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SEMINÁRIO ITU PEDIATRIA

A Infecção do Trato Urinário (ITU) é caracterizada pela fixação e multiplicação de um


patógeno em algum ponto das vias urinárias. Tal processo pode acometer todo o trato
urinário ou permanecer restrito a uma região. A confirmação diagnóstica é
estabelecida pela identificação de crescimento bacteriano significativo em amostra de
urina obtida de modo adequado.

Tradicionalmente, os quadros de ITU podem ser classificados de acordo com a sua


localização em:
● ITU alta: infecção do parênquima renal (pielonefrite);
● ITU baixa: infecção vesical (cistite).

Além de representar uma das infecções bacterianas mais prevalentes nos lactentes,
essa infecção merece ser estudada com um cuidado especial por mais uma razão. O
reconhecimento e o diagnóstico precoce são fundamentais para prevenir ou minimizar
a formação de cicatrizes renais, possíveis complicações dos quadros de pielonefrite.
Essas cicatrizes, que se formam principalmente em recém-nascidos e lactentes, têm
como temida complicação o desenvolvimento de doença renal crônica ou hipertensão
arterial no futuro, ainda que o relato de ITU prévia em crianças com doença renal
crônica seja menos comum nos dias de hoje.

EPIDEMIOLOGIA

Os quadros de ITU são muito frequentes na população pediátrica e merecem toda a


sua atenção. Para você ter uma noção da dimensão deste problema, saiba que 3% de
todas as meninas irão apresentar ao menos um episódio na primeira década de vida;
no sexo masculino, a frequência é um pouco menor e o relato é de que cerca de 1,1%
de todos os meninos recebam este diagnóstico nos primeiros anos de vida.
Estes números te impressionaram? Pois saiba que são valores classicamente
encontrados em livros, mas é possível encontrarmos levantamentos que apontam uma
frequência ainda mais elevada.

Um dado significativo e que terá importância no acompanhamento das crianças com


ITU é o fato de que o percentual de recorrência é elevado. Até 30% das meninas que
apresentam um primeiro episódio terão um segundo evento nos 12 meses
subsequentes ao quadro inicial. No sexo masculino, a taxa de recidiva
se aproxima de 15 a 20%. Isso ocorre porque a ITU está tipicamente relacionada com a
presença de algum fator de risco subjacente. Deste modo, sempre devemos avaliar a
presença destes fatores de risco após o diagnóstico inicial ou, certamente, estaremos
condenando a criança a novos e repetidos episódios.

Em mais alguns parágrafos, falaremos sobre as manifestações clínicas que podem ser
encontradas e você verá que a febre pode ser a única manifestação. Dito isso, um dado
epidemiológico bastante importante que você deve conhecer é o seguinte: os
lactentes atendidos em serviços de emergência com quadro de febre sem sinais de
localização apresentam prevalência global de ITU de cerca de 3,5%.
Quando avaliamos uma criança com febre, os seguintes dados aumentam o risco de
tratar-se de uma ITU.

● Sexo feminino: etnia branca, idade inferior a 12 meses, temperatura ≥ 39°C, febre
por mais do que dois dias, ausência de outros sinais.
● Sexo masculino: etnia não negra, temperatura ≥ 39°C, febre por mais do que 24
horas, ausência de outros sinais de infecção.

A prevalência que descrevemos anteriormente é um dado global, mas podemos


encontrar variações na prevalência em função da faixa etária. Além disso, a proporção
de acometimento entre os sexos também varia nas diversas idades.

Durante o primeiro ano de vida, há maior prevalência dos episódios no sexo masculino.
A relação sexo masculino: sexo feminino é de 2,8-5,4:1. Isto mesmo! No primeiro ano
de vida, para cada menina que recebe o diagnóstico de ITU, chegamos a encontrar
cinco meninos com o mesmo problema. No sexo masculino, a maior parte dos
episódios ocorre ainda nos primeiros meses de vida e são mais comuns na ausência de
circuncisão, como veremos adiante. Após esta fase da vida, isso modifica-se
dramaticamente e passamos a ter uma relação entre os sexos masculino e feminino de
1:10. Ou seja, para cada menino com ITU, haverá dez meninas com o mesmo quadro.
Na verdade, esta é uma separação arbitrária, pois a partir dos seis meses o quadro já é
mais frequente no sexo feminino. Na população feminina, há um pico de incidência no
primeiro ano de vida e outro pico importante durante o treinamento de controle
esfincteriano. O início da atividade sexual no sexo feminino também se relaciona com
surtos de ITU.

ETIOLOGIA

As bactérias mais comumente envolvidas são Gram-negativas, da família das


enterobactérias. As principais bactérias identificadas são: Escherichia coli, Klebsiella,
Proteus, Pseudomonas e Enterobacter spp. As bactérias Gram-positivas são causas
menos frequentes, mas pode haver infecção por Enterococcus spp. e Staphylococcus
saprophyticus. Alguns micro-organismos costumam ser considerados contaminantes
comuns, como Lactobacillus spp., Corynebacterium spp., Staphylococcus spp.
coagulase-negativo e Streptococcus α-hemolítico.

Você deve dominar os seguintes conceitos em relação a estes agentes:

● A E. coli é responsável por 75-90% de todos os quadros de ITU no sexo feminino. As


cepas isoladas em crianças com quadros de ITU febril apresentam fatores de virulência
que explicam esta frequência tão elevada. Na superfície destas bactérias, identificamos
a presença de fímbrias ou pili, que facilitam a ascensão ao trato urinário por
mecanismo de contracorrente, ao permitirem a adesão ao epitélio da bexiga e do trato
urinário superior;
● As bactérias do gênero Proteus podem causar infecção em cerca de 30% dos
meninos e o prepúcio de meninos não circuncisados funciona como um reservatório
para estes germes. Alguns levantamentos indicam que, nos meninos maiores de um
ano, a frequência das infecções por Proteus é semelhante à frequência das causadas
por E.coli.

Uma outra particularidade deste agente é a associação com a formação de cálculos de


estruvita (fosfato de amônio magnesiano). Isto é uma consequência do
desdobramento da ureia e maior formação de amônia, levando à alcalinização da
urina, que favorece a formação dos cálculos;

● As infecções por Pseudomonas são menos comuns e devem ser consideradas,


principalmente, quando há história de hospitalização recente, episódio prévio de ITU
ou uso recente de antimicrobianos;
● Os adenovírus tipos 11 e 21 podem levar ao desenvolvimento de um quadro de
cistite hemorrágica aguda (que também pode ser causado pela E. coli). É um quadro
mais comum no sexo masculino e costuma ser autolimitado.

FISIOPATOLOGIA

A quase totalidade das ITU se estabelece por um mecanismo ascendente, ou seja, as


bactérias que acabamos de citar colonizam o períneo e conseguem alcançar a bexiga
ascendendo pela uretra. Este processo leva, inicialmente, ao desenvolvimento de
cistite.

Do mesmo modo, a pielonefrite se estabelece por ascensão da bactéria pelo ureter até
a pelve renal, mas não basta que isso ocorra. As papilas renais são dotadas de
mecanismos antirrefluxo, que impedem o retorno da urina oriunda da pelve renal,
mas, em algumas regiões, o refluxo intrarrenal pode se estabelecer. Caso isso
aconteça, teremos o desenvolvimento de uma resposta inflamatória e imunológica.

Analisando esse processo, é fácil perceber que os fatores que interferem no fluxo
miccional ou que facilitam a ascensão bacteriana representam fatores de risco para o
desenvolvimento dos quadros de ITU. Confira os principais na Tabela 1
Uma exceção a esta sequência de eventos é o observado em recém-nascidos, que
podem desenvolver um quadro de pielonefrite a partir de uma disseminação
hematogênica.

Alguns dos fatores de risco acima indicados merecem ser avaliados com mais detalhes.
Veja-os a seguir:
● Ausência de circuncisão: os quadros de ITU são muito mais comuns em meninos que
não foram circuncisados, especialmente durante o primeiro ano de vida. Algumas
séries relatam um aumento de dez vezes na incidência da ITU em meninos não
circuncisados em comparação aos que foram submetidos à circuncisão. Não é difícil
entender esta associação. A presença do prepúcio favorece a proliferação bacteriana e
contaminação da região periuretral. Conforme a pele do prepúcio torna-se mais
retrátil, o risco vai diminuindo;
● Disfunção miccional: como estudaremos adiante, nos quadros de disfunção
miccional ocorre alguma incoordenação entre o relaxamento do esfíncter uretral e a
contração do músculo detrusor. As consequências desta falta de coordenação,
essencial para que a micção seja normal, incluem alterações no fluxo da micção e
também o estabelecimento de resíduo pós-miccional;
● Constipação: é reconhecidamente um fator de risco. É possível que a distensão do
reto, provocada pelo bolo fecal impactado, possa obstruir o fluxo urinário, levando a
disfunção e resíduo pós-miccional.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
As manifestações clínicas da infecção urinária são heterogêneas, variando de acordo
com a localização do processo inflamatório (cistite × pielonefrite) e de acordo com a
faixa etária. A ideia é que, quanto menor for a criança, mais inespecíficos serão os
sinais e sintomas identificados.
Nos quadros de cistite, as crianças maiores (em especial as maiores de cinco anos)
podem apresentar urgência urinária, aumento da frequência ou disúria. A dor
abdominal ou suprapúbica também pode ser referida, bem como a descrição de urina
fétida e turva. A incontinência urinária ou enurese em crianças que já tinham o
controle esfincteriano pode ser uma manifestação de ITU.

Já os quadros de pielonefrite podem cursar com calafrios, febre e queixas de dor


lombar. Algumas manifestações gastrointestinais podem estar associadas, em especial
os vômitos.

Além disso, as manifestações que indicam o acometimento do trato urinário inferior


podem ou não ser evidentes. Nos recém-nascidos são descritas manifestações bem
inespecíficas, como dificuldades alimentares, irritabilidade, icterícia e perda ponderal.
Porém, o conceito mais importante é o seguinte: as crianças menores com pielonefrite,
como os recém-nascidos e lactentes, podem apresentar apenas febre sem outros
sinais de localização. É aceito que os quadros de cistite, isoladamente, não levem ao
desenvolvimento de febre.

Durante o exame físico, cabe destacar alguns cuidados: a pressão arterial deve ser
avaliada (crianças que desenvolvem repetidos episódios com doença renal crônica
podem ter hipertensão); a avaliação do crescimento é fundamental, pois alterações no
crescimento podem indicar doença crônica subjacente; e a palpação abdominal
sempre deve ser cuidadosa, bem como a inspeção perineal (permite a identificação de
lesões, vulvovaginites ou sinéquia de pequenos lábios). Não se esqueça, ainda, de
avaliar a região lombar, pois alterações nesta região podem indicar malformações
subjacentes da medula que também são fatores de risco.

Agora, veja de forma condensada as manifestações que podemos encontrar nas


crianças com ITU conforme a faixa etária (Tabela 2).

Recém-nascidos: Sinais/sintomas específicos do trato urinário não são comuns.


O recém-nascido pode exibir um quadro de sepse ou toxemia, caracterizado por
alterações da temperatura (hipo/hipertermia), ganho ponderal insuficiente, sucção
débil, vômitos, diarreia, distensão abdominal, irritabilidade, hipoatividade,
moteamento da pele, palidez, cianose e icterícia prolongada.
Durante a avaliação do recém-nascido com suspeita de ITU, sempre avaliar se há relato
de ultrassonografia morfológica do trato urinário durante a gestação, com descrição
de anomalias renais ou de tubo neural que possam justificar a ocorrência da infecção.

Lactentes: Também apresentam um quadro clínico inespecífico na vigência de uma


infecção urinária.
Pode haver manifestações como ganho ponderoestatural insuficiente (até três meses
de vida), febre, hiporexia, recusa alimentar, náuseas, vômitos, diarreia, dor abdominal
e, eventualmente, choro às micções e alterações de odor urinário.
Não se esqueça de que a pielonefrite é a infecção bacteriana grave que mais
comumente provoca febre sem sinais de localização em crianças abaixo de dois anos.
Pré-escolares e escolares: É apenas a partir da fase pré-escolar que os sintomas de ITU
podem se tornar localizatórios, ou seja, com manifestações tipicamente relacionadas
ao trato urinário.
Queixas como polaciúria, disúria, estrangúria, urgência, enurese, dor lombar, febre,
calafrios, náuseas e vômitos combinam-se em diferentes composições para nos fazer
suspeitar de uma infecção alta (pielonefrite) ou baixa (cistite).
Ao exame físico, a punho-percussão da região lombar dolorosa (sinal de Giordano)
sugere o acometimento do parênquima renal.

Adolescentes: Os sintomas de polaciúria, disúria e dor em baixo ventre são


as manifestações mais comuns. Pode haver também hematúria.
Quando há pielonefrite, observa-se febre, calafrio e/ou dor nos flancos.
Não se esqueça de que o início da atividade sexual nas adolescentes pode vir
acompanhado de surtos de ITU.

DIAGNÓSTICO
Não há dúvidas de que o diagnóstico de certeza de uma ITU na população pediátrica é
difícil, porém necessário. Portanto, em pacientes pediátricos, não podemos abrir mão
dos recursos laboratoriais para que possamos estabelecer o diagnóstico.

A confirmação diagnóstica é feita pela demonstração qualitativa e quantitativa de


bactérias na urina, que é possibilitada pela urinocultura. Guarde bem este conceito: a
urinocultura é obrigatória para a confirmação do diagnóstico.

OBTENÇÃO DE AMOSTRA

Uma particularidade encontrada na população pediátrica está relacionada com a


obtenção de uma amostra de urina para realização dos exames. Nas crianças com
controle esfincteriano, deve ser obtida uma amostra de jato médio. Recomenda-se
que antes do exame seja feita a higiene local apenas com água e sabão, sendo
contraindicados os antissépticos. Porém, nas crianças sem controle, torna-se
necessário um outro meio para a coleta de uma amostra. Algumas técnicas irão
fornecer um resultado de maior acurácia do que outras. Veja quais são:

● Saco coletor: quando empregado, alguns cuidados devem ser seguidos. A higiene
deve ser feita de forma apropriada e o adesivo deve estar bem adaptado ao contorno
da genitália. Além disso, o saco deve ser trocado a cada 30 minutos, até que a amostra
de urina seja obtida. O risco de contaminação das amostras de urina obtidas desta
forma é alto e, em geral, a recomendação é de que o resultado da urinocultura seja
valorizado, principalmente, quando for negativo. Por esta razão, alguns indicam que,
se houver necessidade do início imediato do tratamento, a amostra para urinocultura
não seja obtida desta maneira. Pode ser usado como método para obtenção de
amostra para realização de EAS;
● Punção suprapúbica: embora seja um método invasivo, é seguro, principalmente
quando guiado por ultrassonografia. A punção está especialmente indicada nos casos
em que a coleta por via natural suscita dúvidas (diarreia aguda, dermatite perineal,
vulvovaginites e balanopostites);
● Cateterismo vesical: método bastante empregado. A Academia Americana de
Pediatria indica que, nas crianças com idade entre 2 e 24 meses sem controle
esfincteriano, as amostras para urinocultura sejam obtidas pelo cateterismo ou pela
punção suprapúbica.

EAS (URINÁLISE, URINA TIPO I, URINA ROTINA)

As alterações encontradas nesta avaliação podem corroborar a suspeita de um quadro


de ITU, ainda que a confirmação dependa da urinocultura. É importante que a amostra
seja rapidamente analisada (em até uma hora após obtenção, se mantida em
temperatura ambiente, ou até quatro horas após, se mantida sob refrigeração). Várias
alterações podem ser encontradas. Veja qual é a importância de cada uma delas.
● Piúria: caracterizada pela presença de cinco ou mais piócitos por campo
microscópico de grande aumento (400 vezes) ou mais de 10.000 piócitos/ml. A
presença de piúria sugere o diagnóstico de ITU, embora a sua ausência não o afaste (o
que é questionável por alguns autores). A piúria também pode estar presente em
outras condições, como em quadros de desidratação grave, apendicite, lesão química
do trato urinário e glomerulonefrite. Nos quadros de tuberculose renal pode haver
piúria, mas não haverá qualquer crescimento bacteriano em meios habituais de
cultura. A avaliação bioquímica, utilizando fitas reagentes, pode revelar a presença de
leucocitoesterase, um marcador da presença de piócitos. A pesquisa de
leucocitoesterase tem alta sensibilidade e especificidade mais baixa para a
identificação de uma ITU.
● Nitrito positivo: sugere a presença de bactérias Gram-negativas na urina, capazes de
converter o nitrato urinário em nitrito. Esta conversão demanda um período de
aproximadamente quatro horas e, por isso, podemos ter resultados falso-negativos na
presença de armazenamento vesical por um período reduzido (o que é comum nos
casos de ITU, quando a micção torna-se mais frequente). A presença de nitrito tem
maior especificidade para o diagnóstico de ITU, mas menor sensibilidade. A compara a
sensibilidade e a especificidade destes componentes de forma isolada ou combinada.
Tabela 3 compara a sensibilidade e a especificidade destes componentes de forma
isolada ou combinada.

TAB. 3 SENSIBILIDADE E ESPECIFICIDADE DOS COMPONENTES DA URINÁLISE (DE


FORMA ISOLADA OU COMBINADA).

● Outras alterações: a baixa Densidade Urinária (DU) pode indicar um distúrbio da


concentração urinária; o pH alcalino pode estar relacionado com uma infecção pelo
Proteus; a albuminúria transitória pode ocorrer na fase febril do processo ou em casos
de pielonefrite; a hematúria microscópica é um achado frequente nos quadros de
cistite.

BACTERIOSCOPIA

Uma gota de urina não centrifugada é colocada em lâmina e corada pelo método de
Gram. O achado de uma ou mais bactérias por este método se correlaciona
fortemente com bacteriúria significativa na urinocultura.

UROCULTURA

A urocultura será considerada positiva ou negativa em função do número de Unidades


Formadoras de Colônias (UFC) que forem identificadas, ou seja, para confirmação
diagnóstica é necessário que seja identificada uma bacteriúria significativa. A
interpretação dos resultados deve ser feita de forma criteriosa e de acordo com o
método de coleta.

Os resultados falso-negativos podem estar relacionados com: pH urinário < 5, diluição


urinária (DU <1.003), presença de agentes bacteriostáticos na genitália, uso de
antimicrobianos, micções frequentes, obstrução total do ureter do lado do rim
afetado, bactérias de difícil crescimento. Já os resultados falso-positivos podem ser
observados quando: a coleta é inadequada, há demora no processamento da urina, há
contaminação vaginal ou balanoprepucial durante a coleta.

Uma grande dificuldade na prática, e também nas provas, é a falta de consenso na


interpretação dos resultados de urinocultura e a definição do que seria um exame
positivo de acordo com os métodos de coleta. As principais referências usadas nas
provas trazem informações discordantes, como indicado nas Tabelas 4 e 5.
Como você percebeu, ao analisar as tabelas, embora tenhamos dito que os resultados
obtidos por saco coletor não devam ser valorizados, alguns autores sugerem uma
possibilidade de interpretar estes resultados. A dica é: tenha bastante senso crítico ao
analisar os enunciados e faça o maior número possível de questões sobre o tema para
observar como essas controvérsias são abordadas.

Fique atento ao seguinte: nem todo crescimento bacteriano indica uma ITU que deve
ser tratada.
Algumas crianças apresentam uma condição denominada bacteriúria assintomática. O
quadro se caracteriza pela presença de três urinoculturas consecutivas com bacteriúria
significativa em um período de três dias a duas semanas, podendo ser transitória ou
persistente, e é mais comum no sexo feminino. O tratamento não é recomendado,
salvo em gestantes e indivíduos que serão submetidos a alguns procedimentos
urológicos.

TRATAMENTO
Tratamento sintomático
Podem ser prescritos analgésicos e antitérmicos na presença de dor e/ou febre. As
possíveis complicações advindas do quadro, como o desenvolvimento de desidratação,
devem ser prontamente tratadas.

TRATAMENTO ERRADICADOR
O tratamento deve ser instituído o mais brevemente possível. Alguns fatores
aumentam o risco de desenvolvimento de cicatrizes renais, tais como: crianças
menores de um ano de idade, atraso no tratamento maior que 72 horas, crianças com
altos graus de refluxo, malformações com caráter obstrutivo e ITU recorrentes.

CISTITE

Os quadros de cistite são, habitualmente, tratados ambulatorialmente. Como regra


geral, costuma-se recomendar que o tratamento seja prontamente instituído, a fim de
se evitar o desenvolvimento de uma pielonefrite. Porém, se a criança apresentar
manifestações leves e o diagnóstico for muito duvidoso, é possível aguardarmos o
resultado da urinocultura.

A duração do tratamento é de três a cinco dias. As opções incluem a associação


sulfametoxazol + trimetoprima, nitrofurantoína ou amoxicilina (citada na literatura
norte-americana como apresentando altas taxas de resistência). Nas referências
brasileiras, ainda podemos encontrar a recomendação para o uso de sulfametoxazol +
trimetoprima, mas já é citada a queda da eficácia deste esquema nos últimos anos em
nosso país para o tratamento erradicador. Outras opções comumente citadas incluem
as cefalosporinas de primeira geração.

PIELONEFRITE

Nas crianças em que é feita a suspeita clínica de pielonefrite pela presença de febre,
pode ser necessária a hospitalização. A internação está indicada para os lactentes mais
jovens (o Tratado da Sociedade Brasileira de Pediatria indica a internação para os
menores de três meses); para as crianças desidratadas, com vômitos ou incapazes de
ingerir líquidos; e para as crianças com sinais de sepse.

O tratamento da pielonefrite costuma ser mais prolongado, com duração entre 7 e 14


dias. Nas crianças hospitalizadas, os esquemas aceitos incluem o uso de ceftriaxona,
cefotaxima ou a associação de ampicilina com um aminoglicosídeo.

Em relação ao tratamento ambulatorial, as principais opções descritas são


cefalosporinas orais de 3ª geração (como a cefixima, indisponível em nosso meio), a
ceftriaxona por via intramuscular, a ciprofloxacina (em especial quando há suspeita de
infecção por Pseudomonas; cabe, contudo, lembrar que as atuais evidências indicam
que os conhecidos efeitos colaterais da ciprofloxacina sejam levados em conta ao se
optar por este esquema). A cefalexina é outra alternativa oral. Uma orientação
habitualmente feita é de que a nitrofurantoína não seja recomendada nos casos em
que houver febre, por não atingir concentrações apropriadas no parênquima renal.

Não há recomendação para a realização rotineira de urinoculturas após o término do


tratamento, salvo se houver necessidade de realizar algum exame invasivo após a
terapia erradicadora.

ACOMPANHAMENTO
A identificação dos possíveis fatores de risco que levaram ao desenvolvimento do
episódio de ITU traz evidentes benefícios. Sabemos que o principal mecanismo de
defesa contra a ocorrência de uma ITU é o livre fluxo da urina, desde o parênquima
renal até a micção. Deste modo, quando esta condição é diagnosticada, algum fator
morfofuncional que interfira neste livre fluxo pode estar presente.

Os fatores de risco associados incluem os quadros de disfunção miccional e


constipação, que devem ser avaliados e adequadamente tratados.

Além disso, podem ser indicados exame de imagem para avaliação de alterações
morfológicas, como o refluxo vesicoureteral. Essas indicações são, sem sombra de
dúvidas, alvo de grandes controvérsias dentro do universo da nefro e da uropediatria.

Vamos discutir quais as finalidades dos exames eventualmente indicados e, após,


mostraremos algumas das recomendações encontradas que podem aparecer em
concursos.

EXAMES PARA AVALIAÇÃO ANATÔMICA E FUNCIONAL DO TRATO URINÁRIO

ULTRASSONOGRAFIA RENAL E DE VIAS URINÁRIAS (USG)

É um método seguro, sem efeitos colaterais e que possibilita avaliar rim, bexiga e a
presença de hidronefrose, litíase, abscesso renal, entre outras condições. Tem baixa
sensibilidade na demonstração de refluxo e cicatrizes renais.

URETROCISTOGRAFIA MICCIONAL (UCM)

Este método é invasivo, mas relativamente seguro. A UCM é o método utilizado para
identificação e classificação do grau do refluxo vesicoureteral, que veremos com mais
detalhes em uma seção específica. O exame consiste na cateterização da bexiga e
injeção de contraste, objetivando mapear se há refluxo para ureteres e pelve renal. O
exame só pode ser feito após o término do tratamento erradicador e a Sociedade
Brasileira de Pediatria recomenda que a criança esteja recebendo antibioticoprofilaxia
para sua realização.

CINTILOGRAFIA
Cintilografia Renal Estática

O ácido dimercaptossuccínico marcado com tecnécio 99 ( 99mTc – DMSA) é injetado


na circulação e captado pelas células tubulares proximais renais, sendo excretado
muito lentamente. A leitura desta captação é feita em uma gama-câmara, de modo a
possibilitar a aquisição de imagem em ambos os rins, identificando locais de ausência
de captação que correspondem a áreas não funcionantes.

A cintilografia com DMSA é útil na detecção de cicatrizes renais, quando feita meses
após o episódio agudo, e também no diagnóstico de uma infecção aguda (pielonefrite),
quando feita na fase aguda da doença. Cerca de 50% das lesões agudas identificadas
durante um processo inflamatório do parênquima são revertidas. Por isso, se o
objetivo é detectar sequelas tardias ou cicatrizes irreversíveis, recomenda-se que o
exame seja feito quatro a seis meses após a resolução da ITU.

Cintilografia Renal Dinâmica

O ácido dietilenotriaminopentacético marcado com tecnécio 99 (99mTc – DTPA) é


injetado na circulação e possui como característica a não captação pelas células
tubulares, com livre filtração pelo glomérulo e eliminação na urina. Por isso, sua
principal utilidade é permitir a avaliação da capacidade de filtração renal, podendo ser
indicado na investigação de uropatias obstrutivas. Pode ser realizado com ou sem o
uso da furosemida.

UROGRAFIA EXCRETORA

Método muito utilizado antes do advento da medicina nuclear para avaliar a


morfologia do sistema urinário. Apresenta como desvantagens a elevada carga de
irradiação e os riscos associados com o uso de contrastes iodados.

ESTUDOS URODINÂMICOS

São reservados para crianças com suspeita de algumas disfunções miccionais e bexiga
neurogênica.

INDICAÇÕES PARA OS EXAMES

Não existe qualquer consenso em relação a este tema. Conheça as principais


recomendações e isso permitirá que você faça a análise das diversas situações que
podem ser apresentadas em um concurso.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA (2017)

Na última edição de seu Tratado, a Sociedade Brasileira de Pediatria reitera o conceito


de que existem diversos protocolos, mas sugere o que mostraremos a seguir.

Todas as crianças, em qualquer idade, de ambos os sexos, após o primeiro episódio de


ITU bem documentado, devem ter seu trato urinário investigado anatômica e
funcionalmente.

● Crianças menores de dois anos: estão indicadas a USG de vias urinárias e a UCM.
» Se for detectado refluxo, a investigação é complementada com a cintilografia
estática com DMSA, cujo objetivo principal é identificar a presença de cicatrizes renais.
» Na presença de hidronefrose ou suspeita de obstruções, indica-se a realização da
cintilografia estática com DMSA, dinâmica com DTPA ou urografia excretora.
● Crianças maiores de dois anos: realiza-se inicialmente a USG e, se esta estiver
alterada, complementa-se a propedêutica com os demais exames disponíveis (UCM e
cintilografia com DMSA ou DTPA).

É interessante observar que, poucos meses antes da publicação deste livro, o próprio
Departamento de Nefrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria publicara um
documento científico com recomendações distintas. Neste documento, do final de
2016, a recomendação era:

● Após o diagnóstico de ITU: realizar USG.


» USG normal: realizar apenas cintilografia com DMSA; se esta for normal, indicar o
seguimento; se esta estiver alterada, indicar a UCM.
» USG alterada: indicar a cintilografia com DMSA e a UCM.
Neste texto não há referência à idade para estas orientações.

NELSON – TRATADO DE PEDIATRIA (21a EDIÇÃO – 2019)

Nesta importante referência para os concursos, não encontramos uma única indicação,
mas sim a descrição de diversos tipos de acompanhamentos propostos por várias
fontes distintas.

A tentativa de memorizar todas as recomendações aí contidas é completamente


infrutífera. Vale você conhecer o que é recomendado pela Academia Americana de
Pediatria.

De acordo com esta fonte, faremos o seguinte:

● Crianças entre 2 e 24 meses, após primeiro episódio de ITU febril: USG.


» Se exame normal, acompanhamento.
» Se USG indicar hidronefrose, cicatrizes ou outras alterações que possam sugerir
refluxo vesicoureteral de alto grau ou uropatia obstrutiva ou ainda na presença de
quadro atípico ou
complexo: UCM. A UCM também estará sempre indicada se houver recorrência da ITU
febril.
Neste livro ainda é ressaltado que, quando há apenas cistite, não costuma haver a
recomendação de realização de exames de imagem (eventualmente, em casos de
repetição, a USG pode ser considerada).

QUIMIOPROFILAXIA

A quimioprofilaxia com antibióticos já foi uma prática rotineira durante o


acompanhamento das crianças com relato de ITU. Atualmente, as indicações são cada
vez mais restritas.

Na atual edição do Tratado da Sociedade Brasileira de Pediatria encontramos as


seguintes recomendações para a profilaxia:
● Durante a investigação do trato urinário após um primeiro episódio de ITU;
● Quando há diagnóstico de anomalias obstrutivas do trato urinário enquanto se
aguarda a correção cirúrgica;
● Na presença de refluxo vesicoureteral de graus III a V;
● Nas crianças que apresentem recidivas frequentes da ITU, mesmo com estudo
morfofuncional do trato urinário dentro da normalidade; nesses casos, deve ser
utilizada por um período de 6 a 12 meses, podendo, quando necessário, prolongar-se o
tempo de uso.

A profilaxia pode ser feita com nitrofurantoína ou sulfametoxazol + trimetoprima. Em


menores de dois meses recomenda-se a cefalexina. As doses usadas são mais baixas
que as doses terapêuticas e a medicação é habitualmente administrada à noite.

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