strauss. Está bastante claro nesse trecho que o
autor entende a representação como imagens men‑ tais transfiguradas do mundo real.
Mas qual seria a relação que essas imagens mantêm com a materialidade das coisas?
Durkheim afirma que “[…] quando abordamos o estudo das religiões primitivas, é com a
certeza de que elas pertencem ao real e o exprimem”. Há aqui um modo bastante atu-
al de formular as relações entre ideia e mundo. Para Durkheim as representações são
compostas de símbolos. O conceito durkheimiano de símbolo postula que as represen-
tações religiosas expressam o mundo das coisas sociais. Desse modo, o símbolo nele
mesmo não é o objeto da reflexão. Ele precisa ser decifrado em termos daquilo que es-
conde. A significação, portanto, diz respeito a buscar os referentes das ideias que estão
em outra dimensão, fora do mundo simbólico: uma ideia significa quando encontra sua
contrapartida social. É nesse sentido que Durkheim considera o totem “antes de tudo
simbólico”. “O deus do clã [no caso dos Arunta], o princípio do totem, nada mais é do que
o próprio clã, hipostasiado e representado na imagi‑ nação sob a forma perceptível de
espécies vegetais ou animais vistas como totens”. O engano aqui — indicado na escolha
da palavra de origem grega hipóstase — diz respeito ao fato de o homem primitivo tomar
como real o que apenas existe na abstração. Duas implicações interessantes podem ser
retiradas dessa colocação: a primeira se refere a esse entendimento da representação
como engano; a segunda, à representação como figuração.
112
crê que os ‘caimãs são cangurus’, e que os cangurus são Wootaroo”20. Ao enfatizar o verbo
ser, em itálico no texto, Durkheim explica que a etiqueta da fratria tem para o nativo um
sentido: o de expressar que há um laço que liga coisas e animais às pessoas, tornando‑os
parte do mesmo grupo. O homem simboliza essas crenças em imagens e lhes rende culto.
Cabe, pois, ao observador analisar as ideias atrás das crenças e dos símbolos. Explicar o
totemismo, argumenta Durkheim, é mostrar a razão por que as coisas são reunidas sob
um totem, e por que, uma vez reunidas, essas figurações são consideradas sagradas e
passam a ser objeto de culto. A explicação durkheimiana se desenvolve, portanto, em
dois planos distintos: o do pensamento lógico e o dos sentimentos de coletividade,
exacerbados pelas virtudes dinamogênicas de toda espécie de religião.
As ideias religiosas, tais como o totem, estão ocultadas atrás das crenças reli-
giosas e têm que ver com o exercício prático da classificação dos homens e das coisas
em classes (por exemplo, fratrias e clãs). Observando essa realidade empírica da orga-
nização totêmica que apareceria reiteradamente no material etnográfico compulsado
por Durkheim, ele pôde perceber, por detrás desse exercício classificatório prático, a
presença de um pensamento ainda mais abstrato: as categorias de pensamento, agora
não mais ideias religiosas, mas instrumentos universais de conhecimento, como gênero
e classe. Se as ideias religiosas são um modo particular de como as categorias se apre-
sentam, o passo seguinte é perguntar quais os princípios que ordenam os homens e as
coisas nessas categorias, ou, na formulação de Durkheim, quais seriam as razões que
inspiram essa forma de classificar. “É muito verossímil que as duas fratrias constituí-
ram os marcos iniciais e fundamentais dessas classificações, que consequentemente
começaram a ser dicotômicas”. Durkheim sugere que categorias como gênero impõem
um modo dicotômico de classificação. As sociedades separam coisas e pessoas em
classes nitidamente antagônicas, tomando como referência as propriedades mais con-
trastantes das coisas. Assim, ao contrário das ideias religiosas que são imagens vagas
flutuantes, as categorias têm uma forma definida, constituindo um “símbolo lógico com
o qual pensamos com precisão as semelhanças e outras [coisas] análogas”.
113
E, para Durkheim, existe religião, ou sentimento religioso, no momento em que
se distingue sagrado e profano. Explicar o sistema religioso totêmico é, pois, demonstrar
as razões que movem os homens a designar essas imagens como sagradas. A resposta
durkheimiana a essa questão é bem conhecida. O culto não se dirige aos emblemas,
mas à “força anônima e impessoal”, esse princípio comum, neles presente, mas que não
se confunde com nenhum deles.
114
Quando Lévi‑Strauss se coloca o problema do simbolismo animal, conclui que
os fenômenos totêmicos traduzem uma cesura entre a ordem da natureza e a da cultura.
A ideia do quadro de permutações entre diferenças e semelhanças relativas seja aos
grupos sociais, seja às espécies animais ou vegetais resulta de uma hipótese sobre um
duplo movimento do intelecto: por um lado, os nativos, em sua observação do mundo
natural, comparam as coisas e percebem suas homologias e diferenças; por outro,
tomando como modelo a natureza, se aproveitam dessas distâncias e aproximações
lógicas para descreverem a si próprios. Trata‑se, pois, como em Durkheim, de colocar em
operação uma lógica do contínuo/descontínuo inerente aos sistemas de classificação.
No entanto, se para Durkheim os homens tomam como modelo a sociedade, para
Lévi‑Strauss os ho‑ mens tomam como modelo a natureza. Ao privilegiar o tema das
classificações primitivas, Lévi‑Strauss privilegia a vertente durkheimiana de uma teoria
do conhecimento em detrimento de uma teoria da significação na qual o símbolo está
no lugar da coisa representada. Na abordagem estruturalista, o pensamento primitivo
articula proposições cosmológicas por meio de categorias sensíveis. A significação se
produz, então, como se sabe, na relação dos elementos nas frases das narrativas míticas
ou na tradução daquilo que está expresso em uma linguagem para outra situada em
nível diferente, mas isomórfico. Para Lévi‑Strauss falar em significação é, pois, falar em
regras de tradução. Como Durkheim, Lévi‑Strauss procurou um sentido sob a aparente
desordem das representações míticas. Mas, diferentemente de Durkheim, não fundou
essa ordem na “natureza das coisas”, e sim nas regras que organizam a linguagem.
Para Lévi‑Strauss o signo não é um símbolo, ele não “representa” algo que está fora
dele. Revelar a significação de um signo não é encontrar o seu sentido verdadeiro, mas
compreender a relação que estabelece com outros signos. Há de se notar aqui, portanto,
uma diferença significativa no uso da ideia de representação pelos dois autores. Em
ambos os casos o conceito de representação remete a uma concepção em dois níveis: o
das imagens mentais tomadas como símbolos e signos e o daquilo a que elas remetem.
Enquanto para Durkheim as imagens remetem às forças sociais de coesão (a ordem dos
fatos), para Lévi‑Strauss elas remetem à regras de tradução (a ordem da significação).
No entanto, se aproximarmos os dois autores a partir de suas teorias do conhecimento,
perceberemos certa similitude quanto ao entendimento das representações como uma
porta de acesso aos modos universais do funcionamento da mente humana.
115
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• O mito não é sinônimo de falsidade, nem tampouco de lenda. Mitos são narrativas
que conduzem e revelam elementos fundamentais da sociedade. Existem mitos em
todas as sociedades e culturas, assim como em todas as religiões. As escrituras,
são mitos, as histórias contadas a partir da tradição oral, sobre divindades também
o são. O mito é uma linguagem específica e que possui suas próprias regras. Além
disso, é o espaço da imaginação e da criatividade.
• Os ritos, os mitos, enfim, as religiões, são universos simbólicos. Não existe ritual sem
símbolos, nem mitos que não os apresente. O simbólico, sobretudo nas religiões, é
uns elementos mais importantes para a antropologia, que se interessa sobretudo
como os símbolos são criados, transmitidos e transformados e nos revelam, em
alguma medida, sobre o grupo, a sociedade e a religião que o mobiliza.
116
AUTOATIVIDADE
1 Embora em nosso senso comum, a palavra ritual evoque comportamentos irracionais
de culturas exóticas e distantes, e até mesmo, seja pensado como apenas um
elemento de histórias de terror, a nossa vida em sociedade é toda atravessada por
rituais e não exista ninguém nesse mundo que não tenha participado de alguma
atividade ritual. Sobre o rito como linguagem, assinale a alternativa CORRETA:
117
( ) A antropologia se interessa em saber como os símbolos se constituem, se fixam e
se transmitem ao longo da história.
( ) A partir da interpretação dos símbolos, a antropologia pode alcançar o significado
último de cada símbolo que constitui uma religião.
( ) Os símbolos são históricos e não estão confinados em situações religiosas.
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
5 Ritos e mitos fazem parte do campo do simbólico. Assim como não existe uma
cultura sem símbolos, o mesmo acontece com uma religião. Comente como estão
interlaçados os ritos, os mitos e os símbolos.
118
REFERÊNCIAS
ASAD, T. A construção da religião como uma categoria antropológica. Cadernos De
Campo, v. 19 n. 19, 263-284, São Paulo, 2010.
119
GUERRIERO, S. Antropologia da religião. In: PASSOS, J. D.; USARSKI, F. (Org.).
Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, p. 243-256.
120
OLIVEIRA, M. O conceito de representações coletivas: uma trajetória da divisão do
trabalho às formas elementares. Debates do NER, v. 13, n. 22, p. 67-94, 2012.
SZTUTMAN, R. A ciência dos mitos de Lévi-Strauss. Ciência Hoje, v. 44, 2009, p. 58-59.
TONIOL, R. O que faz a espiritualidade? Religião & Sociedade, v. 37, n. 2, p. 144-175, 2017.
TORRES-LONDONO, F. História das Religiões. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank.
(org.). Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, p. 217-229.
121
VILHENA, M. A. Ritos religiosos. In: João Décio Passos; Frank Usarski. (org.).
Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 513-524.
122
UNIDADE 3 —
TEMAS CONTEMPORÂNEOS
NA ANTROPOLOGIA DA
RELIGIÃO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.
TÓPICO 2 – ESPIRITUALIDADES
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
123
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!
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124
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
LAICIDADE E SECULARISMO
1 INTRODUÇÃO
A laicidade e o secularismo são processos dinâmicos que acontecem em
sociedades que pretendem, de alguma maneira, regular o religioso, por um lado, ou
acreditam que a religião, paulatinamente, perderá a sua força no espaço público, cada
vez mais destinada ao mundo da subjetividade e privado.
125
Todos os grandes clássicos da sociologia se confrontaram com a
análise do religioso e essa análise ocupa frequentemente um lugar não
pequeno no conjunto de sua obra. É que o nascimento da sociologia
como disciplina científica encontrou-se fortemente ligado a uma
interrogação sobre o futuro do religioso nas sociedades modernas. É
pelo fato de os autores clássicos da sociologia terem sido sociólogos
da modernidade (econômica, política, social, cultural) – por terem
sido habitados pela consciência histórica de um sentimento de
ruptura com o passado – que eles não podiam, ao pesquisar para
descobrir a emergência da sociedade moderna, deixar de encontrar o
fenômeno religioso. E é justamente por sua problemática – retomada,
transformada, desviada – continuar a inspirar as pesquisas atuais
que nos pareceu importante voltar aos clássicos. Tal retorno é
mais imperativo ainda pelo fato de que o abalo de alguns grandes
paradigmas interpretativos – como o da secularização – arrisca-
se, ano na sociologia das religiões como em outros domínios da
sociologia, a reduzir a investigação sociológica para formas mais
ou menos sofisticadas de positivismo dos dados, esquecendo as
grandes interrogações epistemológicas e a profundidade história dos
grandes clássicos da sociologia. Voltar à análise sociológica do fato
religioso, realizada por esses autores, é também, inevitavelmente,
medir a pertinência de sua abordagem para analisar as mutações
religiosas contemporâneas (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 10).
IMPORTANTE
Para a compreensão dos clássicos da sociologia, precisamos nos ater ao positivismo. Como
corrente filosófica, o positivismo compreendia que a humanidade passaria por etapas de
evolução, até chegar em seu auge, manifesta pela ciência e pela modernidade. Por coincidência,
esse auge já representava parte da sociedade ocidental que formulou o positivismo. Na
sociologia, a principal influência positivista vem do próprio fundador desse sistema filosófico,
Auguste Comte (1798-1857), que impactou diretamente na sociologia, especialmente em
Durkheim. O postulado dessa filosofia considera que o conhecimento humano passa por três
etapas. A primeira, é a teológica, quando a humanidade explicou todos os fenômenos partindo
de pressupostos mágico-religiosos. Essa etapa também era considerada de uma maneira
unilinear e evolucionista, dividida em três fases: fetichista (crença em poderes mágicos),
politeísta (crença em múltiplos deuses) e monoteísta (crença em um ser absoluto e criador).
A segunda etapa é o momento de transição da humana, a etapa metafísica. Nesse momento,
a humanidade desloca as causas e explicações do mundo e do universo para a
natureza, tirando a centralidade da explicação divina. Finalmente, a segunda etapa
seria a que, segundo Comte, estaríamos atualmente, denominada de “o estado
positivo”, onde predominam a racionalidade e a observação e interpretação dos
fatos. A ironia disso tudo é que Comte chegou a propor uma nova religião,
que substituiria o cristianismo (religião dominante em sua sociedade). Nessa
religião, o Deus seria a própria humanidade.
Fonte: Porto Editora – positivismo (filosofia) na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Edi-
tora. Disponível em: https://bit.ly/3fs2gAC. Acesso em: 1 ago. 2022.
126
Essa influência positivista, portanto, fez com que as teorias clássicas da
sociologia sobre a religião reproduzissem, mesmo que de maneira irrefletida, esse
esquema evolutivo. Entretanto, cada teoria clássica, de cada autor, apresenta questões
centrais para compreendermos a religião no mundo moderno, assim como nos auxilia
e nos situa sobre a religião em nossa realidade. Acompanharemos como o sociólogo
Ricardo Mariano, em seu artigo “Sociologia da Religião e seu foco na secularização”,
resume as ideias de Marx, Durkheim e Weber.
127
A relação entre protestantismo, modernidade e economia (capitalista) é melhor
explorada por Max Weber. Em Weber, temos a possibilidade de um fenômeno cultural, a
religião, interferir em fenômenos materiais e econômicos, pois a sua tese é mostrar como
a subjetividade protestante, de alguma maneira, configurou o capitalismo (WEBER, 2004).
Por outro lado, Weber também descreve como fenômenos relacionados a organização
social, de estrutura sociológica, tais como a burocratização e a racionalização da socie-
dade moderna, estabelecem o processo do desencantamento de mundo, que na socio-
logia weberiana descreve a diminuição de explicações e subjetividades mágico-religiosas
e místicas no mundo, sendo a religião, nesse sentido, considerada “ascética” e racional.
Sabemos que o protestantismo faz parte de uma ruptura com a igreja católica
e de um processo histórico que reconfigurou as relações entre religião e sociedade
no mundo euroamericano. Nesse aspecto, sobre os fundadores da sociologia e suas
preocupações com o fenômeno religioso, podemos dizer que:
128
Assim, a secularização é um conceito que não apresenta um consenso, sendo
muitas vezes uma expectativa, enquanto processo, das próprias ciências sociais, fruto
da ligação dessas ciências com o positivismo de Comte. Sobre a teoria da secularização
e a maneira como o sociólogo José Casanova a estudou:
129
pluralismo religioso diluiu a noção de religião no geral: “ao dissolvê-la como dever e
herança tradicional e tornar a pertença religiosa uma questão de livre escolha individual,
ao multiplicar as estruturas de plausibilidade religiosas concorrentes e ao promover a
relativização, a privatização e a subjetivação do conteúdo dos discursos religiosos”
(MARIANO, 2013, p. 236).
IMPORTANTE
O desencantamento de mundo é uma noção desenvolvida pelo sociólogo
Max Weber, que descreve o processo de racionalização e burocratização da
vida em sociedade, diminuindo a influência da religião na maneira como nos
organizamos e vivemos em sociedade, sobretudo nos seus aspectos públicos.
Contudo, muitos cientistas sociais têm demonstrado, conforme nos mostram
Giddens e Sutton (2017), que longe de desparecer, a religião, no século XX,
ressurge com o fundamentalismo religioso, as novas espiritualidades e
novos movimentos religiosos, com a criação de grupos religiosos, às vezes
considerados como “seitas” e também com a articulação da religião com as
tecnologias modernas, como o uso religioso de canais de rádio, televisão,
e atualmente, a internet e as redes sociais, assim, considera-se que há um
processo, também, de “reencantamento” de mundo.
130
multidimensional, apresentando diversas camadas, mas também limites e contradições.
Por outro lado, apesar da laicidade ser apontada por alguns como uma noção com maior
precisão, teria menos acuidade analítica (TANAKA, 2020).
131
cada uma das três proposições independentemente uma da outra”
(Ibidem, p. 211). A partir da avaliação de cada uma delas, Casanova
afirma que a secularização como diferenciação funcional constitui a
proposição mais plausível da tese da secularização. Mas, ressalta que
a diferenciação funcional entre esferas seculares e religiosas permite
a emergência de movimentos e de grupos de pressão religiosos – ou
de “religiões públicas” – para disputar espaço, poder e recursos com
grupos seculares na esfera pública. A seu ver, portanto, a diferenciação
funcional não implica necessariamente o confinamento das religiões
à esfera privada, o que impõe limites tanto à secularização societária
quanto à do Estado e da política (MARIANO, 2011, p. 244).
IMPORTANTE
Para compreendermos as bases do secularismo, precisamos aprender sobre
a separação entre o sagrado e o profano. Uns dos elementos fundamentais
da religião, para Durkheim, é a caracterização do sagrado e a sua separação
do profano. Silas Guerriero, no artigo “A atualidade da teoria da religião
de Durkheim e sua aplicabilidade no estudo das novas espiritualidades”
(GUERRIERO, 2012). Assim, para Durkheim, o sagrado está no mundo do
extraordinário, escapa da vida cotidiana e corriqueira. Enquanto o profano
estaria mais ligado a esse mundo prático. Dessa maneira: “O ponto central
de sua análise recai no fato de que o sagrado está associado à sociedade.
As crenças religiosas são representações coletivas e os principais rituais
religiosos são praticados coletivamente” (GUERRIERO, 2012, p. 13).
132
A respeito do secularismo, ainda, Mariano (2011) nos relembra que o sociólogo
José Casanova, ao resguardar a dimensão da secularização como a separação funcional
entre o secular e o religioso, acaba aproximando o conceito do de laicidade. Além disso,
essa diferenciação está ancorada no pensamento do sociólogo alemão Max Weber:
133
Portanto, acredita-se que a laicidade seja um conceito mais preciso, levando em
consideração que o de secularização apresenta, pelo menos, três dimensões segundo
Casanova. Entretanto, conforme acompanhamos na citação apresentada por Ricardo
Mariano, embora laicidade seja um conceito mais preciso, ele não é unidimensional
e está relacionado com a própria noção que temos de democracia. Como no trecho
da teórica da laicidade Micheline Milot, esse fenômeno incide em aspectos políticos,
jurídicos e socioculturais.
Sobre o caso brasileiro, a cientista política Marcela Tanaka lembra que tanto
o sociólogo Ricardo Mariano, quanto o antropólogo Marcelo Camurça possuem uma
proposta de pensar uma laicidade à brasileira, levando em consideração a própria
tendência da literatura científico-social latino-americana de optar pelo conceito de
laicidade. Como já desenvolvemos o argumento que optar por um conceito em relação
ao outro não significa abandonar as contribuições da noção preterida, vejamos como
ambos propõem desenvolver a laicidade:
Isso implica que devamos conhecer como os processos de secularização, por meio
da laicidade, foram operacionalizados no nosso país. Também se faz necessário, como já
apontamos, considerar o que os próprios atores sociais, religiosos e seculares, consideram
sobre a laicidade, a religião e outros processos sociais. Afinal, aprendemos que na
antropologia, as pesquisas são estabelecidas na base do diálogo e na troca de perspectivas.
134
4 SECULARISMOS E LAICIDADES NO BRASIL
Compreender que os processos de secularismo e laicidade são configurados
historicamente, com diferenças possíveis encontrada nos mais diversos países,
considerando suas realidades regionais e continentais, podemos dizer que não existe
apenas um processo de secularismo e laicidade. Mas isso você já sabe, pois aprendemos
que umas das tarefas da antropologia é mostrar como a experiência humana é plural,
contrariando a ideia que temos no senso comum da homogeneidade e da suposta
evolução linear da humanidade.
135
de distribuição em escolas públicas de material informativo sobre a
sexualidade, como prevenção contra a homofobia, regulamentação
das funções de profissionais do sexo, ensino laico sem interferência
religiosa, pesquisas científicas com células-tronco (ORO; MARIANO,
2010, p 25,27; MARIANO, 2011, p. 251-253; MIRANDA, 2013, p. 71)
((CARMUÇA, 2017, p. 863).
136
Figura 1 – Tirinha de André Dahmer
Sobre o ponto “b” da citação que abriu esse tópico, “entronizações de símbolos
religiosos em ambientes laicos e públicos, onde ambas implicam em movimentos de
expansão da religião no espaço público”, Marcelo Camurça comenta a respeito da
naturalização histórica da presença de símbolos religiosos cristãos, sobretudo católicos,
nos nossos espaços públicos: escolas, universidades, tribunas, parlamentos e outros
“aparelhos estatais” (CAMURÇA, 2017, p. 865). Partindo dessa percepção, setores
evangélicos que acessaram o poder público via a política, utilizaram como argumento, e
acionando a laicidade, essa própria presença naturalizada, para construir pautas ligadas
aos evangélicos e a percepção de que existiria uma “cultura evangélica” (AGUIAR, 2020)
que uniria diversas vertentes religiosas desse setor. Assim, foram propostos diversos
monumentos para a Bíblia e o incentivo da presença da Bíblia nas escolas:
137
Os demais pontos comentados por Camurça são de reforço da laicidade, no
sentido de tentar diminuir a presença majoritária do cristianismo no espaço público,
mas não somente, que é o ponto “c”: “ações para retirada de símbolos religiosos na
esfera pública”, também tentativas de combater a intolerância religiosa e promover
o pluralismo, que acompanharemos no ponto “d”, “ações jurídico-legais contra a
intolerância e vilipêndio religioso”.
138
que estendia as mesmas cláusulas da concordata com a Igreja
Católica para todos os credos. Em tempo recorde foram votadas e
aprovadas pelo Legislativo nacional as duas leis com apenas o voto
contrário da bancada do PSOL, que considerou ambas as leis como
atentatórias ao regime de separação Igreja-Estado (RANQUETAT
JR, 2010, p. 179,181). A consequência de toda esta polêmica pública
foi a extensão do reconhecimento em termos de presença pública
conquistada pela religião católica às demais, leia-se aos evangélicos
–e não a supressão desta presença para toda e qualquer religião como
desejavam os setores laicos -fórmula que se alargará para outros
eventos. Nestes, cada vez mais a concepção de laicidade imperante
no país passa a ser de uma presença isonômica das religiões (mais
representativas, as cristãs, ou seja, católicos e evangélicos) no
domínio público (CAMURÇA, 2017, p. 873-874).
INDICA
Acompanhamos como são complexas as discussões que envolvem religião e política. Por
exemplo, embora existam projetos e posturas hegemônicas em cima de pautas que são
consideradas morais para alguns sujeitos religiosos, isso não implica que não existam
dissidências e vozes alternavas dentro desses grupos religiosos. Um bom exemplo é o
caso do aborto, que para grande parte da sociedade civil, sob a ótica da política
pública e da medicina, é uma pauta de saúde pública, não religiosa. O movimento
religioso “Católicas pelo Direito de Decidir” exemplifica esse argumento: o
grupo é uma ONG (Organização Não Governamental) formado por católicas,
distribuídas em mais de doze países, que questionam a influência eclesiástica
na proibição do aborto legal em diversos países. Uma outra voz alternante a
uma hegemonia evangélica no modo de pensar sobre pautas morais, é a do
pastor Fillipe Gibran, que tem forte presença em suas redes sociais, além de
atuar como pastor na igreja Comuna do Reino em Belo Horizonte.
139
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
140
AUTOATIVIDADE
1 A sociologia clássica escolheu a religião como uns de seus principais objetos de
estudo. Sobre a relação desse estudo clássico com o projeto de secularismo na
sociedade ocidental moderna, assinale a alternativa CORRETA:
141
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
4
Nenhum dos fundadores da sociologia, apesar dos afastamentos e até
das contradições que suas teorias do social opõem, deixou de colocar
o tema da evolução da religião, e até de sua inevitável decomposição,
no centro de sua reflexão. Voltar regularmente aos trabalhos deles é
se recolocar diante do próprio projeto da sociologia, realimentar-se
nas fontes de uma reflexão, da qual é preciso reencontrar a dinâmica,
mas passando pela própria sob o crivo de sua própria ambição crítica
(LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 27)
Sobre o diálogo que a sociologia estabelece com seus clássicos, comente como
Marx, Durkheim e Weber compreenderam o fenômeno religioso, apontando a
complementariedade de suas teorias.
142
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
ESPIRITUALIDADES
1 INTRODUÇÃO
Nas mais diversas sociedades, que de alguma maneira estão relacionadas com
o projeto de modernidade ocidental, houve uma série de contrapontos, contrapropostas
e alternativas aos discursos racionais, científicos e burocráticos da vida. Movimentos
de contracultura, hippies, orientalismos e novos movimentos religiosos tensionaram
elementos da modernidade e do próprio desencantamento de mundo.
Como tudo que estamos até aqui, esses aspectos não são simples, nem tratam
de oposições binárias entre razão e espiritualidade, encantamento e desencantamento
de mundo. A respeito dessas complexidades, tentaremos extrair alguns ensinamentos.
143
Nos finais dos anos 1960 e 1970, a sociedade ocidental se viu
diante do aparecimento de movimentos religiosos os mais diversos,
posteriormente categorizados como New Age ou Nova Era. O
movimento juvenil hippie e de contracultura fez surgir um tipo de
experiência e consciência religiosas que pretendiam romper com
alguns aspectos da moralidade cristã e da cosmologia ocidental. No
Brasil, esses movimentos chegaram somente a partir da década de
1970 (MARIZ, 2013, p. 308).
IMPORTANTE
O movimento hippie é uns dos predecessores dos novos movimentos religiosos, sociais e
espirituais. Esse movimento foi uma ação coletiva da juventude nas décadas de 1960 e 1970.
Apresentou uma irradiação geográfica considerável, embora tenha ficado mais famoso nos
Estados Unidos da América e em suas ações contrárias a Guerra no Vietnã (1955-1975). De
uma maneira geral, movimento hippie contesta os valores e as morais estabelecidas, modernas
e cristãs. Defendem a paz e o amor como princípio universal. O movimento também
ficou conhecido pelo seu contato com o esoterismo e o espiritualismo, que teve
bastante influência dos movimentos de popularização da cultura oriental, ou
ao menos aspectos dela, dentro do Ocidente. Por essa razão, está ligado com
os novos movimentos religiosos. O antropólogo Victor Turner, considera que os
hippies, assim como artistas, profetas etc., são sujeitos liminares, ou seja, que
apresentam na communitas: “uma forma de antiestrutura constituída pelos
vínculos entre indivíduos ou grupos sociais que compartilham uma condição
liminar em momentos especificamente ritualizados” (NOLETO e ALVES, 2015,
n.p). Nesse sentido, a liminariedade, ou os sujeitos em situação liminar,
questionam as estruturas sociais pré-estabelecidas.
144
de estereótipos, atravessado pela ideologia dominante, mesmo quando o intuito é fazer
uma contracultura, como nos casos citados. Voltemos para esses novos movimentos,
de uma maneira mais direta:
145
se hierarquizando de alguma maneira, como por exemplo, O Vale do Amanhecer, que já
apresenta certa capilaridade e uma irradiação geográfica considerável, estariam mais
próximos da religião.
IMPORTANTE
Segundo o cientista social Amurabi Oliveira (2011), que estudou o Vale do Amanhecer, o
termo Nova Era remete a astrologia, que insere a época após os anos 2000 como a Era de
Aquário: “marcada por uma série de transformações, e de superação de pólos historicamente
antagônicos, seria uma época de harmonização entre os binômios corpo/mente, natureza/
sociedade, masculino/feminino, dentre outros” (OLIVEIRA, 2011, p. 69). As bases da
Nova Era teriam aparecido ainda no século XIX, com o aumento da força de correntes
esotéricas e ocultistas na Europa, junto com a tradição transcendentalista norte-
americana. Portanto, essa dimensão esotérica e transcendental são as bases dos
movimentos da Nova Era. Amurabi Oliveira reforça, ainda, que “Toda a definição
do fenômeno Nova Era será parcial e limitada, até mesmo pela heterogeneidade
do mesmo, que abarca uma infinitude de práticas, religiosas ou não” (OLIVEIRA,
2011, p. 70). Portanto, o que prevalece nesse fenômeno é a sua plasticidade,
pluralidade e o seu foco nas experiências individuais.
147
religiões e povos indígenas. Essa bebida é designada de diferentes
maneiras de acordo com o grupo e o contexto cultural em que é utili-
zada. A denominação que se tornou consagrada no meio acadêmico
é ayahuasca, mas ela também é conhecida como “yagé” pelos Siona,
“caapi” pelos Baniwa, “kamarampi” entre os Ashaninka, “kamalãpi”
junto aos Manchineri, “nixi pae” no meio Kaxinawa, “uni” entre o povo
Yawanawa, “vegetal” ou “hoasca” para os membros da União do Ve-
getal, e “daime”, junto aos adeptos do Santo Daime e da Barquinha,
entre outras designações. Seu uso e sua origem, entretanto, extra-
polam esse cenário (ASSIS; RODRIGUES, 2017, p. 46-47).
148
Assis e Rodrigues comentam que apesar dos distintos usos da substância,
foi no Brasil que se institucionalizaram religiões que utilizam a bebida como elemento
central em sua ritualística, que são o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal.
149
No artigo “O que faz a espiritualidade?”, Rodrigo Toniol apresenta as relações
entre espiritualidade e saúde, enfatizando os usos de práticas terapêuticas ligadas às
espiritualidades no Sistema Único de Saúde (SUS) em Porto Alegre, além de apontar que
a espiritualidade, ou a “dimensão espiritual”, foi reconhecida pela Organização Mundial
da Saúde (OMS), em 1983, como um tópico dos programas de estratégia de saúde dos
países participantes da OMS (TONIOL, 2017).
IMPORTANTE
O reiki é uma técnica japonesa terapêutica. O seu princípio é de que o
praticante terapeuta é capaz de canalizar e conduzir energias, utilizando
as mãos. Essas energias teriam efeito terapêutico, a partir da ativação dos
processos orgânicos e naturais do próprio paciente.
150
Figura 2 – SUS oferece atendimento de reike
151
práticas terapêuticas são um desdobramento das políticas públicas de saúde, na OMS
e no SUS, por exemplo. Cabe reforçar três aspectos do uso do terapêutico do reike, da
“imposição de mãos”, no contexto etnográfico de Toniol:
152
se encontram, pois a antropologia, apesar de ser uma ciência ocidental e forjada na mo-
dernidade, sempre estabeleceu críticas ao etnocentrismo e o discurso da modernidade e
de um progressismo unilinear como única possibilidade e alternativa para a humanidade
(CARVALHO, 1998; VELHO, 1998). A maneira como a antropologia lida com a religião, a
espiritualidade, o esoterismo e outros fenômenos, é a partir das noções de diálogo e tra-
dução. Há o reconhecimento de que vivemos em múltiplas realidades e contextos, e que
a antropologia é fundamental para traduzir essas múltiplas possibilidades:
Cabe reforçar que essa perspectiva mais holística, ou seja, abrangente e que
pensa a realidade a partir do todo, tem alguma relação com a espiritualidade e a sua
relação com a religiosidade, seja para tencioná-la, seja para apontar continuidades
entre essas duas realidades. Nesse aspecto, como aponta o antropólogo Otávio Velho
em seu artigo “O que a religião pode fazer pelas ciências sociais?”, a religião, caso
seja estudada antropologicamente, apresenta os limites do discurso moderno e a
sua razão que considera, conforme já vimos, que a religião é um fenômeno de esfera
particular e privada, ao menos dentro do projeto secularista. Entretanto, com a pesquisa
antropológica e etnográfica, junto a grupos religiosos ou espiritualistas, a antropologia
complexifica a situação. E aqui, mais uma vez, não é uma defesa nem uma acusação
da religião, mas perguntar o que ela pode contribuir, nos ensinar, sobre a experiência
humana, e como em toda complexidade, a resposta não pode ser maniqueísta.
153
não, provavelmente se mantém como lócus privilegiado da produção
e expressão dessa epistemologia, sobretudo a partir de seus mo-
mentos místicos e através de suas linguagens, rituais, experiências e
narrativas. Mesmo esse privilégio, contudo, não deixa de sofrer con-
testações, com a religião, hoje, encontrando homólogos (e eventuais
competidores) nas linguagens prestigiosas da teoria da complexida-
de, da globalização, e até da própria Antropologia. Linguagens que,
no entanto, são mais limitadas e inexperientes do que a religião no
trato com os diversos estados de consciência, e menos competentes
em desenvolver e elaborar suas implicações existenciais de um modo
capaz de concretamente afetar (VELHO, 1998, p. 15).
Tudo isso revela que de fato a religião pode ter muito a nos oferecer,
instrumental e existencialmente. Não em função de uma essência
imutável, presente desde sempre, mas em face de um momento. Um
momento talvez caracterizável, de forma mais geral, como sendo
de mudança profunda de paradigma societário, como quer Colin
Campbell (1997). Paradigma (oriental) que iria em direção próxima
à da epistemologia do mundo da Creatura, conforme Bateson,
podendo-se acrescentar a esta, sem maiores perturbações, algumas
das intuições nietzschianas do amor fati e da transvaloração (Velho,
1995). O princípio da caridade de Davidson, por exemplo, num plano
estritamente epistemológico, sempre poderá ser questionado.
Mas na medida em que permita operar concretamente de modo a
reconhecer as diferenças sem exoticizá-las nem congelá-las ele se
mostrará atual, ajudando-nos a evitar os dois rochedos com que
este texto se iniciou. A aposta é que essa possibilidade possa, hoje,
ser explorada produtivamente de modo mais amplo no diálogo - ou
além-do-diálogo - com as religiões. Com ou sem aspas (VELHO,
1998, p. 16).
154
Para compreendermos o debate apresentado por Otávio Velho, precisamos
retomar o que aprendemos sobre o papel da antropologia no estudo da religião.
Lembremos que Evans-Pritchard argumentava que a antropologia herdou do
evolucionismo cultural de Taylor e Frazer, a percepção de que os fenômenos mágico-
religiosos tenderiam a desaparecer ao longo do desenvolvimento do espírito humano.
Ideia já apresentada e bem fundamentada no próprio Comte. Assim, Evans-Pritchard
comenta que a antropologia, por vezes, ao estudar a religião parecia mais denunciá-la
do que estudá-la de fato. Por outro lado, há também a realidade de que os antropólogos
passaram a estudar a religião em contexto de encontro colonial, portanto, era a religião
do outro, dos ditos selvagens e primitivos que estavam em estudo.
155
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• Além disso, no Brasil, as espiritualidades estão presentes nos debates sobre os usos
da ayahuasca, que é uma bebida psicoativa ancestral indígena, utilizada por várias
nações indígenas, assim como pelas novas religiões da ayahuasca. Também se
apresenta nas terapias alternativas/complementares oferecidas para os pacientes
do Sistema Único de Saúde.
156
AUTOATIVIDADE
1 Os novos movimentos religiosos surgiram no século XX, apresentando propostas
e reconfigurações do campo religioso, social e cultural. Sobre essa realidade, que
denominamos de emergência das espiritualidades, assinale a alternativa CORRETA:
2 A ayahuasca é uma bebida psicoativa que é utilizada por diversos grupos humanos.
De origem indígena, sendo fabricada e utilizada por diversas nações indígenas até
hoje, a bebida é central na ritualística e cosmologia de novas religiões brasileiras,
como o Santo Daime. A respeito da complexidade da ayahuasca e seus usos religiosos
e espiritualistas, analise as sentenças a seguir:
I- A ayahuasca é uma bebida de múltiplos usos e sentidos, que variam de acordo com
o grupo social e religioso em questão. O que é padrão é o revestimento cosmológico
e espiritualista de seu uso.
II- Por ser uma substância psicoativa, a ayahuasca invalida o argumento de que o
Santo Daime e xamanismo indígena são religiões.
III- Por ter um uso diversificado, a bebida da ayahuasca pode ter sentidos filosóficos,
artísticos, religiosos, morais, médicos, éticos etc.
157
( ) A religiões, no plural, podem fornecer para as ciências sociais um trato com a
diferença, sem exotizá-la e congelá-la.
( ) A aproximação epistemológica entre um paradigma espiritualista e um paradigma
holista, enfraquece as ciências sociais enquanto ciência.
( ) O novo paradigma espiritualista reforça um sentido universal e permanente de
religião, pois apesar de ser múltiplo, acredita que a fé é o único aspecto imutável da
experiência humana.
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
5 Em 1987, aconteceu 37ª Assembleia Mundial de Saúde. Nessa reunião, pela primeira
vez a dimensão espiritual foi reconhecida, pela OMS – Organização Mundial da
Saúde – como um aspecto da saúde humana. O reconhecimento aconteceu na
integração da dimensão espiritual ao programa estratégico de saúde dos Estados
membros da OMS. Comente a respeito desse acontecimento e o uso de terapias
complementares integradas ao Sistema Único de Saúde.
158
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
INTOLERÂNCIA E PLURALISMO RELIGIOSO
1 INTRODUÇÃO
Aprendemos em nossa caminhada pela Antropologia da Religião, que nesse
campo, embora não seja exclusividade do tema, há diferença e diversidade sob a capa
de uma suposta homogeneidade. Se observamos o mundo, ou até mesmo o nosso país,
conseguimos, rapidamente, descobrir uma hegemonia cristã. Mas o que isso significa?
A partir da antropologia, sabemos que a homogeneidade católica, de um lado, e o
crescimento evangélico, por outro, é resultado de processos históricos específicos.
159
2 INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
É importante relembrarmos os dados apresentados por Sidnei Nogueira, doutor
em Semiótica e Linguística Geral e babalorixá, em Intolerância religiosa (2020). Nogueira
mostra que em 2018, os dados do Disque 100, canal de denúncia de violação de direitos
humanos, onde são noticiados os casos de intolerância religiosa, 30% das vítimas eram
da umbanda, candomblé ou outras religiões de matriz africana. Acontece que nos censos
religiosos levantados pelo IBGE, como no último realizado, em 2010, o percentual de pes-
soas que se autodeclaram de umbanda ou candomblé não é muito expressivo. Em 2010,
esse contingente foi de 0,3%. Ou seja, embora sejam religiões com expressivamente pou-
cas pessoas autodeclaradamente adeptas, essas são as religiões que mais sofrem com
a intolerância religiosa. Cabe mencionar que também o número de adeptos declarados
dificilmente condiz com a realidade, pois como vamos acompanhar, por conta do racismo
e da perseguição que essas religiões historicamente sofreram, não o incentivo para que
essas pessoas, geralmente, se identifiquem nos censos enquanto afrorreligiosas.
160
a estrutura de uma sociedade racista, posto que considera, na sua hierarquia social e
racial, que o branco estaria no topo, enquanto indígenas e negros seriam inferiores por
estarem distantes dos ideários e da materialidade branca e ocidental. Reconhecido isso:
161
por Roma eram agregadas, pois havia uma crença de que, ao
cultuar o ente sagrado da cultura subjugada, tal força divina era
apascentada. Para os romanos anteriores à ascensão do cristianismo,
as divindades dos estrangeiros eram tão vivas e verdadeiras quanto
as deles (NOGUEIRA, 2020, p. 48).
162
lerar não deve ser celebrada e buscada nem como ideal político, nem
como virtude individual. Ainda que a argumento liberal enxergue, na
tolerância, uma manifestação legítima e até necessária da igualdade
moral básica entre os indivíduos, não é esse o sentimento recorrente
nos discursos da política (NOGUEIRA, 2020, p. 58-59).
163
Nesse aspecto, a agressão a adeptos das religiões de matriz africana é bastante
expressiva na comunidade evangélica. Isso não significa que católicos, por exemplo, não
tenham estigmatizado essas religiões. Os dados históricos nos confirmam o contrário.
Entretanto, essas agressões acontecem porque as religiões de matriz africana são
consideradas, ainda em muitas igrejas evangélicas, como um mal a ser combatido.
Embora existam exceções, como já indicamos nas seções complementares, esse é um
problema que a nossa sociedade terá que enfrentar, caso queira realmente estabelecer
uma democracia e se pautar no pluralismo religioso, por exemplo.
IMPORTANTE
As religiões afro-brasileiras são as religiões de matriz africana que foram recriadas no Brasil
no contexto da diáspora africana. Assim, as religiões afro-brasileiras são: “um conjunto algo
heteróclito, mas certamente articulado, de práticas e concepções religiosas cujas bases foram
trazidas pelos escravos africanos e que [...] incorporaram em maior ou menor grau elementos
das cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo
de origem europeia” (GOLDMAN, 2009, p. 106). Em sua “Enciclopédia Brasileira da diáspora
africana” (2011), Nei Lopes mostra que as religiões afro-brasileiras, apesar de sua diversidade
étnica, regional e cultural, são principalmente religiões que possuem como princípio o culto
aos orixás e ancestrais iorubás e voduns jejes e “o culto a ancestrais bantos e ameríndios; a
umbanda; e outras formas sincréticas” (LOPES, 2011, p. 1206). É nesse sentido que as religiões
de matriz africana, por vezes, se relacionam com as religiões indígenas, que por si,
também apresenta uma complexa e diversa cosmologia para cada coletivo étnico.
Portanto, a depender dos contextos históricos e regionais, as religiões afro-
brasileiras e afroindígenas se desenvolveram a partir de uma multiplicidade de
práticas e cosmologias, por vezes divididas entre “nações” e outros cortes étnico-
raciais. O candomblé e a umbanda são denominações que tiveram uma maior
difusão, embora geralmente o conhecimento que se tem sobre essas religiões
não passe do senso comum. Para exemplificar a diversidade de religiões e
formas de se autodenominarem adeptos e lideranças afrorreligiosas, trago
um quadro da Pesquisa Socioeconômica e Cultural de Povos e Comunidades
Tradicionais de Terreiros segundo Região Metropolitana, publicada no livro
“Alimento: direito sagrado” (BRASIL, 2011).
164
Figura 3 – Manifestações religiosas afro-brasileiras e afro-indígenas
3 RACISMO RELIGIOSO
No caso das religiões de matriz africana, indígenas e afroindígenas, o que
sustenta, ou está encoberto, por muitas vezes, na intolerância religiosa, é o próprio
racismo. Continuaremos dialogando com o livro do professor Sidnei Nogueira, que
revela a ligação entre intolerância e racismo, que em seu caso enfatiza esse processo e
encontro nas ações contra as religiões de matriz africana.
165
trado anteriormente, os dados apontam que há uma violência endê-
mica direcionada aos membros de CTTro de todo o Brasil. Apesar dos
processos de invisibilidade e agressões sistémicas a essas comu-
nidades, muitas de suas lideranças possuem plena consciência da
estrutura social racista e dos agentes que promovem a manutenção
da intolerância religiosa (NOGUEIRA, 2020, p. 84).
168
No Rio de Janeiro, em resposta à ação de traficantes ligados a
neopentecostais que expulsaram casas de Candomblé e Umbanda
do Morro do Dendê, Ilha do Governador, houve manifestação diante
da ALERJ e em seguida a constituição da Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa (CCIR), em 2008, por iniciativa de religiosos de
matriz afro-brasileira (MIRANDA, 2010, p. 131). No Rio Grande do Sul
foi criada em 2002, na XI Semana da Consciência Negra, a Comissão
de Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (CDRAB), comissão esta
composta por intelectuais e militantes do Movimento Negro e
presidida por Mãe Norinha de Oxalá (ORO, 2007, p. 59). A Comissão
do Rio de Janeiro já encaminhou demandas ao poder público como:
a criação de um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa,
a aplicação da lei que introduz nos currículos escolares do ensino
público a disciplina “História e Cultura Afro-Brasileira”, a criação de
uma delegacia especializada em crimes étnicos e raciais (MIRANDA,
2010, p. 131-134) e foi uma das promotoras da “Caminhada em defesa
da Liberdade Religiosa” que se realiza anualmente na orla da praia de
Copacabana (MIRANDA, 2010, p. 132). A Comissão do Rio Grande do
Sul atua em palestras nas escolas, organiza Seminários, participa de
sessões públicas no parlamento, inclusive já tendo ido à Brasília na
Câmara (ORO, 2007, p. 59). Esta comissão buscou ainda articulações
mais amplas no terreno jurídico, da mídia e da política, nesta última
conseguindo estimular candidaturas à vereança (em partidos como
PT, PDT e PSB) de lideranças do meio religioso afro-brasileiro, no
entanto, sem sucesso eleitoral (ORO, 2007, p. 62-65). A Comissão do
Rio de Janeiro parece ter uma ação mais efetiva, pois, com o auxílio
de um delegado de política e um promotor do Ministério Público
Estadual, além dos seus membros efetivos, acolhe denúncias de
supostas vítimas, encaminha e acompanha a queixa para registros
de ocorrências em delegacias policiais, em seguida propondo,
conforme o caso, denúncias no Ministério Público e formação de
processos cíveis e ações por danos morais (MIRANDA, 2010, p. 132-
135) (CAMURÇA, 2017, p. 878-879).
169
Figura 4 – Sobre rascismo religioso
INDICA
Até aqui, aprendemos muito com vários autores e autoras. O professor Dr. Sidnei Nogueira
em especial, nos ensinou sobre as relações entre racismo e a perseguição às
religiões afro-brasileiras. Em 4 de março de 2021, Sidnei Nogueira proferiu a
aula pública: Racismo Religioso: a luta antirracista e contra-colonial,, de maneira
remota e exibida online na plataforma Youtube. Participaram do evento a
professora Dra. Cibele Henriques e a aluna de doutorado Silvana Marinho.
A Revista Senso, que já citamos nesse livro, além de publicar artigos sobre
a experiência religiosa, possui um podcast para tratar sobre assuntos
pertinentes a esse universo. É o Senso Cast: religião e cultura.. Vale escutar
o episódio “Religião e racismo” para aprendermos um pouco mais
sobre o racismo religioso e como ele é praticado e combatido no Brasil
contemporâneo.
4 O PLURALISMO RELIGIOSO
Vimos alguns exemplos de intolerância e racismo religioso. No caso do
racismo religioso sofrido pelas religiões de matriz africana, muitos dos protagonistas
são neopentecostais. Isso não significa que essa seja uma característica essencial da
religião. Nem que os católicos, por exemplo, estão isentos nesse processo. A questão
é muito mais complexa e dinâmica, e tem a ver, como aprendemos ao longo de todo o
livro, com questões sociais, culturais, políticas, históricas e daí por diante. Não temos
uma única resposta, nem podemos dizer que existe uma definição conclusiva do que
seria a religião, de uma maneira universal, ou uma religião em particular.
170
É apostando nessa complexidade, no diálogo e na incontornável realidade
de que vivemos em um mundo diverso, que existe a proposta do pluralismo religioso.
Como o nome mesmo diz, vem da pluralidade de ideias e práticas religiosas, sem que
uma possa subsumir as demais. É uma ideia utópica, pois aprendemos que há religiões
dominantes e religiões em contextos minoritários, mas ainda assim, é uma ideia e
proposta possível. As religiões de matriz africana, também, conforme veremos, são
liderança nesse aspecto: no diálogo respeitoso entre as diferentes religiões.
171
Figura 5 – Distribuição percentual da população brasileira, por grupos de religião
172
também, a laicidade é fundamental nesse processo, pois garantiria uma certa igualdade
no jogo, apesar de já termos aprendido que na prática, não é assim que acontece, sendo
a laicidade e o pluralismo um horizonte utópico, mas almejado.
IMPORTANTE
A múltipla pertença religiosa tem relação com o diálogo interreligioso
e o fenômeno do sincretismo. O sincretismo descreve uma realidade
misturada, que agrega dois ou mais elementos. Podemos dizer que todas
as religiões são sincréticas, pois não existe nenhuma religião livre de
influências externas. Religiões que conhecemos hoje como estabelecidas,
são fruto de um longo processo de interação e transformação de rituais,
cosmologias e mitologias. Na sociedade brasileira, entretanto, o fenômeno
do sincretismo é mais acionado para falar da realidade das religiões
afro-brasileiras. Contudo, devemos recordar que, conforme ressaltou o
antropólogo Sérgio Ferretti, “Todas as religiões são sincréticas, são frutos
de contatos culturais múltiplos” (FERRETTI, 2007, p. 106).
173
Portanto, vale relembrar que o pluralismo religioso é não somente consequência
da democracia, como é fundamental para a sua existência.
174
LEITURA
COMPLEMENTAR
Religião à brasileira: diversidade e intolerância no país das contradições
Rita Grassi
Meus pais são artistas e nos mudamos para o Rio no início da vida. Lá, tive
contato com todo o tipo de gente e de culturas diversas. Minha mãe sempre foi uma
buscadora espiritual e, com ela, tive a oportunidade de frequentar e conhecer diversas
práticas e tradições: o Santo Daime, a Self-Realization Fellowship (instituição fundada
por Paramahansa Iogananda, onde se pratica técnicas de meditação e ioga), o Mahikari
(movimento religioso moderno japonês, baseado no budismo), o movimento Hare
Krishna, a astrologia, o tarô, o I Ching (oráculos milenares de diferentes tradições e
filosofias)… Meu pai se diz ateu, mas tinha sido coroinha da igreja católica na infância e,
175
já adulto, frequentava o candomblé. À nossa volta, as pessoas viviam suas experiências
espirituais de forma muito livre e, hoje, paro e percebo a beleza disso e, também, o
quanto tudo mudou nos últimos 40 anos, em especial, a partir dos anos 2000.
176
Mas, como podemos romper este ciclo e reestabelecer a pluralidade da nossa
riqueza identitária cultural e religiosa?
Outra proposta interessante do autor catalão sobre o assunto é o que ele chama
de “atitude pluralista”. Trata-se do reconhecimento de que somos capazes de apreender,
apenas, uma parte do mistério que envolve a realidade, – que podemos chamar de Deus
ou de qualquer outro nome que faça sentido para nós -, e aceitar que outras pessoas
apreendem outros pedaços, outras nuances, sentem outras texturas e outros relevos
deste mesmo mistério. O problema está quando acreditamos ser os detentores do
conhecimento sobre esse “mistério”. Ao reconhecermos que a nossa perspectiva é uma
das possíveis visões daquilo que vai além do que a nossa visão alcança, talvez (mas, não
necessariamente), alcancemos um “espaço comum”, onde essas diferentes perspectivas
pudessem se encontrar. Assim, podemos “[…] ouvir e respeitar o discurso dos outros,
entrar em diálogo com eles”. (PANIKKAR, 1996, p. 247). Seria preciso reconhecer que o
próprio ser humano é pluralista e não tem como conhecer toda a verdade, mas enxergar,
respeitar e estar aberto ao pluralismo inerente ao outro também. Dessa forma, a atitude
pluralista nos auxiliaria, então, a descobrir nossa própria identidade, nossa própria
visão de mundo, seja ela religiosa, cultural, filosófica ou política, ao reconhecermos a
diversidade que existe dentro de nós, na nossa própria complexidade.
177
Assim como Panikkar, Ribeiro destaca a importância de se considerar “as
particularidades, as singularidades e a concretude das vivências”, mas amplia esta
concepção – a partir do pensamento de autores e autoras como Homi Bhabha,
Boaventura de Sousa Santos, Kwok Pui-Lan, entre outras e outros – ao reconhecer a
formação de “novas culturas híbridas”, que ocorrem nesses “entre-lugares”, o que inclui
as múltiplas pertenças mencionadas anteriormente. O que Ribeiro nomeia de “alteridade
ecumênica” evoca: “as possibilidades de aproximações inter-religiosas”, a superação dos
paradigmas, “a visão de que cada expressão religiosa tem sua proposta salvífica e de fé,
que devem ser aceitas, respeitadas, valorizadas e aprimoradas”. (RIBEIRO, 2020, p.22).
Ao olhar para trás para a minha própria história, penso que tenha sido
fundamental para a minha formação como cientista da religião, mas ainda mais como
ser humano, a exposição a diversas tradições e culturas. Inclusive para que eu pudesse
fazer minha opção por uma prática espiritual não-religiosa, mas que com toda certeza
traz influências dessa experiência plural.
O que fica claro, a meu ver, com relação à diversidade religiosa no Brasil é a
necessidade de que a informação e a educação estejam em consonância com esta
diversidade. Ou seja, quanto mais consciência se tem das diversas nuances que
compõem nossa identidade cultural e religiosa, mais se tem instrumentos de combate
à intolerância e ao preconceito. Tais instrumentos não são armas, mas argumentos,
gestos, palavras e, principalmente, ações. Agir em defesa da diversidade religiosa e
contra a intolerância e o preconceito. Enxergar as teias que compõem as relações de
poder que nos aprisionam a atitudes engessadas no radicalismo e no fundamentalismo
são consequências deste processo de conhecimento. Pois, conhecer outras religiões e
outras visões de mundo é conhecer a nossa própria história, a nossa identidade plural,
ainda que tenhamos fincado raízes em uma só tradição.
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RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
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AUTOATIVIDADE
1 A intolerância religiosa é um fenômeno antigo e bastante presente em nossa
sociedade. A respeito dessa prática, assinale a alternativa CORRETA:
I- Embora o racismo religioso seja uma prática de ódio para com a origem étnico-racial
das religiões afro-brasileiras, ele pode ser utilizado para descrever o preconceito que
cristãos brancos sofrem no Brasil.
II- A intolerância e o racismo religioso, basicamente, é fruto do medo do outro. Ela é
sempre direcionada para pessoas praticantes do candomblé, pois a umbanda é uma
religião bem aceita em nossa sociedade.
III- O racismo religioso é um ato contra a existência de pessoas e religiões afro-
brasileiras.
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( ) O pluralismo é fruto da diversificação religiosa dentro de uma sociedade. Quanto
menos concentrado for o poder em uma única religião, maior a possibilidade de
pluralismo e diálogo interreligioso.
( ) O pluralismo religioso é um fenômeno secular, pois religiosamente, nenhuma
religião permitiria que outra fosse considerada legítima.
( ) A laicidade, como regulação do religioso e tentativa de garantia de equilíbrio
de direitos para grupos religiosos distintos, é fundamental para a existência do
pluralismo.
a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.
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REFERÊNCIAS
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patrimonialização de uma “bebida sagrada” amazônica. Religião & Sociedade, v. 37,
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182
GOLDMAN, M.; LIMA, T. Como se faz um grande divisor. Sexta Feira, n. 3, p. 39-45, 1999.
GUERRIERO, S. Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.).
Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, p. 243-256.
HERVIEU-LÉGER, D.; WILLAIME, J. P. Sociologia e religião. Aparecida: Ideias & Letras, 2009.
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SANCHIS, P. Pluralismo, transformação, emergência do indivíduo e de suas escolhas.
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TONIOL, R. O que faz a espiritualidade? Religião & Sociedade, v. 37, n. 2, p. 144-175, 2017.
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