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CASOS CLÍNICOS

Não existe de momento nenhum teste analítico de diagnós-


Caso Clínico
tico para a intoxicação alimentar por ciguatera. O diagnós-
Em Agosto de 2012 um grupo de 12 pescadores que se en-
tico é essencialmente clinico e habitualmente assenta nos
contravam numa embarcação ao largo do arquipélago da
seguintes critérios: 1) história de ingestão de peixe pescado
Madeira foi levado ao Serviço de Urgência por um quadro
junto a corais que habitualmente estão associados à cigua-
caracterizado por diarreia, náuseas, vómitos e dor abdomi-
tera (charuteiro, barracuda, moreia, pargo, peixe-cão, peixe
nal, de inicio súbito, cerca de 3 horas após o almoço. Todos
porco); 2) manifestações gastrointestinais e neurológicas
os doentes eram do sexo masculino, com uma idade média
consistentes com intoxicação por ciguatera; 3) exclusão de
de 35 anos (máximo de 48 e mínimo de 18 anos). No exame
outra causa potencial; e 4) confirmação da toxina no peixe
objetivo constatou-se bradicardia em todos os doentes e hi-
consumido, se possível.1
potensão na maioria (nove indivíduos). Os doentes encontra-
O peixe pode ser testado usando um teste denominado
vam-se apiréticos e não revelaram alterações na avaliação
Cigua-Check® Fish Poison Test Kit que detecta ciguatoxinas
analítica. Sete doentes foram admitidos no Serviço de Ob-
no músculo dos peixes.
servação por bradicardia marcada (fc < 40 bpm) sendo que
A base do tratamento é de suporte, sendo que alguns au-
quatro destes necessitaram de terapêutica com atropina.
tores defendem inicialmente a descontaminação com carvão
Após estabilização dos doentes e cruzamento das diferen-
ativado; no entanto a grande maioria dos doentes procura
tes histórias clinicas verificou-se que o grupo de pescadores
cuidados de saúde 1 hora após a ingestão e o quadro de vó-
consumiu peixe-porco contaminado, pescado ao largo das
mitos abundante torna esta terapêutica muitas vezes impos-
ilhas Desertas.
sível. Assim sendo a descontaminação não é recomendada.
A totalidade dos doentes recebeu alta clínica nos dias se-
O tratamento de suporte consiste no assegurar de via aé-
guintes, sendo que o doente que esteve mais tempo interna-
rea, com eventual entubação endotraqueal se coma, dificul-
do cumpriu um total de quatro dias de internamento sendo
dade respiratória ou fraqueza muscular.
apenas possível suspender a atropina ao terceiro dia.
O sistema circulatório encontra se muitas vezes compro-
metido sendo que a desidratação causada pelos vómitos e
Discussão diarreia deve ser tratada com rápida repleção de fluidos com
Os indivíduos afetados por intoxicação por ciguatera desen- soluções salinas isotónicas (ex. 20 mL/kg de cloreto de só-
volvem uma constelação de sintomas que podem ser gas- dio 0,9%). A bradicardia sintomática deve ser tratada com
trointestinais (diarreia, náuseas, vómitos e dor abdominal), atropina endovenosa. As doses desta variam, mas evidência
neurológicos (parestesias das extremidades, prurido, tontu- escassa sugere que podem ser necessárias altas doses (su-
ra, ataxia ou descoordenação motora) ou cardíacos (bradi- gere se 0,5 mg de atropina endovenosa a cada 5 minutos
cardia, hipotensão ou bloqueio aurículo ventricular). A apre- com o objectivo de manter uma frequência cardíaca > 60
sentação pode ocorrer 3 a 6 horas após o consumo do peixe batimentos por minuto no individuo adulto). Nos casos de hi-
contaminado, mas pode também tardar até às 30 horas. As potensão refratária a fluidos devem ser consideradas aminas
manifestações clinicas mais habituais são as gastrointesti- vasopressoras.
nais sendo que as cardíacas foram raramente reportadas no Os vómitos podem ser tratados com anti eméticos (ex.
mar do Atlântico. ondasetron). Uma vez que a diarreia pode ser benéfica na
A evolução da intoxicação por ciguatera é muito variável. remoção da toxina ingerida, os agentes antidiarreicos devem
As manifestações gastrintestinais e cardiovasculares re- ser evitados.
solvem habitualmente ao fim de 24 a 48 horas e raramente Os sintomas neurológicos causados pela infeção por ci-
persistem após os 4 dias. As neurológicas podem persistir guatera podem ser prolongados e debilitantes. Foram suge-
alguns dias a semanas.4 ridos vários tratamentos, mas a evidência científica em torno
O envenenamento por ciguatera é causado por distintas dos mesmos é limitada. Agentes como a gabapentina, a ami-
toxinas, da qual a ciguatoxina é a mais conhecida. Estas toxi- triptilina e a pregabalina podem ter a sua utilidade no contro-
nas são formadas pelos dinoflagelados do género Gambier- lo das parestesias e da dor neuropática; nos casos de fadiga
discus, que são organismos da família das algas que proli- crónica e depressão sugere se terapêutica com fluoxetina.
feram em torno dos corais de recifes. Estes dinoflagelados
são consumidos por peixes de largo porte (ex.: charuteiro, Conclusão
barracuda, moreia, pargo) que concentram a toxina nos seus A melhor prevenção da infeção por ciguatera é a evição do
órgãos e músculos mas não são afetados por esta.3 consumo de peixes de alto risco tais como charuteiro, bar-
A ciguatoxina é uma toxina lipo solúvel, estável no calor e racuda, moreia, pargo, peixe-cão, peixe porco. Infelizmente
ácido resistente. Promove a abertura dos canais de sódio de- não existe nenhum teste rotineiro de diagnóstico de infeção
pendentes da voltagem ao nível das membranas celulares, no peixe pescado. Quando nos trópicos, parece ser menos
causando despolarização. arriscado consumir peixes de menores dimensões e evitar

PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL
VOL.24 | N.º 1 | JAN/MAR 2017 31
INTOXICAÇÃO ALIMENTAR POR CIGUATERA

o consumo de órgãos dos peixes, tais como o fígado, local


onde se concentram as toxinas.
O aquecimento global potencia a proliferação do dinofla-
gelado do género Gambierdiscus, fazendo com que zonas
outrora não atingidas, possam agora vir a apresentar surtos
mais frequentes, assim como o crescimento do turismo, a im-
portação de peixe e os fluxos migratórios pouco usuais dos
peixes. As manifestações cardíacas são pouco frequentes
no entanto são aquelas que mais podem condicionar a po-
pulação afetada. É por isso fundamental a identificação pre-
coce do problema devendo haver sempre uma suspeição clí-
nica elevada, na presença de história de consumo de peixe
identificado como de risco, pescado nas águas temperadas
do oceano Atlântico. ■

Protecção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que


não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais.

Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores decla-


ram que nenhum dado que permita a identificação do doente apa-
rece neste artigo.

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de confli-


tos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financia-


mento para a realização deste artigo.

Correspondência: Ana Isabel Costa - costa.ananunes@gmail.com


Serviço de Medicina Interna, Hospital Central do Funchal, Funchal,
Portugal
Avenida Luís de Camões, nº 57, 9004-514 Funchal

Recebido: 14/06/2016
Aceite: 10/11/2016

REFERÊNCIAS
1. Erin NM. Ciguatera fish poisoning. UpToDate [Acessed January 10,
2016). Available from: http://uptodate.com
2. Outbreak alert. Closing the gaps in our federal food-safety net. Centers
for Science in the Public Interest (CSPI), Washington, 2008. http://cspinet.
org/new/pdf/outbreak_alert_2008_report_final.pdf [Acessed January 11,
2016]
3. Center for Disease Control and Prevention (CDC). Ciguatera fish poiso-
ning-New York City, 2010-2011. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2013;
62:61.
4. Dickey RW, Plakas SM. Ciguatera: a public health perspective. Toxicon.
2010; 56:123-36.

32 Medicina Interna
REVISTA DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE MEDICINA INTERNA

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