Você está na página 1de 7

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA


Fundada em 18 de fevereiro de 1808

PROTOCOLOS DE CONDUTAS EM PEDIATRIA

Morgana Porto Magalhães

Infecção do trato urinário (ITU)

Infecção do trato urinário caracteriza-se pela invasão e multiplicação bacteriana em qualquer


seguimento do aparelho urinário, associado à sintomatologia clínica específica. A
confirmação de bactérias em trato urinário sem sintomas associados implica em bacteriúria
assintomática, e não será considerada neste protocolo.

Incidência

Atinge preferencialmente o sexo feminino (proporção de cerca de 3: 1), exceto durante o


primeiro mês de vida quando predomina no sexo masculino. A infeção urinária prevalece nos
primeiros anos de vida, atingindo seu pico máximo, por volta dos 3 a 4 anos de idade.
O quadro clínico varia de acordo com a idade e localização da infecção. O diagnóstico de ITU
deve ser considerado em todo lactente com febre sem foco aparente. Em menores de 2 anos de
idade, toda ITU deve ser considerada Pielonefrite.

Agentes etiológicos

- E. coli ocorre em mais de 80% das ITU em meninas e em menos de 40% das ITU em
meninos.

- Proteus sp é mais freqüente em meninos e está associada a presença de fimose e/ou


balanopostite. Pode ser fator predisponente de calculose, pois sintetiza urease, que metaboliza
uréia em CO2 e amônia, alcalinizando a urina o que aumenta a cristalização de sais de cálcio.

- Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus sp são mais freqüentes após a manipulação das


vias excretoras e/ou uso de antibioticoterapia pregressa.

- Klebesiella sp e Streptococcus do grupo B são mais freqüentes em adolescentes. Nas


adolescentes sexualmentes ativas, destacam-se as infeções por Staphlococcus saprophyticos.

- Fungos, vírus e anaeróbios são causas menos frequentes de ITU.

1
Vias de infecção

Ascendente:

- As bactérias provêm do intestino grosso, colonizam a região periuretral e daí ascendem para
uretra e bexiga.

- Este mecanismo fisiopatogênico explica porque as meninas tem ITU mais frequentemente
por terem uretra mais curta em relação a meninos.

- Existem evidências que este mecanismo ocorra inclusive no período neonatal. Neonatos
nascidos de parto vaginal, cujas mães são portadoras de bactérias uropatogênicas no intestino,
têm probabilidade de ITU 4x maior.

Hematogênica:

- Ocorre principalmente no período neonatal determinando ITU grave, que pode evoluir com
sepse, com manifestações neurológicas, sendo que a cepa causadora de bacteremia é a mesma
da ITU em 50% dos casos.

Quadro clínico

A sintomatologia é própria do trato urinário, especialmente nos pré-escolares, escolares e


adolescentes, que podem cursar com disúria, polaciúria, tenesmo, urgência e retenção ou
incontinência urinária, enurese, associada ou não a sintomas gerais como febre, prostração,
anorexia, vômitos, dor abdominal e crescimento deficiente.

O diagnóstico clínico no RN e pequenos lactentes é mais difícil, uma vez que os sintomas
urinários são pobres e os gerais são compatíveis com diversos quadros infecciosos, retardando
o tratamento correto. Não é raro manifestar-se somente com hipoatividade, anorexia,
regurgitação ou vômitos, distensão abdominal e íleo paralítico. Os lactentes comumente
apresentam febre, anorexia, vômitos, crescimento deficiente e alteração do habito intestinal.

Exames laboratoriais

2
Sumário de urina: alterado em mais de 80 % dos casos nos primeiros surtos de ITU. Sugere
ITU a observação de estearase leucocitária e nitrito positivos, sedimento com leucocitúria,
hematúria e cilindros leucocitários, além de grumos piocitários. Leucocitúria, hematúria e
cilindrúria são sugestivas de ITU, mas não permitem seu diagnóstico definitivo. Podem
ocorrer por inflamações não relacionadas à ITU (vulvovaginite, balanopostite, virose, reação
pós-vacinal, gastroenterocolite, desidratação, manipulação instrumental ou cirúrgica do trato
urinário ou digestivo).

Urocultura: exame que confirma a ITU e sua confiabilidade depende da forma que a urina foi
coletada.

Coleta adequada:

- paciente sem controle de esfíncter: colher por punção supra-púbica (PSP) ou cateterismo
vesical. Priorizar realizar PSP se o paciente tiver fimose, balanopostite / vulvovaginite, e nos
meninos, visto que sondagem vesical é mais difícil de ser realizada em meninos.

- com controle de esfíncter: colher jato médio com assepsia prévia.

Coleta com saco coletor tem 85% de falso positivo e não deve ser utilizado. Só valorizar
quando resultado for negativo.

Contraindicação de PSP: íleo paralítico, dermatite intensa no local da punção, coagulopatias,


abdômen agudo.

Bacteriúrias significativas - isolamento de único patógeno:

* Jato Intermediário (JI)

- Negativo/contaminação: < 10.000 UFC/ml

- Suspeito: 10.000– 100.000 UFC/ml , considerar positivo a depender da clínica, os achados


do exame de urina, e se a bactéria é uropatógeno (O cultivo Lactobacillus spp, staphylococcus
coagulase-negativo, e Corynebacterium não são considerados relevantes)

- Infecção confirmada: > 100.000 UFC/ml, ou, mais recentemente, considerar > 50.000
UFC/ml

3
* Sondagem Vesical (SV)

- 1000 ou mais UFC/ml.

* Punção supra-púbica (PSP)

- Qualquer número de colonias

Outros exames de laboratório: HMG completo, HMC, função renal, eletrólitos, gaso venosa.

Tratamento

Deve ser iniciado precocemente de forma empírica com objetivo de resolver a infecção aguda,
prevenir complicações e reduzir o risco de dano renal.

A escolha do ATB deve ser direcionada aos patógenos mais comuns (E coli em 80% dos
casos) e na susceptibilidade antimicrobiana das bactérias da comunidade até obtenção do
resultado da urocultura.

O antibiótico oral pode ser indicado, desde que o paciente não esteja séptico e aceite a
medicação pela via oral. Os antibióticos mais usados atualmente são as cefalosporinas de 1ª e
2ª geração, sulfas e quinolônicos pela via oral, e as cefalosporinas de 3ª geração pela via
parenteral. O tempo ideal de tratamento não está bem definido e varia de 7 a 14 dias.
Esquemas curtos de tratamento ou dose única não são recomendados na pediatria.

Em crianças até 3 meses de vida, é preferível, especialmente se condição sócio-cultural


desfavorável, fazer o tratamento com a criança internada. Oferecer suporte hidro-eletrolítico
adequado e tratamento dos sintomas gerais, como febre e vômitos.

Antibioticoterapia empírica: aminoglicosídeo ou cefalosporina de 3ª geração ou associação


[ampicilina +gentamicina] ou [amicacina + ampicilina + ceftriaxone], dependendo da
gravidade do quadro clínico inicial, com tempo de tratamento de 10 a 14 dias, com controle
de urocultura 2 a 5 dias após o término.

Medicamentos e suas doses

Via oral

4
- Nutrifurantoína: 6 mg/kg/dia, dividido de 6/6 ou 8/8 horas

- Ácido Nalidíxico: 30 a 50 mg/kg/dia, 6/6 ou 8/8 horas

- Sulfametoxazol e trimetropim: 8 a 10 mg de TMP /kg/dia, 12/12 horas. Não usar nos < 2
meses de vida, portadores de deficiência G6PD, porfiria e anemia megaloblástica.

- Cefalexina: 50 a 100 mg/kg/dia, 6/6 horas

- Cefaclor: 20 a 40 mg/Kg/dia, 8/8 horas.

- Axetilcefuroxima: 20 a 30 mg/Kg/dia, 12/12 horas.

- Ciprofloxacino: 20 a 30 mg / kg / dia, 12/12 horas, máx 500 mg/dose. Usar nas ITUs
complicadas, como as por Pseudomonas sp em bexiga neurogênica. Não usar nos menores de
18 meses.

Parenteral

- Amicacina: 15 mg/Kg/dia, 1x/dia (máx 1,5 g/dia) / RNPT: 7,5 a 10 mg/Kg/dia, 1x/dia

- Gentamicina: 6 a 7,5 mg/Kg/dia, 8/8 h / RNPT: 2,5 mg/Kg/dose, a cada 12 ou 24 horas

- Ampicilina: 100 a 200 mg/kg/dia, 6/6 horas

- Ceftriaxona: 50 a 100 mg/Kg/dia, 12/12 ou 24/24 horas (máx 4 g/dia) / RN: 25 a 50


mg/Kg/dia, 1x/dia (máx 125mg)

- Ciprofloxacino: 10 a 20 mg/kg/dia, 12/12 horas (máx 400 mg/dose)

Refluxo Vesicoureteral

O Refluxo Vesicoureteral (RVU) é considerado a anomalia mais comum do trato urinário e o


principal fator de risco associado à ITU de repetição em crianças. Estima-se que 30 a 40% das
crianças com ITU febril tenham RVU em graus variados. O RVU pode ser primário ou
secundário por uropatias obstrutivas ou disfunção do trato urinário inferior/DTUI (mais
frequente em meninas com idade de controle dos esfíncteres que cursam com alteração
funcional de enchimento vesical e esvaziamento vesical/intestinal).

Investigação por imagem


5
A USG é um exame não invasivo que pode mostrar o tamanho e a forma dos rins, a presença
de duplicação pielocalicial, cálculo renal, dilatação da pelve e ureteres, ureterocele, abscesso
renal ou peri-renal. Em crianças continentes pode informar sobre volume pré e pós-miccional
e eventual espessamento da parede vesical indicando disfunção do trato urinário. Se normal,
geralmente não se recomenda outros exames. Se alterado, a investigação deve ser
complementada. O momento ideal para a sua realização depende da situação clínica. É
recomendado de rotina nos caso de ITU em RN e lactentes no primeiro episódio de ITU,
enquanto em crianças maiores está indicada nos casos de ITU atípica, recorrente ou
complicada.

A Uretrocistografia Miccional (UCM) é realizada para diagnóstico de RVU, VUP, e outras


uropatias obstrutivas. O procedimento requer cateterização uretral e enchimento da bexiga
com líquido radioativo ou radiopaco e registra-se a presença ou ausência de RVU durante a
fase de enchimento (passivo) e durante a micção (refluxo ativo). Também permite conhecer o
grau de RVU e outras alterações anatômicas da uretra (ex: válvula de uretra posterior / VUP).

UCM é indicada se houver alteração ultrassonográfica do trato urinário, ou em crianças


portadoras de ITU atípica, recorrente ou complicada

Cintilografia Renal com DMSA (ácido dimercaptossuccínico) marcado com tecnécio-99 é um


exame de grande sensibilidade para diagnosticar pielonefrite aguda quando realizado na fase
precoce, e cicatriz renal na fase posterior (em torno de 6 meses após a infecção aguda). É
indicada em lactentes com ITU febril, portadores de RVU ou pielonefrite aguda recorrente.
Conhecer a presença e extensão das cicatrizes estabelece o prognóstico renal. Quando
extensas e bilaterais, podem evoluir para doença renal crônica.

Quimioprofilaxia

É definida como uso de doses baixas e por tempo prolongado de antibióticos ou


quimioterápicos, objetivando inibir a multiplicação de bactérias uropatogênicas e diminuir a
predisposição do hospedeiro a novos surtos de ITU. É aplicada, em geral, em dose única de ¼
a ½ da dose terapêutica. Os fármacos mais usados são a nitrofurantoína (1-2mg/kg/dose) (que
induz menos resistência bacteriana, mas não deve ser usada em pequenos lactentes),
sulfametoxazol + trimetropim (0,5ml/kg/dia) e cefalexina (10-25mg/kg/dia) (mais utilizada

6
em lactentes). O fármaco escolhido deve ser efetivo, não tóxico e com poucos efeitos
colaterais.

Com base nos estudos até o momento, é possível dizer que a quimioprofilaxia deve ser usada
em crianças de alto risco para ITU: RVU graus III-IV, episódios de ITU recorrentes, ITU
associada à DTUI, pacientes nos quais a primeira ITU tenha sido complicada (sepse) ou que
apresentem uropatias obstrutivas complexas e pacientes com déficit imunológico.

Melhor resultado é obtido quando a quimioprofilaxia é associada às medidas de correção do


esvaziamento vesical e intestinal.

Você também pode gostar